eugene h. peterson - viva a ressurreição

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Livro de Eugene Peterson: "Viva a ressurreição"

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ressurreio e fascnio 23

Viva a ressurreio Categoria: Espiritualidade / Vida crista

Copyright 2006 por Eugene H. PetersonPublicado originalmente por NavPress, uma diviso de The Navigators, Colorado Springs, eua.

Ttulo original: Living the resurrection Editora responsvel: Silvia Justino Reviso de traduo: Malk Comunicao Ltda. Reviso de provas: Thefilo Vieira, Aldo Menezes Superviso de produo: Lilian Melo Colaborao: Miriam de Assis Capa: Douglas Lucas Imagem: Martim PernterOs textos das referncias bblicas foram extrados da verso Almeida Revista e Atualizada, 2a ed. (Sociedade Bblica do Brasil), salvo indicao especfica.

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Peterson, Eugene H., 1932 Viva a ressurreio: os princpios da formao espiritual / Eugene H. Peterson; traduzido por Robinson Malkomes. So Paulo: Mundo Cristo, 2007.Ttulo original: Living the resurrection: the risen Chirst in everyday life ISBN 978-85-7325-469-31. Bblia. N. T. Evangelhos Crtica e interpretao 2. Formao espiritual 3. Jesus Cristo Ressurreio Ensino bblico 4. Vida crist I. Ttulo.

06-9519CDD248.4

ndice para catlogo sistemtico: 1. Ressurreio de Jesus e vida crist: cristianismo 248.4

Publicado no Brasil com a devida autorizao e com todos os direitos reservados pela: Associao Religiosa Editora Mundo CristoRua Antnio Carlos Tacconi, 79, So Paulo, SP, Brasil, CEP 04810-020 Telefone: (11) 2127-4147 Home page: www.mundocristao.com.br

Editora associada a: Associao Brasileira de Editores Cristos Cmara Brasileira do Livro Evangelical Christian Publishers Association

A 1 edio foi publicada em fevereiro de 2007

SumrioRessurreio e fascnio12 Ressurreio, comida e bebida213 Ressurreio e amigos48Apndice64Histrias da ressurreio164Mateus 2865Marcos 1666Lucas 2467Joo 20-2170

1Ressurreio e fascnio

As mulheres, profundamente maravilhadas e cheias de alegria, no perderam tempo e logo saram do tmulo. E correram para contar tudo aos discpulos. Mas Jesus as encontrou e as fez parar. E disse: "Bom dia!" Elas caram de joelhos, abraaram-lhe os ps e o adoraram.(Mt 28:8-9, msg)

Sempre gostei de como Billy Sunday formulava seu conceito de vida crist ideal. Ele foi um dos maiores evangelistas americanos e pregava para grandes massas. Cem anos atrs, ele cruzava os Estados Unidos com seu grandioso espetculo de avivamento que atraa enormes multides. Ex-jogador de beisebol, ocupava o plpito com o mesmo desembarao de um atleta; noite aps noite, seus sermes eram como grandes jogadas e lances de craque em suas gigantescas tendas de avivamento. Uma das marcas registradas dessas tendas era a trilha de serragem. O amplo corredor que ia da entrada da tenda at o plpito onde ele pregava era recoberto por alguns centmetros de serragem. Isso ajudava a baixar a poeira nos dias secos e diminua o barro nos dias de chuva. E a serragem formava uma trilha que passava por vrias fileiras de cadeiras dobrveis em direo ao altar na parte da frente da tenda, logo abaixo do plpito. Na hora da concluso do sermo, Billy Sunday fazia seu famoso "apelo do altar", convidando homens e mulheres que tinham ido tenda naquela noite para sarem das cadeiras onde estavam, pegarem a trilha de serragem em direo ao altar e ali, de joelhos, entregarem a vida a Cristo. A expresso hitting the sawdust trail (pegar a trilha de serragem) entrou para o vocabulrio do ingls norte-americano como sinnimo de arrependimento e converso.

A expresso perfeitaEu no sei se a expresso "pegar a trilha de serragem" foi inventada por Billy Sunday, mas certo que foi ele que a consagrou na lngua inglesa. A expresso que ele sempre repetia para referir-se vida crist ideal era a seguinte: "Pegue a trilha de serragem, dobre os joelhos e receba Cristo como seu Salvador. Em seguida, saia daqui para a rua, seja atropelado por uma carreta e v direto para o cu".Acho que d para concordar que essa uma frmula perfeita para chegar ao cu de um jeito bem rpido e fcil. E praticamente infalvel. No h tempo para desviar-se da f, no h tentao para atrapalhar, dvidas com as quais lutar, marido ou esposa para honrar, filhos para aturar, inimigos para amar, nem tristeza, nem lgrimas. a eternidade num estalar de dedos.Billy Sunday um exemplo extremo e mais ou menos tpico da mentalidade norte-americana nesses assuntos: faa direito, mas faa o mais rpido possvel. Estabelea seus objetivos e v em busca deles pelos meios mais eficientes e econmicos. Como cultura, somos especialistas em comear. Estabelecemos objetivos magnficos. Mas no somos extraordinrios em dar seqncia. Quando as coisas comeam a dar errado, simplesmente comeamos tudo de novo, j que somos bons nisso. Ou fixamos um novo objetivo, uma nova "viso" ou, como chamamos, uma nova "declarao de misso". E durante algum tempo isso nos distrai do que est acontecendo bem debaixo do nosso nariz.

O que a igreja excluiParafraseando algo que o papa Joo Paulo II disse certa vez, ao dirigir-se a um grupo de lderes de pases do Terceiro Mundo: No procurem nas naes ocidentais um modelo de desenvolvimento. Eles sabem fazer as coisas, mas no sabem conviver com elas. Atingiram um nvel tecnolgico impressionante, mas esqueceram como os filhos devem ser criados. este o contexto deste livro. Um contexto cultural em que a pessoa bastante desprezada no meio da correria para conseguir ou para fazer alguma coisa. Uma importante tarefa da igreja crist formar pessoas por meio do Esprito Santo, at que elas cheguem " medida da estatura da plenitude de Cristo" (Ef 4:13). Mas geralmente uma tarefa negligenciada. Temos vrias programaes para cuidar disso, mas elas sempre esto na periferia de alguma outra coisa. A formao espiritual recebe muito mais ateno no mundo secular da espiritualidade da Nova Era ou do desenvolvimento psicolgico do que na igreja. E por mais louvvel que seja a ateno dada pelos mestres e guias deste mundo, eles esto tentando fazer tudo isso sem Jesus Cristo ou colocando Jesus apenas como elemento perifrico. Portanto, esto deixando de fora o que mais importante, a saber, a ressurreio.Tenho certeza de que a igreja a comunidade que Deus colocou no centro do mundo para manter o mundo centrado. Um dos aspectos essenciais dessa tarefa de manter o mundo centrado chama-se formao espiritual a formao da vida de Cristo em ns, processo que dura a vida inteira. Ela consiste no que acontece entre o momento em que tomamos conscincia da nossa identidade como cristos e aceitamos essa identidade e o momento em que nos sentarmos para a "ceia das bodas do Cordeiro" (Ap 19:9). Ocupa-se do modo como vivemos no perodo que vai entre o dobrar os joelhos no altar e o ser atropelado pela carreta.Levanto esse assunto com considervel sentimento de urgncia, no apenas porque a cultura que nos cerca tem secularizado amplamente a formao espiritual, mas tambm porque a igreja em que vivo, e para a qual fui chamado a falar e escrever, est, nesse assunto, cada vez mais se tornando como a cultura, em vez de se colocar contra ela. O enorme interesse de hoje na "espiritualidade" no tem sido muito acompanhado, se que o tem, por um interesse na questo da formao em Cristo, um processo longo, complexo e dirio ou seja, a prtica de disposies e hbitos do corao que fazem a palavra espiritualidade deixar de ser um desejo, um anseio, uma fantasia ou uma digresso e venha a se transformar em vida real vivida para a glria de Deus. Uma expresso de um poema de Wendell Berry romancista, ensasta e filsofo americano, traduz bem o que estamos falando "ressurreio na prtica". Este livro est fundamentado na ressurreio de Jesus.

A ressurreio restaurada ao centroVivemos a vida crist a partir de uma rica tradio de formao-via-ressurreio. A ressurreio de Jesus fornece a energia e as condies pelas quais andamos "na presena do Senhor, na terra dos viventes" conforme a ilustre expresso do salmo (116:9). A ressurreio de Jesus cria e oferece a realidade na qual somos formados como novas criaturas em Cristo por meio do Esprito Santo. A cultura do faa-voc-mesmo e do self-service tem dominado o nosso pensamento de forma to cabal, que em condies normais no damos ateno coisa mais importante de todas a ressurreio. E isso acontece porque a ressurreio no algo que podemos usar, controlar, manipular nem aperfeioar. interessante que o mundo tenha tido to pouco sucesso ao tentar comercializar a Pscoa transformando-a numa commodity, um bem de valor econmico ao contrrio do que acontece com o Natal. Se no conseguimos entender alguma coisa nem mesmo us-la, logo perdemos o interesse. Mas a ressurreio no algo que est disposio para ser usado por ns. uma operao exclusiva de Deus.O que pretendo fazer restaurar a ressurreio ao centro e abraar as tradies que dela advm para nossa formao. Vou tratar de trs aspectos da ressurreio de Jesus que nos definem e nos do energia quando passamos a viver a "ressurreio na prtica". Em seguida, farei um contraste entre essa vivncia da ressurreio a partir da realidade e das condies da ressurreio de Jesus e aquilo que julgo serem os hbitos ou pressupostos culturais mais comuns que nos levam a perder conscincia da ressurreio ou que nos desviam dela. A isso darei o nome de "des-construo da ressurreio". No final, apresentarei algumas sugestes sobre o que faz parte da "ressurreio na prtica": o ato de viver a vida de forma adequada e sensvel num mundo onde Cristo ressuscitou e est vivo.

Reverncia e intimidade: uma no anda sem a outraOs autores dos quatro evangelhos concluem o relato que fazem do evangelho de Jesus com uma ou mais histrias da ressurreio. Eles chegam a esse ponto por vias diversas e fornecem dados diferentes, mas h um elemento que no falta em nenhuma dessas histrias: a sensao de fascnio, perplexidade, surpresa. Apesar das vrias dicas espalhadas pelas Escrituras hebraicas e mesmo depois de Jesus ter feito trs previses explcitas de sua ressurreio (veja Mc 8:31; 9:31; 10:34), quando ela aconteceu ningum esperava aquilo. Ningum mesmo. As primeiras pessoas s voltas com a ressurreio de Jesus estavam cuidando de assuntos que envolviam a sua morte. De repente, elas se vem obrigadas a fazer uma mudana de 180 graus e comear a cuidar de assuntos pertinentes vida. E no meio disso tudo elas ficaram totalmente fascinadas.Mateus apresenta-nos Maria Madalena e uma mulher que ele chama de "a outra Maria". No domingo logo cedo, elas vo fazer uma visita ao tmulo onde, na sexta-feira de tarde, tinham visto Jos de Arimatia colocar o corpo crucificado de Jesus (veja 28:1-10). Quando chegam ao tmulo, de repente o cho comea a tremer debaixo de seus ps era um terremoto. Na seqncia, vem o brilho de um relmpago, que na verdade era um anjo. Essa mistura de terremoto com relmpago faz os soldados romanos, que tomavam conta do tmulo, abandonarem o planto. Assustados e sem entender nada do que estava acontecendo, eles desmaiam e ficam ali, esparramados pelo cho.Mas as duas Marias esto ali de p e ouvem o anjo, que lhes fala duas coisas: "No temais" e "[ele] ressuscitou" (v. 5-6). Em seguida, o anjo lhes d um recado que devem levar aos discpulos. Ento, elas vo embora do tmulo, obedecendo ordem do anjo. Profundamente fascinadas e tomadas de alegria, saem correndo para contar a novidade aos discpulos. Mas so obrigadas a parar ao ouvir algum que as cumprimenta: "Bom dia!" (v. 9, msg). E, notando um tom de cordialidade no cumprimento, caem de joelhos diante do Jesus ressurreto. A primeira reao diante do Cristo ressurreto foi cair de joelhos em atitude de temor e reverncia. Mas tambm houve certa dose de intimidade naquela reao, pois elas se atreveram a abraar-lhe os ps e "o adoraram" (v. 9).Juntos, esses dois elementos transformam-se em adorao. Ficar de joelhos diante de Jesus uma expresso de reverncia no em si mesmo adorao motivada pela ressurreio. Tocar e abraar os ps de Jesus uma expresso de intimidade no em si mesmo adorao motivada pela ressurreio. Reverncia e intimidade no andam uma sem a outra. A reverncia precisa banhar-se nas guas da intimidade, para que no se transforme num elemento esttico frio e desligado da realidade. A intimidade precisa mergulhar nas guas da reverncia, para que no se transforme em emoo eufrica. Aquelas mulheres sabiam o que estavam fazendo: elas estavam em contato com Deus na presena do Jesus vivo; por isso o adoraram.Ento, Jesus confirma o que o anjo j tinha falado: "No temais"; e repete o recado que devia ser dado aos discpulos. E isso foi tudo.Eu adoro observar a diferena entre aqueles soldados romanos insensveis e esparramados no cho, paralisados pelo medo e aquelas duas mulheres exuberantes, de joelhos sobre o mesmo cho, energizadas pelo medo. Nos dois casos a palavra a mesma medo. Mas no a mesma coisa. H um medo que nos torna incapazes de estar em contato com Deus; e h um medo que nos resgata da preocupao com ns mesmos, com nossos sentimentos e com nossas circunstncias e nos coloca num mundo que nos deixa fascinados. um medo que nos resgata de ns mesmos e nos coloca na esfera de ao do prprio Deus.

Uma perplexidade esmagadoraMarcos acrescenta outra mulher Salom ao relato que Mateus faz das duas Marias na visita ao tmulo no domingo cedo, adicionando alguns detalhes que aumentam a sensao de fascnio motivado pela ressurreio (veja 16:1-8). Marcos nos informa que as trs mulheres esto se dirigindo ao tmulo preparadas para cumprir uma tarefa: embalsamar o corpo de Jesus com essncias aromticas. Mas havia um problema que as preocupava pelo caminho: como entrariam no tmulo para realizar o trabalho? A entrada estava fechada por uma enorme pedra que havia sido rolada at ali, e elas jamais conseguiriam mov-la. Quando porm chegaram, descobriram que a pedra j havia sido tirada. Que surpresa! Elas achavam que teriam de resolver um problemo, mas o problemo j havia sido resolvido. Foram com a expectativa de realizar uma tarefa importante e at essencial, mas no havia mais nenhuma tarefa para ser realizada.E elas ficam ainda mais surpresas quando entram no tmulo e encontram um jovem supomos que fosse um anjo que estava ali sentado e pronto para conversar com elas. Aquelas mulheres ficam "totalmente desconcertadas, perplexas" (v. 5, msg). Alis, quem no ficaria? Mas ele as tranqiliza, conta-lhes que Jesus ressuscitou e lhes d o recado que deveriam entregar aos discpulos.Em seu final abrupto e conciso, Marcos ressalta a esmagadora perplexidade vivida pelas trs mulheres. Elas estavam "fora de si, com a cabea rodando". Estavam "atordoadas" e "no disseram nada a ningum" (v. 8, msg). Na realidade, estavam fascinadas com a ressurreio.

Lembrando as palavras de JesusLucas inclui algumas mulheres annimas com as duas Marias e Salom nessa primeira cena da ressurreio (veja24:1-12). Essas mulheres annimas eram as que "tinham vindo da Galilia com Jesus" (23:55) e tambm so chamadas "as mulheres" (24:1, msg) e "as demais" (v. 10). Elas entram em cena trazendo as essncias aromticas que iriam usar para preparar o corpo de Jesus. Mas, lgico, no h nenhum corpo. E elas ficam "confusas" (v. 4, msg), coam a cabea e procuram ali em volta. Ser que estamos no tmulo certo? Na sexta-feira de tarde, elas tinham estado bem ali e visto Jos de Arimatia colocar o corpo de Jesus l dentro. Ento passaram o sbado juntando as essncias aromticas e os leos. quela altura, j haviam gastado horas preparando tudo para esse ato de devoo e de amor pela pessoa que havia significado tanto para elas e pela qual estavam de luto. E agora mais essa! Afinal de contas, o que que est acontecendo por aqui?Ento, de repente, aparecem dois homens na frente delas. Luzes brilhantes precipitam-se em cascata de suas roupas. S podiam ser anjos. Completamente apavoradas, as mulheres caem com o rosto em terra. Os dois homens no tmulo as tranqilizam, dizendo: "Por que vocs esto procurando num cemitrio aquele que est vivo? Ele no est aqui, mas ressuscitou. Lembram-se de como ele lhes disse ainda na Galilia que precisava ser entregue aos pecadores, morrer numa cruz e ressuscitar depois de trs dias?" (v. 5-7, msg).Claro, aquelas mulheres se lembravam. J haviam escutado essas palavras. Mas nem em sonho podiam imaginar que aquilo fosse acontecer ainda durante esta vida. D para entender por que elas esto desnorteadas. Mas as palavras objetivas daqueles dois homens colocam-nas novamente dentro da realidade objetiva. Elas se lembram de onde haviam estado as estradas na Galilia, as conversas e as refeies que haviam feito eram reais. Elas se lembram do que haviam testemunhado h to pouco tempo uma crucificao excruciante em Jerusalm. E se lembram das palavras de Jesus palavras que elas mesmas haviam escutado. Como podiam se esquecer de tudo aquilo?As mulheres se lembram. No, elas no haviam ficado loucas. Por isso, logo se refazem e voltam para contar tudo aos discpulos. Mas no conseguiram fazer os discpulos acreditarem no que elas sabiam e haviam vivido. Os discpulos descartam o relato das mulheres como se fosse coisa de quem est delirando. Eles no acreditam numa palavra sequer e pensam que elas esto inventando tudo aquilo.

A natureza do fascnioNo simples explicar para outra pessoa o que fascnio, ainda mais quando a pessoa est fascinada e maravilhada com a ressurreio. Por sua prpria natureza, o fascnio algo que nos pega desprevenidos e est acima de qualquer expectativa ou suposio. E no pode ser colocado dentro de um esquema nem explicado. Requer a presena e o envolvimento da pessoa.Lucas acrescenta outro detalhe. Ele apresenta Pedro como o primeiro homem a entrar nesse clima de fascnio motivado pela ressurreio. No meio do descrdito geral que os discpulos conferem ao relato das mulheres, Pedro de um salto coloca-se de p, corre para o tmulo, inclina-se para olhar l dentro e v somente alguns lenis. No havia mais nada. Ele ento sai confuso, balanando a cabea. bvio que no estamos diante de algo que, conforme costumamos dizer, "faz sentido". E at agora ningum havia conseguido entender nada daquilo.H principalmente duas maneiras de lidar com a realidade: mediante a compreenso e mediante o uso. Mediante a compreenso, pega-se um novo elemento que nos chega pela informao ou pela experincia e tenta-se fazer sentido daquilo, encaixando-o em todas as outras coisas que j conhecemos. Mediante o uso, testamos a nova experincia ou informao segundo as rotinas e regras do que pode ou deve ser feito. Mas essa ressurreio no respeita nenhuma dessas maneiras de lidar com a realidade. Tanto a compreenso quanto o uso so descartados pelo fascnio, pela perplexidade, pelo espanto primeiro no caso das mulheres e depois no caso de Pedro, que, a exemplo delas, tambm se encontrava totalmente desnorteado.

Um detalhe reveladorJoo, como de costume, faz algo bem diferente dos outros evangelistas (veja 20:1-19) e eleva o grau do fascnio motivado pela ressurreio. Ele comea com Maria Madalena, que chega ao tmulo no domingo no final da madrugada e no entende nada do que v. Ela descobre que o tmulo est vazio e logo tira a concluso mais bvia numa situao daquelas roubo. Ladres de sepultura. Naqueles dias, os roubos praticados em sepulturas eram um problema to srio e to comum, que as autoridades do Imprio Romano foram obrigadas a promulgar um decreto para tentar impedir que essa prtica continuasse.[footnoteRef:1] Parece que Maria no tinha perdido a capacidade de perceber a realidade. Ela foi plenamente capaz de olhar para os indcios e chegar a uma concluso lgica. Por que outro motivo o tmulo estaria vazio? [1: Raymond Brown. The Gospel According to John,Garden City, New York: Doubleday & Company, 1970, p. 985.]

Ento Maria sai correndo para contar tudo a Pedro e ao "outro discpulo" que julgamos ser Joo (v. 3). Na mesma hora, os dois saem em disparada para o tmulo. Eles entram no tmulo (pelo que parece, Maria no havia entrado) e descobrem que o lugar est mesmo vazio, mas tiram uma concluso bem diferente da concluso de Maria. A concluso a que os dois chegam ressurreio.Como foi que eles concluram isso? Joo reparou num detalhe que no podia deixar de ser notado, um detalhe muito revelador. O leno que havia sido usado para cobrir a cabea de Jesus no estava com o restante dos panos que envolveram o seu corpo, mas, conforme ele mesmo descreve, estava " parte e dobrado com cuidado" (v. 7, msg). Com a inteligncia de um detetive, Joo deduz que roubo era algo que estava fora de cogitao. Ladres de sepultura no teriam tirado os panos que envolviam o corpo. Mesmo que o fizessem por crueldade, difcil imaginar que perderiam tempo dobrando um leno com cuidado e colocando-o parte. Joo mantm a cabea fria no meio da emoo daquela hora e, diante da fora de uma nica evidncia (o leno dobrado com cuidado), consegue chegar verdade. Ressurreio. E pensando nisso que Pedro e Joo saem do tmulo.

Raboni!O autor do evangelho volta a ateno novamente para Maria. Depois de dar seu recado aos discpulos recado que os fez sair em disparada naquela corrida na manh da ressurreio , Maria volta ao tmulo, ainda achando que o corpo de Jesus havia sido roubado. Ela fica do lado de fora, transtornada e chorando de tristeza. Ento, abaixando-se para olhar dentro do tmulo, ela v dois anjos. Com afeio, eles lhe perguntam sobre a razo do choro. Ela lhes explica a razo e em seguida se vira. Ainda dentro de seu campo de viso perifrica, repara na figura de um homem, no o reconhece e supe ser o jardineiro. O homem lhe faz a mesma pergunta que os anjos haviam feito, e ela lhe d a mesma resposta. Ento, ele pronuncia seu nome: "Maria" (v. 16).Ela se volta para olhar para ele, e a viso embaada pelas lgrimas se torna ntida. Ela enxerga Jesus e responde: "Raboni!" Mestre (v. 16). O termo Raboni denota a mistura de uma profunda reverncia pela pessoa (um rabino) com uma intimidade afetiva (provavelmente algo prximo de "meu Mestre querido!").[footnoteRef:2] [2: Raymond Brown. The Gospel According to John, p. 991.]

O quarto evangelho apresenta a primeira cena da ressurreio de Jesus com algumas diferenas em relao aos trs primeiros, mas o fascnio que ele transmite no menor.Alm de Pedro, mencionado de passagem por Lucas, outro homem aparece em cena: "o discpulo a quem Jesus amava" (21:20) o discpulo amado, que julgamos ser Joo. Cada um dos dois vive a prpria histria. Ambos vivem uma histria que decorre da ao de Maria Madalena, que primeiro sai correndo do tmulo para disparar o alarme e depois volta para l chorando, desconsolada com sua perda. O alarme que ela dispara o que provoca a corrida de Pedro e Joo, corrida que conduz ao primeiro pensamento slido sobre a ressurreio. Depois dessa corrida, as lgrimas de Maria nos colocam diante de uma troca afetiva de cumprimentos que revelam a certeza da ressurreio: "Maria ... Raboni meu Mestre querido!".

No existe diploma de formao espiritual medida que lemos os quatro relatos da ressurreio e neles meditamos, o sentimento de fascnio vai se acumulando dentro de ns. As quatro histrias so lacnicas, compactas e narradas com economia de detalhes. Aqui no h espao para nada complexo. Mas neste solo de austeridade na narrativa nascem alguns elementos, e eles so importantes quando refletimos sobre nossa formao-via-ressurreio.Em primeiro lugar, por mais que nos sculos anteriores tenha havido pistas, dicas e sinais da ressurreio em meio vida hebraica, do Mediterrneo e do Oriente Prximo, quando ela aconteceu, todos os que estavam prximos dessa realidade e mais bem preparados no tinham a menor conscincia dela. Acho isso importante. Nunca estamos em condies de saber muita coisa sobre a formao-via-ressurreio. No algo que se compare ao que nos conhecido nem que venha em decorrncia de algum conhecimento quer seja, por exemplo, pelo desenvolvimento psicolgico, quer seja pela metafsica moral.Em segundo lugar, bvio que ningum fez nada para se preparar para o que realmente aconteceu. No algo que estava dentro de uma disposio baseada em expectativas. Os dois grupos religiosos da poca que mais estavam trabalhando no preparo do solo messinico e da ressurreio os fariseus e os essnios foram justamente os que estavam olhando para a direo contrria e no entenderam nada do que aconteceu. Nesse assunto, todos so meros iniciantes. No h especialistas.Isso nos deixa mais do que desconcertados quando olhamos para o cuidado com que costumamos organizar, planejar e preparar coisas grandes e importantes. No existe diploma de formao espiritual. No temos muito controle sobre nada disso, se que temos algum.Em terceiro lugar, as pessoas marginalizadas pela cultura nesse caso, as mulheres desempenham um papel de destaque por causa de sua percepo e da forma como reagem. Mesmo que lderes importantes como Pedro e Joo no fiquem de fora, Maria Madalena talvez a mais marginalizada entre os primeiros seguidores de Jesus a principal testemunha da ressurreio e s ela aparece no relato dos quatro evangelhos. A nica informao que temos sobre Maria Madalena antes de sua deciso de seguir Jesus que ela tinha "sete demnios" e havia sido libertada deles.Os "sete demnios" podem ser uma referncia a uma vida moral completamente desregrada ou a um tipo de doena mental grave. Quer ela tivesse um ou ambos os problemas antes de conhecer Jesus, a questo que isso, aliado ao fato de ser mulher numa sociedade patriarcal, fazia que ela fosse radicalmente marginalizada.Isso nos deixa mais do que desconcertados quando olhamos para a importncia que conferimos ao apoio de pessoas famosas em nossa sociedade. bem provvel que os homens e mulheres mais valorosos para nossa formao espiritual pela via da ressurreio sejam pessoas que esto margem da respeitabilidade: os pobres, as minorias, os que sofrem, os rejeitados, os poetas e as crianas.Em quarto lugar, a ressurreio foi algo discreto que aconteceu num lugar silencioso sem publicidade nem observadores. claro que houve muita energia, muita emoo (lgrimas, corridas, perplexidade, desorientao e alegria), mas nada chamou a ateno dos que estavam de fora. (O terremoto mencionado por Mateus em parte uma exceo. Mas os nicos que ficaram sabendo dele ou foram atingidos por seus efeitos foram os soldados romanos, que ficaram ali "anestesiados".)Quando era moo, eu costumava tocar trompete. No estado de Montana, onde cresci, a Pscoa sempre acontecia sob os ltimos efeitos do inverno. Todo domingo de Pscoa, eu me levantava s cinco, cinco e meia, seis horas para ir ao culto da ressurreio. Todo mundo queria ouvir algum tocar trompete na Pscoa. Com os lbios amortecidos pela boquilha congelada, eu ficava tocando e desafinando em alguma colina da cidade. Mas o que importava que isso fazia barulho. Se algo importante, a gente faz que o mundo todo saiba dessa importncia. claro que no foi do texto dos evangelhos que a minha igreja tirou essa idia.Por causa do nosso costume de cercar eventos importantes com muita publicidade para chamar a ateno e por causa da importncia que a ressurreio tem para o evangelho, isso algo que nos deixa muito surpresos. Luzes brilhantes e som amplificado no fazem parte dos acessrios para a formao espiritual.

O encontro com o "algo mais"O quinto elemento o medo, o temor. Medo a reao mais mencionada no contexto da ressurreio seis vezes nos quatro relatos. Temos medo quando somos pegos de surpresa, desprevenidos, e no sabemos o que fazer. Temos medo quando nossas idias e conceitos no servem mais para explicar o que est diante de ns, e ficamos sem saber o que vai nos acontecer. Temos medo quando a realidade, sem aviso prvio, mostra-nos que ela mais do que pensvamos.Mas as seis referncias ao medo aparecem dentro da tradio de contos na cultura e nas Escrituras hebraicas, e nesse contexto a palavra medo ou temor empregada de uma forma que lhe d um sentido muito mais amplo do que simplesmente ficar apavorado. Assim, a palavra inclui todas as emoes que surgem quando se fica apavorado desorientao, incapacidade de saber o que vai acontecer em seguida e a constatao de que existe algo mais que no pensvamos existir. Mas esse "algo mais" Deus.O temor do Senhor a expresso bblica mais comum que traduz a percepo repentina ou gradual que a presena ou revelao de Deus introduz na nossa vida. No somos o centro da nossa existncia. No somos a soma de tudo o que importa. No sabemos o que est para acontecer em seguida.O temor do Senhor deixa-nos em estado de alerta, de olhos bem abertos. Alguma coisa est acontecendo, e no queremos perder nada. O temor do Senhor o que nos impede de pensar que sabemos todas as coisas. E, portanto, impede que fechemos nossa mente e nossa capacidade de perceber o que novo. O temor do Senhor impede que nos comportemos com arrogncia, destruindo ou violando algum aspecto do que belo, verdadeiro ou bom e que nos passa despercebido ou fica acima da nossa capacidade de compreenso.O temor do Senhor medo sem o elemento do pavor. Por isso, ele muitas vezes vem acompanhado por uma palavra tranquilizadora: "No temas". Mas esse "no temas" no alguma coisa que acarreta ausncia de medo, mas ele transforma o medo em temor do Senhor. Continuamos sem saber o que est acontecendo. Continuamos sem o controle da situao. Continuamos mergulhados num mistrio profundo.Nas histrias da ressurreio relatadas nas Escrituras, h seis ocorrncias de palavras que derivam de medo, temor. Em duas ocorrncias, o que se exprime a sensao de terror: os soldados romanos diante do anjo que reluzia no tmulo vazio (veja Mt 28:4) e, mais tarde, as mulheres que, confusas, saram correndo do mesmo tmulo (veja Mc 16:8). Em trs ocorrncias, o medo amenizado por uma palavra que tranqiliza. Lucas relata que, na presena do anjo no tmulo, as mulheres se assustaram, mas foram logo tranqilizadas (veja 24:5). Em Mateus, primeiro o anjo e depois Jesus dizem s mulheres: "No temais" (28:5, 10). Entre essas duas ocorrncias em Mateus, a palavra aparece transmitindo um sentimento de alegria reverente (veja 28:8).Temor acompanhado por vrias outras palavras que evocam a sensao de fascnio surpreendidas (Mc 16:5), tremendo e assustadas (Mc 16:8, nvi), perplexas (Lc 24:4, nvi), amedrontadas (Lc 24:5, nvi) e admirado (Lc 24:12, nvi). Na referncia de Mateus, a mesma palavra medo usada com sentidos diferentes, mas sem deixar o leitor confuso, e a clareza se deve ao contexto: "Os guardas tremeram de medo e ficaram como mortos. O anjo disse s mulheres: "No tenham medo!" (28:4-5, nvi).

Onde se erra na formao espiritualA formao espiritual algo que acontece na atmosfera da ressurreio, no ambiente desse "algo mais", em que precisamos cultivar reaes de reverncia e temor, para no correr o risco de perder a prpria essncia do que est acontecendo. Na linguagem que usamos para nos referir formao espiritual na vida crist, h muita superficialidade e muitas expresses que j se banalizaram. Mas as histrias da ressurreio esto mergulhadas em fascnio fascnio motivado pela ressurreio.Os cinco elementos surpreendentes que examinei aqui falta de planejamento, inutilidade dos especialistas, destaque aos marginalizados, discrio e temor do ao fascnio uma bela textura. No h nada que respeite nossas expectativas, principalmente as expectativas que criamos em torno de algo que consideramos importante e transformador para a vida. E se a ressurreio de Jesus o que est no centro da nossa formao espiritual e tenho certeza de que est , ento esse sentimento de fascnio tem um papel muito importante em tudo o que acontece. As pessoas ficam confusas, perplexas e surpresas. Deus que est atuando - em Jesus, em voc e em mim.Sem o sentimento de fascnio lidamos com a formao espiritual como se fosse um projeto que desenvolvemos por conta prpria. Empregamos nossas tcnicas. Fazemos nossas anlises de dons e de potenciais. Fixamos metas. Medimos o progresso alcanado. A formao espiritual fica reduzida a elementos puramente cosmticos.Sem o sentimento de fascnio, as energias que nos motivam na formao espiritual acabam vtimas da ansiedade e da culpa. Ansiedade e culpa tm o efeito de nos restringir e de nos fechar em ns mesmos. Elas nos isolam e fazem que nos sintamos incapazes e indignos, reduzindo-nos ao que existe de pior em ns. A formao espiritual se transforma em hiperatividade moral ou em competio religiosa.

A desconstruo do sentimento de fascnioInfelizmente, no vivemos num mundo que incentiva o fascnio diante da realidade. Mas o fascnio algo natural e espontneo no ser humano. Quando ramos crianas, vivamos sempre fascinados. O mundo era novidade para ns, e ficvamos encantados com tudo o que acontecia na nossa frente. A cada dia nos maravilhvamos, pegando com as mos, olhando, sentindo o gosto. As palavras eram fascinantes. Correr era fascinante. O toque, o paladar, o som, tudo era encantador. Vivamos num mundo que nos fascinava.Mas esse sentimento de fascnio vai aos poucos se perdendo. H vrias explicaes para isso, mas essa perda se d principalmente medida que ganhamos competncia e controle sobre ns mesmos, sobre nossa coordenao e sobre nosso ambiente.Quando chegamos idade adulta, o ambiente de trabalho onde essa diminuio do fascnio acontece de forma mais sistemtica e completa. difcil cultivar sentimentos de fascnio no ambiente de trabalho. Os principais valores ali so conhecimento e competncia. Ningum quer ser surpreendido por nada. Ningum quer perder tempo olhando fixamente para alguma coisa, enquanto se pergunta o que fazer com aquilo. Estudamos e mais tarde somos pagos para saber o que estamos fazendo.Ento, para a maioria de ns, na manh seguinte nossa converso, acordamos e vamos trabalhar, tendo a sorte de no sermos atropelados pela carreta. Para a maioria de ns o trabalho que nos empolga. Ele exige o mximo de ns e nos recompensa com reconhecimento e satisfao. Estamos realizando alguma coisa importante que faz diferena, que toma o mundo melhor e d melhores condies de vida s pessoas. O trabalho nos torna teis e nos garante o dinheiro necessrio para andarmos de ns mesmos e dos que dependem de ns. O trabalho uma coisa maravilhosa. Acima de tudo, estamos envolvidos na criao de Deus e no meio das suas criaturas.

Uma mudana sutil, mas trgicaDepois de algumas semanas ou meses de volta ao trabalho, os sentimentos, convices e idias que se aglutinavam em torno da nossa converso passam a ser elementos secundrios no palco onde o centro ocupado pelo nosso trabalho com suas rduas exigncias, fortes estmulos e grande satisfao.Ao longo dessa nossa trajetria, a primazia de Deus e de sua atividade, mesmo que de modo superficial, comea a ser substituda pela primazia da nossa atividade no reino de Deus. Comeamos a pensar em como Deus pode ser til naquilo que estamos fazendo. A mudana quase imperceptvel, e at continuamos a usar o vocabulrio prprio da nossa nova identidade. Continuamos crendo nas mesmas verdades. Continuamos a ter objetivos louvveis. Geralmente leva tempo at que a gravidade da mudana venha tona. Mas quando isso acontece, percebe-se que no estvamos exatamente adorando a Deus, mas recrutando-o como um importante assistente que merece nossa confiana.Em nosso trabalho, estamos lidando com aquilo que ns conhecemos, com aquilo em que ns somos especialistas. O que conhecemos o nosso trabalho. Por que no pedir a Deus que nos ajude nisso tudo? Ele at recomenda que faamos isso, no mesmo? "Pedi, e recebereis." Sim, tudo bem, ele recomenda mesmo. O problema que, fora do contexto do fascnio da ressurreio, toda orao logo se torna um ato de idolatria pelo qual Deus reduzido a algo que podemos usar para atingir nossos objetivos, por mais nobres e teis que sejam eles.Quase nunca nos ocorre que um comportamento to piedoso, natural e de aparncia to inocente deva ser chamado idolatria. Ningum pensaria em colocar no painel do carro uma imagem de So Cristvo para proteger-se de acidentes, nem poria uma estatueta de um Buda barrigudo na sala de casa para dar fim ao corre-corre atrs de iluses, nem plantaria no quintal um arvoredo dedicado a Aser, deusa canania da fertilidade, a fim de que sua horta produza tomates maiores ou para que nasam mais bebs. Mas tudo idolatria. usar Deus em lugar de adorar a Deus. No princpio no se trata da expresso mxima da idolatria, mas so os seus germes que se proliferam no ambiente de trabalho.

Caminhando pelo atoleiro nosso de cada diaPara outros entre ns, o trabalho ao qual retornamos depois da nossa converso tendo levado o azar de no sermos atropelados pela carreta a mais plena expresso da tortura. aquele trabalho sem graa, que nos enche de tdio, para onde nos arrastamos dia aps dia, semana aps semana. Nas primeiras semanas, a nova realidade que temos em Cristo elimina o fardo e o tdio do ambiente de trabalho. Nossos lbios murmuram oraes silenciosas at enquanto estamos conversando com os outros. Hinos de louvor no saem da nossa cabea. Vemos tudo e todos com outros olhos. Somos novas criaturas que agora vivem num mundo fascinante.Ento, chega o dia em que percebemos que as coisas "que se tornaram novas" quando nos convertemos no incluem o trabalho. Continuamos no mesmo trabalho de antes, um verdadeiro beco sem sada, e estamos ali h dez, vinte, trinta anos. Com as foras renovadas e com o senso de identidade e propsito singular gerado pela nossa converso, olhamos para os lados procurando uma sada. Comeamos a criar fantasias, imaginando algum emprego que nos permita trabalhar de todo o corao, e aqui entra aquela frase maravilhosa: "para a glria de Deus". Algumas pessoas arriscam tudo e chutam o pau da barraca. Mas a maioria no faz isso. Temos a prestao da casa prpria para pagar e filhos para mandar para a escola. No temos o preparo nem os estudos necessrios. Nosso cnjuge est satisfeito com a situao e no quer pr em risco a segurana da famlia. Ento acabamos aceitando o fato de que no h sada e voltamos a caminhar pelo atoleiro nosso de cada dia no meio do tdio da nossa rotina.

Idolatria cristMas tambm procuramos formas de afirmar e cultivar nossa nova vida em Cristo fora do ambiente de trabalho. E para nossa alegria, logo descobrimos que h vrias opes. Existe um mercado religioso que atende s necessidades e realiza as fantasias de pessoas exatamente como ns. H congressos e conferncias para todos os gostos que nos do a injeo de nimo que precisamos. H livros, vdeos e seminrios que prometem nos dar a "soluo" crist para qualquer coisa que nos esteja faltando na vida na rea de finanas ou de criao de filhos, formas crists de emagrecer, felicidade na vida sexual, turismo para locais sagrados, cultos empolgantes, mestres e pastores famosos. As pessoas que divulgam esses produtos e servios so todas sorridentes e de boa aparncia. Elas com certeza no esto entediadas.E rapidamente entramos na fila para comprar qualquer coisa que nos seja oferecida. E como nenhuma das aquisies nos d o que espervamos, ou pelo menos no por muito tempo, logo nos vemos novamente comprando outra coisa, e mais outra, e mais outra. Esse um processo que causa dependncia. Acabamos nos transformando em consumidores de produtos da indstria da espiritualidade.Isso tambm idolatria. Nem mesmo pensamos em usar esse nome, pois tudo o que estamos comprando se qualifica pelo adjetivo cristo. Mas isso no deixa de ser idolatria. Deus industrializado como se fosse um produto Deus despersonalizado e oferecido como uma tcnica ou um programa. O mercado cristo de dolos nunca foi melhor nem mais lucrativo. As indulgncias da Idade Mdia que provocaram a justa indignao de Lutero so cafs pequenos se comparadas com o que hoje acontece no quintal dos evanglicos.Intolerncia ao mistrioTodo cristo, seja homem, seja mulher, que sai de casa de manh para trabalhar entra num mundo em que a idolatria a principal tentao que pode afast-lo da nova vida formada pela via da ressurreio e que conduz semelhana com Cristo.H uma infinidade de variaes e combinaes nos ambientes de trabalho que imaginei, tanto no "bom" quanto no "ruim". Mas se trabalhamos, e a maioria de ns trabalha, a possibilidade de idolatria est sempre presente. (Crianas, idosos, invlidos e desempregados so logicamente excees.) Na maioria dos nossos dias e na maior parte das horas desses dias vivemos num mundo mergulhado na produo e na compra de dolos.A maioria de ns passa muito tempo no trabalho, e isso significa que nossa identidade crist est sendo formada, em grande parte do tempo, num clima de incompatibilidade, ou mesmo de franca hostilidade num clima caracterizado pela intolerncia ao mistrio (conhecimento e hnow-how so sempre exigidos no trabalho). Nossa competncia e capacidade de manter o controle das coisas so sempre recompensadas (incompetncia e incapacidade de manter o controle nos fazem ser demitidos em pouco tempo). E os relacionamentos pessoais so subordinados e adaptados natureza do trabalho realizado.A tecnologia o principal garoto-propaganda da idolatria dos nossos dias. Isso no mesmo uma ironia? A idolatria, sempre associada, pelo menos na imaginao popular, com a superstio coisas da mente obtusa, desinformada, infantil e primitiva com seus mitos e crenas agora se acha recebendo uma nova oportunidade na vida com a ajuda da tecnologia, associada com a pesquisa cientfica e lgica que usa a linguagem puramente matemtica para criar um mundo de computadores que dominam o ambiente de trabalho e diante dos quais praticamente todo mundo se curva em sinal de respeito e reverncia. As coisas impessoais que dominam nosso tempo e nossa mente fazem incrveis promessas de controle e conhecimento. Mas elas tambm fazem que todo senso de mistrio, fascnio e reverncia seja eliminado da nossa vida.O ambiente de trabalho sempre representou ameaa para a formao espiritual porque nesse ambiente que quase nunca ficamos fascinados. O fascnio , por princpio, praticamente abolido. No trabalho, sabemos que somos competentes ou que estamos entediados e desatentos. Na cultura de hoje, a ameaa representada pela vida cada vez mais destituda do sentimento de fascnio alcana nveis antes nunca vistos.E por isso que a formao crist a formao-via-resurreio requer vigilncia permanente. O ambiente de trabalho a arena em que a idolatria constantemente reconfigurada, colocando-nos em situaes em que assumimos o controle e oferecendo-nos coisas e sistemas que nos permitem exercer nossos dons e implementar nossas estratgias neste mundo.O sentimento de fascnio, aquela disposio no meio da perplexidade que nos faz parar o que estamos fazendo e ficar de olhos abertos e de mos estendidas, prontas a receber aquele "algo mais", no um sentimento incentivado no ambiente de trabalho.

O cultivo do fascnio motivado pela ressurreioSer que isso significa que suspendemos a formao espiritual durante o expediente de trabalho e a reativamos quando vamos para casa e nos finais de semana? No isso que eu penso.Aqui est a coisa que mais impressiona nisso tudo: a primeira cena na ressurreio de Jesus acontece no ambiente de trabalho. Maria Madalena e as outras mulheres esto a caminho do trabalho quando deparam com a ressurreio de Jesus e se rendem a ela. Estou pronto a defender a idia de que o principal local para a formao espiritual para a formao-via-ressurreio o local de trabalho.Ento, trabalhando para nos sustentar e passando uma enorme parcela de tempo toda semana no trabalho, num ambiente hostil ao sentimento de fascnio, como podemos ter condies de cultivar o fascnio motivado pela ressurreio, que o solo onde floresce a formao espiritual?Para quem leva a Bblia a srio como o texto para a nossa formao espiritual, a resposta inequvoca: preservando a santidade do sbado. Essa a prtica central firmada nas Escrituras e respeitada pela igreja que cultiva o sentimento de fascnio.Voc j percebeu que os primeiros que participaram da ressurreio tinham acabado de passar o dia anterior guardando o sbado? Na noite da sexta-feira, pouco depois de tirarem Jesus da cruz e de o colocarem no tmulo de Jos, judeus piedosos em Jerusalm, Nazar, Belm, Cafarnaum, Alexandria, Babilnia, Atenas, Roma judeus de toda parte acenderam duas velas e saudaram o sbado com as seguintes palavras: "Bendito s tu, Deus, Rei do universo, que nos santificaste pelos teus mandamentos e nos ordenaste que acendssemos as luzes do sbado".Uma das velas era acesa por causa do mandamento em xodo, que diz: "Lembra-te do dia de sbado, para o santificar. [...] no fars nenhum trabalho [...] porque, em seis dias, fez o Senhor os cus e a terra, o mar e tudo o que neles h e, ao stimo dia, descansou" (x 20:8,10-11).A outra vela era acesa por causa do mandamento em Deuteronmio, que diz: "Guarda o dia de sbado, para o santificar [...] no fars nenhum trabalho [...] porque te lembrars que foste servo na terra do Egito" (Dt 5:12,14-15).No fim da tarde do sbado, repetia-se a orao, as velas eram novamente acesas e a orao final, chamada Havdal, encerrava o dia sagrado de descanso.

O costume de guardar o sbadoNo sabemos exatamente o que Maria Madalena, a outra Maria, Joana e Salom, Pedro, Joo e os outros seguidores annimos fizeram durante as vinte e quatro horas que passaram guardando o sbado. Mas no parece razovel supor que tenham descartado o costume que haviam preservado durante toda a vida. Afinal de contas, eles eram judeus piedosos. A cidade inteira estava guardando o sbado naquele dia, e eles tambm deviam estar fazendo o mesmo.Tambm no provvel que tenham ido sinagoga. Os lderes contrrios a Jesus estavam l, e os discpulos no se sentiriam acolhidos e at colocariam a vida em risco. Sabemos de uma coisa que eles no fizeram, apesar da urgncia e da disposio que tinham para faz-lo embalsamar o corpo de Jesus. E no o embalsamaram porque estavam se lembrando da obra de criao de Deus e da libertao da escravido no Egito.No estou dizendo que eles tenham conversado ou orado a respeito dessas coisas de forma planejada como, por exemplo, por meio de um estudo bblico. O que estou imaginando que o costume de guardar o sbado estava atuando no subconsciente deles, dando-lhes uma conscincia implcita da grandeza de Deus em atividade no mundo e de um Deus pessoal que estava agindo em favor deles. O que penso que o fato de guardarem o sbado os colocou num contexto bem mais amplo dos acontecimentos da sexta-feira conforme relatados por eles ou denunciados por seus sentimentos de grande tristeza e decepo.Durante as vinte e quatro horas daquele sbado, a enorme catstrofe da crucificao, o horror e a devastao que tudo aquilo representava comearam a ser conciliados dentro do contexto mais amplo da atividade de um Deus que criou o mundo e da salvao de um Deus que fez o homem. Nada do que eles pudessem ou quisessem fazer era mais importante do que aquilo que Deus havia feito e estava fazendo na criao e na salvao, conforme destacados nos mandamentos de xodo e de Deuteronmio, os quais haviam sido absorvidos e interiorizados durante uma vida inteira de observncia do sbado.Portanto, quando saram para o trabalho na manh seguinte, depois de guardar o sbado, levaram consigo uma percepo de Deus profundamente desenvolvida, uma capacidade para reagir com fascnio e surpresa aos mistrios que lhes escapavam ao entendimento e lhes eram imprevisveis. O ato de guardar o sbado era para eles como uma faxina semanal. E assim podiam comear a nova semana de trabalho sem estar entulhados de dolos todas aquelas tentativas sutis mas obcecadas de nos darmos um deus, uma rotina ou um programa que possamos controlar ou usar e que diariamente chegam de fora e deixam marcas na nossa vida. Para eles, o ato de guardar o sbado permitia-lhes se desligarem um pouco do mundo com seu jeito de fazer as coisas e de sua prpria compulso de assumir o controle. Guardar o sbado dia em que assumiam o compromisso de no fazer coisa alguma para poderem estar livres para ver e reagir ao que Deus e ao que ele est fazendo foi fundamental para a formao-via-ressurreio daquelas cinco mulheres citadas pelo nome e dos dois homens que aparecem na narrativa dos evangelhos.

Deus no ambiente de trabalhoPara que tenhamos capacidade de ver Deus em atividade no nosso ambiente de trabalho, algo que certamente ele est fazendo, reagindo fascinados e atnitos, necessrio que nos desliguemos um pouco desse ambiente de trabalho. Como podemos cultivar esse desligamento? Guardando o sbado.Longe do trabalho e do seu ambiente no possvel compreender o carter nem a importncia do sbado. O trabalho e o sbado no esto um em oposio ao outro. Ambos fazem parte de um organismo um fica mutilado ou incapacitado sem o outro.O jeito mais simples de entender isso observando que Deus surge na primeira pgina das Escrituras como um trabalhador. Vemos Deus trabalhando em seu ambiente de trabalho. Isso de enorme importncia. Nossa primeira viso de Deus no uma abstrao um poder superior, um amor eterno ou um ser puro , mas a viso de um criador que est criando o ambiente de trabalho em que todos ns continuamos a trabalhar: luz para iluminar, o cho debaixo dos nossos ps, o cu l no alto, plantas e rvores que cultivamos, as estaes do ano, peixes, aves e animais da cadeia alimentar. medida que Deus trabalha durante os dias da semana, os detalhes vo surgindo um aps o outro, e ento vem o refro: "E viu Deus que isso era bom". Bom, bom, bom... ouvimos essas palavras sete vezes durante os seis dias. "E viu Deus que isso era bom". A stima e ltima afirmao superlativa: "... e eis que era muito bom" (Gn 1:31). Um trabalho bom e um ambiente de trabalho igualmente bom.E da vem o sbado. Mas no antes disso. No podemos entender corretamente o sbado longe do trabalho, nem fazer corretamente nosso trabalho parte do sbado. Em um de seus poemas sobre o sbado, Wendell Berry coloca em harmonia o dia de trabalho e o sbado:... o dia de trabalhoe o sbado convivem no mesmo lugar.Ainda que mortal, incompleta, essa harmonia nossa nica chance de paz.[footnoteRef:3] [3: Do poema "VII". em A Timbered Choir. Washington. D.C.: Counterpoint Press. 1998, p. 12. Reproduzido com permisso de Counterpoint Press, diviso da Perseus Books. L.L.C.]

O sbado o ltimo dia de uma srie de dias de trabalho, e Deus declara que todos eles so bons. O contexto em que o sbado aparece de um trabalho que se destaca pela trplice repetio das frases "... a sua obra, que fizera" (Gn 2:2), "toda a sua obra que tinha feito" (2:2) e "toda a obra que, como Criador, fizera" (2:3). Mas a natureza distintiva do sbado se entende pelo uso de quatro verbos: Deus terminou o seu trabalho [...] descansou [...] abenoou o sbado e o santificou.Todos esses verbos nos colocam alm do ambiente de trabalho em si. No trabalho existe mais do que trabalho existe Deus: o Deus que termina, o Deus que descansa, o Deus que abenoa, o Deus que santifica. O trabalho no tudo na vida. Mas, sem o sbado, quando Deus est acima do ambiente de trabalho (mas no fora dele), logo o trabalho se esvazia de todo senso da presena de Deus.Otrabalho torna-se um fim em si mesmo. esse "fim em si mesmo" que faz do trabalho sem o sbado um solo frtil para o surgimento de dolos. Criamos dolos em nosso trabalho quando reduzimos nossos relacionamentos a funes que podemos gerenciar. Criamos dolos em nosso trabalho quando reduzimos nossa atividade s dimenses do nosso ego e do nosso controle.

Uma franca abertura para DeusNos dias atuais, o mundo secular tem dedicado uma boa dose de ateno observncia do sbado. As empresas tm descoberto seus benefcios para a sade, para os relacionamentos e at para a produtividade no trabalho. Artigos e livros so escritos para divulgar o timo retorno que advm do descanso, do fim da compulso para o trabalho e assim por diante. Tudo isso pode ser verdade. Mas no por isso que guardamos o sbado. Nosso maior interesse no est numa vida mais longa, na maturidade emocional ou num jogo de futebol mais agradvel. Nosso interesse concentra-se em Deus e em Cristo sendo formado em ns. Estamos interessados na formao espiritual pela via da ressurreio.O que importa no sbado no somos ns ou como ele nos faz bem. O que importa Deus e como ele est nos formando. No se trata primordialmente do que fazemos ou deixamos de fazer. Trata-se de Deus, que termina, descansa, abenoa e santifica, e essas so coisas que no conhecemos direito. Elas esto acima de ns, mas no acima da nossa capacidade de reconhec-las e de participar delas. O sbado significa parar e aquietar-se o tempo suficiente para enxergar com aquela expresso de fascnio fascnio motivado pela ressurreio. Quando, fascinados, colocamo-nos em franca abertura para o que est acima de ns, nossa vida passa a ser formada por aquilo que no podemos fazer e pelo que est fora do nosso controle. Correspondemos e tomamos parte no que Deus continua a fazer no mago e no contexto do nosso trabalho e do ambiente em que ele realizado. O nome que os cristos do a isso ressurreio.

2Ressurreio, comida e bebida

Jesus disse: "A comida est pronta!" Nenhum dos discpulos tinha coragem de lhe perguntar: "Quem voc?" Eles sabiam que era o Senhor.Ento Jesus pegou po e lhes deu. E tambm lhes deu peixe.Joo 21:12-13, msg;

Faz algum tempo, minha amiga Brenda pegou um avio e foi para Chicago visitar sua filha casada, mas principalmente a netinha Charity, uma menina de cinco anos, gordinha, linda e falante. A av paterna de Charity havia estado l fazendo uma visita de uma semana. Ela uma mulher muito consagrada e leva a srio seu papel de ave suas responsabilidades espirituais para com a netinha. E tinha ido embora havia bem pouco tempo.Na manh seguinte chegada de Brenda, Charity foi ao quarto da av s cinco da madrugada e, engatinhando sobre a cama, chegou perto dela e disse: Vov, no vamos ter nenhuma conversa sobre Deus, t bom? Eu acredito que ele est em todo canto. Vamos s tocar a vida.Gosto de Charity e acho que ela percebe as coisas."Vamos tocar a vida" pode servir como uma espcie de subtexto para ns que buscamos nossa formao espiritual e to fcil e freqentemente vemos o espiritual se desligar da realidade do nosso dia-a-dia, deixando-nos com uma conversa sobre Deus vazia de sentido. No que a conversa sobre Deus no seja expresso da verdade, mas quando ela se desliga das nossas conversas e do comportamento normal que compem o tecido da nossa vida, a verdade se esvai. A expresso de Salmos 116:9 "andarei na presena do Senhor na terra dos viventes" d clareza e perspectiva sugesto de Charity, "vamos tocar a vida".

Quando Deus desligado da vidaAlgo que nos acontece com relativa freqncia o desligamento entre nossa identidade crist e Deus, entre nossos amigos e Deus, entre nosso trabalho e Deus. Quando isso acontece, a vida se esvai e sobra s conversa sobre Deus. como se houvesse um vazamento de vida e ns ficssemos semelhantes a um pneu murcho.Interpreto o pedido que Charity fez av s cinco horas da manh como o diagnstico de um jeito de viver que de alguma forma faz com que Deus e a vida se desliguem e acabem separados em duas categorias distintas. Ela sentiu falta de alguma coisa no modo como a primeira av falava sobre Deus e, por isso, tinha esperana de que a outra av no fizesse o mesmo. Imagino que Charity sentiu falta de algo que chamamos vida a Vida. Vamos tocar a vida.Seria possvel interpretar as palavras de Charity de forma bem diferente da que estou propondo aqui. possvel que ela estivesse dizendo que Deus est em segundo plano no cenrio da vida em segundo plano no cenrio inteiro mas apenas em segundo plano. "O que importa sou eu. Aquilo que estou pensando, fazendo e querendo o que est em primeiro plano. Assim, vamos tocar o que importante para mim agora viver do meu jeito, viver pela minha agenda. Deus um dado que se admite. Ele no precisa ser consultado, e no precisamos ficar conversando sobre ele. Ns estamos ... eu estou ... agora que a ao acontece. Vamos tocar a vida."Se pronunciadas por algum com 17, 36 ou 52 anos de idade, provvel que esse fosse o sentido daquelas palavras. o que muitas pessoas, ou at a maioria delas, querem dizer quando falam em "tocar a vida" ou usam expresses semelhantes. E o que geralmente fica nas entrelinhas o seguinte: "Vamos deixar Deus de fora disso. No precisamos complicar as coisas com essa conversa toda sobre Deus".Mas como eu conheo um pouco a Charity, acho que tenho condies de interpret-la de modo mais favorvel. Acho que ela estava pedindo sua outra av um relacionamento em que Deus no fosse despersonalizado e transformado em conversa sobre Deus, mas um relacionamento em que ele fosse uma presena pessoal e diria para as duas que Deus e a vida estivessem ligados organicamente nas interaes do dia-a-dia.Charity ainda est naquela fase da infncia em que no se tem conscincia de si mesmo, marcada pela espontaneidade, num mundo em que tudo direto, pessoal e relacional. Mas no levar muito tempo para que esse vnculo relacional e a proximidade pessoal comecem a se afastar de Charity. E quando isso acontecer, ela vai precisar de ajuda. As palavras tero sido transformadas em idias abstratas, em vez de metforas funcionais. As pessoas acabaro se tornando funes ou papis, em vez de gente e de relacionamentos vivos. Quando isso acontecer e certo que vai acontecer bem antes de ela ser av , ela vai precisar de algum que chame sua ateno e diga: "Charity, no vamos ter nenhuma conversa sobre Deus, t bom? Eu acredito que Deus est em todo canto. Vamos apenas tocar a vida".

Testemunhas da vida na presena da morte nisso que desejo insistir quando falo de nossa identidade crist, de nosso crescimento e formao como cristos, medida que Cristo vai se formando em ns. A nossa vida, nossa formao-via-ressurreio, depende de mantermos essa ligao orgnica e fundamental entre Deus e a vida na terra dos viventes. Estamos aqui para dar testemunho sobre a fonte da vida, para falar como ela se desenvolve e como fazemos para ingressar nela. E protestaremos quando observarmos que nossa linguagem e forma de perceber a vida esto se desligando do Deus vivo, entrando num processo de degenerao ou desintegrao que as transforma em conversa sobre Deus, em conversa sem vida.Quando a Charity estiver com trinta anos de idade e esse desligamento for realidade para ela, fico pensando sobre quem estar por perto para ajud-la. Uma criana? E bem possvel que sim. As crianas tem importantes testemunhos para dar sobre essas questes. Foi Isaas quem disse em poucas palavras: "... e crianas pequenas os guiaro" (11:6, NTLH). Tempos depois, Jesus ratificou a viso de Isaas quanto ao papel essencial que as crianas exercem nos assuntos pertinentes ao reino (veja Mt 18:1-6; Mc 10:13-16). Elas so nossa principal defesa para que no comecemos a morrer e a murchar como efeito do desligamento entre Deus e a vida. Se no houver nenhuma criana por perto para ajudar a Charity aos trinta anos de idade, talvez o pastor dela possa servir. Mas o histrico dos pastores nesse particular no nos leva a apostar muito nessa possibilidade. Mas quem sabe? As testemunhas da ressurreio aparecem entre homens e mulheres dos mais improvveis, e muitas vezes nas horas e lugares menos esperados. No primeiro sculo, quem pensaria em apostar que Maria Madalena teria aquela participao to especial? impressionante como aquela conversa que Charity teve de madrugada com a av sonolenta me faz lembrar da expresso maravilhosa do salmo: "Andarei na presena do Senhor, na terra dos viventes". E o que mais interessante que esse testemunho de vida est embutido num conjunto de referncias morte. Participamos da vida e dela que testemunhamos, mas estamos cercados pela morte, que nos ameaa. Nas linhas que precedem a expresso "terra dos viventes", o salmo 116 descreve a ameaa da morte:A morte me olhou de frente e quase me levou no seu lao; fiquei completamente dominado pelo medo, e o desespero e a tristeza me pegaram.Ento, gritei pedindo ajuda ao Senhor:"O Senhor, salva a minha vida!"V. 3-4, BV; grifo do autorA tnica do salmo est na vida a minha vida, a nossa vida. Cada pessoa que tem a vida ameaada pela morte aquela que encontramos na rua, ou a que trabalha conosco, a pessoa que se senta nossa mesa para o caf da manh ou com quem almoamos, a que chega para o jantar, a que se senta nos bancos da nossa igreja ... "salva a minha vida".Todos os que nos cercam esto biologicamente vivos, alguns mais, outros menos. A biologia parte da nossa vida, mas no a principal. Corao, pulmes, crebro, rins, sangue, msculos todos esses elementos fornecem apenas a carcaa para a vida. A parte principal Deus a verdade, a beleza e a bondade de Deus nas quais estamos imersos como peixes que nadam no fundo do mar; a salvao de Jesus que divide a histria entre antes e depois, tanto a histria mundial quanto a nossa histria como pessoas; a presena de Deus na nossa vida por intermdio do Esprito Santo, abenoando-nos e nos afirmando, quer estejamos conscientes disso, quer no, e quase nunca estamos; a revelao de Deus nas Escrituras, para que saibamos e participemos do que est acontecendo.Viver, conquanto nossos pulmes estejam funcionando e o corao esteja batendo, algo que tem a ver muito mais com Deus do que com qualquer outra coisa. E por isso que somos cristos para participar e dar testemunho dessa verdade.

A vida na terra dos viventesA expresso do salmista, "andarei na presena do Senhor na terra dos viventes", surge de um contexto marcado pela morte: "laos de morte" e "cordas da morte" (nvi). Nesse breve salmo 116, h treze referncias a elementos que ameaam a vida: laos de morte, angstias do inferno, tribulao, tristeza, livra-me a alma, prostrado, morte, lgrimas, queda, aflito, perturbao, morte dos seus santos, minhas cadeias. uma quantidade bem considervel de problemas. E nesse contexto que nos encontramos. A terra dos viventes um territrio bem perigoso. Muita coisa acaba dando errado. Problemas aparecem por todo lado. E a ressurreio acontece no territrio da morte. bvio que a terra dos viventes no nenhum paraso. Parece mais um campo de batalha. E a que ns, cristos, estamos posicionados, junto com as crianas, para declarar a primazia da vida sobre a morte, para dar testemunho da preciosidade da vida e do fato de que ela acontece em ligao com outros elementos, para nos envolver na ressurreio vivida na prtica.E fazemos isso por meio de nossas reunies em comunidades que prestam culto ao Deus que concede vida, ao Cristo que derrota a morte e ao Esprito Santo que faz nossa vida ser plena. Fazemos isso por meio da leitura, da meditao, do ensino e da pregao da palavra da vida revelada nas Escrituras. Fazemos isso por meio do batismo de homens, mulheres e crianas, em nome da Trindade, dando-lhes as condies para uma vida motivada pela ressurreio. Fazemos isso quando ingerimos a vida de Jesus por meio do po e do vinho da ceia do Senhor. Fazemos isso quando damos comida aos que tm fome, vestimos os que no tm roupa, acolhemos o estrangeiro, curamos os doentes, lutamos por justia, amamos nossos inimigos, criamos nossos filhos e fazemos o trabalho do dia-a-dia para a glria de Deus.Quando olho para uma lista como essa, a primeira coisa que chama a minha ateno e espero que a sua tambm que todas essas coisas so bem comuns. No necessrio muito estudo nem muito talento para fazer qualquer uma delas. No preciso estudar como um neurocirurgio nem como um pianista de orquestra sinfnica. Com exceo da pregao e dos sacramentos, as crianas podem fazer as outras coisas to bem, ou quase to bem, quanto qualquer um de ns. Mas e aqui est o que importa todas essas coisas so atividades que do testemunho da vida e afirmam o seu valor. E se a vida se esvai, no sobra nada. E s conversa sobre Deus.Ao realizarmos essas atividades que do vida e a afirmam, atividades que derivam de nossa identidade crist, com grande facilidade e freqncia que nos distramos e nos desviamos da prpria vida, do prprio Deus vivo. bem difcil permanecer centrados e ocupados com nosso trabalho de dar testemunho da vida e de afirm-la. Continuamos a desempenhar aquela srie de atividades no trabalho e nas conversas que listei, e at mais do que aquilo. Mas estamos continuamente debaixo da ameaa da morte, correndo o risco de nos desligar da vida, das pessoas e de Deus, ficando somente com os movimentos biolgicos com todo aquele maneirismo verbal e sem participar da prpria vida.

A perda da identidade firmada na ressurreioNossa identidade crist entra em crise por efeito de nossa desateno ou porque nos desviamos do principal. E essa uma crise muito comum no nosso meio. Nossa ligao fundamental com a vida atingida, e comeamos a emprestar nossa identidade de terapeutas, artistas, executivos, polticos, pastores e professores, homens e mulheres que parecem estar na linha de frente e fazendo diferena neste mundo.Por isso, quero aqui reafirmar a identidade principal que recebemos pela ressurreio de Jesus. Essa identidade alimentada e chega maturidade em nossa formao-via-ressurreio.Uma coisa curiosa, mas que acontece com grande freqncia, que os cristos sempre comeam bem, mas aos poucos vo piorando. Em vez de avanarmos como um peregrino, vamos para trs. Pense nos cristos que voc realmente admira. A maioria deles no de pessoas que se converteram h pouco tempo? Isso no empolgante? Agora pense nos cristos que o fazem morrer de tdio. No so pessoas que se converteram h quarenta, cinqenta anos? Elas esto envelhecendo no apenas fisicamente, mas em todos os sentidos. claro que h excees.Perdemos nossa vitalidade e nossa sensibilidade. Continuamos em atividades de afirmao da vida e que trazem honra a Cristo, mas nosso corao est longe de tudo isso.Quase nunca o movimento de retrocesso radical ou repentino. Comeamos com vida, vida, vida e mais vida. Deus fundamental e est presente em tudo o que fazemos. Mas, ento, enquanto estamos felizes e inocentes fazendo nosso trabalho, nossos ps se enroscam naquelas cordas do inferno, naqueles laos de morte. No comeo tudo to casual, que dificilmente percebemos. Mas depois a corda se prende quem sabe como? dando meia volta num tornozelo. Depois, outra volta, mais uma volta, e comeamos a andar para trs. Ficamos com os movimentos presos e cada vez mais limitados. Perdemos a natureza direta, espontnea e exuberante da vida motivada pela ressurreio.O que curioso que isso muitas vezes acontece justamente quando alcanamos o sucesso aos olhos de outras pessoas, de colegas, empregadores ou igrejas. Mas o que est havendo um vazamento de vida. Deus e a vida foram desligados.Usando a expresso de Charity, "vamos s tocar a vida", e a do salmista, "andarei na presena do Senhor na terra dos viventes", desejo continuar a construir uma barreira contra as foras que causam a eroso da nossa identidade firmada na ressurreio. Acho que essa a coisa mais importante que podemos fazer. Mas a negligncia dos cristos evidente. Uma rica tradio de formao-via-ressurreio encontra-se nossa disposio mas por que to pouca gente est interessada? l faz 43 anos que sou pastor, e fico impressionado com o nmero de pastores e pastoras que simplesmente no esto interessados. H tantas outras coisas mais emocionantes para fazer. Mas esse um trabalho delicado que exige pacincia, cuidado, insistncia e ateno permanente, e no lhe estamos dando a ateno de que ele precisa.

A rotina do comer e beber so elementosda formaoQuero tentar me livrar um pouco das cordas do inferno que se prendem ao meu tornozelo por meio da ateno que posso dar s refeies ocorridas no contexto da ressurreio. Duas vezes a ressurreio de Jesus se revela na rotina do comer e beber. Dois autores dos evangelhos Lucas e Joo insistem na importncia das refeies que se deram no contexto da ressurreio. A incalculvel transcendncia da ressurreio assimilada num dos atos mais rotineiros da vida fazer uma refeio. No meio dos cristos h uma longa tradio cuja forma e contedo so dados pelas Escrituras em que o preparar, servir, comer e beber so elementos fundamentais para a vivncia da ressurreio. Uma cultura em que falta hospitalidade uma cultura que aponta para uma vivncia da ressurreio marcada pela fome.A refeio relatada por Lucas aconteceu no dia da ressurreio, depois de uma caminhada de onze quilmetros de Jerusalm at Emas (veja 24:13-32). Duas pessoas, Cleopas e um amigo (ou, como pensam alguns, a esposa dele), so acompanhadas por uma terceira que eles no reconhecem. O estranho que no foi reconhecido comea a conversar com eles.E bvio que o assunto da conversa era Jesus. E provvel que tenha sido uma conversa longa da qual temos apenas um resumo. Minha estimativa que eles tenham andado duas horas, ou talvez trs. Fao esse clculo baseado na minha experincia de caminhar com Jan, minha esposa. Quando andamos juntos e no conversamos muito, chegamos a um ritmo de quase cinco quilmetros por hora. Se conversarmos, nossa velocidade cai para menos de quatro quilmetros por hora. Eu e Jan costumamos levar binculos para apreciar a paisagem, o que reduz ainda mais o nosso ritmo. Mas, se Jesus juntou-se queles dois aps terem percorrido um ou dois quilmetros na direo de Emas, e eles andaram e conversaram durante os nove ou dez quilmetros restantes, isso nos permite chegar a alguma coisa entre duas e trs horas. E tempo suficiente para um considervel aprofundamento na conversa.

Na presena da ressurreioLucas nos relata que a conversa girou em torno dos detalhes do julgamento e da crucificao de Jesus, pois tudo aquilo ainda estava muito vivo na lembrana deles. Eles conversaram sobre o que pensavam acerca de Jesus e sobre os sentimentos que tinham em relao a ele: a imensa autoridade e o senso da presena divina que associavam com a sua figura. Eles o descreveram como "profeta, dinmico em palavras e aes" (v. 19, msg). Falaram sobre as expectativas que tinham a respeito dele. Durante sculos, as esperanas semeadas pelos profetas e alimentadas nas oraes, nos estudos e na vida fiel de vrias geraes do povo hebreu haviam se acumulado e agora germinavam neles: "Tnhamos esperana de que ele fosse aquele que iria libertar Israel" (v. 21, msg). E, claro, eles mencionaram os comentrios que circulavam em Jerusalm: "Algumas mulheres que estavam conosco nos deixaram completamente confusos. Hoje bem cedo, elas foram at o tmulo e no encontraram o corpo dele. Ento voltaram contando que tinham tido uma viso em que anjos disseram que ele estava vivo. Alguns dos nossos amigos foram ao tmulo para averiguar tudo aquilo e encontraram o tmulo vazio, exatamente como as mulheres disseram, mas no viram Jesus" (v. 22-24, msg).At aquele ponto, a conversa havia estado nas mos de Cleopas e do amigo. Jesus havia comeado com suas perguntas, mas depois preferiu ouvi-los falando sobre ele. A dupla que seguia para Emas no tinha a menor idia de que a pessoa com quem eles estavam falando era tambm a pessoa de quem estavam falando. Eles estavam na presena da ressurreio, andando "na terra dos viventes", e no sabiam.Quando Jesus entrou na conversa e comeou a falar, ele pegou os fragmentos do que eles tinham falado e fez com que se encaixassem na grande e abrangente revelao registrada nas Escrituras. Ento lhes mostrou, detalhe por detalhe, como aquilo que os havia deixado completamente baratinados e confusos fazia perfeito sentido quando visto e ouvido como parte do que Deus estava fazendo e dizendo o tempo todo. As Escrituras Sagradas oferecem orientao de grande alcance e coerncia. Elas nos resgatam de jornalistas desatentos, esquecidos e esbaforidos que, gaguejando, pensam estar nos pondo em contato com o que importante. A medida que os viajantes de Emas ouviam Jesus expor as Escrituras naquele dia, eles perceberam que no estavam falando das ltimas novidades, mas de coisas bem antigas. O quebra-cabea comeava a fazer sentido.Que conversa foi aquela! Mais tarde, lembrando-se do que havia acontecido, eles disseram: "Por acaso no nos sentimos como se estivssemos pegando fogo enquanto ele conversava conosco pela estrada, abrindo as Escrituras para ns?" (v. 32, MSG).E ento chegaram ao povoado de Emas, destino da viagem. Cleopas e seu amigo insistiram que Jesus, que ainda no havia sido reconhecido, entrasse e jantasse com eles. Os trs sentaram-se mesa de jantar, e foi ento que aconteceu: "... e o reconheceram" (v. 31). Ou, como mais tarde descreveram aos amigos em Jerusalm: "Eles o reconheceram quando ele partiu o po" (v. 35. msg).

A longa histria cuja ltima palavra glriaSente-se mesa no lugar do homem ou mulher cujo nome no mencionado aquele ou aquela que acompanhou Cleopas na viagem. Voc est de novo em casa. Esteve fora durante vrios dias para celebrar a Pscoa em Jerusalm a grande festa da salvao dos hebreus, com toda emoo e energia que a acompanhavam. Desde pequeno voc faz a mesma coisa todos os anos. O lugar e o ritual esto repletos de lembranas, histrias e canes. Esta sua identidade como judeu. quem voc . Voc e o homem ou a mulher que Deus escolheu e que agora se reafirma e se fortalece como tal.Mas, ento, de forma inacreditvel, a semana sagrada repentina e inexplicavelmente profanada, grosseiramente violada pela crucificao de um homem que voc conhecia e a quem honrava de todo corao. Ainda chocado por aquela morte sangrenta e cruel, voc comea a ouvir boatos. Eles esto correndo por toda parte. E uma espcie de relato diferente de tudo o que voc j ouviu "uma viso em que os anjos disseram que ele estava vivo" (v. 23. msg). O que ser que isso quer dizer? Naqueles dias em Jerusalm, voc havia passado por muita coisa, desde comemorao at angstia e desorientao. Seu mundo havia sado dos eixos e estava fora de controle. Emocionalmente esgotado, voc respirava aliviado porque estava indo embora de Jerusalm. Era um alvio passar outra vez por aquela estrada a caminho de casa, longe da multido, da violncia e dos boatos, feliz por ter tempo e privacidade para conversar com Cleopas e tentar achar algum sentido para tudo aquilo.Ento um estranho junta-se a vocs, interessado no que esto dizendo. Ele entra na conversa e, para seu espanto, d sentido quilo tudo. Durante duas ou trs horas enquanto caminham de volta para casa, vocs o vem tomar o caos dos ltimos dias e, semelhana do que Deus fez em Gnesis, colocar ordem na baguna. Voc nunca tinha ouvido as palavras das Escrituras proferidas de forma to pessoal. No sabia que suas prprias experincias, principalmente experincias to turbulentas, confusas, inexplicveis e ligadas morte como aquelas dos ltimos cinco dias, faziam parte de uma longa histria na qual a ltima palavra glria (veja v. 26). Aquele homem havia criado com suas palavras um mundo no qual Deus, bem diante de voc, estava fazendo tudo o que voc havia lido em Moiss e nos Profetas.

Dividido pelas emoesAo entrar em Emas, voc j est se sentindo mais calmo e dentro do seu estado natural. Trs horas antes voc havia sado de Jerusalm dividido pelas emoes. E agora, graas a um estranho, est se sentindo praticamente normal outra vez.J est tarde, e quase hora do jantar. Voc esteve fora durante uma semana ou mais. No h nada em casa para comer. Ao passar por um local onde se vendem pes, voc compra po e convida o desconhecido para jantar. Depois de um pouco de insistncia, ele aceita o convite. Voc pega uma garrafa de vinho. Os trs se sentam para um jantar simples base de po e vinho. Cleopas serve o vinho. Ento o desconhecido faz um gesto que o deixa momentaneamente atordoado. Ele pega o po e o abenoa. O seu convidado para o jantar torna-se o seu anfitrio. Depois de abenoar o po, ele o parte e o entrega a voc e a Cleopas. Ento, e s ento, voc o reconhece. E Jesus, e ele est vivo. a ressurreio.Joo narra sua histria de uma refeio no contexto da ressurreio em que o cenrio foi a Galileia, mas no oferece detalhes sobre quando esse fato ocorreu (veja 21:1-14).Era a primeira refeio da manh, feita ao ar livre numa praia da Galileia. Sete discpulos participaram dela. O nome de cinco deles mencionado Pedro, Tom, Natanael e os filhos de Zebedeu (Tiago e Joo). Os outros no so mencionados pelo nome. Quatro discpulos esto ausentes, mas o motivo da ausncia no explicado.Essas foram as circunstncias em que ocorreu essa refeio no contexto da ressurreio na Galileia. Havia pouco tempo, sete discpulos tinham sado de Jerusalm e j se encontravam de volta Galileia, sua terra natal. Estavam ali cumprindo ordens do prprio Jesus ressurreto. Mateus quem conta a histria: Maria Madalena e a "outra Maria" estavam no tmulo vazio na manh da ressurreio. Um anjo lhes disse que Jesus havia ressuscitado e que elas deviam ir e dizer aos discpulos que ele queria encontr-los na Galileia. Ao correrem para levar as notcias, o prprio Jesus as cumprimentou. E disse-lhes a mesma coisa: "Digam aos meus irmos que eles devem ir para a Galileia, e eu os encontrarei ali" (Mt 28:10, msg).Elas fizeram o que lhes havia sido dito. Jesus encontrou-os ali nas montanhas da Galileia, mesmo local onde lhos deu a comisso apostlica. Agora, por motivos que desconhecemos, sete dos onze discpulos esto de volta ao lugar onde pescavam o mar da Galileia. No muito difcil imaginar o que pode ter acontecido. Pedro havia combinado com seus amigos que iriam passar a noite pescando. Depois de toda a intensidade e da emoo dos ltimos anos com Jesus, a pesca ainda estava no sangue de Fedro. possvel imaginar que ele podia estar se sentindo perdido numa situao como aquela. No importa o que ele e seus amigos pensassem sobre a ressurreio, o fato que eles no estavam preparados para aquilo com que estavam lidando agora.

Redefinindo a ressurreioA ressurreio, caso voc acreditasse na sua existncia, tinha a ver com a outra vida. Tratava-se de algo que iria lhe acontecer depois da sua morte e sepultamento, quando estivesse com Deus no cu para ali passar a eternidade. Mas a ressurreio de Jesus aconteceu aqui neste mundo. E bvio que as primeiras testemunhas e pessoas que tiveram contato com a sua ressurreio no estavam no cu. Elas estavam caminhando pelas mesmas estradas que cortavam o mesmo territrio onde haviam crescido, no mesmo lugar em que conversavam e trabalhavam com as mesmas pessoas com as quais viveram desde crianas.E a ressurreio havia ocorrido com a pessoa de Jesus, que elas tinham visto morrer na cruz. Somos obrigados a procurar palavras adequadas para expressar a reao que elas tiveram fascnio, espanto, perplexidade. Apesar de sculos de preparo, elas no estavam prontas para isso.Agora, as coisas comeavam a ficar claras para aqueles discpulos lembre-se de que j se haviam passado alguns dias e eles estavam percebendo que a ressurreio tambm lhes trazia implicaes pessoais e para as circunstncias da vida de cada um deles. Tenho a impresso de que lhes foi mais difcil processar essas implicaes do que assimilar o prprio fato da ressurreio de Jesus. A ressurreio havia reconfigurado e redefinido radicalmente a pessoa de Jesus. Ele era especial, claro. Mas o conceito to tradicional que os discpulos tinham da ressurreio como vida aps a morte estava sendo totalmente redefinido como vida "na terra dos viventes".Trata-se de algo bem radical, to radical para mim e para voc quanto foi para eles. Isso pode explicar pelo menos o que eu penso por que os sete discpulos que eram ex-pescadores tinham sado para pescar aquela noite. Eles estavam comeando a perceber que a ressurreio de Jesus tinha tudo a ver com a vida que cada um levava no dia-a-dia. Eles precisavam se habituar a essa reorientao e, portanto, mergulharam de volta na vida comum no mesmo local de trabalho e no mesmo barco que lhes era conhecido. No acho que isso tenha sido planejado, como se tivessem tomado uma deciso parecida com o que costumamos chamar de "disciplina espiritual". Tinha sido apenas uma intuio diante da nova realidade em que se encontravam agora.

A comida est prontaMas eles no obtiveram sucesso. Pode ser que tivessem perdido o jeito para a coisa. Pescaram a noite toda e "nada apanharam" (Jo 21:3).Ao romper do dia, Jesus est de p na praia. Os discpulos encontravam-se a uma distncia de mais ou menos cem metros pouco mais que o comprimento de um campo de futebol e no o reconheceram. Ele os chama e pergunta como havia sido a pesca. E informado de que no haviam apanhado nada. Ento ele os orienta a jogar a rede do outro lado do barco. Ao fazerem isso, retiram uma rede cheia de peixes.Joo, que em Jerusalm foi o primeiro a entender o que havia acontecido quando viu o tmulo vazio, tambm o primeiro aqui na Galileia. Ele entende o que est ocorrendo. Reconhece aquela figura na praia e sabe que Jesus ressurreto. Ento diz a Pedro, que o havia acompanhado na corrida ao tmulo no dia da ressurreio: "E o Senhor" (v. 7, MSG). Pedro pula na gua e nada at a praia para encontrar-se com Jesus, deixando para os colegas o trabalho de recolher e puxar a rede cheia de peixes. No uma delcia quando pessoas que passam por experincias espirituais deixam todo o trabalho nas nossas costas?Quando chegam praia, vem que Jesus j lhes havia preparado po e peixe. Depois que Pedro ajuda seus colegas a tirar os peixes da rede, Jesus os chama para comer: "A comida est pronta" (v. 12, msg). Pedro e Joo j haviam reconhecido que aquele homem na praia era Jesus. Os outros cinco tambm o reconhecem agora. "Eles sabiam que era o Senhor" (v. 12, msg). Ento, Jesus lhes passa po e peixe. E a primeira refeio do dia e ocorre no contexto da ressurreio.Os autores dos evangelhos gostam de narrar histrias em que Jesus aparece comendo e bebendo. A mesa era um dos cenrios favoritos dos evangelistas. E onde apresentavam Jesus, revelando a si mesmo, conversando, trabalhando e acolhendo homens e mulheres.Por isso que me interesso em examinar essas duas ocasies em que Jesus come e bebe com as pessoas, pois elas so esclarecedoras e nos envolvem na formao-via-ressurreio e na caminhada perante o Senhor na terra dos viventes o jantar na casa de Cleopas e a refeio matinal na praia da Galileia.

Nossa formao se d no meio de atividades rotineirasEm primeiro lugar, olho para o que bvio, mas sempre negligenciado. A formao-via-ressurreio no depende de um contexto especialmente preparado nem de lugar e hora escolhidos com cuidado. O padro o normal. No h nada mais normal, rotineiro e dirio do que comer e beber.Em nossa cultura, costumamos fazer trs refeies por dia caf da manh, almoo e janta. Fazemos essas refeies primeiramente porque so uma necessidade. Precisamos de nutrientes para continuar a desempenhar nossas funes biolgicas. Pela prpria natureza da nossa criao, somos seres que precisam ingerir regularmente carboidratos, protenas, gorduras, fibras, vitaminas e lquidos.Mas comemos tambm pelo prazer que isso nos proporciona. Um caf da manh tpico dos bons hotis, com frutas fresquinhas, doces, pes, broa de milho, po de queijo, bolo, caf, leite, ch, iogurte, queijo, suco de frutas, requeijo e manteiga derretida no po, pode se transformar num momento de prazer quase inesquecvel. Encontrar-se com um amigo para um almoo numa boa churrascaria uma forma de misturar conversa e calorias que proporcionam uma experincia deliciosa para muitos de ns.Ser que existe alguma outra coisa que faamos com tanta freqncia e naturalidade, misturando necessidade e prazer de fornia to inconsciente, despretensiosa e comum, como o ato de preparar uma refeio e com-la ao lado da famlia, dos amigos ou de nossos convidados? Nossa natureza humana fica exposta quando comemos juntos. Precisamos comer para nos manter com vida, e todos comemos basicamente as mesmas coisas verduras, legumes, frutas, massas e carnes. O ato de comermos juntos tem o condo de colocar de lado nossa vaidade, pelo menos durante algum tempo. Nossas diferenas e at reputao ficam em segundo plano quando comemos e bebemos junto com outras pessoas.Cada cultura tem a sua tradio no tocante hospitalidade. Todas elas implicam no cultivo de um relacionamento honesto, no reconhecimento da dignidade pessoal e no prazer mtuo que advm das aes de dar e receber. Por isso de grande importncia que, ao atentar para as formas pelas quais o Cristo ressurreto chega a ns e formado em ns, deparemos com essas duas experincias de comer e beber juntos retratadas na ressurreio o jantar em Emas e a refeio matinal na praia da Galileia.A prtica crist em questes de formao espiritual desvia-se bastante do ideal quando tentamos construir ou sistematizar uma espiritualidade afastada dos aspectos maiscomuns e corriqueiros da vida. E no existe nada mais comum do que uma refeio. Os princpios abstratos esteio de muita coisa que nos fornecida na cultura eclesistica contempornea no tm origem na revelao bblica.Comer e beber. Po e peixe. O lar em Emas e a praia na Galileia. So esses os elementos que fornecem o substrato e as condies para a formao-via-ressurreio.

Po e peixe de verdadeMinha segunda observao que ambos os exemplos de refeio eram o que poderamos chamar de refeio funcional. No foram ocasies especialmente preparadas para uma revelao espiritual. No houve nenhuma "encenao". Eram elementos naturais e integrantes do dia-a-dia das pessoas.O jantar em Emas aconteceu depois de uma longa caminhada de Jerusalm para casa. Cleopas e seu amigo (e presume-se que Jesus tambm) estavam com muita fome. O jantar no foi principalmente um evento social nem religioso. Eles estavam com fome depois de uma longa caminhada e por isso comeram. A refeio matinal na Galileia aconteceu depois de uma longa noite de trabalho rduo. Com toda certeza, os sete pescadores chegaram praia morrendo de fome. E ficaram felizes ao ver que o peixe j estava sendo frito e o po j estava pronto. Ento aceitaram o convite de Jesus para comer porque estavam com fome.Nas Escrituras h belas metforas que falam de comida como forma de se referir ao apetite por Deus: "Provai e vede que o Senhor bom" (Sl 34:8); "Bem-aventurados os que tm fome e sede de justia, porque sero fartos" (Mt 5:6); "Como de banha e de gordura farta-se a minha alma" (Sl 63:5); e "Uma comida tenho para comer, que vs no conheceis" (Jo 4:32).Mas aquelas refeies no contexto da ressurreio no tm nada de metafrico. Eram po e peixe de verdade. Po assado, peixe frito comida para o estmago.H lugares para os quais podemos fugir do nosso dia-a-dia a fim de orar, meditar e descansar. Jesus nos deu exemplo disso: "Tendo-se levantado alta madrugada, saiu, foi para um lugar deserto e ali orava" (Mc 1:35). Todavia, por mais que o costume de se retirar seja til e necessrio bastante necessrio , o que Lucas e Joo nos fazem enxergar com suas histrias que um ingrediente bsico para nossa formao espiritual, para a formao-via-ressurreio, so nossas refeies do dia-a-dia, para as quais nos sentamos no decurso do trabalho dirio.Cada vez que pegamos garfo e faca, cada vez que dizemos "por favor, me passe o sal", cada vez que repetimos uma poro de couve-flor, encontramo-nos num ambiente propcio nossa formao espiritual. Lucas e Joo nos dizem que devemos levar a srio as horas em que estamos comendo e bebendo. Nosso culto de domingo importante. Os estudos bblicos de que participamos so importantes. Os retiros que fazemos so importantes. Mas no decorrer de toda uma vida, a presena despercebida e no reconhecida do Cristo ressurreto em nossas refeies pode ter mais impacto na formao da vida de Cristo em ns.

Ddiva que recebemos e da qual participamosA terceira observao que fao em referncia a essas refeies que nos dois casos o reconhecimento ou constatao da ressurreio demorou para acontecer. Por que a dupla de Emas no reconheceu Jesus de imediato? Eles aparentemente conheciam muito bem as palavras e o jeito de Jesus. Diante das circunstncias da histria, bem improvvel que aquele tenha sido o primeiro contato que eles tiveram com Jesus. bem provvel, todavia, que j tivessem escutado Jesus falar e tambm tivessem falado com ele vrias vezes. O grupo de seguidores de Jesus no era grande. Pelos padres de hoje, Jerusalm era uma cidade pequena. O que impediu que eles o reconhecessem? E por que os sete discpulos no perceberam que quem estava com eles era o Cristo que havia ressuscitado? Isso ainda mais intrigante do que no caso do no-reconhecimento na estrada de Emas, pois, pelo que sabemos, eles j haviam visto e falado com Jesus depois da ressurreio em duas oportunidades distintas a primeira, no dia da ressurreio, e a segunda, oito dias depois. Na segunda oportunidade, Tom chegou at a tocar em Jesus (veja Jo 20:19-28).No sabemos o porqu. Mas o que podemos observar que o reconhecimento do Jesus ressurreto algo que se d no apenas com os dados obtidos pela nossa viso. A participao na ressurreio no algo que se fora nem que se planeja. H um elemento de ddiva nisso tudo e algo de envolvimento tambm.Em nenhuma das ocasies a ressurreio foi algo sufocante. O reconhecimento e a confisso no se deram pela fora. Jesus no usou sua ressurreio para intimidar as pessoas, obrigando-as a lhe prestar adorao ou a se tornar discpulas.Existe em alguns segmentos da igreja uma tradio respeitvel, mas, em minha opinio, equivocada, que faz uso da ressurreio com objetivos estritamente apologticos utilizando-se dela para provar a divindade de Jesus. (Em outros segmentos da igreja, existe uma prtica paralela, mas que se ope a essa, que tenta negar a ressurreio, para assim provar que a f crist uma variao do humanismo bsico.) lgico que se pode fazer uso da ressurreio para fins apologticos. o que Paulo faz. Mas o prprio Paulo coloca a ressurreio de Jesus em evidncia principalmente para nos envolver na prtica da ressurreio.No estou usando a palavra prtica no sentido de algum que pratica piano, por exemplo. Prtica uma palavra que usamos para nos referir a um mdico que tem experincia. E uma daquelas palavras superabrangentes que incluem tudo que fazemos.Os autores dos evangelhos no parecem ter objetivos apologticos a ressurreio de Jesus no tem nada a ver com coao. Ela no fora a pessoa a crer. possvel passar horas na presena do Cristo ressurreto e nem saber o que est acontecendo. Eles vieram a crer, mas foi participando, recebendo, envolvendo-se. O ambiente ideal onde isso acontece aquele em que comemos e bebemos juntos, o ambiente de uma refeio com outras pessoas.

No se trata de mgicaEm quarto lugar, para que no tentemos desenvolver um mtodo pelo qual possamos colocar a ressurreio de Jesus para funcionar de acordo com nossa demanda, observamos que o