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Estatuto da Diversidade Sexual uma lei por iniciativa popular
Maria Berenice Dias
Advogada
Presidenta da Comisso da Diversidade Sexual da OAB
Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM
www.mbdias.com.br
www.mariaberenice.com.br
www.direitohomoafetivo.com.br
Em face do enorme preconceito de que so alvo, da
perseguio que sofrem, da violncia de que so vtimas, no h como se ter
ideia do nmero das pessoas lsbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis,
e transgneros, identificadas pela sigla LGBT. Outro no o motivo de no
existir uma legislao que reconhea direitos ou que criminalize os atos
homofbicos de que so vtimas.
Ainda que imensurvel, no h como condenar parcela da
populao invisibilidade, deixando-a a margem da tutela jurdica. Desta
realidade tomou conscincia a Justia quando, h mais de uma dcada,
passou a reconhecer as unies homoafetivas como entidade familiar. De to
reiteradas algumas decises, direitos passaram a ser deferidos em sede
administrativa, como a concesso de penso por morte e auxlio recluso e a
expedio de visto de permanncia ao parceiro estrangeiro. Tambm a
incluso do companheiro como dependente no imposto de renda e a soma do
rendimento do casal para a concesso de financiamento imobilirio foi
regulamentada.
Como os avanos comearam no mbito da Justia, surgiu a
necessidade de qualificar os profissionais para atender a crescente demanda
deste segmento na busca de direitos, o que levou a Ordem dos Advogados a
criar Comisses da Diversidade Sexual em todos os cantos do Brasil.
De outro lado, em face da falta de um sistema integrado de
divulgao da jurisprudncia, sempre houve enorme dificuldade de acesso s
decises de juzes e tribunais. Por isso as Comisses assumiram o
compromisso de amealhar os julgados de todas as justias e graus de
jurisdio. O resultado foi surpreendente, o que ensejou a construo de um
portal,1 que permitiu quantificar as quase duas mil decises que garantem
direitos no mbito do direito das famlias, do direito sucessrio e previdencirio.
L tambm so noticiados os avanos em todo o mundo.
1 www.direitohomoafetivo.com.br
http://www.mariaberenice.com.br/ -
Este levantamento em muito contribuiu no julgamento do
Supremo Tribunal Federal que, ao apreciar duas aes constitucionais2
reconheceu as unies homoafetivas como entidade familiar. A deciso, alm de
ter efeito vinculante e eficcia perante todos, desafiou o legislador a inserir a
populao LGBT no sistema jurdico. Isso porque, nunca nenhum projeto de lei
ou proposta de emenda constitucional logrou ser votado e muito menos
aprovado por qualquer das casas legislativas. Sempre prevaleceu o medo
escudado em alegaes de ordem religiosa, o preconceito disfarado em
proteo sociedade.
No entanto, era chegada a hora de dar um basta hipocrisia e
algum precisava tomar a iniciativa. Ningum mais poderia aceitar este grande
desafio do que os advogados. Afinal, foram os precursores de todos os
avanos, provando que so mesmos indispensveis administrao da
Justia, como reconhece a Constituio Federal. Foram eles que ousaram
bater s portas do Poder Judicirio, buscando o reconhecimento de direitos
inexistentes a um segmento invisvel e alvo de severa discriminao.
Comprometido com a construo de uma sociedade livre,
igualitria e democrtica, a Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil assumiu a misso quase impossvel de elaborar um projeto legislativo e
promover uma ampla reviso da legislao infraconstitucional para assegurar
os direitos que j vinham sendo reconhecidos, pela jurisprudncia e na esfera
administrativa.
Em 22 de maro de 2011 foi aprovada a criao da Comisso
Especial da Diversidade Sexual, a quem foi delegada a difcil tarefa de
consolidar um conjunto de normas e regras que servisse para aperfeioar o
sistema legal, de modo a acolher parcela significativa da populao que,
injustificavelmente, se encontra alijada dos mais elementares direitos de
cidadania.
O Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual foi elaborado
a muitas mos. Contou com a efetiva participao das mais de 60 Comisses
da Diversidade Sexual das Seccionais e Subsees da OAB, j instaladas, ou
em vias de instalao. Alm disso, foram ouvidos os movimentos sociais, que
encaminharam cerca de duas centenas de propostas e sugestes.
Em 23 de agosto de 2011, o Anteprojeto foi formalmente
entregue ao Presidente do Conselho Federal da OAB, o mais arrojado projeto
legislativo deste sculo, quer pela sua abrangncia, quer pelo seu significado e
alcance e recebeu parecer favorvel do Relator, Conselheiro Carlos Roberto
Siqueira Castro.
2 ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Brito, j. 05.05.2011.
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Na mesma oportunidade foram entregues ao Congresso
Nacional a proposta de alterao de sete dispositivos da Constituio Federal,
que deram origem a trs Propostas de Emenda Constitucional.
Duas delas, sob a relatoria da Sem. Marta Suplicy, j se
encontram em tramitao no Senado Federal.3 Uma probe discriminao por
orientao sexual ou identidade de gnero, inclusive nas relaes de trabalho.
Outra substitui a licena-maternidade e a licena-paternidade pela licena-
natalidade, a ser concedida indistintamente a qualquer dos pais. A terceira, que
assegura acesso ao casamento igualitrio ser apresentada pelo Deputado
Jean Wyllys Cmara dos Deputados to logo alcance o nmero de adeses
necessrias.
Em face da enorme repercusso alcanada pela Lei da Ficha
Limpa, por ter sido encaminhada por iniciativa popular, as Comisses da
Diversidade Sexual do pas desencadearam o movimento para angariar
adeses para que o Estatuto fosse levado Cmara Federal referendado pela
assinatura de cerca de um milho e meio de cidados.
A campanha foi lanada, em mbito nacional, no dia 17 de
maio de 2012 Dia Mundial de Combate Homofobia. Simultaneamente as
Comisses realizaram eventos de coleta de assinaturas, iniciativa que se
repetiu em todas nas comemoraes alusivas ao Dia do Orgulho Gay
realizadas Brasil a fora.
Certamente a forma de driblar a postura omissiva dos
legisladores que, por medo de comprometer sua reeleio ou serem rotulados
de homossexuais, at hoje se negaram a aprovar de qualquer projeto de lei
que vise criminalizar a homofobia ou garantir direitos s unies homoafetivas.
Ao menos no podero alegar que a iniciativa desatende ao desejo do povo.
Apresentar o projeto por iniciativa popular a forma de a
sociedade reivindicar tratamento igualitrio a todos os cidados, independente
de sua orientao sexual ou identidade de gnero. Esta a primeira vez que
ocorre uma movimentao social pela aprovao de uma lei que assegure
direitos a lsbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
EMENDAS CONSTITUCIONAIS
Uma vez que a Constituio Federal prioriza o respeito
dignidade e consagra a liberdade e a igualdade como princpios fundantes de
um Estado Democrtico de Direito, indispensvel que, modo expresso, vete a
discriminao por orientao sexual ou identidade de gnero; assegure os
3 PECs 110 e 111 de 08/11/2011.
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direitos decorrentes da homoparentalidade e reconhea a famlia homoafetiva
como entidade familiar.
Discriminao
A Constituio Federal cuidadosa em vetar qualquer forma
de discriminao, referncia que se encontra inclusive no seu prembulo, ao
garantir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Ao identificar os objetivos fundamentais da Repblica, a
chamada Lei Maior assume o compromisso de promover o bem de todos sem
preconceito de origem, raa, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de
discriminao. No entanto, olvidou-se o constituinte de proibir, modo expresso,
discriminao em decorrncia da orientao sexual ou identidade de gnero.
Esta omisso gera um sistema de excluso incompatvel com os princpios
democrticos de um estado igualitrio, deixando nmero significativo de
cidados fora do mbito da tutela jurdica. Diante deste imperdovel silncio,
homossexuais, lsbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgneros e
intersexuais so refns de toda a sorte de violncia. Como no esto ao abrigo
da legislao que criminaliza a discriminao, as perseguies de que so
vtimas restam impunes. Esta a causa maior e a pior consequncia da
homofobia.
Da a indispensabilidade de inserir as expresses orientao
sexual ou identidade de gnero no art. 3, inc. IV4 e no art. 5, inc. XLI5 da
Constituio Federal, para deixar explcito que a populao LGBT precisa ter
sua identidade respeitada bem como a necessidade de criminalizar os delitos
fruto da intolerncia homofbica.
Licena-natalidade
Duas ordens de motivao ensejaram a proposta de acabar
com o tratamento diferenciado a mes e pais. Cada vez mais se valoriza a 4 Art. 3 Constituem objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil:
(...)
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, etnia, raa, sexo, orientao sexual ou identidade de gnero, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao.
5 Art. 5 Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XLI a lei punir qualquer discriminao atentatria dos direitos e liberdades fundamentais com base em raa, sexo, cor, origem, idade, orientao sexual ou identidade de gnero;
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paternidade responsvel, assegurando a ambos os genitores os mesmos
direitos e impondo aos dois os deveres inerentes ao poder familiar. Deste
modo, indispensvel consagrar a igual responsabilidade parental. Nada
justifica a concesso da licena de quatro meses para a me e, ao genitor,
somente escassos cinco dias. Essa a justificativa para se adotar a licena-
natalidade.
A exemplo da legislao de muitos pases, a proposta
eliminar tanto a licena-maternidade como a licena-paternidade, assegurando,
de forma indistinta, licena-natalidade, com prazo de durao de seis meses.
Este perodo j reconhecido para assegurar o melhor desenvolvimento da
criana, que ter direito presena de um de seus pais, da maneira que lhes
seja mais conveniente.
Por isso a proposta de alterao dos incisos XVIII e XIX do art.
7 da CF,6 para assegurar licena-natalidade a qualquer dos pais, sem prejuzo
do emprego e do salrio, com a durao de cento e oitenta dias. Durante os 15
primeiros dias aps o nascimento, a adoo ou a concesso da guarda para
fins de adoo, a licena-natalidade usufruda por ambos os pais. No perodo
subsequente, por qualquer deles, de forma no cumulativa, segundo
deliberao do casal.
Como o benefcio independe do sexo do genitor, eliminam-se
os inmeros questionamentos que surgem frente a homoparentalidade, quando
o beneficiado um homem, ou um casal masculino ou feminino. Cessam as
dvidas sobre a quem conceder a licena e por quanto tempo, nas hipteses
de adoo ou reconhecimento da dupla parentalidade por casais homoafetivos.
A igualdade de oportunidade a ambos vem em benefcio da
prpria famlia, pois se estende a todos, independente da orientao sexual
dos pais.
Outro ganho significativo reduzir a discriminao contra as
mulheres no mercado de trabalho, pois, a possibilidade da gravidez muitas
vezes dificulta a insero profissional.
Casamento e unio estvel
6 CF, art. 7 So direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, alm de outros que visem melhoria de sua
condio social:
(...)
XVIII licena-natalidade, concedida a qualquer dos pais, sem prejuzo do emprego e do salrio, com a durao de cento e oitenta dias;
XIX durante os 15 dias aps o nascimento, a adoo ou a concesso da guarda para fins de adoo, a licena assegurada a ambos os pais. O perodo subsequente ser gozado por qualquer deles, de forma no cumulada.
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A deciso do Supremo Tribunal Federal que, em 5 de maio de
2011, unanimidade, reconheceu as unies homoafetivas como entidade
familiar, garantiu aos parceiros homossexuais os mesmos direitos e deveres
dos companheiros das unies estveis. Deu ao art. 1.723 do Cdigo Civil7
interpretao conforme a Constituio Federal, excluindo qualquer significado
que impea o reconhecimento da unio contnua, pblica e duradoura entre
pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida como sinnimo
perfeito de famlia.8
Em face do efeito vinculante e eficcia erga omnes do julgado,9
inmeros juzes e tribunais passaram a admitir a converso das unies
homoafetivas em casamento, at que o Superior Tribunal de Justia,10 garantiu
acesso ao casamento, mediante habilitao direta perante o Registro Civil.
Essas mudanas precisam ser inseridas na Constituio Federal, dando-se
nova redao ao pargrafo 1 do art. 226,11 para explicitar a possibilidade do
casamento civil entre duas pessoas, independente da orientao sexual.12
Tambm necessrio substituir a equivocada referncia a
homem e mulher, constante do 3 do mesmo art. 22613 para acabar com a
resistncia de alguns em admitir a unio estvel entre duas pessoas como
entidade familiar.14
7 CC, art. 1.723. reconhecida como entidade familiar a unio estvel entre o homem e a mulher,
configurada na convivncia pblica, contnua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituio de famlia.
8 Ofcio 81/P-MC, datado de 09.05.2011, expedido pelo Presidente Ministro Cezar Peluso, aos
Presidentes de todos os Tribunais: Comunico a Vossa Excelncia que o Supremo Tribunal Federal, na sesso plenria realizada em 5 de maio de 2011, por unanimidade, reconheceu a arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 como ao direta de inconstitucionalidade. Tambm por votao unnime julgou procedente a ao, com eficcia erga omnes e efeito vinculante, para dar ao art. 1723 do Cdigo Civil interpretao conforme Constituio para dele excluir qualquer significado que impea o reconhecimento da unio contnua, pblica e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinnimo perfeito de famlia. Reconhecimento que de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequncias da unio estvel heteroafetiva.
9 CF, art. 102, 2: As decises definitivas de mrito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas
aes diretas de inconstitucionalidade e nas aes declaratrias de constitucionalidade produziro eficcia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais rgos do Poder Judicirio e administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
10 STJ, REsp 1.183.378 - RS, 4 T., Rel. Min. Luis Felipe Salomo, j. 25.10.2011.
11 CF, art. 226: A famlia, base da sociedade, tem especial proteo do Estado.
1: O casamento civil e gratuita a celebrao.
12 CF, art. 226, 1: admitido o casamento civil entre duas pessoas, independente da orientao
sexual. 13
CF, art. 226, 3: Para efeito da proteo do Estado, reconhecida a unio estvel entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua converso em casamento.
14 CF, art. 226, 3: reconhecida a unio estvel entre duas pessoas como entidade familiar, devendo
a lei facilitar sua converso em casamento.
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Somente reconhecendo a unio estvel e garantindo acesso ao
casamento aos vnculos homoafetivos estar assegurada a extenso de todos
os direitos e garantias fundamentais populao LGBT.
ESTATUTO DA DIVERSIDADE SEXUAL
Para uma sociedade cada vez mais consciente de seus
direitos, nada, absolutamente nada justifica a omisso do sistema jurdico
frente populao formada por lsbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais, transgneros e intersexuais. Assim, urge a aprovao de uma lei
que assegure a essa significativa parcela de cidados o direito vida;
integridade fsica e psquica e incluso social. Tambm indispensvel o
reconhecimento legal de seus vnculos afetivos o que, nada mais do que a
garantia do direito felicidade. Um direito fundamental de todos, independente
da orientao sexual ou identidade de gnero.
A construo de um microssistema
A tcnica mais moderna de incluso de segmentos alvo da
vulnerabilidade social no mbito da tutela jurdica por meio da construo de
microssistemas: lei temtica que enfeixa princpios, normas de contedo
material e processual, alm de dispositivos de natureza civil e penal. Essa a
estrutura do Estatuto da Diversidade Sexual, que consagra uma srie de
prerrogativas e direitos a homossexuais, lsbicas, bissexuais, transexuais,
travestis, transgneros e intersexuais.
assegurado o reconhecimento das unies homoafetivas no
mbito do Direito das Famlias, Sucessrio, Previdencirio e Trabalhista. Alm
de criminalizar a homofobia so apontadas polticas pblicas de incluso, na
tentativa de reverter to perverso quadro de omisses e excluses sociais. Em
anexo so identificados os dispositivos da legislao infraconstitucional que
precisam ser alterados, acrescentados ou suprimidos, nica forma a
harmonizar todo o sistema legal.
Os direitos previstos no Estatuto no excluem outros que
tenham sido ou venham a ser adotados no mbito federal, estadual ou
municipal e nem os decorrentes das normas constitucionais e legais vigentes
no pas ou oriundos dos tratados e convenes internacionais dos quais o
Brasil seja signatrio.
Nomes e nomenclaturas
A primeira controvrsia que surgiu quando da elaborao do
Estatuto foi a respeito do seu nome. As sugestes de cham-lo de Estatuto da
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Diversidade ou Estatuto da Igualdade foram descartadas por no gizar que
se trata da tutela de parcela especfica da populao.
Existiram focos de resistncia ao uso do vocbulo
diversidade, que, por ressaltar o aspecto de diferena, poderia ter conotao
pejorativa. No entanto, como a expresso tambm significa diverso, de outro
jeito, conceito sem vis preconceituoso, foi a opinio que prevaleceu.
Outra deciso alvo de enormes debates, foi no definir o que
seja sexo, gnero, orientao sexual, identidade de gnero e nem os sujeitos
aos qual o Estatuto se destina: homossexuais, lsbicas, bissexuais,
transexuais, travestis, transgneros, intersexuais. Alm de a lei no ser o
espao adequado para trazer definies ou conceitos, estas so expresses
que no dispem de significado unvoco.
Ainda assim, houve a preocupao de referir o maior nmero
de segmentos, da forma mais explcita possvel. Optou-se por falar em
homossexuais ao invs de gays, estrangeirismo que, em sua origem, no
identifica a orientao homossexual. Apesar de a expresso homossexual
no dizer exclusivamente com a populao masculina, a incluso do termo
lsbicas atendeu a antiga reivindicao, para que seja assegurada mais
visibilidade ao gnero feminino. Mas, como se trata de expresso contida no
termo generalizante, foi inserida em segundo lugar e no como figura na sigla
LGBT.
O vocbulo transgnero originalmente utilizado para englobar
transexuais e travestis sempre ensejou muita polmica, por serem
inconfundveis as caractersticas de duas modalidades de identidades de
gnero. Apesar disso o termo foi mantido no Estatuto por definir as pessoas
que mudam transitoriamente de identidade, sendo assim identificados drags
queens e crossdressers.
A referncia aos intersexuais que antes recebiam o nome de
hermafroditas justifica-se por inexistir qualquer regulamentao ou regra
protetiva a quem nasce com caractersticas sexuais indefinidas.
Objeto e objetivos
No seu primeiro dispositivo o Estatuto diz a que vem: promover
a incluso de todos, combater a discriminao por orientao sexual ou
identidade de gnero e criminalizar a homofobia.
Tambm identifica a quem visa proteger, para que lhes seja
assegurado igual dignidade jurdica: heterossexuais, homossexuais, lsbicas,
bissexuais, transexuais, travestis, transgneros e intersexuais.
A referncia heterossexualidade, no entanto, no significa
que o Estatuto abriga todas as condutas sexuais e as mais diversas
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expresses da sexualidade, amplitude que no se comporta em uma lei que
tem por justificativa a proteo da identidade homossexual e seus
relacionamentos afetivos.
Princpios
Como toda a legislao que se destina a tutelar segmento
determinado, exposto a alguma espcie de vulnerabilidade, excluso ou
discriminao, indispensvel a identificao dos princpios que a rege.
Da a consagrao, como princpios fundamentais na
interpretao e aplicao do Estatuto da Diversidade Sexual, a dignidade da
pessoa humana, a igualdade e o respeito diferena. Tambm so erigidos
como princpios: a livre orientao sexual; o respeito intimidade; a
privacidade; a autodeterminao; e o reconhecimento da personalidade de
acordo com a identidade de gnero.
No mbito das relaes vivenciais so consagrados como
princpios, o direito convivncia comunitria e familiar, liberdade de
constituio de famlia e de vnculos parentais.
Mas talvez o mais significativo princpio seja o que diz com o
direito fundamental felicidade, que merece estar previsto na prpria
Constituio Federal, como princpio fundante do Estado, pois se trata de
direito que deve ser garantido a todos os cidados.
Alm de incorporadas as normas constitucionais
consagradoras de princpios, garantias e direitos fundamentais, so invocadas
as normas constantes de tratados e convenes internacionais dos quais o
Brasil seja signatrio. Expressamente imposto respeito aos Princpios de
Yogyakarta.
Direito livre orientao sexual
Consagrado o direito livre orientao sexual e identidade de
gnero como direitos fundamentais, assegurado a todos o direito de viver a
plenitude de suas relaes afetivas e sexuais.
Em face da inviolabilidade de conscincia e de crena so
proibidas prticas que obriguem algum a revelar, renunciar, negar ou
modificar sua identidade sexual. Cada um pode conduzir sua vida privada, sem
presses de qualquer ordem, garantia que alcana no s a prpria pessoa,
mas qualquer membro da sua famlia ou comunidade.
Tambm vedada a incitao ao dio ou comportamentos que
preguem a segregao em razo da orientao sexual ou identidade de
gnero, condutas que, inclusive, so criminalizadas.
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Direito igualdade e a no discriminao
O princpio da igualdade compreende o direito diferena e a
proibio discriminao. Por isso a necessidade da expressa referncia
vedao de atitudes constrangedoras, intimidativas ou vexatrias que tenham
por objetivo anular ou limitar direitos e prerrogativas da populao LGBT.
De forma exemplificativa so identificadas como
discriminatrias algumas posturas: proibir o ingresso ou a permanncia em
estabelecimento pblico ou estabelecimento privado aberto ao pblico; prestar
atendimento seletivo ou diferenciado no previsto em lei; preterir, onerar ou
impedir hospedagem em hotis, motis, penses ou similares; dificultar ou
impedir locao, compra, arrendamento ou emprstimo de bens mveis ou
imveis; proibir expresses de afetividade em locais pblicos, sendo as
mesmas manifestaes permitidas aos demais cidados.
Tais prticas, alm de configurarem crime de homofobia, geram
responsabilidade por danos materiais e morais.
Direito convivncia familiar
Afirmado o direito constituio da famlia, independente da
orientao sexual ou identidade de gnero de seus membros, de forma
expressa a famlia homoafetiva goza da especial proteo do Estado, como
entidade familiar, fazendo jus a todos os direitos assegurados unio
heteroafetiva, no mbito do Direito das Famlias e das Sucesses.
Alm de o companheiro estrangeiro ter direito concesso de
visto de permanncia, admitido o reconhecimento do casamento, da unio
civis e da unio estvel formalizados em pases estrangeiros.
O direito constituio de famlia alcana tambm os vnculos
homoparentais, quer individualmente, quer pelo casal homoafetivo frente aos
filhos biolgicos, adotados ou socioafetivos.
Como os pares com a mesma identidade sexual no dispem
de capacidade procriativa, garantido acesso s tcnicas de reproduo
assistida por meio do Sistema nico de Sade SUS, de forma individual ou
conjunta. expressamente admitido o uso de material gentico do casal para
prticas reprodutivas.
Tambm assegurada a guarda, a adoo, a habilitao
individual ou conjunta adoo de crianas e adolescentes, fazendo qualquer
dos pais jus licena-natalidade, com durao de cento e oitenta dias. A
licena usufruda durante os 15 primeiros dias por ambos os pais e, no
perodo subsequente, por qualquer deles de forma no cumulada.
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Quando ocorre a separao do casal, o exerccio do poder
familiar garantido a ambos os genitores, devendo ser estabelecida a
obrigao alimentar e assegurado o direito de convivncia, com preferncia
pela guarda compartilhada.
A proibio de os pais expulsarem de casa ou discriminarem o
filho em face de sua orientao sexual ou identidade de gnero gera obrigao
indenizatria, alm da responsabilidade por abandono material quando o filho
for menor de idade.
Direito identidade de gnero
A livre expresso da identidade de gnero reconhecida a
transexuais, travestis, transgneros e intersexuais, que tm direito ao uso do
nome social, independente da realizao da cirurgia de redesignao sexual ou
da alterao do nome registral.
O direito retificao do nome e da identidade sexual no
Registro Civil independe da realizao da cirurgia de transgenitalizao.
Para a adequao do sexo morfolgico identidade de gnero
garantida a realizao dos procedimentos de hormonoterapia e
transgenitalizao pelo Sistema nico de Sade SUS.
Havendo indicao teraputica de equipe mdica e
multidisciplinar, procedimentos complementares no cirrgicos de adequao
identidade de gnero podem iniciar a partir dos 14 anos de idade, mas a
cirurgia de redesignao sexual somente pode ser realizada a partir dos 18
anos.
vedada a realizao de qualquer interveno mdico-
cirrgica de carter irreversvel para a determinao de gnero em recm-
nascidos e crianas diagnosticadas como intersexuais.
Em todos os espaos pblicos e abertos ao pblico assegurado
o uso das dependncias e instalaes correspondentes identidade social.
O uso do nome social garantido nos estabelecimentos de
ensino, devendo constar em todos os registros acadmicos.
Igual garantia assegurada nas relaes de trabalho, devendo o
nome social ser inserido na Carteira de Trabalho e nos assentamentos
funcionais.
Direito sade
A necessidade de capacitao de mdicos, psiclogos e
demais profissionais da rea de sade para atender a populao LGBT visa
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impedir a utilizao de instrumentos e tcnicas para criar, manter ou reforar
preconceitos, estigmas, esteretipos ou aes que favoream a patologizao
de comportamentos ou prticas homossexuais.
De forma expressa so proibidas promessas de cura ou de
reverso da identidade sexual, bem como aes coercitivas para que algum
se submeta a tratamentos no solicitados.
A orientao sexual ou identidade de gnero no podem ser
usadas como critrio para seleo de doadores de sangue, sendo proibido
questionar a orientao sexual de quem se apresenta voluntariamente como
doador.
Direitos previdencirios
So garantidos direitos previdencirios de forma universal. s
instituies de seguro ou previdncia pblicas ou privadas vedado negar
qualquer espcie de benefcio em face da orientao sexual ou identidade de
gnero do beneficirio.
Do mesmo modo, os planos de sade no podem impedir ou
restringir a inscrio como dependente do cnjuge ou do companheiro
homoafetivo do beneficirio.
Direito educao
proibido o uso de materiais didticos e metodologias que
reforcem a homofobia, o preconceito e a discriminao.
Os estabelecimentos de ensino devem coibir, no ambiente
escolar, a prtica de bullying por orientao sexual ou identidade de gnero do
aluno ou pelo fato de pertencer a uma famlia homoafetiva.
As atividades escolares referentes a datas comemorativas
precisam atentar multiplicidade de formaes familiares, de modo a evitar
qualquer constrangimento aos alunos filhos de famlias homoafetivas.
Os professores devem ser capacitados para uma educao
inclusiva, com o objetivo de elevar a escolaridade em face da identidade sexual
dos alunos ou de seus pais, com o fim de reduzir a evaso escolar.
Direito ao trabalho
O acesso ao mercado de trabalho assegurado a todos, sendo
vedado inibir o ingresso, proibir a admisso ou a promoo no servio pblico
ou privado, em funo da identidade sexual do servidor.
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Tambm proibido demitir ou estabelecer diferenas salariais
entre empregados ou servidores que ocupem o mesmo cargo e desempenhem
iguais funes, em decorrncia da orientao sexual ou identidade de gnero.
A administrao pblica e a iniciativa privada devem adotar
programas de formao profissional, de emprego e de gerao de renda, alm
de promover campanhas com o objetivo de elevar a qualificao profissional
dos servidores e empregados travestis, transexuais, transgneros e
intersexuais.
Em respeito ao princpio da proporcionalidade, e visando
assegurar igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, adotado o
sistema de cotas a travestis, transexuais, transgneros e intersexuais, para
ingresso no servio pblico. Empresas e organizaes privadas sero
incentivadas a adotar medidas similares.
Direito moradia
Como o direito moradia tem assento constitucional, proibida
qualquer restrio aquisio ou locao de imvel em decorrncia da
identidade sexual do adquirente ou locatrio.
Tambm assegurada a conjugao de rendas do casal para
a concesso de financiamento habitacional na aquisio da casa prpria.
afirmada a responsabilidade por dano moral da
administrao do imvel ou condomnio que for omisso em inibir condutas que
configurem prtica discriminatria nas reas de uso comum.
Acesso justia e segurana
As demandas que tenham por objeto a exigibilidade dos
direitos previstos no Estatuto devem tramitar em segredo de justia, sendo
obrigatria, para fins estatsticos, a identificao da natureza das aes.
As aes no criminais so de competncia das Varas de
Famlia e os recursos devem ser apreciados pelas Cmaras Especializadas de
Famlia dos Tribunais de Justia, onde houver.
Devem ser criadas delegacias especializadas para o
atendimento de denncias por preconceito de sexo, orientao sexual ou
identidade de gnero.
s vtimas de discriminao garantida assistncia,
acolhimento, orientao e apoio, quando da apurao de prticas delitivas.
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O encarceramento no sistema prisional deve atender
identidade sexual do preso, ao qual assegurada cela separada se houver
risco sua integridade fsica ou psquica.
garantida visita ntima sem qualquer diferenciao quanto
identidade sexual ou de gnero do preso.
Dos meios de comunicao
Os meios de comunicao de massa, como rdio, televiso,
internet e redes sociais, bem como peas publicitrias, devem assegurar
respeito diversidade sexual, no podendo fazer qualquer referncia de
carter preconceituoso ou discriminatrio em face da populao LGBT.
Constitui prtica discriminatria publicar, exibir a pblico,
qualquer aviso, sinal, smbolo ou emblema que incite a intolerncia.
Relaes de consumo
So prticas discriminatrias sujeitas a sanes penais impedir
acesso a estabelecimento pblico ou aberto ao pblico, assim como impor
restries no fornecimento de bens ou prestao de servios ao consumidor,
em decorrncia de sua orientao sexual ou identidade de gnero.
Os servios pblicos e privados tm o dever de capacitar seus
funcionrios e empregados para evitar manifestaes discriminatrias.
Dos delitos e das penas
Ainda que significativos tenham sido os avanos no mbito do
Poder Judicirio na concesso de direitos, indispensvel previso legal para
que a homofobia seja punida criminalmente. mais do que conhecido o
princpio de que ningum pode ser condenado pela prtica de um ato sem que
haja lei anterior que o defina como crime.
Desde 2006, projeto de lei ora sob o n PLC 122 tenta
criminalizar a homofobia. Apesar de ter sido aprovado na Cmara Federal, no
Senado no avana. Foram apresentadas tantas alteraes e emendas que o
projeto restou desconfigurado. Essa a justificativa para a incorporao dos
seus dispositivos ao Estatuto.
Com pena de recluso de 2 a 5 anos, so punidas condutas
discriminatrias, bem como toda a manifestao que incite o dio ou pregue a
inferioridade de algum em razo de sua orientao sexual ou identidade de
gnero.
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No mbito das relaes de trabalho gera responsabilidade
criminal deixar de contratar algum, dificultar a contratao ou negar ascenso
profissional a cargo ou funo, motivado por preconceito de sexo.
Est sujeito mesma apenao o responsvel pelo
estabelecimento comercial que recusar, impedir acesso ou negar atendimento
a algum em face de sua orientao sexual ou identidade de gnero.
O Estatuto cria uma agravante genrica, elevando em um tero
a pena de quem pratica delito em que ficar evidenciada motivao homofbica.
Polticas pblicas
No basta a lei prever direitos. Para garantir a participao em
condio de igualdade e de oportunidade na vida econmica, social, poltica e
cultural do pas, indispensvel conscientizar a sociedade da igual dignidade
de heterossexuais, homossexuais, lsbicas, bissexuais, transexuais, travestis,
transgneros e intersexuais.
Da a necessidade de adoo de uma srie de polticas
pblicas no mbito da administrao pblica direta e indireta, nas esferas
federal, estadual e municipal, destinadas a conscientizar a sociedade da igual
dignidade de todos, independente da orientao sexual ou identidade de
gnero.
Por isso a imposio de 34 medidas que promovam a
igualdade de oportunidades no acesso sade, educao, emprego e moradia.
Como garantido acesso ao Sistema nico de Sade SUS,
indispensvel o investimento em recursos humanos dos profissionais da rea
de sade para acolherem a populao LGBT em suas necessidades e
especificidades.
Imposto aos profissionais da educao o dever de abordar as
questes de gnero e sexualidade sob a tica da diversidade sexual, cabe ao
poder pblico promover a capacitao dos professores para uma educao
inclusiva.
Em face da significativa evaso escolar, se fazem necessrias
aes com o objetivo de elevar a escolaridade de homossexuais, lsbicas,
bissexuais, transexuais, travestis, transexuais e intersexuais.
Para assegurar a igualdade de oportunidades na insero no
mercado de trabalho, indispensvel a adoo de programas de formao
profissional, de emprego e gerao de renda voltadas populao LGBT.
Tambm necessria a promoo de campanhas com o
objetivo de promover a qualificao profissional de travestis, transexuais,
transgneros e intersexuais.
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imposta administrao pblica e incentivada a iniciativa
privada a adotar sistema de cotas a travestis e transexuais, transgneros e
intersexuais.
Assegurado acesso das entidades familiares homoafetivas
para a aquisio da casa prpria, garantida a conjugao de rendas do casal
para a concesso de financiamento habitacional, devendo o Sistema Nacional
de Habitao de Interesse Social considerar suas peculiaridades sociais e
econmicas.
Tambm devem ser implementadas aes de ressocializao e
proteo da juventude em conflito com a lei que esteja exposta a experincias
de excluso social em face de sua orientao sexual ou identidade de gnero.
Os servios pblicos e privados devem capacitar seus
funcionrios para melhoria de ateno e acolhimento das pessoas, evitando
qualquer manifestao de preconceito e discriminao sexual.
Para garantir a integridade fsica, psquica, social e jurdica da
populao LGBT em situao de violncia, vrias medidas so impostas, como
a criao de centros de referncia contra a discriminao e de atendimento
especializado na estrutura nas Secretarias de Segurana Pblica, bem como a
capacitao e qualificao dos policiais civis e militares e dos agentes
penitencirios.
Legislao infraconstitucional
A discriminao que existe na sociedade sempre contagiou o
legislador, o qual, alm de negar-se a aprovar leis que assegurem direitos, no
perde a oportunidade de carimbar a legislao com o seu preconceito, fazendo
uso das expresses homem e mulher, pai e me, quando trata da famlia.
Assim, alm da alterao da Constituio Federal e a
consolidao dos direitos em uma nica lei, so identificados os dispositivos da
legislao infraconstitucional que precisam ser adequados ao novo sistema
normativo.