espectatorialidade e materialidade na televisão multiplataforma
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Tensionando as relações entre tecnologia, materialidade e cognição, o presente artigo tem como objetivoanalisar a recepção televisiva combinada com a navegação simultânea na Internet em outros dispositivos. A proposta é investigar os possíveis impactos que a televisão multiplataforma gera na experiênciasubjetiva, sensorial e cognitiva dos telespectadores, recondicionando hábitos e comportamentos. Paraelucidar as questões que se colocam, elege-se como objeto de estudo o programa SuperStar. O artigopropõe uma análise do modo como a alteração do status material dos dispositivos pode influenciar asrelações que o telespectador estabelece com o meio televisivo.TRANSCRIPT
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Revista GeMinis | ano 6 - n. 1 | p. 174-189
Melissa RibeiRo de alMeidaMestre e Doutoranda em Comunicao pela Universidade Federal Fluminense, Bolsista CAPES.E-mail: [email protected]
espectatoRialidade e MateRialidade na televiso MultiplatafoRMa: uMa anlise do pRoGRaMa supeRstaR
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ResuMo
Tensionando as relaes entre tecnologia, materialidade e cognio, o presente artigo tem como objetivo analisar a recepo televisiva combinada com a navegao simultnea na Internet em outros dispositi-vos. A proposta investigar os possveis impactos que a televiso multiplataforma gera na experincia subjetiva, sensorial e cognitiva dos telespectadores, recondicionando hbitos e comportamentos. Para elucidar as questes que se colocam, elege-se como objeto de estudo o programa SuperStar. O artigo prope uma anlise do modo como a alterao do status material dos dispositivos pode influenciar as relaes que o telespectador estabelece com o meio televisivo.
Palavras-chave: Televiso; Convergncia Digital; Internet; Materialidade.
abstRact
This article aims to analyze television reception combined with the simultaneous navigation on the Internet in other devices, tensioning the relationships between technology, materiality and cognition. The proposal is to investigate the possible impacts that multiplatform TV generates in the subjective, sensory and cognitive experience of viewers, reconditioning habits and behaviors. In order to elucidate these questions the program SuperStar was chosen as the object of study.
Keywords: Televison; Digital Convergence; Materiality.
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1 Introduo
Desde o seu surgimento na primeira metade do sculo XX, a televiso permaneceu como o espao para a exibio de contedos televisivos. Por dcadas pensava-se que esse formato de vdeo pudesse circular exclusiva-mente nos aparelhos de TV porque esse era o nico dispositivo ou a condio tcnica
possvel. Mas as mudanas tecnolgicas que se configuraram nos ltimos anos,
culminando com a convergncia digital, apontam para transformaes significativas
nas prticas comunicacionais, incluindo a experincia televisiva. Conforme Manovich
(2001), as tecnologias digitais permitem converter todos os contedos miditicos para
a linguagem digital, modificando, contudo, as formas de produo, armazenamento,
distribuio e recepo. Os dispositivos digitais mveis de comunicao notebooks,
smartphones, tablets permitem, por exemplo, que contedos televisivos sejam trans-
portados para a base digital e acessados em qualquer lugar e por meio de diferentes
suportes. A experincia televisiva contempornea vem passando por uma ampla reformulao
e o uso simultneo da Internet e de mdias sociais durante a recepo televisiva tem papel fundamental nessa transformao. Os contedos televisivos se expandem para mltiplas plataformas e o telespectador passa a utilizar a Internet para ampliar sua experincia televisiva, buscando informaes sobre o que assiste na televiso e compartilhando opinies com outros telespectadores.
O Twitter tem se consolidado como a principal plataforma para os usurios trocarem informaes sobre o que assistem, compartilharem vdeos e opinies sobre a programao e interagirem com outros telespectadores. Um estudo da Nielson, empresa que faz a medio da audincia miditica norte-americana, constatou que a audincia televisiva impulsionada conforme o volume de tweets, j que comentrios publicados no Twitter podem levar novos telespectadores a acompanhar um programa de TV e, do mesmo modo, quando um programa gera audincia significativa na TV a quantidade de publicaes na rede social aumenta
consideravelmente. Outra questo importante que as novas prticas comunicacionais requerem um
recondicionamento das habilidades e competncias cognitivas e sensoriais, j que a ao do
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acorpo, as formas de ateno e de percepo, as sensorialidades e as especificidades materiais
desses diferentes suportes, aliadas experincia da comunicao mvel e em rede, constroem novas situaes comunicacionais (RGIS, 2008; PEREIRA, 2006). Nesse sentido, o presente artigo tem o objetivo de analisar a recepo televisiva com o uso concomitante de dispositivos digitais mveis de comunicao, buscando tensionar as relaes entre tecnologia, materialidade e cognio. O foco a investigao sobre o modo como a alterao do status material dos dispositivos pode influenciar as relaes que o telespectador estabelece com a TV e com seus
contedos.De fato, em Arqueologia do Saber, Michel Foucault (2008) postula que o status material
dos enunciados interfere na prpria constituio dos enunciados.
Poderamos falar de enunciado se uma voz no o tivesse enunciado, se uma superfcie no registrasse seus signos, se ele no tivesse tomado corpo em um elemento sensvel e se no tivesse deixado marca - apenas alguns instantes - em uma memria ou em um espao? Poderamos falar de um enunciado como de uma figura ideal e silenciosa? O enunciado sempre apresentado atravs de uma espessura material, mesmo dissimulada, mesmo se, apenas surgida, estiver condenada a se desvanecer. Alm disso, o enunciado tem necessidade dessa materiali-dade; mas ela no lhe dada em suplemento, uma vez bem estabelecidas todas as suas determinaes: em parte, ela o constitui. Composta das mesmas palavras, carregada exatamente do mesmo sentido, mantida em sua identidade sinttica e semntica, uma frase no constitui o mesmo enunciado se for articulada por algum durante uma conversa, ou impressa em um romance; se foi escrita um dia, h sculos, e se reaparece agora em uma formulao oral. As coordenadas e o status material do enunciado fazem parte de seus caracteres intrnsecos (FOUCAULT, 2008, p. 113).
Em sua reflexo, Michel Foucault mostra como as materialidades dos meios, sejam eles quais forem, constituem peas chave para o entendimento dos enunciados. Esse ser o ponto de partida para a investigao que propomos sobre a televiso multi-plataforma um modelo televisivo construdo a partir da apropriao e da articulao entre diversos meios. A fim de compreender melhor o fenmeno em questo, propomos como objeto de estudo o reality show musical SuperStar, da Rede Globo de Televiso.
2 A relao entre sujeitos e objetos
Nossa perspectiva de anlise parte de uma corrente contempornea de pensamento que entende a materialidade dos objetos como importante elemento nos processos cognitivos e sensoriais e nas formas de pensamento, lanando um novo olhar sobre a relao do homem com a tecnologia e com os objetos em si, a partir de uma reformulao do par sujeito/objeto. Nesse contexto, os dispositivos tcnicos no so
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concebidos como meras ferramentas ou canais que transportam contedos de forma
isenta, mas como peas fundamentais na comunicao, como objetos que nos afetam,
nos tocam de alguma forma e atuam significativamente no processo cognitivo.
A discusso proposta inicialmente nos anos de 1960 pelo pesquisador da
Escola de Toronto, Marshall McLuhan (2005), quando postulou que o meio a
mensagem, e retomada nos anos de 1980 por um ciclo de pensadores alemes, repre-
sentados por Hans Ulrich Gumbrecht (2010), prope um deslocamento da reflexo
sobre a mediao tecnolgica do campo hermenutico para os aspectos materiais dos
dispositivos. Reivindica, ainda, uma ruptura da fronteira sujeito/objeto, ultrapassando
o estatuto central da interpretao e a supremacia do sujeito em relao ao objeto. Essa
viso, contudo, no desconsidera completamente os efeitos simblicos gerados pelos
contedos dos meios de comunicao, seus sentidos ou significaes scio-politico-cul-
turais e ideolgicas, mas defende que a materialidade do dispositivo produz efeitos to
importantes quanto aqueles gerados pelas mensagens veiculadas, assim como j nos
havia mostrado Foucault (2008).
Gumbrecht argumenta que os modos como nos relacionamos com os fenmenos
humanos no podem estar restritos hermenutica, interpretao que extrai sentidos
quase sempre profundos ou ocultos, e sugere um deslocamento da centralidade da
interpretao no campo das Artes e Humanidades com a constituio de um campo no-
-hermenutico de investigao. Ele prope uma lgica que considere no s o sentido,
mas tambm a produo de presena dos objetos, das coisas em si, concebendo como
presena a relao espacial com o mundo e seus objetos. Uma coisa presente deve
ser tangvel por mos humanas o que implica, inversamente, que pode ter impacto
imediato em corpos humanos (GUMBRECHT, 2010, p. 13.).
Apelando aos sentidos, o impacto dos objetos presentes ou dos fenmenos
de presena sobre os corpos humanos denominado por Gumbrecht de efeitos de
presena. Assim como McLuhan, Gumbrecht est interessado em saber como as
diferentes materialidades da comunicao afetam o sentido que transportam. Para o
autor alemo, qualquer forma de comunicao, com seus elementos materiais, tocar
os corpos das pessoas que esto em comunicao de modos especficos e variados
(GUMBRECHT, 2010, p. 37). Segundo ele, a afetao dos corpos atravs dos sentidos se
d por meio de momentos especficos de intensidade como ouvir uma msica que
nos toca de maneira especial ou vivenciar um momento decisivo numa competio
esportiva o que Gumbrecht chama de epifania.
fundamental deixar claro que ao questionar a tese da universalidade da
interpretao Gumbrecht no elimina a dimenso da produo de sentido, no
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aentanto reivindica que a produo de presena tambm se torne parte integrante e
necessria na compreenso do mundo. Assim, ele defende que os efeitos de sentido
e os efeitos de presena aparecem sempre juntos, embora estejam continuamente em
tenso. Essa concepo coloca em xeque uma tradio largamente institucionalizada na
modernidade, a partir do iluminismo, na qual o sujeito tem uma supremacia em relao
ao objeto e o conhecimento s se torna legtimo se for produzido por um sujeito no ato
de interpretar o mundo, gerando sentido.
O afastamento da centralidade da interpretao permite a emergncia de
novas formas de se pensar a relao sujeito/objeto. Esse novo ponto de vista considera,
portanto, que os objetos com os quais nos relacionamos tambm contribuem para o
nosso conhecimento sobre o mundo, pois nos afetam continuamente e fazem parte
das relaes que estabelecemos. Pensamento semelhante tem Daniel Miller (2013)
ao afirmar a necessidade de se lanar um olhar sobre a cultura material, incluindo
artefatos tecnolgicos, roupas e objetos do cotidiano para o conhecimento sobre o
mundo e as culturas. Em seu estudo antropolgico ele demonstra, por exemplo, como as
roupas interferem na construo da subjetividade e do prprio comportamento social.
Do mesmo modo, Edwin Hutchins (2000) prope a ideia de cognio distribuda,
defendendo que a cognio se processa no exclusivamente na mente humana, mas em
associao com o mundo material e social, atuando de modo contextualizado.
Essa concepo de cultura material como colocada por Miller e Hutchins
problematizada, contudo, por autores como Bruno Latour (2011, 2012), uma vez que
ela supe que h um mundo das coisas separado de um mundo cultural, das pessoas.
Para Latour, diferentemente, a cultura se constri juntamente com as coisas, uma
vez que pessoas e coisas esto inseridas numa rede scio-tcnica estabelecida entre
humanos e no-humanos e na qual tudo o que produz transformao dentro dessa rede
funciona como um actante (LATOUR, 2012). De modo particular, Latour reconstitui
essa separao entre humanos e no-humanos e afirma que os homens so feitos pelos
objetos assim como os objetos so feitos pelos homens. Por esta razo, os humanos no
seriam to humanos e os no-humanos no seriam to no-humanos, ambos seriam
hbridos, quase-objetos e quase-sujeitos que s poderiam ser compreendidos
juntamente.
Pensar que no-humanos so agentes determinantes no conhecimento do
mundo considerar que os objetos, as coisas do mundo (GUMBRECHT, 2010), estando
em nossa frente, produzem presena, afetam nossos sentidos por sua materialidade
e nos permitem uma experincia no conceitual que tambm pode construir modos
de pensar e de agir. nesse sentido que ao analisar o modelo do panptico como uma
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materialidade arquitetnica, que estabeleceu a partir de uma srie de tcnicas disci-
plinares um modo de ser prprio da Sociedade Disciplinar, Michel Foucault (2007)
evidencia que as circunstncias materiais, juntamente com as conjunes histricas,
constroem discursos e comportamentos, inscrevem modos de pensar e de agir. Para
Foucault, a subjetividade emergente na modernidade do sculo XIX inseparvel da
maneira com que tcnicas disciplinares (que vo desde a construo arquitetnica das
prises, disposio das carteiras dos alunos nas salas de aula, altura das portas nos
banheiros e ao quadriculamento dos indivduos nas fbricas), instauradas em espaos
de confinamento, agiram sobre o corpo e construram um modo de pensar especfico
daquele momento histrico.
Nesse mesmo vis, Walter Benjamin (1985) enfatiza que os meios tecnolgicos
e suas materialidades traduzem a experincia subjetiva do homem moderno. A
experincia do choque em Benjamin, por exemplo, equivale ideia de uma mudana
repentina comum no cinema e na vida moderna, mensurada pela intensidade do
instante. De certa maneira, a concepo de choque em Benjamin como o toque fsico
e imediato dos objetos por meio de estmulos sensoriais efmeros parece se atualizar ou
reaparecer na noo de epifania postulada por Gumbrecht.
Desse modo, percebemos que para compreender as relaes entre sujeitos e
objetos preciso no s pensar os vnculos que estabelecemos com os objetos, mas
tambm as afetaes que sofremos destes objetos, ou seja, necessrio partir da
concepo de que o meio sempre produz uma forma de participao na nossa experincia
afetiva e corporal, na nossa percepo, e que as experincias de afetao pelos objetos
no passam exclusivamente por uma condio de sentido.
3 Televiso multiplataforma: materialidade, sensorialidade, cognio
Lidando com um conjunto dinmico de informaes, disponveis em mltiplas
telas, sob diferentes linguagens e a partir de inmeras possibilidades de interao,
o telespectador contemporneo necessita desenvolver processos cognitivos muito
mais complexos, que combinam atividades intelectuais, motoras e afetivas. O uso de
plataformas digitais exige o emprego de habilidades visuais, tteis e sonoras muitas
vezes simultneas e requerem, portanto, um treinamento constante do corpo para
lidar com as novas interfaces e suas linguagens. Acessando mais de um dispositivo ao
mesmo tempo, como quando assiste TV e posta comentrios no Facebook sobre o que
est vendo, o telespectador processa nveis diferentes de ateno ateno focalizada,
ateno concentrada/sustentada e ateno voluntria (CLARK, 2001). A realizao de
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atarefas simultneas pelos indivduos requer ainda, como afirmam Dario Salvucci e Niels Taatgen (2011), a ateno dividida, a ateno difusa e a ateno discriminativa. Cada uma dessas formas de ateno requisita um conjunto de habilidades cognitivas e sensrias a serem desenvolvidas pelo corpo e pela mente na realizao de uma determinada tarefa (RGIS, TIMPONI e MAIA, 2012).
H de se destacar, ainda, a necessidade de uma capacitao afetiva e social dos telespectadores para coordenar diversas conversas, ao mesmo tempo, com diferentes pessoas, sobre diversos assuntos e em plataformas com interfaces distintas. A espectato-rialidade televisiva se torna uma experincia interativa, reconfigurando a prpria ideia de socializao proporcionada pelo meio televisivo. A experincia social na televiso multiplataforma inclui formas novas de relao entre os telespectadores por meio das diferentes interaes realizadas nas redes sociais.
Os dispositivos digitais permitem, por exemplo, que ao assistir a um contedo interessante os telespectadores acessem e enviem o material por e-mail ou WhatsApp1 a um amigo ou o disponibilize em seu perfil no Facebook. A materialidade dos dispositivos mveis de comunicao e a prpria situao de mobilidade tm apontado a necessidade de se produzir contedos especificamente para este formato, com programas de menor durao e filmagens que facilitem a exibio nas telas de menor tamanho. Uma srie de servios complementa o ato de ver TV. possvel comentar os programas diretamente nas pginas onde so disponibilizados, compartilh-los com os amigos, fazer o download dos vdeos e modific-los, rev-los ou armazen-los.
importante salientar que os dispositivos portteis requerem uma ao diferenciada do corpo. Para ter acesso ao contedo televisivo no celular, por exemplo, o telespectador necessita aprender as interfaces dos aplicativos e desenvolver habilidades sensrio-motoras que permitem imprimir velocidade e fora adequadas em telas touchscreen, comandar o movimento rpido dos dedos nos pequenos teclados, focar a viso nas telas reduzidas, segurar o dispositivo a uma distncia que possibilite a compreenso das imagens e ainda administrar sua ateno dispersa entre diferentes estmulos do ambiente em movimento.
Tais variveis interferem no sentido dos prprios contedos televisivos, pois o que precisa ser absorvido passa a ser no mais o contedo dos programas, mas o conjunto televiso multiplataforma, incluindo todas as informaes e sensaes resultantes da utilizao simultnea da TV com outros dispositivos. preciso considerar, portanto, que ao contedo exibido cada telespectador acrescenta novos dados a partir de sua navegao na Internet e de sua interao nas mdias sociais, ampliando sua
1 Rede social para smartphones e tablets que permite a troca de informaes em forma de texto, udio, vdeo e fotos.
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experincia televisiva e se apropriando de novas ideias para compreenso dos textos
televisivos e seu posicionamento diante do que veiculado. A possibilidade de se
apropriar, compartilhar e construir contedos tambm aponta para o surgimento de
novas prticas sociais e de relacionamento, impactando diretamente a experincia
subjetiva dos telespectadores. Cada um deles se torna o centro da comunicao: suas
impresses, opinies e atitudes se tornam conhecidas, compartilhadas e importantes,
na medida em que ganham visibilidade.
As experincias sensoriais e cognitivas proporcionadas pela televiso multi-
plataforma apresentam particularidades na relao dos indivduos com a tecnologia e
entre os prprios sujeitos. A portabilidade, por exemplo, possibilita o acesso a contedos
televisivos dentro de um nibus ou mesmo na rua, o que exige maior grau de ateno
do usurio e uma nova postura auditiva, como o uso de fones de ouvido em ambientes
barulhentos, s para citar um exemplo, eliminando ou reduzindo os demais sons do
ambiente.
O tamanho reduzido da tela dos celulares exige uma maior proximidade do
telespectador com o dispositivo para facilitar a compreenso das imagens. Na maioria
das vezes o usurio segura o aparelho nas mos enquanto assiste aos vdeos, exigindo
uma postura no to confortvel se mantida por um longo tempo, o que faz com que
os vdeos sejam assistidos em pequenas doses. Aspectos materiais como claridade e
resoluo da tela, volume e qualidade do som interferem na experincia televisiva pro-
porcionada pelos aparelhos portteis. Os dispositivos mveis de comunicao e as novas
relaes espao-temporais por eles constitudas redefinem o sentido de presena da
TV, alterando a relao dos telespectadores com o prprio meio, com sua linguagem e
contedo e com o mundo ao seu redor.
Outro aspecto a se destacar que na Internet a programao televisiva diluda
em partes acessveis conforme o interesse e a disponibilidade dos usurios, o que
exige uma readaptao dos indivduos em relao ao acompanhamento de narrativas
e conexo de informaes. Por meio dos sites dos canais televisivos o usurio pode
classificar seus programas favoritos, construir sua prpria hierarquia informacional e
organizar um banco de dados para acesso posterior. A possibilidade de voltar, rever
as cenas e congelar as imagens tambm interfere em sua percepo sobre o contedo,
impactando sua experincia cognitiva. Concomitante transformao da TV, enquanto
suporte e linguagem, percebe-se a transformao do prprio telespectador, de suas
experincias enquanto consumidor e sujeito.
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a4 O caso SuperStar
A anlise de um programa televisivo emergente no contexto da convergncia
miditica pode nos ajudar a compreender melhor as questes levantadas. Tomemos
como objeto de estudo o reality show musical SuperStar, que estreou no dia 6 de abril
de 2014, na Rede Globo de Televiso, apresentado por Fernanda Lima, Andr Marques
e Fernanda Paes Leme. O programa teve 14 episdios e terminou no dia 6 de julho
de 2014, com a vitria da banda Malta. Baseado no programa israelense Rising Star,
SuperStar uma espcie de show de talentos no qual 35 bandas se apresentam frente
de um telo de LED que impede a visualizao do pblico e dos jurados. O painel exibe
fotos dos telespectadores e dos jurados que votam a favor da banda presente no palco.
Quando um nmero mnimo de votos atingido, o telo se levanta e as bandas podem
ver os jurados e a plateia. As bandas menos votadas so eliminadas do programa. A
grande novidade, de fato, trazida pelo reality show que a votao dos telespectadores
realizada somente pelo aplicativo oficial do programa, exclusivo para votao e que
pode ser baixado para smartphones e tablets. Cada voto dos jurados contabiliza 7% dos
votos, totalizando 21%, j que so trs jurados: Dinho Ouro Preto, Fbio Jnior e Ivete
Sangalo. Os outros 79% ficam a cargo do pblico e da plateia e so computados por
meio do aplicativo.
Vrias experincias semelhantes de participao do pblico j aconteceram na
televiso brasileira, tanto em outros reality shows, como o Big Brother Brasil, A Fazenda
ou A Casa dos Artistas, quanto em programas jornalsticos, esportivos e talk shows. Mas
em todos esses casos, o pblico efetivava sua participao por meio de computadores
com acesso Internet, por ligaes telefnicas ou por SMS2. Em SuperStar, o programa
s acontece com a interao dos telespectadores por meio de smartphones e tablets, no
possibilitando a votao pela Internet ou por telefone. Outro dado que o sistema
de votao s pode ser acessado no momento em que as apresentaes das bandas
acontecem, ao vivo. Isso significa que para participar do SuperStar o telespectador
precisa necessariamente fazer uso do seu smartphone enquanto assiste ao programa,
lidando com dois dispositivos diferentes simultaneamente e trabalhando com materia-
lidades, sensorialidades e processos cognitivos distintos aos associados espectatoria-
lidade televisiva tradicional.
O uso de diferentes plataformas na recepo televisiva implica comportamen-
tos e aes diferenciadas do corpo pelos telespectadores. O foco visual, por exemplo,
se altera da grande para a pequena tela, em fraes de segundo, criando uma sensi-
2 Servio de mensagens curtas de texto via celular. Do ingls, Short Message Service.
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bilidade visual mais rpida e fragmentada. As mudanas ocorrem ainda na sensibi-
lidade acstica do telespectador, uma vez que a afetao sonora e seus significados
se constituem a partir de uma nova relao do indivduo com o contedo sonoro da
TV. Com efeito, a experincia audiovisual construda por um conjunto de som e
imagem em uma complementaridade plstica na qual um se torna parte do outro. Mas
ao utilizar um outro dispositivo enquanto ouve a televiso, o telespectador vivencia
uma experincia acstica diferente, pois o som se torna dissociado daquela imagem
da TV. O que o telespectador agora v no mais a imagem da TV, mas a da tela do
dispositivo, embora ele continue escutando o udio da televiso. Tudo isso requer um
novo aprendizado do corpo e do mente.
Contudo, se por um lado os dispositivos reivindicam determinadas materiali-
dades corpreas, por outro, as tecnologias so compatveis com certos tipos de sujeitos,
isto , h uma espcie de preparao social e intelectual para a utilizao dos meios,
uma vez que as habilidades corporais e cognitivas parecem se conectar a determinadas
vivncias culturais (PEREIRA, 2006). As novas textualidades televisivas seriam
impensveis, como adverte Carlos Scolari (2008), se milhes de usurios no tivessem
desenvolvido experincias hipertextuais nas ltimas dcadas. nesse sentido que
Jonathan Sterne (2012) entende as tecnologias como cristalizaes de processos sociais
e culturais. Em seu amplo estudo sobre a experincia da escuta, Sterne nos mostra que
as diferentes tecnologias nascem em regimes de poder e de saber especficos e para
entend-las necessrio buscar o contexto que possibilitou seu desenvolvimento. Um
percurso semelhante j havia sido realizado anteriormente por Jonathan Crary (1992)
no que diz respeito experincia da viso. Isso nos faz pensar que as materialidades do
corpo e das tecnologias so atravessadas por questes histricas e culturais, colocando
sempre em tenso a produo de sentido e a produo de presena.
H uma situao especfica do programa SuperStar em que conseguimos
perceber de forma clara os efeitos de sentido e os efeitos de presena. Quando
as bandas esto se apresentando ao vivo no palco, as fotos dos telespectadores e dos
jurados que votaram nelas vo aparecendo no grande telo de LED que a separa da
plateia e dos jurados. As carinhas que vo aparecendo no painel vo mostrando que
a apresentao da banda est recebendo votaes e, portanto, est tendo uma recepo
positiva por parte do pblico. Quando os votos atingem um percentual mnimo (que
varia conforme a fase do programa) a tela de LED sobe. Isso significa que a banda
foi aprovada, ou seja, o efeito de sentido gerado o entendimento de que a banda
passou para a fase seguinte ou recebeu votao maior do que a banda anterior. Mas
por trs dessa dimenso de sentido que o telo sendo levantado carrega h uma
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adimenso de presena muito particular. Quando o painel se levanta, acompanhado
de um efeito sonoro de exploso e de luzes coloridas impactantes, percebemos que a
prpria performance da banda no palco se modifica. E isso fica claro na expresso
facial dos msicos e na prpria voz do cantor. A resposta corporal dos componentes
da banda quando o telo sobe visvel: sensaes de alvio e de alegria so expostas
fisicamente pelo corpo. E quando o painel no sobe, ficam claros os sentimentos de
frustrao e tristeza, muito embora haja um esforo dos msicos para no deixar que
isso transparea.
interessante notar como o telo de LED constri um dilogo entre os te-
lespectadores e a banda e sua materialidade gera efeitos de presena. As fotos que
vo aparecendo no painel materializam a satisfao dos telespectadores pela banda,
manifestada em forma de votos, funcionando como uma espcie de aceno do pblico
para os msicos. Com efeito, a performance musical construda por um processo
comunicativo que depende de certos cdigos e respostas do pblico (FRITH, 2009). E no
caso de SuperStar, a plateia formada no s por quem est presente no auditrio onde
o programa acontece, mas tambm pelos milhares de telespectadores que se tornam
presentes no palco por meio de suas fotos e interao via aplicativo em dispositivos
mveis ou pelos votos manifestos no torcidmetro, um tipo de termmetro que
contabiliza a votao.
Os msicos recebem esse feedback dos telespectadores ao vivo, mesmo estando
a quilmetros de distncia, e respondem a isso visivelmente em sua atuao no palco,
seja com sorrisos ou pelo semblante de preocupao, pela dana mais intensa ou mais
contida, pela voz tremida ou mais solta, ou, ainda, pela interao atravs de palavras com
o pblico. Realizar a apresentao no palco com o painel abaixado parece, a princpio,
mais confortvel para a banda, pois os msicos no precisam encarar os jurados e a
plateia, por outro lado h um certo desconforto causado pela impessoalidade do painel
de LED. Quando o painel se levanta a atuao dos msicos contagiada pela reao
da plateia e dos jurados, seja positiva ou negativamente. evidente, portanto, como
a materialidade do telo provoca efeitos de sentido e efeitos de presena. E tudo
isso gerado pela interao dos telespectadores por meio do aplicativo do programa
disponvel nos smartphones e tablets.
Destacamos, por fim, outra questo relevante em SuperStar. Trata-se das
informaes disponveis na pgina oficial do Facebook e do Twitter e no site do
programa. Esses dados, somados possibilidade de interao entre os telespectadores
via redes sociais, tornam a espectatorialidade televisiva ainda mais dinmica, exigindo
habilidades intelectuais e cognitivas mais complexas do que o modo de recepo
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televisiva tradicional, pois preciso processar e organizar informaes fragmentadas,
dispersas, distintas e sob diferentes linguagens. medida que vai assistindo ao
programa ao vivo, por exemplo, o telespectador pode conhecer a opinio de outros
telespectadores sobre a banda e ter acesso a dados que podem interferir em seu voto.
No site podem ser encontradas informaes detalhadas dos episdios anteriores,
com vdeos das apresentaes individuais das bandas, o perfil de cada banda e de
seus integrantes, informaes sobre os apresentadores e jurados, enquetes e contedos
exclusivos disponveis s na Web. A pgina reserva ainda ferramenta para comentrios
dos fs, que podem aparecer na tela durante o programa, e espao para diverso, como
games e caraoqu, cifras das msicas apresentadas, playlist das msicas mais tocadas e
arquivos para download, troca de vdeos entre telespectadores e o torcidmetro. Esse
universo informacional gigantesco passa a fazer parte da experincia receptiva do te-
lespectador, influenciando sua percepo sobre o programa e sobre as apresentaes
das bandas.
SuperStar exemplifica bem o novo modelo de espectatorialidade televisiva, que
deixa de estar vinculada exclusivamente ao contedo exibido no aparelho de TV e se
amplia para uma experincia que combina novas textualidades com as tradicionais,
uma recepo fragmentada e ubqua, marcada pelo hibridismo com outros meios, o que
Carlos Scolari (2008) chama de hiperteleviso.
5 Consideraes Finais
A adaptao dos contedos televisivos s novas circunstncias tecnolgicas e
sociais sinaliza tambm uma mudana no comportamento do telespectador. A nova
gerao de telespectadores destaca-se principalmente pela capacidade de formar
conexes entre fragmentos dispersos de informaes, realizar atividades simultneas
enquanto assiste a contedos televisivos e, sobretudo, pelo seu posicionamento proativo
diante das informaes.
Os novos modelos de programao televisiva exigem dos telespectadores a
habilidade de lidar com dispositivos diferentes, materialidades distintas e linguagens
variadas de forma simultnea. A incorporao de dispositivos digitais mveis na
experincia televisiva exerce significativo impacto nos processos cognitivos e sensoriais
dos indivduos, modificando o posicionamento do telespectador e a construo
subjetiva do sujeito receptor. Os efeitos de presena gerados pela televiso multipla-
taforma proporcionam novas experincias no campo da visualidade, da percepo e
da cognio humana. De modo anlogo aos demais meios de comunicao, a televiso
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atem sido impactada pelos complexos processos comunicacionais contemporneos, que
passam no s pela rapidez das trocas informacionais, mas tambm pelas interaes
entre os telespectadores, pelas novas possibilidades de apropriao dos contedos,
pelas diferentes formas de envolvimento do corpo e pela prpria constituio material
dos dispositivos.
A investigao desta temtica a partir de um reposicionamento do par sujeito/
objeto nos possibilitou compreender aspectos significativos deste fenmeno que no
poderiam ser percebidos quando se parte exclusivamente de um olhar marcado pela
centralidade da interpretao. Nosso intuito foi, portanto, apresentar uma alternativa
pesquisa que tem como foco exclusivamente o contedo da televiso, isto , estudos que
enfatizam os aspectos narrativos, de interpretao dos programas, gneros e formatos
televisivos. Procuramos mostrar a relevncia dos efeitos de presena gerados pela
televiso multiplataforma na constituio do telespectador contemporneo.
preciso salientar, contudo, que tais efeitos de presena possuem uma
relao intrnseca com os efeitos de sentido as representaes simblicas e as distintas
interpretaes dos sujeitos. Tal relao no excludente, mas de complementarida-
de. A anlise do programa SuperStar nos permitiu perceber como as materialidades
dos dispositivos implicadas no novo modelo de espectatorialidade televisiva podem
ampliar os sentidos dos contedos televisivos, isto , como as condies de recepo
asseguram experincias televisivas distintas. O reality show musical representa um
modelo de programao televisiva que emerge no contexto da convergncia digital,
construda pelos hibridismos com outras mdias e espaos miditicos.
O percurso realizado nos leva a repensar o lugar do telespectador e a forma de
espectatorialidade na televiso contempornea. Entendendo que as subjetividades e as
sociabilidades so acionadas de modos diferentes a partir das tecnologias utilizadas e
dos contextos nos quais os indivduos esto inseridos, concebemos a televiso multipla-
taforma no s como um novo modelo de produo e de distribuio audiovisual, mas
como uma forma inovadora de partilhar as experincias de vida e de projetar a subjeti-
vidade nas prticas cotidianas.
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Espectatorialidade e Materialidade na Televiso Multiplataforma: uma anlise do programa SuperstarResumo 1 Introduo
2 A relao entre sujeitos e objetos 3 Televiso multiplataforma: materialidade, sensorialidade, cognio 4 O caso SuperStar 5 Consideraes Finais