estudo sobre a peça calabar
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“CALABAR – O ELOGIO DA TRAIÇÃO” ( CHICO BUARQUE E RUY GUERRA):
Dimensões Estéticas e Políticas do Teatro Brasileiro na Década de 1970
Hélia Viana Rosa1
Alcides Freire Ramos2
RESUMO: Os anos 60/70 representaram, para a classe artística brasileira, um período marcado por tumultuados conflitos em nome da liberdade de expressão e contra o poder intolerante e arbitrário da ditadura militar, instaurada no país em 1964. O golpe e os acontecimentos sucessivos a ele obrigaram artistas e intelectuais a repensarem suas posições e a delimitarem o seu campo de ação em nome da sobrevivência de suas atividades. A peça Calabar – o elogio da traição (Chico Buarque e Ruy Guerra), objeto de nossa pesquisa, é apenas um entre os diversos trabalhos “castrados” pela censura. Os vinte anos de ditadura caracterizaram-se, na história do Brasil, não só como um período de insegurança, mas também de luta pela democracia. PALAVRAS-CHAVE: Teatro, golpe militar, intolerância, resistência, democracia. ABSTRACT: The 60’s and 70’s was, for the brazilian artistic category, a period marked by turbulent conflicts in name of expression’s liberty and against the intolerant power of militar’s despotism, established in the nation in 1964. Artists and intellectuals was forced by the military’s stroke and its successive happening, rethought their positions, limiting the action’s ground in name of their activitie’s survival. The play Calabar – the traition’s elogy (Chico Buarque and Ruy Guerra) object of our research, is only one, among several productions “gelded” by censure. The twenty years of despotism in Brazil’s history wasn’t only a period of insegurance, but it was a fight by democracy too. KEYWORDS: Theather, military stroke, intolerance, resistance, democracy.
1 Graduanda em História pela Universidade Federal de Uberlândia e integrante do NEHAC (Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura). Endereço: Rua Melo Viana, 514; Bairro Martins Uberlândia – MG Cep: 38400-376. E-mail: [email protected] 2 Professor Doutor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. Endereço: Rua Antúrios, 11 Bairro Cidade Jardim Uberlândia-MG Cep: 38400-000. E-mail: [email protected]
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Este trabalho objetiva apresentar
algumas reflexões sobre as atividades
artísticas no Brasil, especialmente sobre o
teatro, a partir do golpe militar instaurado
em 1964, analisando em que medida o
poder instituído atuou sobre a classe e
refletindo acerca da interferência da
censura nessa atividade.
Para isso, torna-se necessário
caracterizar o teatro pré-64, verificando
como este se manifestava socialmente no
momento em que foi efetuado o golpe.
O crítico teatral Yan MICHALSKI
(1985) desenvolve uma reflexão nesse
sentido. Segundo ele, até a década de 30,
assistia-se a um profundo “imobilismo” do
teatro nacional, pois este, longe de
promover-se como uma força atuante na
sociedade, tinha como objetivo primeiro
descontrair o público, restrito ainda a uma
pequena minoria da população: a elite
local. Assim permaneceria até 1943,
quando um estilo de teatro bem mais
estruturado dramaticamente substituiria a
tradicional narrativa existente até então. A
peça Vestido de noiva, de Nelson
Rodrigues, estreada em 28 de dezembro de
1943, foi considerada marco desse “novo”
e “moderno” teatro brasileiro.
A fundação do TBC - Teatro
Brasileiro de Comédia - em São Paulo, no
final da década de 40, imporia um novo
padrão de teatro a ser desenvolvido no
país, misturando um repertório clássico
com autores modernos, como Arthur
Miller e J.P. Sartre. Além da repercussão
positiva junto ao público, o novo estilo
ganhou também o apoio da imprensa
nacional, que passou a comentar e a
divulgar diariamente o que era levado aos
palcos.
Embora responsável pela
profissionalização do teatro, o TBC não
tinha por objetivo desenvolver um estilo
de dramaturgia que fosse voltado a uma
identificação com as causas nacionais.
Porém, a partir da década de 50, não foi
mais possível permanecer alheio à
realidade política, econômica e social do
país. A euforia do governo Juscelino
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Kubitschek mobilizou inúmeros segmentos
da sociedade, e, desde então, o palco
passou a ser mais um espaço de discussões
sobre os seus problemas, as suas
manifestações e reivindicações.
O Teatro de Arena, fundado em
São Paulo em 1953, tinha como uma de
suas principais propostas alertar a
sociedade para um posicionamento político
frente às mazelas nacionais. O diretor José
Renato e o fundador Augusto Boal, recém
chegado da Europa, destacaram-se à frente
dessas discussões.
No início dos anos 60, diante do
“imobilismo” das esquerdas e das
transformações político-econômicas e
sociais vivenciadas, um estilo de teatro
mais atuante começou a manifestar-se.
Atores como Oduvaldo Viana Filho, Flávio
Migliaccio, Augusto Boal, dentre outros,
estiveram engajados nesses projetos. No
Rio de Janeiro, o CPC - Centro Popular de
Cultura da UNE utilizava o teatro como
arma na conscientização social. Porém, no
dia 1º de abril de 1964 o prédio da UNE
foi incendiado, destruindo o que seria o
futuro teatro do CPC. Este era o cenário
que se esboçava no momento de
instauração do golpe pelos militares.
Para além da cultura, o Brasil
estava mergulhado em um caos
econômico, político e social, que se aflorou
ainda mais no governo João Goulart
(1961-1964). Naquele período foram
intensas as manifestações de
descontentamento das esquerdas e de
outros setores da população que eram
contrários à sua política reformista,
prejudicada ainda mais pela instabilidade
econômica do país, com inflação e custo de
vida altíssimos. As pressões vinham, ao
mesmo tempo, tanto das forças internas
quanto das externas, revelando a
incapacidade do governo de conciliar os
interesses e contornar a situação.
Nos discursos proferidos pelos
militares era preciso conter a onda de crise
que tomou conta do Brasil. Em nome da
“segurança e soberania nacional”,
tomariam para si a responsabilidade de
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restabelecer a ordem, argumentando que
seriam intolerantes a quaisquer
manifestações contrárias a esses objetivos.3
A política da ordem a qualquer
preço, posta em prática pós golpe militar,
visava silenciar não só as ações das
esquerdas oposicionistas ao regime como
também as atitudes consideradas rebeldes
e/ou “subversivas” de inúmeros
profissionais ligados à cultura, à imprensa
nacional e de intelectuais, que foram
obrigados a reavaliarem seus papéis tanto
sociais quanto profissionais e também, a
refletir sobre os caminhos a serem
trilhados a partir dali.
Maria Hermínia T. de ALMEIDA e
Luiz WEIS , ao analisarem o cotidiano de
oposição da classe média frente ao regime,
argumentam que este segmento teve
participação significativa no conjunto das
manifestações contrárias ao autoritarismo
3 É extensa a bibliografia que trata das condições sócio-econômicas e políticas do Brasil nas décadas que antecederam ao golpe de 1964. Os autores analisam as contradições advindas da era Vargas e que se acirraram nos governos de Juscelino Kubitschek e J. Goulart. As medidas adotadas no Plano de Metas resultaram num aumento considerável da dívida externa. Dentre estes
instaurado pós 64. Estudantes
politicamente ativos e professores
universitários estiveram intimamente
ligados ao movimento de resistência, e
desta forma, tornaram-se alvos constantes
da repressão. Destacam que “a própria
natureza do ofício das pessoas, e as
condições em que eram exercidas tendiam
a expor seus praticantes à tentação do
oposicionismo e a determinar o tipo de
oposição praticada. Em alguns casos,
trabalho e política praticamente
coabitavam: na advocacia, na produção
artística e cultural e no jornalismo”.
(ALMEIDA & WEIS, 1998:338) .
Desta forma, ser de oposição
incluía desde assinar manifestos, participar
de assembléias, até escrever artigos ou
músicas que, de um modo ou de outro,
estivessem relacionados à política daquele
momento, e isso significava enfrentar
riscos e/ou mudanças profundas, tanto no
aspecto profissional quanto no convívio
familiar.
autores, podemos citar HABERT (1994) e TOLEDO (1997).
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Os autores avaliam, porém, que,
“passado o surto inicial de repressão às
lideranças civis e militares identificados
com o governo deposto e a feroz
perseguição aos sindicalistas urbanos e
rurais, os dois primeiros presidentes
militares concederam razoável liberdade
de movimento às oposições.” (ALMEIDA
& WEIS, 1998: 328).
Esse argumento foi reforçado
também por Chico Buarque, que declarou à
revista Caros Amigos: “entre 64 e 68 já
vivíamos sob a ditadura militar, mas a
censura em si não incomodava as artes. A
chamada música de protesto e o teatro de
resistência só floresceu entre 64 e 68. A
censura institucionalizada só passou a
existir a partir do final de 68 com o AI-5”.
Ao que acrescenta: “... até então havia
espaço para se produzir arte, e este
tornou-se supervalorizado devido à
carência de discussão política onde ela
deveria acontecer, ou seja, no Congresso,
nas universidades e nos sindicatos.”
(BUARQUE, 2000)
Esse teatro de resistência abordado
por Chico teve representatividade em
diversos espetáculos do Opinião. Em 1965,
Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes
e Flávio Rangel, tentou traduzir o
inconformismo da nação perante o arbítrio
e a repressão do regime, inaugurando um
estilo de espetáculo que viria a ser
chamado “teatro de resistência”.
(MICHALSKI, 1985:132-133).
Mas apesar do surgimento de
propostas cênicas variadas não havia ainda
uma clara tomada de posição, tanto em
termos estéticos ou políticos, diante da
situação do país. Em março daquele
mesmo ano, aconteceria a primeira
proibição total de um texto: O Vigário, de
Rolf Hochhuth. O ano seguinte
representaria a busca de novas tendências
estéticas, de uma linguagem cênica que
viesse substituir valores culturais e éticos
defendidos pelas gerações anteriores. O
predomínio da palavra era substituído por
uma linguagem gestual e corporal,
exigindo da platéia uma tomada de atitude
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diante do que lhe era apresentado. Essas
características foram introduzidas, dentre
outros, por José Celso Martinez Correa,
Fernando Peixoto e Renato Borghi, que
traziam de suas viagens algumas
tendências européias. Apesar da censura,
vários trabalhos foram escritos e/ou
encenados, como Senhor Puntila e Seu
Criado Matti, de Brecht, dirigido por
Flávio Rangel e, Terror e Miséria no III
Reich, dirigido por Grisolli. Estes
espetáculos manifestavam a insatisfação e
a crítica através de analogias e de
metáforas.
A interferência cada vez mais
constante da censura não impediu que um
número significativo de trabalhos fossem
escritos e encenados durante todo o ano de
1966. Morte e Vida Severina destacou-se
com o prêmio principal no Festival de
Teatro de Nancy, uma consagração
internacional de expressão jamais
conquistada pelo teatro brasileiro.
A estréia de O Rei da Vela, de
Oswald Andrade, em 1967, consagraria
uma proposta estética e cultural que abriria
uma nova etapa do teatro brasileiro. Por
meio de tal peça, o autor propunha montar
um panorama crítico da realidade
brasileira. O Oficina considerou-o como
seu espetáculo – manifesto, argumentando
que era necessário desenvolver estilos que
retirassem a platéia da condição passiva
em que se encontrava. Roda Viva, de
Chico Buarque, levou adiante a proposta
desse “teatro agressivo”. Com Galileu
Galilei (1968), assistiu-se ao surgimento
de um modelo de teatro que desencadeava
rupturas com a tradição cênica no Brasil.
Aquele ano representou também,
segundo artistas, intelectuais e imprensa,
um dos momentos de enfrentamento mais
acirrado com o regime, e ainda, o período
de maiores perdas para as atividades
artísticas. A censura desencadeou uma
guerra aberta, especialmente contra o
teatro.
Em contrapartida, 1968 marcou o
início de um processo intenso de
manifestações formais, com cartas de
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protesto ao General Orlando Geisel, chefe
do Estado Maior das Forças Armadas
contra a prisão do diretor Flávio Rangel,
além de greves e passeatas pelas quais os
artistas posicionavam-se contra o arbítrio e
pela volta da liberdade. Delas participaram
personalidades conhecidas como Cacilda
Becker, Glauce Rocha, Walmor Chagas,
dentre outros. O governo prometia maior
liberdade para o teatro, mas as proibições e
cortes intensificavam-se dia após dia. O
golpe decisivo seria a decretação do Ato
Institucional Número 5 ( AI-5 ) ao final de
68, com o fechamento do Congresso,
prisões, denúncias de torturas,
desaparecimentos e exílios dos presos.
Tânia PACHECO argumentou, ao
refletir sobre a trajetória do teatro
brasileiro que, “os grupos de teatro
chegaram em 1968 inteiramente
despreparados para enfrentar aquela
situação, pois o Teatro esteve pautado por
um ensino que pouco tinha a ver com a
realidade brasileira”. E ainda: “que a
falta de clareza, a falta de consciência e de
consistência ideológicas, as cisões e
divisões que impediram uma real
aglutinação de forças contra a ditadura
encontravam no teatro um campo onde
eram potencializadas pelas próprias
contradições, individualismos e
voluntarismos de uma profissão ao mesmo
tempo marginalizada e mitificada,
incensada e humilhada, à qual o Poder
recusava até reconhecimento legal”
(PACHECO,1979-1980: 82).
O desabafo da autora a respeito de
uma possível desarticulação da classe
artística deve-se ao fato de que, segundo
ela, a classe não se reconhecia como
“trabalhadores em teatro” e não assumiu a
sua função na sociedade, ou seja,
continuavam almejando por uma ascensão
à burguesia e, para isso, atuavam em
perfeita conformidade com os interesses
dos modelos colonizadores.
As avaliações e críticas acerca do
despreparo ou do imobilismo dos
segmentos de esquerda, de intelectuais e
artistas frente ao regime militar foram alvo
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de reflexões e debates que se estenderiam
por décadas. Tais avaliações punham em
evidência a importância do agir
socialmente e o significado disso num
contexto de repressão. 4
Essa “atitude social” reivindicada
pela historiografia implicava tanto um
confronto direto, mediante o uso de armas,
quanto em mobilizações de resistência à
ditadura, e, nesse aspecto, não só a classe
artística esteve empenhada em continuar
atuando significativamente nos palcos,
como críticos da imprensa, que, mesmo
colocando em risco as posições que
ocupavam profissionalmente e, apesar das
ameaças pessoais, procuravam divulgar as
mobilizações da classe e as proibições das
peças, defendendo os direitos individuais e
coletivos e a liberdade de expressão
mediante o uso da arte.
A decretação do AI-5 e o
cerceamento das atividades instaurariam
4 Podemos destacar, nesse sentido, as reflexões de Heloísa B. de HOLLANDA e Marcos A. GONÇALVES em, Cultura e Participação nos anos 60. São Paulo: Ed.Brasiliense, 1995, 10ª edição, no qual analisam as tendências e manifestações sócio-culturais do momento.
uma crise profunda nas companhias
teatrais, o que faria diminuir
consideravelmente o ritmo dos
espetáculos, prolongando-se pelo ano de
69, com diversas peças proibidas. Essa
situação representou para o Oficina uma
desestruturação interna, com divergências
entre seus principais integrantes. Como
conseqüência, provocou a saída de Ítala
Nandi e o afastamento temporário de
Fernando Peixoto. Com o teatro de Arena,
a situação não era muito diferente. Em
1971, após a prisão de Augusto Boal e sua
partida para o exílio, foi anunciado o fim
de suas atividades. O rigor da censura e os
limites impostos à criação desestimulavam
aqueles que lutavam pela continuidade de
suas atividades. (MICHALSKI, 1985: 47-
48).
Naquele ano, apesar das
dificuldades enfrentadas, um trabalho
destacou-se junto ao público. Hoje é Dia
de Rock, de José Vicente, deu voz ao teatro
Ipanema, ganhando de vez o gosto dos
espectadores e permanecendo em cartaz
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por mais de um ano. Porém, a
desestruturação econômica que tomou
conta do cenário teatral levaria o Oficina,
em 1974 e, após a prisão de seu líder José
Celso, ao encerramento definitivo suas
atividades.
Uma agradável surpresa esteve
reservada, no ano de 1973. Um Grito
Parado no Ar, de Gianfrancesco Guarnieri,
dirigido por Fernando Peixoto, conseguiu,
de forma inexplicável, driblar os censores,
transmitindo uma forte manifestação de
inconformismo e de rebeldia e tornando-se
um exemplo da resistência artística. As
mobilizações extrapolavam os limites dos
palcos e intensificavam a luta contra a
arbitrariedade do regime. Apesar disso,
aquele ano foi marcado também pela
proibição, dentre outros de, A Heróica
Pancada, de Carlos Queiroz Telles,
Amanhã, Amélia, de Manhã, de Leilah
Assumpção, mais tarde liberada com
inúmeros cortes, e o show República do
Peru, escrito por Chico Buarque para o
MPB-4.
Porém, o episódio de maior
repercussão, ainda em 1973, envolveu a
peça Calabar - O Elogio da Traição,
também escrita por Chico Buarque mas,
neste caso, em parceria com o cineasta
moçambicano Ruy Guerra.
As atenções estiveram voltadas
para o longo processo de interdição
enfrentado pela equipe de produção.
Marcada a data para a estréia e convocada
para o ensaio geral, a Censura informou
que não compareceria porque “o texto
havia sido avocado por instâncias
superiores para reexame”. (PACHECO,
1979-1980:96). A imprensa foi proibida de
noticiar o fato e de publicar, até mesmo, o
título da peça. Os longos meses de luta
pela liberação representaram um acúmulo
de dívidas que resultaram num grande
prejuízo para os produtores, Fernando
Torres e Fernanda Montenegro,
mergulhando-os numa crise econômica.
Os investimentos naquele projeto
haviam exigido uma intensa dedicação na
escolha dos atores, na trilha sonora, em
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ensaios, enfim, na organização do
espetáculo. Após inúmeros testes foi
definido o elenco, composto por artistas
conhecidos, como Tetê Medina, Betty
Faria, Hélio Ari, Antônio Ganzarolli e
Lutero Luís, para os papéis principais, e
um grande número de pessoas, que
comporiam as personagens secundárias e a
chamada figuração. A trilha sonora ficou a
cargo de Danilo e Dori Caymmi, João
Palma, Maurício Mendonça e Tenório Jr.
Fernando Peixoto à frente da direção tinha
a assistência de Mário Masetti e Zdenek
Hampl. Os cenários, figurinos e
orquestração estiveram sob a
responsabilidade de Hélio Eichbauer, Rosa
Magalhães e Edu Lobo, respectivamente.
Os autores desenvolveram a trama
resgatando fatos e personagens históricos
do século XVII, quando Holanda e
Portugal lutavam entre si pela colonização
do Brasil, para refletirem sobre o presente
dos anos 70. Propunham uma reavaliação
crítica do processo histórico nacional em
seus diversos aspectos, e também,
objetivavam despertar o público para
reflexões acerca de conceitos como traição,
nacionalidade e pátria, presentes nos
discursos militares pós 1964 e que foram
cristalizados pela história oficial, conforme
declarações do próprio Ruy Guerra.
(AZEVEDO,1973:84 )
O mulato Domingos Fernandes
Calabar, personagem histórica em torno da
qual se desenvolve a ação dramática, é
tratado pela historiografia tradicional como
traidor da pátria por ter desertado em favor
dos holandeses durante a colonização do
Brasil. Nativo e grande conhecedor da
região em disputa, o nordeste, Calabar
esteve a frente da luta empreendida pelos
portugueses para “libertar” o país do
invasor holandês até reconhecer que a
opção escolhida não representava ganhos
para sua gente e para sua terra. Decidiu
então, passar para o outro lado, acreditando
que os holandeses pudessem trazer ao país
um governo mais humano e menos
opressivo do que o trazido por Portugal.
Sua atitude representou uma grande perda
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e também um grande risco às ambições
portuguesas, por isso foi encarada como
um ato de traição. Calabar foi delatado por
um, até então, amigo seu, Sebastião do
Souto, que auxiliou pessoalmente a Coroa
na sua captura. Preso, foi enforcado e
esquartejado, a fim de servir de exemplo
àqueles que tencionassem desobedecer às
ordens vindas da metrópole.5
O ponto de partida na trama
desenvolvida por Chico e Ruy Guerra é um
aviso de advertência de Mathias de
Albuquerque a Calabar, nomeado major
pelos holandeses. Mathias reconhecia o
quanto dependiam da sabedoria e esperteza
do mulato para o empreendimento da
conquista. Por isso não se conformava com
a traição, mas prometia perdoá-lo se
voltasse a defender os interesses da Coroa.
O discurso abaixo deixa claro o seu
posicionamento frente à situação:
“Por que é que ele foi para lá?
Era um mulato bonito, pêlo ruivo, sarará.
5 Sobre as guerras entre Portugal e Holanda pela colonização do nordeste brasileiro consultar: BARLEU, 1974 e MOREAU & BARO, 1979.
Guerreiro como ele não sei mais se
haverá.
Onde punha o olho punha a bala.
Onde o mangue atola, o pé firmava.
Bom de briga, de mosquete e de pistola,
Lia nas estrelas e no vento.
Tendo a mata no peito e o peito atento,
Sabia dos caminhos escondidos,
Só sabidos dos bichos desta terra
De nome esquisito de falar.
Eu lhe dei minha confiança
Em matéria de navios e de guerra.
E ainda me pergunto,
Sem resposta pra me dar,
Por que é que ele foi para lá?
Era um mameluco, louco, pêlo brabo,
pixaim.
Pra que falar dos seus dois metros de alto,
De seus olhos claros de assustar,
Capitão aqui, major passou no salto.
Levou o seu saber para os flamengos.
E nem sei se cobrou o que era de cobrar.
Eu lhe ofereci perdão em engenhos e
patente
Se quisesse voltar.
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E afoito o rebelde, em língua de serpente,
Mandou-me recusar,
Como um bicho esquisito destas terras
Que pensa dum jeito impossível de pensar.
Por que é que ele foi para lá?
(BUARQUE & GUERRA, 1973:10-11).
Outras personagens são
fundamentais no desenrolar da trama, além
de Mathias, que é comandante das quatro
capitanias de Pernambuco, Itamaracá,
Paraíba e Rio Grande. O negro Henrique
Dias e o índio Felipe Camarão auxiliam-no
na luta empreendida pela resistência
portuguesa. Bárbara e Anna de Amsterdam
eram, respectivamente, mulher e amante de
Calabar. Significativamente importante
para a trama é a contraditória personagem
Frei Manoel do Salvador, que serve ora a
um, ora a outro colonizador, e que mantém
acesa a discussão acerca do jogo de
interesses e da traição imputada apenas a
Calabar. A existência de tal personagem
desperta-nos para a reflexão e provoca
dúvidas sobre o que significava “ trair ”
naquele momento. Estas dúvidas estão
presentes, ainda, nas falas da personagem
Bárbara, que vive atormentada pelo que
aconteceu a seu marido. Ela tenta, a todo
custo entender o que seria trair para aquela
gente, pois percebe que todos os que estão
a sua volta, inclusive Souto, traem de
alguma forma e que, no entanto, apenas
Calabar foi julgado e condenado. Por isso
desabafa durante uma conversa com Souto:
“Pobre Sebastião, você não sabe o
que é trair. Você não passa de um delator.
Um alcaguete. Sebastião, tira as botas.
Põe os pés no chão. As mãos no chão, põe,
Sebastião, e lambe a terra. O que é que
você sente? Calabar sabia o gosto da terra
e a terra de Calabar vai ter sempre o
mesmo sabor. Quanto a você, você está
engolindo o estrume do rei de passagem.
Se você tivesse a dignidade de vomitar, aí
sim, talvez eu lhe beijasse a boca. Calabar
vomitou o que lhe enfiaram pela goela. Foi
essa a sua traição. A terra e não as sobras
do rei. A terra, e não a bandeira. Em vez
de coroa, a terra.” (BUARQUE &
GUERRA, 1973: 96).
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Em Calabar as contradições
presentes nas atitudes das personagens
representavam as conflitos individuais
daqueles que travavam uma luta cotidiana
contra o medo e a insegurança no
enfrentamento com a ditadura militar.
De acordo com considerações do
diretor Fernando PEIXOTO, não se trata
de reabilitar a personagem histórica de
Calabar. O objetivo principal é a
desmistificação da figura do herói e a
relativização de conceitos cristalizados
pela história oficial. Segundo ele, a
reinterpretação dos fatos é imprescindível
para o tipo de análise proposta na peça.
Avalia que não seria possível determinar
que, no século XVII, a população tivesse
noção clara do que era patriotismo tal
como é definido nos tempos modernos, e,
“se o mulato foi considerado como
traidor, é porque suas ações foram
julgadas sob o ponto de vista do
colonizador”6. Considerando a hipótese da
6 A opinião de Peixoto acerca das atitudes de Calabar é reforçada por PINTO (1976: 73). O autor critica a historiografia tradicional, que só enxergou traição e puro egoísmo nas atitudes do mulato. Isso
colonização pela Holanda, ele certamente
seria apontado como herói.
As discussões suscitadas em
Calabar demonstram uma preocupação
significativa dos autores em relação aos
acontecimentos vivenciados pelo Brasil
pós golpe militar. Naquele momento,
muito se discutia a problemática da re-
colonização do Brasil pelos Estados
Unidos, que mantinha o país numa
condição de submissão política e
econômica, devido ao crescimento elevado
da dívida externa . Tal situação relegava as
necessidades da população a segundo
plano, e a política favorecia ainda mais os
interesses externos e das elites locais.
A leitura do país, implícita ( e às
vezes explícita) nos diálogos das
personagens presentes em Calabar, trazia a
tona toda uma trajetória de interesses
colonialistas, de pressões políticas e
econômicas sobre o Brasil, além de
não se sustenta porque, segundo ele, Calabar não tinha, naquele momento, noção do que era Pátria da forma como entendemos hoje, e decidiu apoiar os holandeses simplesmente por acreditar que apresentavam-se como melhor opção para o seu povo e para sua terra.
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apontar para o que os autores
aprofundavam na reflexão dramatúrgica da
peça: a questão da traição e uma crítica
contundente à política econômica praticada
no país. Fernando PEIXOTO avaliou que,
“em Calabar, o passado é revisto com a
lucidez de quem vive o presente: com a
consciência de quem mergulha na História
em busca de uma compreensão do mundo
de hoje” (PEIXOTO, 1980:153). Neste
sentido, “é uma reflexão aberta, irônica e
provocativa, teatral e musical, grotesca e
crítica, existencial e materialista, sobre o
significado tornado relativo, portanto,
passível de interpretação, do problema e
do significado da traição.”(Ibidem: 153)
Ao longo da peça, é recorrente o
tema da traição. Calabar foi denunciado
como traidor, mas Sebastião do Souto
reconhece que traiu. A traição está
estampada na personagem do Frei Manoel
do Salvador. Até mesmo Mathias de
Albuquerque admite ter tido dúvidas
quanto a quem deveria obedecer, e também
se deveria condenar Calabar quando diz:
“Sim, padre, tenho sofrido esta
tentação. Ás vezes tenho hesitado em
deixar meu país à sua sorte, o que não é
sorte sua... Padre, às vezes, peco em
pensamento, e as palavras quase me
traem. E eu quase me surpreendo a
contestar as ordens que me chegam não
sei de onde ou em nome de quem...”. Ao
que acrescenta: “Oh, pecado infame, a
infame traição de colocar o amor à terra
em que nasci acima dos interesses do rei!”
(BUARQUE & GUERRA, 1973:50-51).
Considerando a hipótese de que
todos traíram, a outros ou a si mesmos, por
que somente um deles, Calabar, foi
condenado pela História? Afinal, quem ele
traiu? Portugal? Espanha? Brasil? E os
outros? Por que não foram condenados?
Para discutir questões tão
complexas, os autores lançaram mão de
um estilo de linguagem que tentava
dificultar a ação dos censores. A metáfora,
usada em diversas situações, servia como
arma para “provocar a dúvida” e como
escudo para criticar a ação “terrorista” do
15
regime. A ironia e o deboche presentes nos
discursos das personagens traduziam o
inconformismo da classe artística frente à
insensatez do regime. Um trecho cantado
por Anna de Amsterdam, juntamente com
a introdução do coro, traz evidências da
utilização desse recurso de linguagem:
“Vence na vida quem diz sim Vence na vida quem diz sim Se te dói o corpo, Diz que sim. Torcem mais um pouco, Diz que sim. Se te dão um soco, Diz que sim. Se te deixam louco, Diz que sim. Se te babam no cangote, Mordem o decote, Se te alisam com o chicote, Olha bem pra mim. Vence na vida quem diz sim, Vence na vida quem diz sim. Se te jogam na lama, Diz que sim. Pra que tanto drama, Diz que sim. Se te criam fama, Diz que sim. Se te chamam vagabunda, Montam na cacunda, Se te largam moribunda, Olha bem pra mim. Vence na vida quem diz sim. Vence na vida quem diz sim ( everybody) Se te cobrem de ouro, Diz que sim. Se te mandam embora, Diz que sim. Se te puxam o saco, Diz que sim. Se te xingam a raça,
Diz que sim. Se te incham a barriga De feto e lombriga, Nem por isso compra a briga, Olha bem pra mim. Vence na vida quem diz sim, Vence na vida quem diz sim.”
(BUARQUE & GUERRA, 1973:120)
Por outro lado, o texto desperta o
público para a esperança de um futuro
melhor. Um futuro onde o país estaria livre
dos interesses e das pressões externas, e o
povo poderia exercer a sua liberdade. Isso
só seria possível graças a existência de
muitas pessoas como Calabar, de muitos
“traidores” como ele, conforme argumenta
Bárbara nesta passagem do texto:
“Um dia este país há de ser
independente. Dos holandeses, dos
espanhóis, dos portugueses... Um dia todos
os países poderão ser independentes, seja
do que for. Mas isso requer muito traidor.
Muito Calabar. E não basta enforcar,
retalhar, picar... Calabar não morre.
Calabar é cobra-de-vidro. E o povo jura
que cobra-de-vidro é uma espécie de
lagarto que quando se corta em dois, três,
16
mil pedaços, facilmente se refaz.”
(BUARQUE & GUERRA, 1973:133).
Vistos como os próprios “traidores
da pátria”, os autores não conseguiram
passar pelo crivo dos censores. O
encerramento das atividades ligadas a
Calabar provocou um sentimento de
frustração que marcaria para sempre o
teatro nacional e a carreira profissional de
todos que, diretamente ou indiretamente
estiveram envolvidos no projeto. A
liberação para encenação da peça só seria
concedida na década de 80.
Além da peça ter sido vetada pelos
censores até mesmo os discos Chico Canta
Calabar, que já estavam liberados para
venda, foram recolhidos para mudança no
título impresso na capa. Nela, viu-se
apenas Chico Canta.
As dificuldades em levar para o
palco um projeto audacioso como aquele
não estiveram restritas apenas ao longo
processo de interdição da peça. Os autores
declararam que enfrentaram problemas
técnicos e também na resolução das cenas,
a iluminação e os figurinos não chegaram a
ser concluídos, além de dificuldades de
entrosamento entre os próprios atores e a
equipe de produção. Avaliaram que não só
o limite de recursos econômicos
interferiram no bom andamento do
trabalho, mas também o desgaste físico e
psicológico da equipe. Foram prejudicados
devido ao atropelo dos ensaios para
conclusão do espetáculo, que tinha data
marcada para estréia. Desta forma,
algumas cenas não puderam ser
trabalhadas da forma como gostariam e tal
como exigia o texto. A sensação de ter tido
o espetáculo abortado provocou-lhes um
enorme vazio. Um vazio pela não
comunicação com o público, porque não
houve público. Argumentaram que um
tempo maior, livre das pressões e das
dificuldades econômicas, e ainda, um
maior envolvimento dos atores e da equipe
de produção garantiriam resultados mais
satisfatórios.
Apesar das dificuldades vividas
pela classe artística com o projeto Calabar,
17
o teatro surpreenderia mais uma vez em
1975, com o sucesso de Gota D’água e
com o retorno do Concurso de dramaturgia
promovido pelo SNT. A peça Rasga
Coração, de Oduvaldo Vianna Filho
conquistou o primeiro prêmio. O concurso
havia sido suspenso em 1968, quando
Papa Highirte, também de Vianinha, havia
sido a grande vencedora. Mas tanto Rasga
Coração, quanto a segunda colocada A
Invasão dos Bárbaros, de Consuelo de
Castro, acabaram proibidas pela censura.
O ano de 1976, apesar da ação
permanente da censura, presenteou o
público com o grande sucesso de O último
Carro, dirigido por João das Neves,
trazendo de volta ao cenário artístico o
teatro Opinião. No ano seguinte assistiu-se
a um retrocesso nas atividades teatrais, de
modo geral, e apenas em 1978 os bons
tempos seriam revividos. Macunaíma, em
São Paulo, e dirigido por Antunes Filho,
alcançou grande simpatia junto ao público
e se tornaria, após sete anos, o grande
marco do período.
As dificuldades de produção não
era “privilégio” apenas no meio artístico.
O crítico teatral Yan MICHALSKI
considerou que foi pessoalmente
prejudicado por não poder divulgar
livremente os projetos e espetáculos da
época. Algumas peças enfrentaram tantos
cortes que se tornava praticamente
impossível realizar a sua montagem e até
mesmo fazer comentários a seu respeito.
Muitas vezes, nem mesmo a repercussão
positiva junto ao público, podia ser
divulgada. Isso representou, a seu ver, um
corte dramático e irreparável na história
cultural do Brasil. MICHALSKI
considerou que, “1968 foi o ano mais
trágico de toda a história do teatro
brasileiro, pois a censura assumiu o papel
de protagonista da cena nacional,
desencadeando uma guerra aberta contra
a criação teatral”. (MICHALSKI,
1985:30-31).
Além do longo período de
submissão e silêncio impostos aos artistas,
desarmando a capacidade de mobilização
18
da classe, a morte prematura de alguns de
seus líderes como Cacilda Becker, Glauce
Rocha, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo
Pontes, enfraqueceu o nível de
conscientização daqueles que estiveram na
luta contra o regime.
MICHALSKI avaliou que houve
um grande declínio na produção
dramatúrgica brasileira, intensificado
também pela captação de inúmeros artistas
ligados aos palcos, pela televisão,
especialmente pelas novelas. Destes
destacaram-se Nelson Rodrigues, Ariano
Suassuna, Dias Gomes, Jorge de Andrade,
dentre outros. Segundo ele “o milagre
cênico impedido de se realizar no seu
momento mais oportuno, não é
simplesmente adiado: é condenado à
morte”. ( MICHALSKI, 1979:50 ).
Além de Michalski, outros
estudiosos refletiram profundamente sobre
as lutas e os descaminhos das atividades
artísticas e das esquerdas no Brasil pós 64,
como é o caso de Adélia Bezerra de
MENEZES, que tomou como fio condutor
das discussões a vida e a obra de Chico
Buarque, que ela encara como “poesia de
resistência”, traçando um paralelo entre o
percurso poético do artista e a trajetória
política do país, a partir daquele ano. A
autora faz duras críticas ao que chamou de
“imobilismo”, tanto da esquerda quanto da
classe artística, em relação às dúvidas
quanto ao seu papel histórico no contexto
da ditadura.
No que diz respeito à obra
desenvolvida no campo musical pôr
Chico, nota um certo distanciamento
político do Autor até meados da década de
70. Porém, a partir de Apesar de Você
(1970), Deus lhe Pague (1971), Quando o
Carnaval Chegar (1972) e, de parceria
com Gilberto Gil, Cálice (1973), nota uma
“evolução” no processo criativo e crítico.
As canções de protesto traduziam as
dificuldades de produção nos quatro anos
mais terríveis em matéria de repressão e
censura. Chico se transformaria (até 1978)
em um dos artistas mais visados pela
censura, e confessou que houve épocas em
19
que sua criatividade esteve mais voltada
para driblá-la. Um dos recursos foi a
utilização do pseudônimo Julinho da
Adelaide, que ele não conseguiu manter
em segredo por muito tempo.
(WERNECK, 1989: 119-262)
Seria sobretudo nas peças de teatro
que o problema do nacionalismo ou do
Nacional - Popular se colocaria mais à
mostra, e Chico tornaria-se um dos grandes
ativadores da memória histórica nacional.
Assim, quando ele se volta, nas suas peças
para o passado, terá como objetivo
entender melhor o presente. Calabar
(1973), trata do problema do nacionalismo,
preocupa-se com a emergência de uma
identidade nacional em perspectiva
histórica. Desta forma, o que é Pátria? Ao
passar para o lado dos holandeses a
personagem estaria traindo a Pátria? Trata-
se de um dilema que envolve não só
Calabar, mas também Mathias de
Albuquerque, que tem dúvidas quanto a
quem deveria servir. A dúvida é
característica constante em diversos
discursos ao longo do texto. Um diálogo
entre Souto e Bárbara instiga esse tipo de
reflexão, quando ele diz:
“... queria que as coisas fossem
mais imediatas. Queria saber do certo e do
errado. Queria não ter dúvidas.”
(MENEZES, 1982: 177-178)
Ainda sobre Calabar, avalia que
“ali se projeta, inequivocamente o
problema das omissões do intelectual, dos
impasses do sujeito no agir histórico, dos
dilemas de sua atuação e do silêncio
imposto.” (Ibidem, 179) E, ainda, que a
luta armada na qual Calabar foi atuante
servia como analogia a um problema posto
à esquerda no momento do golpe: o de
optar ou não pelo enfrentamento com a
ditadura.
Esse tipo de dúvida Calabar não
tinha, e a personagem Bárbara, que o
apoiou oferecendo-lhe seu amor,
demonstra também não ter quando canta:
“Ele sabe dos caminhos Dessa minha terra No meu corpo se escondeu, Minhas matas percorreu, Os meus rios, Os meus braços,
20
Ele é meu guerreiro Nos colchões de terra. Nas bandeiras, bons lençóis, Nas trincheiras, quantos ais, aí... Cala a boca, Olha o fogo, Cala a boca, Olha a relva, Cala a boca, Bárbara. Cala a boca, Bárbara. Cala a boca, Bárbara. Cala a boca, Bárbara. Ele sabe dos segredos Que ninguém ensina: Onde eu guardo o meu prazer, Em que pântanos beber, As vazantes, As correntes. Nos colchões de ferro Ele é o meu parceiro, Nas companhias, nos currais, Nas entranhas, quantos ais, ai. Cala a boca, Olha a noite, Cala a boca, Olha o frio. Cala a boca, Bárbara. Cala a boca, Bárbara. Cala a boca, Bárbara. Cala a boca, Bárbara.”
( BUARQUE & GUERRA, 1973: 12).
Essa tomada de posição frente às
questões políticas do país, e também, o
papel das artes na sociedade, tal como é
reivindicada pelos autores na peça, foi
também defendida por Augusto Boal . Para
ele, o palco era a possibilidade de manter
viva a discussão acerca da problemática
entre o ser ou não ser político na atividade
teatral. A arma de que dispunham era a
representação, e o palco, o espaço
destinado às reflexões. As peças Arena
Conta Zumbi (censurada com cortes em
65) e Arena Conta Tiradentes refletiam
sobre os papéis das personagens históricas
Zumbi e Tiradentes e sobre as perspectivas
revolucionárias de ambos. Perspectivas tão
necessárias mas também, a seu ver,
ausentes no contexto da ditadura. (BOAL,
1977)
A “distensão” ou “abertura
política” no país, no ano de 1979,
representou o fim do AI-5 e a possibilidade
de volta da liberdade de expressão de
artistas, intelectuais, imprensa e outros
setores silenciados pela censura. Apesar
desta ainda existir, algumas garantias
foram dadas para a liberação de peças
como Papa Highirte e Rasga Coração.
Yan MICHASKI analisa que,
contrariando as expectativas de
desenvolvimento de um teatro mais
atuante, já que a década de 80 abria um
novo capítulo na trajetória do teatro
brasileiro e, pelo menos em teoria, oferecia
21
uma maior liberdade de atuação para a
classe artística, o que se viu foi a
intensificação de numa crise já esboçada
pelas companhias teatrais desde as décadas
anteriores. Uma significativa queda no
número de espetáculos revelou o
resfriamento na capacidade criativa dos
artistas. Além disso, apontou a carência
dos espetáculos, que não mais traduziam a
realidade do país, agora sob a “abertura
democrática”. Era necessário criar novos
estilos e linguagens dramáticas
compatíveis com o renovado e ampliado
público, pois este não suportava mais
assistir a espetáculos ligados a temas
políticos e aos traumas vividos pela nação
sob o contexto da ditadura. (MICHALSKI,
1979: 50)
O momento era, novamente, de
incerteza e de reavaliações. Era também de
expectativa. Expectativa diante de um
outro inimigo: o mercado da indústria
cultural, amplamente difundido e
financiado pela ditadura militar. Arma que
se mostrou eficaz no cerceamento das
manifestações populares e no
desmantelamento das tentativas de
organização das esquerdas pós golpe de
64.
Desta forma, o inimigo podia ser
outro, mas nada tinha de novo, pois o
desenvolvimento de um mercado cultural
no país fazia parte de uma longa trajetória
iniciada no século XIX e difundida em
meados da década de 30, com o governo
populista de Getúlio Vargas. Enquanto
esteve à frente do poder, ele fez dos meios
de comunicações, especialmente do rádio,
arma poderosa para mobilizar a população
em torno de sua proposta “populista” de
governo. Ao mesmo tempo, o rádio era um
dos meios através dos quais mantinha
controle sobre o que se dava no social.
Desta forma, analisar o desgaste
das atividades artísticas em plena década
de 80 significa fazer essa trajetória,
analisando em que medida o surgimento do
rádio e, posteriormente, da televisão,
contribuiria para que os planos dos
22
governos civis ou militares pudessem
limitar ou castrar as manifestações sociais.
As interferências, tanto políticas
quanto econômicas, em torno do
desenvolvimento de um mercado cultural,
mostraram-se cada vez mais ligadas ao
imediatismo do lucro e à superficialidade
do produto a ser oferecido. Tais reflexões
representam a possibilidade de análise
sobre a qual nos deteremos adiante,
utilizando-nos, especificamente, do ponto
de vista de Renato ORTIZ, do possível
“resfriamento cultural” presente na década
de 80.
Ortiz revelou, em uma de suas
obras (ORTIZ, 1989), as problemáticas em
torno da cultura na atual sociedade
brasileira e, consequentemente, em torno
da existência de uma “cultura de massa”.
Em suas reflexões alerta que, para
compreendermos o advento da indústria
cultural no Brasil, é necessário caracterizar
o século XIX, quando existiam dois tipos
de públicos: um, restrito à literatura e às
artes, e outro, de0 caráter comercial. O alto
índice de analfabetismo da população teria
sido um dos grandes responsáveis pela
restrição do número de leitores, e, como
conseqüência, para a incipiência do
mercado de livros, o que permaneceria até
a década de 1930.
A partir da década de 1950, o
cinema sofreria semelhante interferência.
Diante da impossibilidade de se fazer
cinema, grande número de pessoas voltou-
se para a televisão, desenvolvendo o
chamado teleteatro. ORTIZ analisa que “a
dramaturgia do palco se associa a uma
tecnologia de massa e, se por um lado
abre espaço para a criação que em outros
períodos será aproveitado por
determinados grupos culturais, por outro,
restringe a uma atuação que depende da
lógica comercial, e por fazer parte do
sistema empresarial tem dificuldade de
construir uma visão crítica em relação ao
tipo de cultura que produzem”. (Ibidem:
29)
O autor aborda não só o movimento
cultural pós 64, como também a atuação do
23
Estado no desenvolvimento dos meios de
comunicação, visando a integração
nacional. Por outro lado, destaca a ação
dos empresários, que objetivavam
primeiramente a integração do mercado.
Há uma profunda transformação na
esfera da comunicação a partir da
popularização dos aparelhos de televisão e
das telenovelas. Isso implicaria o
desaparecimento do velho estilo de teatro
feito na década de 50. A lógica do mercado
cultural desse sistema de telecomunicações
limitou a capacidade criativa do ator, agora
subordinado aos interesses da empresa.
A canalização pela televisão de
profissionais ligados ao teatro contribuiu,
em grande parte, de acordo com José
ARRABAL, para a “desmobilização” dos
trabalhadores do palco. Além da censura
política, a pressão econômica agia sobre as
companhias e seus componentes,
obrigando-os a buscarem a sobrevivência
em comerciais, novelas ou em séries feitas
para a televisão. A linguagem teatral já não
trazia os lucros almejados pelo
empresariado.
Tais mudanças interferiram na
forma crítica como esses profissionais
lidavam com a cultura, resultando também
num “acriticismo” da população acerca da
modernidade.
As implicações do mercado e da
censura foram expressas por Fernando
Peixoto ao demarcar os limites de criação e
de desenvolvimento de sua equipe no
projeto Calabar. O autor avalia que a
política ainda é essencial ao teatro.
Considera problemático desenvolver um
espetáculo profissional que não permite ao
encenador executar livremente a sua
criatividade. Argumenta que tal processo
leva a simplificações, à repetição de velhos
esquemas, que negligenciam num
aprofundamento maior de questões que o
próprio texto exige. A problemática de ter
que atuar dentro de um certo limite de
tempo “castra” a capacidade criativa do
encenador.
24
Peixoto lamenta também a
circunstância na qual Calabar foi
produzida. Questiona se não seria possível
dar a um espetáculo como aquele um
significado mais profundo como uma
reflexão sobre o momento histórico da
peça e sua relação dialética com o
momento histórico em que viviam.
São significativas as reflexões e o
posicionamento de Peixoto acerca de tais
questões, pois, quando a peça foi liberada
na década de 80 as perspectivas de debate
e o público eram outros, assim como o
contexto histórico do país. Diante da nova
realidade seria necessário fazer uma
releitura sobre o espetáculo a ser encenado.
As problemáticas postas por Ortiz e
Peixoto são instigantes à medida que nos
fazem refletir sobre a representavidade do
teatro na sociedade atual e os limites
impostos à criatividade artística durante as
últimas décadas.
Portanto, concordar que hoje é real
a despolitização da classe teatral nos meios
em que atua é considerar que os artifícios
utilizados pelo regime militar e pelas
empresas culturais foram eficazes e seus
danos irreparáveis. Significa desacreditar
em um processo de luta de inúmeros
profissionais que se dedicaram
exaustivamente na luta pela sobrevivência
de suas atividades, especialmente do
teatro, e que procuram, ainda hoje, um
espaço para atuarem.
É imprescindível que tenhamos
clareza de que, os problemas enfrentados
pela classe artística hoje, são outros, como
o momento histórico também o é. Faz-se
necessário acreditar que, em qualquer
circunstância, é possível atuar
politicamente, reivindicando direitos que
são de todos os profissionais. Tomando
emprestadas as palavras de Augusto Boal
de que, qualquer atitude, seja ela individual
ou coletiva diante de alguma situação, é
uma ação política, estaremos concordando
que através de pequenos gestos poderemos
dar um grande passo rumo aos objetivos
almejados. Conforme expressou Vianinha
é preciso “atuar nas brechas”.
25
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