extremo oriente da antiguidades

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Volume 1 • • • • • • • • • • André da Silva Bueno Volume 1 • • • O Extremo Oriente na Antiguidade O Extremo Oriente na Antiguidade ISBN 978-85-7648-808-8 9 788576 488088

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Page 1: Extremo oriente da antiguidades

Volume 1• • • • •

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André da Silva Bueno

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O Extremo Oriente na Antiguidade

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ISBN 978-85-7648-808-8

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O Extremo Oriente na Antiguidade

Volume 1

André da Silva Bueno

Apoio:

Page 3: Extremo oriente da antiguidades

2012.1

Copyright © 2012, Fundação Cecierj / Consórcio Cederj

Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Fundação.

B928Bueno, André da Silva O extremo oriente na antiguidade./André da Silva Bueno – Rio deJaneiro: Fundação CECIERJ, 2012. 170 p. ; 19 x 26,5 cm.

ISBN: 978-85-7648-808-8

1. História chinesa. 2. História asiática 3. História oriental. 4.Orientalismo. I. Título.

CDD 951

Referências Bibliográfi cas e catalogação na fonte, de acordo com as normas da ABNT e AACR2.Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa.

Material Didático

ELABORAÇÃO DE CONTEÚDOAndré da Silva Bueno

COORDENAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONALCristine Costa Barreto

SUPERVISÃO DE DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL Fábio Peres

DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL E REVISÃOAna Lígia Leite e AguiarPaulo César Alves

AVALIAÇÃO DO MATERIAL DIDÁTICOThaïs de Siervi

Departamento de Produção

Fundação Cecierj / Consórcio CederjRua da Ajuda, 5 – Centro – Rio de Janeiro, RJ – CEP 20040-000

Tel.: (21) 2333-1112 Fax: (21) 2333-1116

PresidenteCarlos Eduardo Bielschowsky

Vice-presidenteMasako Oya Masuda

Coordenação do Curso de HistóriaUNIRIO – Mariana Muaze

EDITORFábio Rapello Alencar

COORDENAÇÃO DE REVISÃOCristina Freixinho

REVISÃO TIPOGRÁFICACarolina GodoiCristina FreixinhoElaine BaymaThelenayce Teixeira Ribeiro

COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃORonaldo d'Aguiar Silva

DIRETOR DE ARTEAlexandre d'Oliveira

PROGRAMAÇÃO VISUALAlessandra Nogueira

ILUSTRAÇÃOBianca Giacomelli

CAPABianca Giacomelli

PRODUÇÃO GRÁFICAVerônica Paranhos

Page 4: Extremo oriente da antiguidades

Universidades Consorciadas

Governo do Estado do Rio de Janeiro

Secretário de Estado de Ciência e Tecnologia

Governador

Alexandre Cardoso

Sérgio Cabral Filho

UENF - UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO

UERJ - UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

UNIRIO - UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

UFRRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

UFRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEReitor: Roberto de Souza Salles

Reitor: Carlos Levi

Reitor: Ricardo Motta Miranda

Reitora: Luiz Pedro San Gil Jutuca

Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro

Reitor: Silvério de Paiva Freitas

Page 5: Extremo oriente da antiguidades
Page 6: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na AntiguidadeSUMÁRIO

Volume 1

Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudoda história “asiática” ou “oriental” __________ 7André da Silva Bueno

Aula 2 – Visões do Orientalismo ___________________ 35André da Silva Bueno

Aula 3 – A construção da história chinesa ____________ 57André da Silva Bueno

Aula 4 – As primeiras dinastias chinesas _____________ 93André da Silva Bueno

Aula 5 – A dinastia Zhou ________________________113André da Silva Bueno

Aula 6 – As dinastias Qin e Han __________________139André da Silva Bueno

Referências ___________________________________165

Page 7: Extremo oriente da antiguidades
Page 8: Extremo oriente da antiguidades

André da Silva Bueno

Aula 1

Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

Page 9: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

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Meta da aula

Evidenciar no que se constitui a questão do Orientalismo e a importância de se estudar

a História Antiga do Extremo Oriente.

Objetivos

Esperamos que, ao fi nal desta aula, você seja capaz de:

1. analisar os elementos básicos que compõem o que seria o Orientalismo;

2. identifi car algumas dessas questões em nossa própria formação histórica;

3. reconhecer alguns dos problemas e preconceitos que abrangem esta área.

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Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

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INTRODUÇÃO

O tópico principal desta nossa primeira aula é o seguinte:

Por que estudar História antiga do Extremo Oriente? Qual é o seu

signifi cado para o nosso processo de formação acadêmica, e como

ela poderia contribuir para a construção de nossa “cultura geral”? O

primeiro passo que podemos dar para responder essas perguntas,

inicialmente, é invertê-las: Por que não estudar a história “asiática”?

Poderemos considerar nosso conhecimento como completo se

deixarmos de conhecer culturas que representam mais da metade

do mundo?

A necessidade de pesquisar mais sobre as sociedades

asiáticas é premente no momento atual: as maiores populações

do mundo ali se concentram (China e Índia); a língua mais falada

e escrita do mundo (o chinês) também é asiática. O crescimento

econômico tem alcançado níveis surpreendentes nesse continente,

o que podemos observar pelos fenômenos dos Tigres Asiáticos, dos

Dragões Asiáticos, do Japão e da China comunista.

Entre 1989 e 1999, o rápido progresso

econômico, aliado à capacitação produtiva,

promoveu o surgimento dos países cujo caráter

emergente foi considerado como fundamental para o

equilíbrio do mercado mundial futuro. Estes são os Tigres

Asiáticos: Cingapura, Hong Kong, Taiwan e Coreia do

Sul. Já os Dragões Asiáticos, que vieram um pouco depois

mas cuja capacidade industrial superava a dos Tigres,

são Tailândia, Vietnã, Malásia e Indonésia. Hoje, esses

países consolidaram sua posição como plataformas de

exportação de diversos bens industriais, e quase um terço

da produção mundial de eletrônicos e manufaturados de

consumo vêm desses países.

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O Extremo Oriente na Antiguidade

10

Figura 1.1: Os Tigres Asiáticos: Hong Kong, Taiwan, Cingapura e Coreia do Sul – verdadeiros polos de exportação de produtos manufaturados. Você deve ter uma boa quantidade de coisas fabricada nesses “pequenos” países do outro lado do planeta. Já parou para pensar nisso?Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Four_Asian_Tigers.svg.

A popularização da informática e dos eletrodomésticos só

tem acontecido graças aos baixos custos de produção apresentados

nessas áreas. A Ásia também foi palco de movimentos políticos

importantes, tais como: a independência pacífi ca da Índia, as

guerras não vencidas pelas superpotências na Coreia, no Vietnã e

no Afeganistão e pelos novos modelos de capitalismo e socialismo,

adaptados à cultura tradicional.

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Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

11

Soma-se a esses fatores a consideração de que a história

asiática está estruturada numa dinâmica bastante diferente da nossa,

como acontece no caso da China e da Índia, que estão em processo

de desenvolvimento civilizacional desde a Antiguidade. Assim sendo,

como não estudar a “história oriental”?

Apesar de países asiáticos, como a China, estarem absoluta-

mente presentes em nosso cotidiano, por meio de manias culturais

– como as artes marciais – e produtos diversos, dos quais somos

absolutamente dependentes, hoje, percebemos rapidamente que

sabemos muito pouco sobre essa civilização. Veja-se o caso do

próprio idioma chinês – apesar de ser o mais praticado e escrito no

mundo, quem, no cotidiano, conhece ao menos uma palavra dele,

sem confundi-lo com o japonês, por exemplo?

Figura 1.2: É possível pensar o Oriente como uma coisa só?Fonte: http://www.imagensgratis.com.br/imagens-da-asia-.html.

Page 13: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

12

Por que estudar a história antiga do Extremo Oriente?

Na medida em que a história das civilizações asiáticas

possui uma complexidade toda própria, como poderíamos

compreender seus efeitos modernos sem conhecer as suas bases

de formação?

Tem sido um erro bastante comum nas Ciências Humanas

iniciar qualquer estudo sobre o Oriente consultando somente fontes

modernas, em detrimento do conhecimento tradicional. Isso ocasiona

um sério problema de superfi cialidade em estudos mais amplos,

que se agravam seriamente nas pesquisas mais específi cas. Além

disso, as civilizações asiáticas possuem suas próprias tradições de

construção do conhecimento histórico e científi co. Como podemos,

então, ignorá-las? Ou temos, teoricamente, o direito de subestimá-las,

por não estarem de acordo com os nossos parâmetros “ocidentais”?

Além disso, o estudo da história antiga das civilizações

asiáticas torna-se necessário em virtude de suas singularidades. De

que forma podemos compreender a história do Império chinês, por

exemplo, que durou do século –3 até +20? Ou da Índia, que não

se reconhecia como um país até o século +19 (geografi camente

falando), mas se compreendia unida pela religião hindu?

Atualmente, os estudiosos de história asiática

utilizam a grafi a –2 (= século II a.C.) e +9 (=

século IX d.C.), ou AEC e EC (“Antes da Era

Comum” e “Era Comum”), cujo ponto de referência

é o mesmo das datações tradicionais, mas que

se julga mais respeitoso e não religioso. Trata-se de

evitar a imposição de um pensamento religioso como

direcionamento para a pesquisa histórica.

A

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Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

13

O estudo da Antiguidade extremo-oriental nos possibilita,

portanto:

1) compreensão mais abrangente sobre os fenômenos sociopolíticos

asiáticos;

2) acesso a culturas diferentes e formas alternativas de pensamento;

3) revisão do próprio conceito de “ocidental”, no que tange a sua

aplicabilidade, universalidade e inteligibilidade, em relação à

História.

A própria designação “Ásia”, ou “Oriente”, é

absolutamente vaga e indistinta (não obstante,

faremos uso dessas expressões durante nossa

aula, buscando localizar, ao máximo, as

especifi cidades de cada cultura a que fi zermos

referência). Ela nomeia um vasto território que vai de

Israel até o Japão e que é habitado por uma plêiade

de civilizações bastante diferentes umas das outras.

Pense: qual a semelhança que existe entre um chinês

e um árabe? O que aproxima um egípcio, um tajique

e um vietnamita? Devemos ter muito cuidado ao

empregar o termo “oriental” como se fosse uma coisa

só, do mesmo modo que temos cautela ao afi rmar que

algo é “ocidental”.

A

Considerações sobre a história “asiática”

É fundamental fazer uma análise do processo de construção das

histórias asiáticas, levando-se em conta duas perspectivas principais:

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O Extremo Oriente na Antiguidade

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a) a produção feita na própria Ásia;

b) aquela feita no Ocidente e/ou com técnicas ocidentais.

a) Perspectivas asiáticas

Tomemos como primeiro exemplo a Índia. Até o estabelecimento

dos ingleses no fi nal do século +18, a civilização indiana não

considerava a História como uma das principais disciplinas do saber.

Em sua concepção, essa “ciência” ligava-se ao estudo de eventos

materiais, que seriam efêmeros, transitórios e, por conseguinte,

falhos na compreensão de uma verdade superior (a transcendência

ou realidade defi nitiva). Dessa forma, a Filosofi a, a religião, as

Letras e as Ciências Naturais angariaram muito mais respeito do

que o estudo histórico, que acabou sendo realizado, em geral, por

estrangeiros (gregos, romanos, chineses, árabes etc.).

Num sentido completamente oposto, a China desenvolveu

uma longa tradição de estudos históricos, que desde o século –10

produziu cronologias muito bem articuladas. Confúcio, o grande

sábio chinês do século –6, foi um dos grandes defensores do estudo

da História como forma de compreender a evolução da sociedade,

esclarecendo questões morais e sociais. No período dos séculos –2

e –1, o historiador Sima Qian teria elaborado a primeira grande

cronologia da história chinesa, utilizando uma série de métodos

inovadores para a época (pesquisa de documentos, verifi cação

de data por tabelas astronômicas etc.). A partir dele, houve uma

sucessão de profi ssionais que preservaram e divulgaram a história

das dinastias chinesas até o século +20, quando foi proclamada a

república. Além disso, desde a Antiguidade os chineses procuraram

formar coleções de livros e de relíquias, e já no século +10 contavam

com um método rudimentar de arqueologia. Buscaram também

aplicar noções e procedimentos científi cos (chineses) na elaboração

de modelos explicativos (Sima Qian, por exemplo, aplicou a teoria

dos cinco elementos na compreensão dos ciclos dinásticos).

ConfúcioForma latinizada de Kongzi, –551 a –479, sábio chinês que propôs uma vasta reforma na cultura chinesa, por meio da educação e do estudo.

Sima Qian(–145 a –85), Historiador chinês que escreveu a grande primeira história chinesa, os Registros históricos (Shiji), compreendendo desde as origens da civilização até a dinastia Han (século –3 ao século +3), quando o império atingiu um apogeu similar ao do Império Romano no mesmo período.

Teoria dos cinco elementosOu wuxing: trata-se de uma teoria que defende que a natureza está organizada em um ciclo no qual madeira, metal, água, fogo e terra engendram-se numa relação de criação e aniquilação.

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Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

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Ciclos dinásticos

Figura 1.3: Imagem de Sima Qian, que atrelou a teoria dos cinco elementos aos ciclos dinásticos.Fonte: ht tp://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Sima_Qian_%28painted_portrait%29.jpg

Para os chineses, os ciclos dinásticos representam

a teoria de que cada dinastia tem seu momento de

ascensão, apogeu e queda, invariavelmente. Com

Sima Qian, passou-se a acreditar que isso possuía uma

relação com o ciclo dos cinco elementos. Por exemplo:

uma dinastia cuja força seria representada pelo fogo

seria “apagada” por uma dinastia que se representasse

pelo poder da água. Para Sima Qian, poderíamos

identifi car os sinais de uma dinastia por um processo

de associação: uma dinastia muito guerreira seria de

“fogo”, uma dinastia forte seria de “madeira”, uma

dinastia provedora e rica seria de “terra” etc.

C

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O Extremo Oriente na Antiguidade

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b) Perspectivas ocidentais

Desde a Antiguidade, o Ocidente vem mantendo contatos

regulares com o Oriente e, no século +1, romanos e chineses já se

citavam mutuamente. Apesar de terem ocorrido algumas épocas

de menor comunicação, causadas por crises sociais e políticas

periódicas, o intercâmbio entre Europa, Oriente Médio, Ásia Central

e Extremo Oriente nunca arrefeceu de fato. Uma mudança radical só

ocorreria a partir do século +16, no momento em que se iniciaram

as grandes navegações e a colonização de territórios ultramarinos

por parte dos Estados europeus.

Nesse contexto, os europeus deixaram de manter apenas

contato com os “orientais” para estabelecer outro modo de con-

vivência, fato esse que modifi cou bastante seu procedimento de

observação. Grande parte desse tempo foi dedicada à exploração

comercial das civilizações orientais e, concomitantemente, à

imposição cultural e às conversões religiosas. Tal processo ocorreu

de formas diferentes na Ásia. Na Índia e na China, por exemplo,

ele foi durante um bom tempo localizado e restrito, dado o tamanho

e a capacidade de resistência dessas sociedades; já nas ilhas

Filipinas e em parte da Oceania, em que a capacidade de reação

dessas sociedades era substancialmente menor, dado seu tamanho

exíguo, espalhou-se mais rapidamente e com maior intensidade.

O resultado disso foi o embate cultural e não o diálogo e a

compreensão mútua. Havia um discurso carregado de preconceito e

desconfi ança de ambas as partes (um bom exemplo é a instalação

portuguesa em Macau, documentada tanto por lusos como por

chineses), e os primeiros a perceber essa situação foram os jesuítas,

que tentaram reverter esse quadro, dedicando-se ao estudo das

civilizações que buscavam converter. Os esforços desses religiosos

não foram acompanhados, entretanto, pela maioria dos ocidentais.

Com exceção da geração iluminista do século +18, grande

parte da Europa continuou a acreditar na ideia de imposição e

conversão. O século +19 acompanhou e acentuou essa tendência,

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Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

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com a afi rmação do racismo e do imperialismo dentro das Ciências

Humanas, gerando uma série de deformações bastante sérias no

estudo da história asiática.

Somente na metade do século +20 é que já havia, por parte

da academia, uma noção clara da grande quantidade de erros

que foram imputados aos modelos orientalistas. Desde então,

têm-se buscado, em conjunto com especialistas nativos, resgatar

e reconstruir essa história de uma forma mais científi ca, mas com

grande ênfase, no entanto, ao uso das técnicas ocidentais. O

processo de reconhecimento das ciências tradicionais asiáticas

tem sido mais demorado, e muitos preconceitos ainda subsistem na

academia em relação a essas culturas.

Figura 1.4: No século +19, o “amarelo” (designação atribuída aos orientais) era considerado um perigo para os europeus – a ponto destes “protegerem” os negros de sua “maldade e astúcia”. Nesta caricatura do século +19, o senador Blaine, dos Estados Unidos, propõe a expulsão dos chineses do país.Fonte: http://cartoons.osu.edu/nast/images/Civilization_of_Blaine_50.jpg

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O Extremo Oriente na Antiguidade

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Assim, vejamos a seguir como se deram as formações das

principais correntes dos estudos históricos sobre o Oriente.

Correntes de estudos históricos

A perspectiva ocidental gerou, basicamente, duas correntes

de estudos históricos orientalistas, bastante distintas entre si por suas

características e objetivos.

a) Corrente “acadêmica” do século +19

Essa corrente destaca-se pelo engajamento estrito no

discurso científi co europeu, principalmente a partir do século +19.

A civilização moderna europeia gerava todos os modelos de

comparação para serem aplicados na história asiática. Tratava-se,

portanto, de saber o que os orientais haviam conseguido criar que

fosse comparável à história e ao pensamento ocidental, o que lhe

concedia o seu “grau” na “hierarquia das civilizações”.

Tais considerações foram feitas, no entanto, pelos mais diversos

motivos. Alguns pesquisadores estavam realmente preocupados em

provar a superioridade de suas culturas; outros, porém, utilizavam as

técnicas acadêmicas da forma que acreditavam ser conveniente e, por

conta disso, seus estudos acabavam gerando erros involuntários. Uma

questão clássica dessa postura, por exemplo, foi o desenvolvimento

da teoria de que o “berço da humanidade” teria ocorrido na

Mesopotâmia, negando a possibilidade de antiguidade para China,

Índia, África e Américas. Além disso, a atenção concedida aos

modelos tradicionais, em detrimento de propostas inovadoras –

paralelo ao desprezo (ou desconhecimento) dos conteúdos culturais

nativos –, terminava por agravar a situação.

A evolução das Ciências Humanas tem, gradativamente,

alterado esse panorama, e os programas interdisciplinares têm

estimulado uma discussão mais fl exível e aberta sobre os tópicos

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Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

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relacionados às histórias asiáticas. A absorção e o emprego de

técnicas ocidentais por especialistas orientais também contribuíram

bastante para a modifi cação dessa situação, mas existem ainda

muitos campos para serem trabalhados e rediscutidos. Não raro

ainda encontramos estudos, na academia, que são realizados com

informações totalmente defasadas; e a regularidade com que são

reproduzidas acaba por torná-las “verdades históricas” difíceis de

combater.

b) Corrente “esotérica”

Essa corrente surgiu num fenômeno oposto ao do imperialismo

colonialista. Frustrados com a religião e a sociedade ocidental, uma

série de autores dedicou-se ao estudo das culturas asiáticas em busca

de alternativas que pudessem suprir as carências da “civilização

moderna”. Pesquisadores das mais diversas áreas, aventureiros ou

mesmo curiosos ligaram-se a essa proposta, e o resultado foi o mais

diverso possível. Seu objetivo fundamental, contudo, era encontrar

uma saída para os dilemas espirituais que a decepção com a moral

capitalista e cristã havia provocado, promovendo uma busca por

meios alternativos de religiosidade.

A parte histórica era muito fraca e falha, limitando-se muitas

vezes a repetir informações de uma ou outra tradição. Os aspectos

negativos, entretanto, eram múltiplos. Muitos fi caram simplesmente

fascinados pelas tradições asiáticas e, num processo de “conversão

cultural”, começaram por reclamar uma “superioridade espiritual”

do Oriente sobre o Ocidente.

Por conta disso, essa linha de estudos perdeu a credibilidade,

sendo difi cilmente aceita pela academia, mas angariando simpatia

entre os leigos. Seu principal problema é o fato de ela construir uma

imagem ideal da Ásia, ignorando por completo seus problemas

materiais e sociais. Isso também tem gerado uma série de enganos

no estudo do Oriente, reproduzindo erros que têm se afi rmado com

uma intensidade problemática entre o público que não mantém

contato direto com a academia.

Page 21: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

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Figura 1.5: Na primeira imagem, de 1918, a postura conhecida como “chicote”, do Tai Chi Chuan. Na segunda, prática da ioga, mais especifi camente da asana, que em sânscrito signifi ca “sentar”. Muitas técnicas e artes orientais foram estereotipadas e, no senso comum, podem ser entendidas como a representação de toda uma cultura, quando, na verdade, representa diferentes fragmentos de um amplo campo cultural.Fontes: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Yang_Cheng-fu.png (imagem 1) ; http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Parshvakonasana.jpg (imagem 2)

Os esotéricos foram os principais responsáveis pela criação dos

estereótipos dos asiáticos, tais como de que todo chinês sabe lutar,

que todo indiano é um iogue oculto, de que a comida “oriental”

é superior etc. Por fi m, eles realizaram associações irresponsáveis,

tais como dos famosos “centros esotéricos”, que juntam astrologia,

tarô, Tai Chi Chuan, ikebana, ioga, enfi m, técnicas de tradições

absolutamente diferentes como se fossem uma coisa só.

Devemos ter em mente que os mesmos

problemas têm se apresentado entre os

especialistas asiáticos. Há uma discussão

importante sobre a aceitação das teorias

históricas ocidentais na academia, e tem-se

buscado equilibrar elementos da cultura tradicional

com essas avaliações. A revalorização das ciências

“orientais” também tem contribuído para mister,

embora seu ressurgimento dê vazão, ocasionalmente,

a uma confusão entre as duas correntes.

IoguePraticante de ioga.

Tai Chi ChuanArte marcial chinesa que utiliza a repetição de um conjunto determinado de posturas físicas e respirações, sequenciado e em movimento, cujos fi ns são principalmente terapêuticos.

IkebanaArte japonesa do arranjo fl oral.

IogaDisciplinas indianas de cuidados físicos com a mente e o corpo. Existem várias correntes diferentes, mas no Ocidente a mais difundida é a Hatha Yoga, composta por um número variado de exercícios de alongamento e respiração.

Page 22: Extremo oriente da antiguidades

Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

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Deformações históricas

Busquemos agora discutir alguns tópicos sobre a história e a

cultura das civilizações asiáticas. Em primeiro lugar, é importante

não tratá-las em bloco. Os primeiros estudiosos europeus fi zeram isso

e só cometeram enganos. Confundiram tradições históricas distintas

com tanta constância que, atualmente, só um estudo sério e dirigido

pode esclarecer melhor um iniciante. Os preconceitos, no entanto,

mantiveram-se. Vejamos alguns deles:

a) Árabes

Hoje em dia, essa denominação tem sido utilizada para

conjugar elementos completamente diferentes entre si. Ela abriga

povos tão diversos como sírios, palestinos, turcos, árabes, chechenos

ou qualquer outro povo que esteja localizado, geografi camente,

perto do Oriente próximo. Quando utilizada no sentido religioso (ou

seja, igual a Islã), ela abriga uma quantidade ainda maior de povos

e, pior, com tradições religiosas variadas. Logo, o emprego desse

termo em nada equivale à realidade complexa do mundo islâmico,

que tem recebido uma atenção bastante falha no meio acadêmico.

Não se deve confundir um malaio e um árabe saudita: ambos são

islâmicos, mas somente o segundo é árabe. Por outro lado, a cultura

da Síria sofreu uma forte infl uência dos árabes sauditas, mas existem

cristãos sírios, por exemplo.

Page 23: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

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O Qatar e a Al Jazeera

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:LocationQatar.png.

O Qatar ou Catar é um país árabe, um dos nove

emirados da Península Arábica. A descoberta de

petróleo em sua região, nos anos 1940, transformou

sua economia e, em 1971, tornou-se independente

dos turcos otomanos e dos britânicos. A maior

emissora de televisão do Qatar é a Al Jazeera (“A

Península” ou “A Ilha”), no ar desde 1996.

Fonte: http://english.aljazeera.net/.

Page 24: Extremo oriente da antiguidades

Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

23

Al Jazeera transmite em árabe e em inglês. Essa

emissora tem feito, até o momento, o combate à

censura e tem a reputação de divulgar notícias

confi áveis. Você já a conhecia? Que tal dar uma

olhada no seu site (em inglês) e transitar um pouco

por fontes que abordam o mundo de outra maneira?

Confi ra aqui: http://english.aljazeera.net/.

b) Arianos contra drávidas

No século +19, os pesquisadores europeus lançaram a ideia

de que a história da Índia antiga tinha se formado a partir do confl ito

entre duas civilizações diferentes, os arianos (povo indo-europeu

branco e dominador) e o povo drávida (nativo, negroide). O primeiro

havia submetido o segundo numa série de guerras de conquista, que

terminaram com a imposição da cultura ária sobre todo o subcontinente

indiano. Hoje sabemos, através da arqueologia e da linguística,

que os termos “ariano” e “dasa” não se referem a povos, mas sim

às titulações; que não ocorreram apenas guerras, mas houve fusões

pacífi cas e férteis; que muitos elementos autóctones ainda estão vivos

na cultura indiana; e que os “indo-europeus” não tinham ideia de que

eram “europeus”, e assim não podem ser ícones imperialistas, como

foi subentendido durante muito tempo. Por fi m, discute-se, ainda, a

multiplicidade e durabilidade das tradições orais, que apontam para

fusões entre diversas etnias antigas.

Por mais incrível que possa parecer, o modelo

arianista foi largamente difundido pelos alemães

envolvidos com o movimento nazista. Na busca de

uma origem cultural que os desligasse de suas

Page 25: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

24

possíveis ligações com o judaísmo e o cristianismo

oriental, os nazistas abraçaram a ideia do movimento

indo-europeu “branco, puro e autêntico”. Em suas

teorias, a cultura branca ariana, proveniente do

Cáucaso, teria dado origem tanto aos vedas

indianos como aos povos germanos e nórdicos;

no caso da Índia, porém, a mistura com os povos

drávidas” teria “degenerado” a pureza “racial

dos arianos”. Hitler invocou esses mesmos termos ao

defender a eugenia germânica, bem como adotou

símbolos que se relacionavam com essa cultura

antiga, como a suástica – na Índia, ela está virada

no sentido esquerdo e representa a liberdade, mas

os nazistas a inverteram, para o sentido direito, o

que misticamente signifi caria “opressão, domínio”.

Embora saibamos que tenham ocorrido migrações de

povos vindos da Ásia Central, está mais do que claro,

hoje, por meio da genética e do aprofundamento da

linguística e da arqueologia, que é impossível fazer

afi rmações sobre uma possível “herança” física ou

cultural purifi cada, como foi defendido pelos nazis.

c) O modelo “Índia–China”

Até hoje, ouvimos com constância a seguinte citação: “Tal

elemento surgiu na Índia, foi levado para a China e de lá se difundiu

etc.” Essa deformação histórica ocorreu pela associação do modelo

greco-romano, em voga no início do século +20, no caso dessas

duas civilizações asiáticas. Como se defendia a ideia de que

Roma havia absorvido muito de sua cultura da Grécia helênica,

VedasTextos religiosos mais antigos da Índia, cuja origem remonta de –2000 a –1500.

Drávidas ou dasaPalavra que signifi ca “servo, escravo”. Os primeiros linguistas alemães defendiam que ela signifi cava o nome dos povos originais da Índia, o que depois se mostrou incorreto.

EugeniaPolítica de purifi cação racial e genética por meio da eliminação de elementos sociais considerados impuros ou degenerados fi sicamente.

Page 26: Extremo oriente da antiguidades

Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

25

um exame rápido sobre as culturas da Índia e da China deu ensejo

a que alguns pesquisadores fi zessem o mesmo na Ásia, retirando,

por completo, sua diversidade e originalidade. Apesar dos intensos

esforços no sentido de investigar mais profundamente a cultura e

a ciência de ambas as civilizações, a permanência dessa falácia

ainda predomina em muitos setores de estudo orientalistas, tanto na

academia quanto fora dela.

d) O “imobilismo”

Por serem culturas bastante antigas, muito se divulgou a

ideia do “imobilismo histórico”, ou seja, da preponderância das

estruturas de longa duração na história das civilizações asiáticas.

Os acadêmicos viam nisso uma justifi cativa do atraso técnico e

cultural das mesmas; os esotéricos acreditavam que isso constituía

uma virtude e uma prova da manutenção de valores espirituais

superiores, em detrimento de uma “corrupção material”.

Por conta disso, o desenvolvimento dessas civilizações “arrastou-

se” historicamente, em comparação às civilizações europeias. Devem

ser tomados cuidados básicos com essa interpretação, alguns dos

quais apresentamos aqui:

1) Não confundir as dinâmicas próprias da história da Índia ou da

China, por exemplo, com a da França ou da Inglaterra.

2) Os processos de evolução técnica, social, econômica etc.

estão organizados em ciclos diferentes para cada sociedade.

Não podemos, portanto, aplicar arbitrariamente o modelo de

“longa duração” ao caso asiático – se aplicado, são necessárias

ressalvas importantes.

3) Uma investigação atenta sobre as cronologias históricas e os

processos de transformação política e cultural das civilizações

orientais mostra que elas estão longe de ser estáticas: ou elas devem

ser assim consideradas imóveis apenas por que não se efetuaram

certas mudanças que nós supomos que deveriam ter ocorrido?

Page 27: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

26

Acredito que tenha sido importante levantar esses quatro casos

de deformações históricas para exemplifi car o quão importante é

entender um pouco da História Oriental. Ela nos permite compreender

a existência de lógicas diferentes da nossa, e, consequentemente,

enseja-nos a revisar nossos critérios de aproximação e avaliação

teórica e metodológica.

Conceituação

Agora, comentaremos os problemas relacionados às questões

de teoria e método, e vamos proceder à análise de alguns pontos

que ainda têm gerado discussão no meio acadêmico ocidental.

a) Mitologia ou religião?

Em geral, aplicamos o termo “mitologia” para uma série de

narrativas de cunho religioso ou cultural que integram a história

e o pensamento de uma civilização. Seriam elementos que,

essencialmente, não possuiriam comprovação material, constituindo-

se, assim, de histórias “irreais”. Ora, como podemos considerar como

“mitológica” a existência dos deuses que compõem uma religião como

o hinduísmo, composta por mais de um bilhão de crentes e ainda

praticada em todo o mundo? Se a questão é, em si, a comprovação

material, então até o judaísmo e o cristianismo teriam problemas

sérios em suas cronologias, já que não existem provas quaisquer

sobre a vida de Abraão ou Moisés além das presentes na Bíblia. Se

um sistema de culto qualquer pode ser considerado como religião,

ele o pode porque existe enquanto tal; logo, ele independe de uma

comprovação material total e completa. Portanto, é importante fazer

a distinção entre os dois termos, tendo em vista que o argumento da

“mitologia” e da “comprovação material” tem sido utilizado inúmeras

vezes contra as religiões asiáticas, na tentativa de provar a sua “falta

de base histórica”. Ao afi rmá-las como mitologias, pois, estabelece-se

um preconceito contra sua existência e vivência cultural.

Page 28: Extremo oriente da antiguidades

Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

27

b) Filosofi a ou religião?

Podemos considerar o budismo uma religião, tendo em vista

que ele comporta em sua estrutura sistemas de crenças tão distintas,

como o ateísmo e o politeísmo?! Ou o confucionismo, que foi

eleito como doutrina estatal na China imperial, apesar de pregar a

liberdade de culto e de não possuir qualquer espécie de sacerdócio,

propondo-se a existir apenas como um conjunto de regras morais

e não religiosas? Assim sendo, elas são fi losofi as e não religiões?

O problema que se insere aqui é simples: a ideia de religião

que usualmente empregamos é aquela derivada do judaísmo-

cristianismo, com uma crença vinculada a um sistema metafísico e

a presença de elementos ditos “clericais”. Quando nos deparamos

com situações complexas, como a do movimento religioso budista

ou do confucionismo, o emprego da ideia de “religião” ou

“fi losofi a” tem sido utilizado, geralmente, como detrator e não

esclarecedor. Logo, quando um é “religião”, termina por não ser

“fi losofi a”, e vice-versa. Fica patente que tal dubiedade perversa

somente é aplicada a sistemas religiosos e fi losófi cos que não

seguem regras gerais do que seria “ocidental”; caso contrário,

poderíamos nos perguntar se São Tomás de Aquino ou Kant foram

menos religiosos apenas porque foram fi lósofos. É necessário,

portanto, que esclareçamos como queremos abordar esses sistemas

culturais asiáticos, posto que muitos fundem elementos diversos de

Figura 1.6: Estátua de Tian Tan Buda, em Hong Kong, na China. O budismo, visto ora como fi losofi a, ora como religião, abrange grande variedade de tradições e crenças, baseadas nos ensinamentos que foram passados por Buda (Siddharta Gautama). Estima-se que quase 500 milhões de pessoas sigam o budismo no mundo inteiro.Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Buddha_lantau.jpg

Page 29: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

28

fi losofi a, religião e história, com aplicações e sentidos próprios que

podem – ou não – se aproximar dos nossos.

c) Filosofi a ou sistema de pensamento?

Essa questão, por incrível que pareça, ainda permanece

atual. O problema é: podemos considerar os sistemas asiáticos de

pensamento como fi losofi as?

São vários os argumentos:

1) O termo refere-se a uma tradição ocidental, ou seja, é excludente.

2) Os temas principais da Filosofi a são diferentes dos do “pensamento

oriental”.

3) Os métodos de discussão são diferentes. Foucault já havia criticado

com veemência a ideia dos “conceitos únicos” na academia. Quando

perguntado sobre sua opinião em relação a determinado tema, ele

afi rmou que “primeiro, a academia deveria defi nir a sua ideia sobre

o tal conceito e depois, ela poderia ser discutida”. A avaliação é

mais do que pertinente para o caso do “pensamento oriental”.

Em primeiro lugar, a tradição fi losófi ca ocidental não foi feita

somente daquilo produzido na Grécia ou em Roma. Ela é fruto,

justamente, do trabalho de diversos pesquisadores, espalhados pelo

mundo, que trouxeram suas contribuições, enriquecendo-a. Como

podemos, portanto, falar em “tradição ocidental”? Tradição essa,

aliás, que foi resgatada por fi lósofos muçulmanos, como Averrois

e Avicena, que não eram ocidentais e empreenderam um valioso

trabalho de preservação das obras de Platão e Aristóteles, algumas

delas perdidas durante a Idade Média europeia. Hoje tem crescido

bastante a ideia do intercâmbio cultural entre gregos e orientais

(incluindo indianos) na época de formação da fi losofi a grega, o

que desfaz a ideia de exclusividade desde o início.

O segundo argumento dos temas fi losófi cos é totalmente

impreciso. A fi losofi a ocidental inferiu vários novos tópicos de

discussão ao longo de seu desenvolvimento histórico, o que invalida

Page 30: Extremo oriente da antiguidades

Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

29

a ideia de “perenidade conceitual”; além disso, alguns temas

semelhantes aos ocidentais foram discutidos no Oriente, mas os

resultados foram diferentes. Isso invalida, portanto, os raciocínios

fi losófi cos asiáticos? O problema é que os temas fi losófi cos não

surgiram, na Ásia, na mesma ordem que na Europa. A questão da

natureza humana, por exemplo, discutida por Hobbes (+1588 a

+1679), Locke (+1632 a +1704) e Rousseau (+1712 a +1778)

surgiu, na China, em torno do século –4, nas mãos de Mengzi e

Xunzi. No entanto, certas questões surgiram antes no Ocidente

que no Oriente, e esse ponto só vem confi rmar que as culturas não

possuem o monopólio do saber, posto que elas são capazes de

inferir temáticas semelhantes em circunstâncias diferentes.

Quanto à questão dos métodos de discussão, resta-nos ques-

tionar se existe somente um método fi losófi co no Ocidente que comprove

a sua total diferença em relação às formas de trabalho orientais. As

práticas do pensar fi losófi co estão presentes, praticamente, em todos

os autores asiáticos. A ênfase com que são utilizadas, porém, é

bastante variável. A apresentação dos textos fi losófi cos “orientais”

também é bem diversa, o que a torna relativamente singular em

relação aos trabalhos ocidentais. Isso descaracteriza, por conseguinte,

os “pensamentos orientais” como fi losofi a?

Acreditamos que, por todos estes motivos, os pensamentos

orientais poderiam ser chamados de fi losofi a. Mas agora, façamos

uma consideração última que julgamos ser bastante signifi cativa:

e por que os pensamentos orientais têm de ser fi losofi a? A luta de

alguns especialistas em comprovar que os saberes asiáticos merecem

respeito foi mais do que efi caz em comprovar nosso desconhecimento

acerca dos mesmos. No entanto, precisamos submeter essas formas

de pensar à ideia que temos de fi losofi a para considerá-los como

importantes? Ou seja, eles só podem ser objeto de estudo, se passarem

pelo crivo dos conceitos ocidentais? Usualmente, os autores despidos

de maiores preconceitos têm usado o termo "fi losofi a" para designar

esses saberes, sem grandes complicações. No entanto, há uma grande

resistência nos meios acadêmicos em reconhecer a legitimidade dos

Mengzi(– 370 a – 289)

Mengzi ou Mêncio, fi lósofo chinês

continuador da escola de Confúcio e defensor

da ideia de que os seres humanos nascem bons, mas degeneram

por falta de educação.

Xunzi(– 312 a – 230)

Filósofo chinês da linha confucionista mas

que se contrapôs à teoria de Mêncio, pois

acreditava que os seres humanos nascem maus

e que a educação é que os condiciona.

Page 31: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

30

mesmos, seja por sua tradição histórica seja por seus conteúdos.

Também sobrevive o hábito de exigir respostas do “pensamento

oriental” para certas questões, como se ele fosse um único sistema

fi losófi co, uma entidade que permeia o pensar de todo o continente

asiático. Um breve olhar sobre qualquer bom manual do assunto já nos

permite observar, no entanto, a multiplicidade de escolas e correntes

fi losófi cas que existiram na Índia e na China desde a Antiguidade, o

que torna tal questionamento praticamente impossível.

d) “Invenção” ou “descoberta”?

Nos anos 1950, o pesquisador inglês Joseph Needham

iniciou uma das tarefas mais espetaculares da história da ciência:

recompor e apresentar, para o mundo acadêmico ocidental,

o passado da ciência chinesa, avaliando cuidadosamente sua

estrutura, efi cácia e regularidade. E qual não foi sua surpresa ao

descobrir, gradativamente, que várias das “invenções” ocidentais

haviam sido criadas, séculos antes, na China?

Figura 1.7: O pesquisador inglês Joseph Needham, que buscou uma genealogia para a ciência chinesa.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Joseph_Needham

Joseph Needham(1900 - 1995), pesquisador e químico inglês que escreveu a maior enciclopédia sobre a história da ciência chinesa, Science and Civilization in China. A obra ainda é publicada por Cambridge e virou uma coleção que continua sendo produzida, com novos volumes e pesquisadores.

Page 32: Extremo oriente da antiguidades

Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

31

O trabalho desse pesquisador foi revolucionário ao mostrar

dois aspectos importantes da ciência chinesa que eram desconhecidos

na Europa até então. Primeiro, que ela existia, sob uma forma

organizada, e produzia saberes com certa regularidade; e, segundo,

que apesar de ela não estar baseada nos mesmos métodos e teorias

ocidentais, possuía efi cácia, que podia ser comprovada inclusive

pelos nossos critérios. Mais do que isso: Needham demonstrou a

originalidade e as limitações da ciência chinesa em relação ao

restante do mundo, assegurando, por conseguinte, a capacidade

inventiva das outras civilizações asiáticas.

É importante ressaltar a contraposição das ideias de “descoberta”

e “invenção”, posto que a primeira parece se dar de forma espontânea,

enquanto a segunda é resultante de um longo processo de investigação.

Em geral, designava-se que a China havia sempre “descoberto” as

coisas (o papel, o leme etc.) como se tais não fossem frutos de raciocínio

e sim do acaso. Needham mostrou para o Ocidente, por conseguinte,

que a Ásia podia “inventar” também e concluir de forma articulada a

construção do conhecimento.

O preconceito que existe atualmente com as práticas científi cas

orientais decorre, portanto, de três problemas fundamentais: primeiro,

o não reconhecimento, por parte da academia, de outro sistema de

pensar que não seja o ocidental; segundo, a reserva de mercado,

diante do surgimento de técnicas alternativas; terceiro, o acesso a esses

saberes demanda um relativo tempo de estudo, e a presença de poucos

profi ssionais capacitados tem favorecido o surgimento de falsários, que

prejudicam o processo de afi rmação das ciências orientais.

CONCLUSÃO

Estudar a história asiática é, portanto, uma necessidade.

Ninguém precisa virar um especialista no assunto, mas acreditamos

que seja imprescindível, para os historiadores, dominar alguns

elementos das culturas asiáticas que possam ser adicionados ao

Page 33: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

32

seu instrumental teórico, metodológico e de conhecimentos gerais.

Esse campo não apresenta mais difi culdades do que qualquer outro,

a não ser pela distância que temos mantido em relação a ele e ao

preconceito que sofre. Cerrar a porta para os estudos asiáticos não

diminui sua premência nem a nossa ignorância. Por que, então,

não estudar a China, a Índia ou o Japão? Não se trata apenas de

conhecer algo novo e – ao mesmo tempo – antigo, mas de abrir

caminhos que nos permitam questionar a nós e ao que temos feito

para compreender melhor o mundo.

A civilização chinesa merece mais do que a

simples curiosidade. Ela pode parecer singular,

mas (é um fato) nela se encontra registrada uma

grande soma de experiência humana. Nenhuma

outra serviu de vínculo a tantos homens durante um

período tão grande. Quem pretende ter o título de

humanista não deve ignorar uma tradição de cultura

tão atraente e tão rica em valores duráveis. GRANET,

Marcel. Civilização chinesa. Rio de Janeiro: Otto

Pierre, 1979 (o original é de 1932).

Atividade Final

Atende ao Objetivos 1, 2 e 3

Leia o texto a seguir:

Em relação à China, deixaremos um dia de hesitar entre o fascínio, o medo ou a rejeição?

As condições para o estabelecimento de uma inteligência sobre esse país ainda têm que

ser criadas, ao menos se quisermos sair das categorias projetadas sobre ele a partir do

Page 34: Extremo oriente da antiguidades

Aula 1 – Uma introdução ao problema do estudo da história “asiática” ou “oriental”

33

Ocidente. E, certamente, há a responsabilidade da disciplina sinológica [estudos referentes

à China ou a seus habitantes]. Esta fi cou muitas vezes afastada do movimento das ideias,

produzindo um saber meramente erudito, monográfi co, não gerando questionamentos. Em

consequência, ela deixa o campo livre a uma proliferação midiática dos discursos sobre

a China, por vezes à beira da “sino-exaltação”, mesclando artigos de revista sobre o

“desenvolvimento pessoal” ao êxtase diante de qualquer ideograma caligrafado, ou dos

sonhos de conquistas dos chefes das operações armadas do Sunzi e das receitas de Feng

shui (a “geomancia” chinesa). Poderemos sair deste impasse? A questão se coloca de

maneira tanto mais urgente em virtude de a China ter voltado ostensivamente ao cenário

mundial. Se não quisermos nos encerrar na erudição ou ceder às seduções meramente

ideológicas, não há outra solução além de fazermos trabalhar juntos o questionamento

fi losófi co e a profi ssão de sinólogo. E isso, obviamente, com prudência e paciência, pois

após abandonar os lugares-comuns e os efeitos da propaganda, as questões tornam-

se difíceis, a exemplo daquela aqui abordada sobre as apostas e os atuais limites da

ocidentalização da China. Lembremo-nos de que não foi a China quem optou por ir ao

encontro do Ocidente, mas sim, o Ocidente que foi até ela, e isso por duas vezes: primeiro

no século 16; depois, no século 19. O primeiro encontro foi realizado suavemente, por

intermédio dos missionários que acreditavam ser possível evangelizar os chineses sem

encontrar resistência — tal como acontecera com a recente conversão dos índios da

América — mas logo se desencantaram. Em compensação, o segundo encontro foi feito

não pelas missões, mas pelos canhões e por motivos puramente econômicos, ligados ao

tráfi co de ópio. Foi nesse contexto dramático que a China teve que “pedir emprestado”,

urgente e dolorosamente, à Europa, ou seja, seguir seu exemplo nos domínios (econômico,

técnico, científi co) em que se impunha a superioridade do Ocidente (JULLIEN, 2006).

Com base no texto lido, qual é a discussão que o autor, François Jullien, busca reproduzir

acerca do estudo da China?

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O Extremo Oriente na Antiguidade

34

Resposta Comentada

O objetivo aqui é que você identifi que o problema das correntes acadêmicas e exotéricas sobre

o caso da China, identifi cando tanto os preconceitos gerais quanto os estereótipos que são

criados sobre a mesma. No caso dos estereótipos, Jullien cita os mais comuns, relacionados às

ciências chinesas, ao misticismo e à leitura isolada de clássicos do pensamento chinês, como

Sunzi. Por outro lado, a desqualifi cação da China veio por meio da invasão ocidental, que

através da violência e da tecnologia impôs, ao país, a necessidade de modernizar-se – o que

na época era considerado sinônimo de “ocidentalizar-se”.

RESUMO

Nesta aula, buscamos fazer uma introdução sobre o que

é o “Orientalismo” e como ele tem infl uenciado profundamente

nossa formação histórica, intelectual e mental, carregando-a de

preconceitos e enganos.

Informação sobre a próxima aula

Na próxima aula, faremos um aprofundamento das questões

relativas ao Orientalismo, suas principais vertentes e como estudá-lo.

Page 36: Extremo oriente da antiguidades

André da Silva Bueno

Aula 2

d d l

Visões do Orientalismo

Page 37: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

36

Meta da aula

Consolidar o conhecimento sobre a questão do Orientalismo como teoria, para

se compreender as civilizações asiáticas, assim como suas principais correntes e

problemas.

Objetivos

Esperamos que, ao fi nal desta aula, você seja capaz de:

1. distinguir melhor as diferenças entre as correntes academicista e esotérica;

2. analisar como pode ser feita uma “terceira via” do Orientalismo mais adequada e

sem preconceitos.

Page 38: Extremo oriente da antiguidades

Aula 2 – Visões do Orientalismo

37

INTRODUÇÃO

Na aula anterior, apontamos a necessidade de estudar a

história asiática. Aqui, trataremos da divisão entre orientalistas

“academicistas” e os “esotéricos”, condição presente e indissociável

do processo de formação daqueles que, porventura, acabam se

interessando pelos estudos asiáticos. Nesta aula, estudaremos um

pouco melhor essa questão, bem como discorreremos brevemente

sobre a “terceira via” do Orientalismo, ou a possibilidade de

fazermos estudos asiáticos de uma forma menos preconceituosa e

problemática.

Figura 2.1: A burca é um elemento marcante de algumas culturas orientais. Também se fi xa, no senso comum de um imaginário global, como símbolo de uma sociedade extremamente machista. Mas, afi nal, o que ela representa? Como surgiu? O que pensam as mulheres sobre seu uso?Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Burqa_Afghanistan_01.jpg

Page 39: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

38

Esta é a nossa segunda aula. Mas você já pode muito bem

fazer um exercício de autocrítica e rever as noções anteriores sobre

o imaginário de Oriente que você tinha. Qual seria ele? Muito

diferente do que estamos vendo? Em que sentido ele se apresenta

para além dos véus nas faces das mulheres, para além de uma

sociedade que oferece privilégios excessivos aos homens, para muito

além do homem-bomba? A nossa visão sobre o Oriente não estaria

extremamente viciada na representação que os países ocidentais ou

de orientação ocidental fazem dele? Pois bem, entregue-se a esse

exercício de ver o Oriente para muito além da mão pesada, que,

milenarmente, o vem colocando apenas como sendo o “extremista”.

O que é a visão academicista?

Como bem afi rmou Jean Riviere,

Para o homem ocidental, o Oriente é uma palavra que evoca

as mais diversas e contraditórias imagens; provoca nele

sentimentos de uma curiosidade frequentemente pueril, de

sonhos românticos que não correspondem à realidade, ou

então imagens de miséria social, de repulsa, de piedade e de

um temor irracional. Os juízos sobre a Ásia são geralmente

elementares, parciais e defi nitivos; há, em resumo, uma

curiosidade simpática ou uma incompreensão desconfi ada,

segundo o estado de espírito de cada um. Na realidade, o

Ocidente ignora o Oriente e por isso o historiador francês

René Grousset (1885-1952) pode escrever que "A revelação

do pensamento indiano e do pensamento chinês equivale,

para nós, à descoberta de diferentes seres humanos, de

diferentes habitantes de outros planetas" (RIVIERE, 1979).

Essa afi rmação é verdadeira, na medida em que o Ocidente

busca, a fi m de suprir essa falha, utilizar-se do prisma científi co para

iluminar o seu “desconhecimento” sobre o Oriente. Sabemos que, na

sociedade ocidental, o critério científi co é tratado pelo senso comum

como o referencial de “verdade” epistemológica, aplicando-se a

Page 40: Extremo oriente da antiguidades

Aula 2 – Visões do Orientalismo

39

todos os campos do saber existentes. Obviamente, tal critério já foi

amplamente discutido por fi lósofos e historiadores, mas, ainda assim,

ele encontra ressonância na sociedade e nos agentes constitutivos

das ciências humanas. É bastante comum, por exemplo, observarmos

a relação absolutamente ilógica que um historiador ocidental possui

com sua área de saber, quando pressupõe que uma boa formação

acadêmica pode deixar de fora a história asiática – ou seja, mais da

metade do mundo, com seus modelos históricos únicos –, acreditando

que o seu instrumental teórico-metodológico pode dar conta dessas

civilizações “se for necessário”. Não obstante, se chamado a opinar

sobre o assunto, muitas vezes ele se contenta com a leitura breve de

um manual qualquer, emitindo juízos de valor sobre a história e a

cultura dessas civilizações com uma irresponsabilidade que nunca

assumiria perante o seu objeto de estudo particular.

A visão acadêmica é aquela ligada aos

meios universitários e políticos, cuja orientação

fundamental, no século +19 e até a segunda

metade do +20, era a de justifi car o colonialismo

e o imperialismo ocidental. Contudo, ao longo do

mesmo século +20, primeiro o socialismo e depois

a globalização vieram dar um forte golpe contra

esta linha de pensamento, forçando-a a rever seus

discursos preconceituosos e dominadores.

A

Contudo, isso ainda não é o pior; ele pode justifi car que a

história asiática não é válida para os nossos estudos, pois não faz

“parte de nossa tradição cultural”; que a sua presença histórica é

um “modismo”; que “devemos aplicar os recursos universitários com

objetos de estudo que nos são familiares ou próximos”, como se a

maioria dos trabalhos historiográfi cos tivesse uma função clara e

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O Extremo Oriente na Antiguidade

40

mercadológica de gerar informações negociáveis. Ora, justamente

por todos esses motivos é que a Ásia deveria ser estudada, como

sabemos, mas o tacanho das respostas esconde o despreparo

ao qual estão expostos determinados autores cujas formações

acadêmicas não se encontram nem preparadas nem dispostas a ir

para além de sua estreiteza. A resposta para esse problema pode

ser encontrada, por conseguinte, no desenvolvimento da tradição

orientalista no Ocidente.

Figura 2.2: Pôster de Edward Said, pensador palestino e principal crítico do Orientalismo.Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Poster_of_Edward_Said.jpg

Como foi muito bem apresentado por Edward Said, em seu

livro Orientalismo – a invenção do Oriente pelo Ocidente (1978),

o Oriente que hoje conhecemos – com todas as suas indistinções

e análises problemáticas – é fruto de uma construção acadêmica

ocidental (se é que tal existe, talvez sendo melhor classifi cá-la como

europeia) que buscou subjugar tudo aquilo que estava fora de sua

tradição histórica a um critério pseudocientífi co, no qual os outros (os

asiáticos, no caso) foram classifi cados em degraus de uma hierarquia

Edward SaidPensador palestino (1935-2003) um dos fundadores das teorias pós-colonialistas, que defendem a revisão da literatura por meio de uma desconstrução das visões europeizadas. Defendeu ativamente a questão da autonomia da Palestina.

Page 42: Extremo oriente da antiguidades

Aula 2 – Visões do Orientalismo

41

de saber que buscava provar, a todo o tempo, sua inferioridade

cultural, intelectual e racial.

As distorções causadas por esse empreendimento são fl agrantes

e gritantes. Ensejando provar que o Oriente e a África eram o lar de um

perene subdesenvolvimento, os centros acadêmicos buscaram valer-se

de sua autoridade como “produtoras de conhecimento” para afi rmar

que tais mundos de civilizações nunca haviam conseguido alcançar

um nível satisfatório de ciência, saber e história. Suas vidas seriam

irracionais, suas realizações, baseadas num empirismo primitivo, sua

qualidade de vida, ausente (exceto para os déspotas). Tal ambiente

formou-se principalmente no século XIX, mas podemos afi rmar que

em várias partes do mundo (como no Brasil) ele continua a existir.

Eis a razão pela qual, por exemplo, achamos exótico e

irracional um chinês comer grilos ou um indiano não comer vacas.

Não aprendemos a nos perguntar qual a justifi cativa para se

matar uma vaca, além de uma noção cultural que privilegia o

consumo de sua carne, ou pelo fato de acharmos insetos animais

pouco comestíveis. Preferimos acreditar que tudo que fazemos é

realizado dentro de uma razão científi ca que a tudo justifi ca e

para tudo dá resposta. Do mesmo modo, como classifi camos os

orientais de estranhos e primitivos, suas produções culturais não são

interessantes senão pelo aspecto exótico. Temos essas sociedades

como incompreensíveis, diante de sua obstinação em não aceitar

por completo os nossos padrões ocidentais de razão e ciência, que

são – para nós – universais, completos e bem fundamentados. Nesse

momento, portanto, esquecemos que nós mesmos somos capazes

de criticar noções como “verdade absoluta” e aplicamos sobre eles

nossas crenças, como se estas fossem baseadas na mesma “verdade

absoluta” que nos dirige e sustenta. A contradição mantém-se pela

gaiola que essa ideia constrói ao redor do conhecimento; ou quem

pode se dedicar a um estudo tão pouco “sério e desinteressante”

das civilizações asiáticas sem ser questionado se o mesmo é “viável

e pertinente” para a academia?

Page 43: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

42

Figura 2.3: Imagem do cotidiano palestino: soldado israelense ameaça civis. Por que não deveríamos nos preocupar com isso?Fonte: http://livefromoccupiedpalestine.blogspot.com/2010/04/my-mother-infi ltrator.html

Devemos considerar, no entanto, que todos os países com

experiências imperialistas recentes (ou seja, os próprios construtores

do Orientalismo) foram obrigados a rever suas posições, fosse

pela redescoberta da autenticidade dessas civilizações, fosse pela

necessidade estratégica surgida com o advento do comunismo

e das grandes guerras ao longo do século XX. Parece, então,

que os últimos redutos desse Orientalismo reticente fi ncaram-se

nas sociedades “periféricas”, tal como no Brasil, onde persiste a

concepção de que o estudo da Ásia é algo secundário. Em vez

de criarem centros de estudo, capazes de enfrentar os desafi os

do mundo asiático, os governos dos países “periféricos” preferem

escolher a mediação internacional, abrindo mão de uma negociação

direta e abandonando-se aos interesses de intermediários europeus

e americanos. Não é de estranhar: nos tempos do regime militar,

por exemplo, combatia-se a União Soviética – e não havia nenhum

curso sobre ela na maior parte das faculdades de História; por outro

lado, para os que admiravam os Estados Unidos (ou mesmo para os

que o tratavam igualmente como o grande inimigo), a frustração era

Page 44: Extremo oriente da antiguidades

Aula 2 – Visões do Orientalismo

43

dupla – a história americana também não era incluída em nenhuma

disciplina, obrigatória ou opcional. Ou seja: nossos especialistas

em História e Cultura estavam totalmente despreparados para lidar

com as maiores potências da época, numa situação de completa

dependência e ignorância sobre as mesmas. No caso da Ásia, a

situação ainda persiste, mesmo que já se saiba que China e Índia

são as economias que mais crescem no mundo atual.

O que esperar, portanto, de uma sociedade acadêmica que

só recentemente adotou a obrigatoriedade do ensino de História da

África – ainda que ela seja feita por especialistas que só consideram

História da África como a presença da escravidão negra no Brasil?!

E as bases originais e tradicionais? E a História da África em si?

Figura 2.4: O intelectual português Boaventura de Sousa Santos, um dos principais ideólogos contra o imperialismo cultural da atualidade.Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Boaventura_de_Sousa_Santos_2010.jpg.

A visão academicista tradicionalista pode ser resumida, por

fi m, como a tentativa constante, no âmbito universitário, de legitimar

o preconceito através de um critério pseudocientífi co e cultural que

submete o Orientalismo a uma hierarquia imaginária de civilizações.

Page 45: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

44

Tal acontecimento dá-se por meio de uma produção acadêmica

que, supostamente, traz consigo uma estampa de credibilidade e

racionalidade – critérios que, se devidamente aplicados, teriam

trazido ao campo das Ciências Humanas outra perspectiva sobre

a Ásia e a África. Repetindo a consideração de Boaventura de

Sousa Santos:

Do ponto de vista do Ocidente, o Oriente é a descoberta

primordial do segundo milênio. O Ocidente não existe fora

do contraste com o não Ocidente. O Oriente é o primeiro

espelho da diferença neste milênio. É o lugar cuja descoberta

indica o lugar do Ocidente: o centro da história que começa

a ser entendida como universal. É uma descoberta imperial

que em tempos diferentes assume conteúdos diferentes. O

Oriente é, antes de mais nada, a civilização alternativa ao

Ocidente — tal como o Sol nasce no Oriente, também aí

nasceram as civilizações e os impérios. Esse mito das origens

tem tantas leituras quantas as que o Ocidente tem de si, ainda

que estas, por seu lado, também não existam senão em termos

da comparação com o que não é ocidental. Um Ocidente

decadente vê no Oriente a Idade do Ouro; um Ocidente

exaltante vê no Oriente a infância do progresso civilizacional.

Presa a essas visões, muitas vezes a academia precisa justa-

mente fazer o seu trabalho, que é livrar-se delas...

A visão esotérica

Como o próprio nome já diz, essa visão situa-se “fora” da nossa

tradição. Ela surgiu como uma alternativa à decepção gerada pela

ciência e pela religião ocidental de tentar explicar o mundo numa

perspectiva salvacionista, que se mostrou falha e contraditória; afi nal,

a medicina não prometeu a cura de vários males que ainda afl igem

a humanidade? O cristianismo não prometeu a melhora espiritual do

mundo? O que houve, então, que fez com que os saberes ocidentais

não cumprissem a promessa de melhorar o mundo?

Boaventura de Sousa SantosPensador português (1940) especializado em Sociologia do Direito e Economia, é, no entanto, um dos autores mais prolífi cos na questão da cultura e da transculturalidade, atuando em vários fóruns mundiais como intelectual e defensor das minorias.

Page 46: Extremo oriente da antiguidades

Aula 2 – Visões do Orientalismo

45

Claro que essa sucinta abordagem não deixa de ser relativa-

mente superfi cial, mas é verdadeira. Nós, ocidentais, sentimos que

essa hierarquia cultural não melhorou em muito a vida de várias das

sociedades que integram o “Ocidente”. A pobreza e a hipocrisia

ainda corrompem algumas das mais legítimas tentativas da ciência

de melhorar o mundo. Imbuídos dessa constatação crítica, a partir do

mesmo século XIX, um número substancial de intelectuais, viajantes,

curiosos, teólogos e cientistas dirigiu seus olhares para o Oriente,

na busca de uma resposta a suas indagações. Há algum lugar no

mundo em que tais problemas possam ser respondidos de outra

maneira? E se há, qual é a resposta? O que fazia com que budismo,

taoísmo, confucionismo ou hinduísmo continuassem a sobreviver

como disciplinas morais e religiosas após séculos de uma história

ainda mais antiga que a do cristianismo? Como explicar que a

China havia inventado o papel, a bússola, a pólvora, a porcelana,

descoberto o aço séculos antes do Ocidente e ainda assim, nessa

mesma época, ser uma civilização tão “atrasada” aos olhos dos

ocidentais? Enfi m, essas civilizações eram realmente inferiores ou

elas escondiam algum tipo de “segredo”?

Para esse grupo de peregrinos e estudiosos, a resposta

deu-se ao avesso do academicismo; o Oriente era o centro de

uma produção “espiritual” que não tinha equivalente na Europa.

Fenômenos de controle do corpo e da mente, demonstrados pela

ioga, a sabedoria simples e efi caz dos ditos e a medicina naturalista

dos chineses, tudo isso compunha o cenário bucólico de uma

insuspeita evolução sagrada que havia abandonado a tecnologia

em prol do bem-estar humano. Tratava-se de um paraíso perdido, a

Shangri-lá que muitos exploradores ainda procuravam no século

+19 em plena Ásia.

Shangri-láReino mítico que

aparece nas tradições asiáticas como uma espécie de paraíso perdido; no século +19, os esoteristas associaram-no ao

paraíso cristão, e alguns aventureiros foram

procurá-lo no Tibete.

Page 47: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

46

Fonte: ht tp://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Lahiri_Mahasaya.jpg

Na imagem acima, temos um grande iogue indiano, Lahiri

Mahasaya, sentado na posição de lótus. Em sânscrito,

Mahasaya signifi ca “grande alma”, e a posição de lótus

melhora a respiração e promove a estabilidade física.

Essa posição talvez seja o mais importante símbolo

da religiosidade oriental, na qual Buda (criador do

budismo) e Shiva (deus do hinduísmo) são frequentemente

representados. Essa posição trabalha as articulações do

joelho e do tornozelo, tonifi cando os órgãos abdominais,

assim como a coluna, tornando-a bem irrigada. Esses

movimentos da ioga têm sempre um sentido espiritual e

físico, buscando-se a harmonia na interação entre corpo

e mente. Em geral, a fusão de elementos de tradições

orientais diversas é comum na corrente esotérica, o que

pode acabar acarretando uma porção de equívocos ou

um enfoque raso sobre a cultura do Oriente.

Page 48: Extremo oriente da antiguidades

Aula 2 – Visões do Orientalismo

47

Claro que essa visão dispensava de sua análise a estrutura

autoritária do império chinês ou a difícil vida do camponês indiano,

a sua vida delimitada pelo sistema de castas... No entanto, o Oriente

deveria ser olhado por seu saldo positivo. E, de fato, os esotéricos

– graças a um tipo de dedicação especial que não existia entre os

acadêmicos – tendiam a se tornar grandes especialistas nas línguas

e culturas asiáticas, dominando aspectos dos idiomas, das crenças,

dos costumes, dos pensamentos e das religiões que escapavam aos

universitários. Onde não lhes faltava vontade faltava, porém, método

e conhecimento histórico. Daí a razão de as análises desse grupo

oscilarem constantemente entre uma profundeza intelectual capaz de

contestar seriamente as propostas acadêmicas e uma superfi cialidade

ou ingenuidade quase infantil.

Figura 2.5: Richard Wilhelm (1873-1930), um dos melhores tradutores da China – no entanto, um fascinado por esoterismos, mesmo sendo pastor protestante.Fonte: http://es.wikipedia.org/wiki/Archivo:Bundesarchiv_Bild_147-0209,_Richard_Wilhelm.jpg.

Page 49: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

48

Podemos citar casos, como o de Richard Wilhelm, por

exemplo, um dos melhores tradutores do Tratado das Mutações (I

Jing). Ele foi um religioso alemão interessado em converter os chineses

e que, de tanto se fascinar com sua cultura, praticamente terminou

“convertido” ao taoísmo. Não nos atenhamos, porém, ao critério

da fé pessoal: o fato é que sua tradução do I Jing é profunda,

densa, muito bem-acabada e bem-feita, apurada, feita com um zelo

dignifi cante, que a tornou um ponto de referência para qualquer

esotérico ou acadêmico; no entanto, seu livro sobre história da China

(História da China, 1925) é fraco, superfi cial, opinativo, quase um

pálido panfl eto perto de sua tradução do I Jing.

Outro famoso orientalista francês, René Guenon, perambulou

por entre vários sistemas religiosos asiáticos até terminar como um

sufi . Uma boa parte de suas obras que contém análises simbólicas

das religiões orientais destaca-se por sua erudição. Contudo, ao

referir-se às bases dessas tradições, ele nunca vai além do que elas

próprias informam a ele, citando-as de forma acrítica, superfi cial e

buscando se contrapor ao academicismo estabelecido, colocando

como “verdades” os conhecimentos esotéricos, em contraponto aos

“enganos” das tradições científi cas ocidentais. Podemos ainda citar

outros: John Blofeld, estudioso do taoísmo e do budismo chinês;

Frithjof Schuon, criador da Sofi a Perennis, um tipo de “fi losofi a”

que buscava a unidade das religiões; Alan Watts (fi lósofo principal

das gerações hippies, embora seus pronunciamentos se dirigissem

à academia) etc. Todos esses autores têm alguma interessante

contribuição a dar ao Orientalismo, mas todas devem ser tomadas

com extremo cuidado.

Richard Wilhelm (1873–1930)Pastor alemão que foi em atividade missionária à China, mas acabou fascinado pela cultura daquela civilização. Sua tradução do I Jing – o Tratado das Mutações, antigo livro chinês oracular, é considerada a melhor realizada até hoje.

Page 50: Extremo oriente da antiguidades

Aula 2 – Visões do Orientalismo

49

A Sofi a Perennis é uma linha pseudofi losófi ca

que visa englobar todas as tradições religiosas

numa única tradição, entendendo que a unidade

espiritual deriva de visões diferenciadas sobre

o divino. Essa linha de pensamento criou as

bases para as análises superfi ciais do esoterismo,

associando todo tipo de conteúdo religioso ou cultural

– divindades, oráculos e imagens – como um conjunto

inter-relacionado de coisas, ignorando, muitas vezes,

suas origens e tradições históricas.

A

O movimento sufi

Embora muitos não saibam, o islamismo também

possui uma vertente esotérica e mística chamada

sufi smo. Ninguém sabe ao certo quando ela surgiu,

mas em torno do século X alguns autores sufi s já eram

famosos a ponto de serem perseguidos por fazerem

afi rmações consideradas “heréticas”. Um deles, por

exemplo, foi Hallaj, sufi persa dessa época, que

afi rmou que o homem e Deus eram a mesma coisa e

um só – o que foi considerado um escândalo, tendo

em vista a suposta condição inferior do homem perante

Deus no Islã tradicional. Os sufi s acreditam, pois,

num conhecimento iniciático, que mistura meditação,

danças, orações especiais e em alguns casos até

mesmo alquimia. O objetivo fundamental é alcançar

Deus num êxtase espiritual, que só pode ser atingido de

modo particular. Por causa das perseguições, os sufi s

possuem organizações discretas, mas não

Page 51: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

50

fechadas – os interessados em participar de seus cultos

devem, antes, estudar alguns pontos básicos de suas

doutrinas. Somente em alguns países onde ele realmente

é proibido os sufi s encontram-se em grupos secretos.

O problema desses trabalhos é o de estarem calcados num

estereótipo às avessas do que pode ser o oriental, no sentido de

não o transformar em um semideus, repleto de características que

o coloquem permanentemente como sendo um ser misterioso,

religioso, profundo, espiritual, entendedor natural de sua cultura,

que lhe permite sempre ser (em potencial, segundo nossa crença)

um mestre em artes marciais, pintura, medicina, cozinha, religião,

sabedoria, fi losofi a... e tudo mais que buscarmos encontrar nele.

Sobre o oriental, a corrente esotérica projeta todos os seus anseios

de realização não atingidos pelo “ocidentalismo”; por outro lado,

mostra a todos as latentes contradições que existem em nossa cultura,

a incapacidade de ver o outro como um ser legítimo e a difi culdade

cíclica em acompanhar seu desenvolvimento histórico e cultural.

Atravessando o século +20, a corrente esotérica chega até os dias

de hoje mesclando-se com práticas religiosas e mágicas diversas

que compõem o movimento conhecido como “Nova Era”.

Uma terceira via

A par dessas duas correntes, creio que deva ser necessário,

por conseguinte, apresentar o que pode ser uma “terceira via” do

conhecimento ocidental sobre o Oriente. Partimos desde o início da

seguinte consideração: não somos orientais nem podemos pretender

sê-lo (como os esotéricos anseiam), por uma série de questões que

englobam a estrutura de nosso processo de formação cultural. No

entanto, devemos asseverar a importância do senso crítico e da

capacidade que temos de utilizar as ciências como instrumento (e

não como fi m) do conhecimento.

Page 52: Extremo oriente da antiguidades

Aula 2 – Visões do Orientalismo

51

Para tanto, podemos perfeitamente nos utilizar de nossos

métodos, contanto que seja para compreender – e não provar uma

concepção a priori – o que se apresenta no decurso de nossos

estudos sobre outra civilização. É preciso enfatizar este ponto: um

dos erros muito comuns nas atuais Ciências Humanas é o de aventar

uma hipótese antes de nos aprofundarmos num determinado objeto

de estudo. Quando nos deparamos com um diferencial em nosso

objeto de estudo, tendemos a afastá-lo ou minimizá-lo de nossa

“experiência” para provar o que estamos dizendo, em vez de rever

a hipótese – um processo muito comum no meio universitário. Em

muitos casos, o próprio especialista não comete esse erro com um

intuito vilanesco, mas por ser incapaz de aceitar que sua pesquisa

possa tomar outro rumo, pois ela é baseada num método científi co

efi caz. Muitas vezes, o pesquisador encontra na peça que não se

encaixa em sua análise um “diferencial” cultural típico do exótico

que constitui o objeto, rejeitando-o com uma particularidade pouco

pertinente. Ou seja, tendemos a afastar aquilo que não buscamos

em nossas pesquisas, quando isso pode signifi car, justamente, um

fator novo.

Um exemplo excelente de abertura intelectual que constitui

essa “terceira via” esteve presente na escola de estudos franco-

indianos, na primeira metade do século +20. Constituída por

grandes especialistas como Louis Renou, Jean Filliozat, Jean

Varenne e Masson-Oursel, essa escola deparou-se, na época, com

a “sensação”, causada pela difusão da ioga na Europa, como uma

modalidade esportiva e religiosa. Em meio à controvérsia do “que

seria a ioga?” e das possíveis consequências de sua prática física,

esses especialistas propuseram-se avaliar em conjunto a efi cácia

e os desdobramentos da ioga na sociedade indiana, bem como

de seus propalados efeitos “sobrenaturais”. O resultado pode ser

visto no livro de ioga de Masson-Oursel (O ioga, 1956), que nos

apresenta um panorama bem diverso dessa prática. Para além de

uma disciplina religiosa, a ioga tinha notáveis efeitos físicos – alguns

explicáveis à luz da ciência ocidental, outros não. O interessante

Page 53: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

52

dessa abordagem reside na constatação de que algumas das coisas

“inexplicáveis” da ioga não eram, necessariamente, frutos de uma

devoção religiosa; alguns efeitos físicos eram embustes, outros eram

reais, sendo possível atingir os resultados dessa prática apenas com

a própria ioga – independentemente de uma vinculação religiosa

específi ca.

Mircea Eliade, pesquisador romeno especializado em

História das Religiões, também dedicou-se à ioga em sua juventude,

constatando seus efeitos físicos benéfi cos sem taxá-los de sobrenaturais

ou de truques. A ioga, na visão do autor, tratar-se-ia tão-somente de

uma disciplina que não conhecemos, tal como, às vezes, a medicina

ocidental também é desconhecida dos orientais.

Tal se dá, igualmente, com o estudo da história Chinesa.

Enquanto o Ocidente tratou a Antiguidade chinesa como uma

construção mítica e “inferior”, a academia recusou a historiografi a

nativa pela ausência de uma comprovação histórica, enquanto os

esotéricos a tratavam de uma tradição “hermética”. A sinologia

francesa, já no fi nal do século +19, por intermédio de Édouard

Chavannes, iniciou um processo sério de revisão destes paradigmas,

sendo essa a primeira linha de estudos a buscar compreender a

China por ela mesma – projeto concretizado na fi gura de seu maior

e melhor aluno, Marcel Granet, cujos trabalhos revolucionaram o

estudo da China no Ocidente em função das inúmeras possibilidades

teóricas e metodológicas por ele aventadas.

CONCLUSÃO

Vimos, portanto, que temos as condições disponíveis para

fazer um estudo sobre o Oriente que busque, antes de tudo, conhecê-

lo em função dele mesmo. Não podemos ser ingênuos, claro, em

acreditar que em nenhum momento estamos em busca de algo na

China ou na Índia que esteja ausente em nós mesmos – mas a leitura

Mircea Eliade (1907-1986)Estudioso romeno da História das Religiões, foi, talvez, o maior representante dessa linha de estudos no século +20, tendo publicado uma vasta produção nesse sentido. Sua abordagem, porém, não é esoterista. Mircea foi um autor dedicado, profundo estudioso das tradições religiosas, mas seu trabalho é, acima de tudo, científi co e antropológico.

Page 54: Extremo oriente da antiguidades

Aula 2 – Visões do Orientalismo

53

da alteridade, se bem conduzida, pode nos proporcionar respostas

científi cas e humanas cujo potencial crítico, intelectual e sapiencial

ainda nos é pouco familiar.

Atividade Final

Atende aos Objetivos 1 e 2

O movimento do mundo é o processo segundo o qual mundos múltiplos comunicam-se

e lutam entre eles, interpenetram-se e transformam-se mutuamente. Assim, quando os

historiadores situaram a Ásia nas relações mundiais, apreenderam que a modernidade

não se defi ne em relação a uma ou outra sociedade, mas em função do resultado de

uma interação entre regiões e civilizações diferentes. Neste sentido, a ideia da Ásia

perde sua validade, pois não se trata de uma entidade independente, nem de um

conjunto de relações. Essa reinvenção de uma Ásia que não é nem o começo de uma

história mundial linear nem o fi m, nem sujeito autárquico nem objeto subordinado,

dá oportunidade de reconstruir a história do mundo. E isso deve também nos levar a

analisar novamente a ideia da Europa, pois não se pode continuar a considerar a Ásia

em relação à visão que a Europa tem de si.

As representações da Ásia já evocadas ressaltam a ambiguidade e as contradições que

compreende a ideia da Ásia. Esta é ao mesmo tempo colonialista e anticolonialista,

conservadora e revolucionária, nacionalista e internacionalista; ela encontra sua origem

na Europa e transforma a interpretação que a Europa tem de si mesma; ela é estreitamente

ligada à questão do Estado nacional e confi rma a visão imperial; é um conceito de

civilização em contraste com o da Europa, e uma categoria geográfi ca estabelecida

nas relações geopolíticas. Quando estudamos a independência política, econômica e

cultural da Ásia atual, é preciso termos em conta efetivamente o fato de que a ideia da

Ásia surgiu nos deslizes, na ambiguidade e nas contradições. Não poderemos encontrar

as chaves para transcender ou dominar esses deslizes e essas contradições a não ser

compreendendo as relações históricas particulares que lhes deram nascimento.

Page 55: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

54

A crítica ao eurocentrismo não deveria tentar confi rmar o asiacentrismo, mas eliminar a lógica

egocêntrica, exclusiva e expansionista da dominação. Será impossível compreendermos

a importância da modernidade asiática se esquecermos as condições e os movimentos

históricos descritos acima. Por isso, as novas representações da Ásia devem ultrapassar os

objetivos e os projetos dos movimentos socialistas e de libertação nacional do século XX.

Nas circunstâncias históricas atuais, elas devem refl etir sobre os projetos históricos não

realizados desses movimentos. O objetivo não é criar uma nova guerra fria, mas abolir a

antiga e suas formas derivadas; não é de restabelecer a relação colonial, mas de eliminar

os vestígios e impedir que se desenvolvam formas nascentes de colonialismo.

Portanto, a questão da Ásia não diz respeito somente à Ásia geográfi ca, mas à “história

mundial”. Reconsiderar a “história asiática” exige reconstruir a “história mundial” e

ultrapassar a ordem do “novo império” do século XIX e sua lógica (WANG, 2005).

A partir do que foi visto nesta aula, produza um texto de 10 linhas explicando a relação

entre o texto de Wang Hui e nossa discussão sobre a terceira via do Orientalismo.

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Resposta Comentada

Você deve ter respondido que o texto de Wang Hui relaciona-se com a necessidade de superar os

preconceitos acadêmicos ou esotéricos, no sentido de construir uma nova história da Ásia, e de como

essa é de suma importância para reescrever a história do mundo. A nova história da Ásia precisa

escapar do eurocentrismo acadêmico, como ele mesmo afi rma, mas também deve ser concebida

por meio de uma observação ponderada e intelectual, e não idealizada, sob o risco de se cair num

asiacentrismo – como faziam os esotéricos. Por fi m, a história da Ásia tem de ser incluída numa nova

história mundial, mais abrangente e rica, que se livre de perspectivas hegemônicas e colonialistas.

Page 56: Extremo oriente da antiguidades

Aula 2 – Visões do Orientalismo

55

RESUMO

Nesta aula, o objetivo foi fortalecer as noções que precisamos

alcançar sobre as principais correntes do Orientalismo, que seriam o

academicismo tradicional, o esoterismo e uma terceira via, constituída

por um estudo mais aprofundado das civilizações asiáticas, a partir

de suas próprias tradições.

Informação sobre a próxima aula

Na próxima aula, estudaremos os primórdios da civilização

chinesa, a sua historiografi a tradicional e as fontes para compreender

seu passado.

Page 57: Extremo oriente da antiguidades
Page 58: Extremo oriente da antiguidades

André da Silva Bueno

Aula 3

d d l

A construção da história chinesa

Page 59: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

58

Meta da aula

Discutir a construção da história antiga chinesa, suas principais fases, cronologia e teorias.

Objetivos

Esperamos que, ao fi nal desta aula, você seja capaz de:

1. identifi car elementos básicos da tradição historiográfi ca chinesa;

2. analisar como a história chinesa foi construída no Ocidente;

3. reconhecer a cronologia dos períodos antigos e a documentação básica para o

estudo da história antiga chinesa.

Page 60: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

59

INTRODUÇÃO

A aventura da China continua. Como a civilização indiana,

a chinesa é uma das mais antigas do mundo, com uma história que

continua a evoluir desde sua gênese até os nossos dias. Esta é uma

marca fundamental do “Oriente”: a Antiguidade continua viva, e temos

a oportunidade de vislumbrar as permanências dos tempos clássicos

no pensamento, na cultura e nos hábitos. Não obstante o interesse

científi co que ela pudesse despertar pelo seu passado, a China é, além

disso, uma das maiores nações dos tempos atuais. É o país que mais

cresce economicamente, que tem a maior população, que tem a língua

mais falada no planeta e um sistema de escrita que serve de base (e

pode ser compreendido) por diversas outras nações que não falam

chinês. Nos tempos passados, a China havia conseguido constituir um

dos maiores impérios da humanidade, valendo-se de cavalos, fl echas

e um sistema burocrático efi ciente. Teria sido, também, a sociedade

tecnicamente mais avançada do mundo em vários campos, até o

século +18, quando os europeus consolidaram uma série de avanços

no ramo da ciência que inverteram a hierarquia de poder entre os

Estados mundiais, estabelecendo o período das “grandes descobertas

e conquistas” – embora uma parte substancial do que os europeus

“descobriram” já fosse bem conhecida por outros povos.

O pensamento chinês difundiu-se de forma poderosa por

outras paragens; o confucionismo foi absorvido como ética social

e de trabalho no Japão e na Coreia; o budismo, vindo da Índia,

foi adaptado pela cultura chinesa, que empreendeu sua divulgação

por vários outros países, através de versões próprias, como a Chan

(“meditação”; em japonês, zen), sem contar o trabalho de várias

outras escolas cujas discussões fi losófi cas acompanharam por séculos

seus similares europeus.

Mas então, a pergunta que fi ca é a seguinte: por que sabemos

tão pouco sobre a China? Por que continuamos a ignorar a existência

desta civilização, suas contribuições ao pensamento e à ciência

Page 61: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

60

mundial e, principalmente, seu ressurgimento e ascensão no mundo

moderno? A explicação que podemos apresentar é simples e, no

entanto, problemática.

Figura 3.1: A partilha da China na visão de uma caricatura do século +19.Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:China_imperialism_cartoon.jpg

O Ocidente conseguiu, no século +19, empreender o

desmembramento e a dominação das nações asiáticas e africanas.

Este processo, marcado pela violência e pela avidez, pôs em

xeque as realizações das culturas orientais, como se tais fossem

“atrasadas”, “inferiores” etc., criando um discurso marcado pelo

racismo e pelo desconhecimento, e difundindo a falsa concepção de

que as culturas ocidentais ofereceriam as ideologias predominantes

do futuro mundial, fomentando, por conseguinte, a ideia de que só

seria interessante, igualmente, estudar e analisar aquilo que fosse

europeu ou norte-americano.

Page 62: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

61

Não foi preciso muito tempo para demonstrar que esta concepção

era totalmente falha: desde cedo, se os orientais preocuparam-se em

absorver elementos da cultura ocidental, foi tão-somente para reforçarem

suas próprias estruturas de vida. É o que observamos no caso do

Japão, durante a Primeira e Segunda Guerras, e no caso do Vietnã, da

Coreia do Norte, entre outros. Tais processos de resistência, aos quais

se somam a revolução comunista chinesa, a vitória da libertação da

Indonésia e mesmo a independência da Índia, fazem-nos questionar se

o que o “Oriente” absorveu da cultura ocidental não foi somente aquilo

que poderia ser utilizado em função da própria autodeterminação do

“Oriente”. Essa ideia parece ser procedente. Seria um engano acreditar

que apenas um século de dominação direta poderia desarticular o

desenvolvimento de culturas milenares, apagando suas manifestações

e tornando-as um passado remoto. Mas é um erro pensar também que

estas mesmas civilizações não se encontravam em momentos complexos

de sua existência e talvez mesmo de colapso, quando da chegada dos

europeus em seus territórios, pois, se assim não fosse, difi cilmente as

mesmas teriam sido dominadas.

Há de se levar em conta, por fi m, que toda uma conjuntura

propiciou ao Oriente sua derrocada; mas também que, neste mesmo

tempo, estes povos foram capazes de rearticular seus modos de vida

dentro de um padrão que congraçava, habilmente, elementos de sua

própria cultura com as novidades vindas do exterior, propiciando

seu soerguimento nos dias atuais.

São os elementos introdutórios da história da China que

nos interessam nesta terceira aula: nosso intuito é percorrer,

na Antiguidade chinesa, o processo de desenvolvimento desta

civilização, buscando observar o surgimento de uma série de

instituições e práticas culturais que nos levem a compreender como se

deu a construção de suas estruturas sociais, políticas e econômicas.

Iremos analisar de forma sucinta o período que abrange desde a

Pré-História até a constituição das dinastias e do primeiro grande

Império chinês, o Han, nos séculos –3 a + 3. A seguir, há uma tabela

para você visualizar melhor algumas dinastias e algumas de suas

características sempre que tiver necessidade:

Page 63: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

62

Períodos tradicionais Moderna arqueologia

Dinastia Xia -2205 a -1766 Fase do Bronze 1 – Transição

Dinastia Shang -1766 a -1122 -1500 a -1028 – Fase do Bronze 1

Zhou anterior -1122 a -650 -1027 a -650 – Fase do Bronze 2

Zhou posterior -650 a -221 -700 a - 221 – Transição Ferro

Período Qin -221 a -206 -221 a -206 – Teoria dos Cinco Elementos

Han anterior -206 a +9 -206 a +9

Construção da história chinesa

A China já produzia sua história e seus métodos historio-

gráficos próprios muito antes da chegada das concepções

europeias de ciências humanas no século +19. E, diga-se de

passagem, estes métodos eram tão bem articulados que os

primeiros pesquisadores estrangeiros aceitaram, por diversas

vezes, as versões chinesas sobre o seu próprio passado sem muito

discutir (GERNET, 1979).

A história chinesa começou a ser redigida tendo por mister

resgatar uma ideia de passado que servisse de modelo para as

gerações futuras. Assim sendo, os chineses começaram, desde cedo,

a empreender a prática de registrar, analisar, recolher dados e fi xar

eventos como forma de referendar certas concepções de universo e

sociedade nas quais se viam inseridos.

Os dois primeiros grandes historiadores chineses teriam sido

Confúcio (Kong Fuzi), que teria vivido nos séculos -6 a -5 e que se

tornou famoso pela escola de pensamento desenvolvida a partir de

seus ensinamentos; e Sima Qian (séculos -2 a -1), o “pai” da história

chinesa, que desenvolveu os métodos de pesquisa empregados na

redação dos registros dinásticos até o fi m da era imperial. Isso não

quer dizer que, antes disso, a China não houvesse produzido textos

históricos; mas Confúcio foi o primeiro grande recuperador e editor

destes conteúdos – como a sua produção comprova –, enquanto

Page 64: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

63

Sima foi o organizador da primeira cronologia histórica “defi nitiva”

das dinastias antigas, bem como biógrafo dos grandes nomes da

história e do pensamento chineses.

Soma-se isso ao fato de a cultura chinesa apreciar com gosto

a tradição enciclopedista: grande parte dos autores que integravam

as diversas escolas fi losófi cas chinesas antigas havia trabalhado

no acervo de bibliotecas particulares ou dos governos locais. Este

material literário que, aparentemente, já era produzido em larga

escala serviria de base tanto para Confúcio quanto para Sima Qian

(ainda que em épocas distintas) redigirem seus escritos.

A ideia que temos é que estes conjuntos de escritos açambar-

cavam diversos ramos do saber, desde Arte até Ciências e História.

Na dinastia Han (séculos -3 +3), temos o conhecimento de que obras

abrangentes (que teriam inspirado, séculos depois, as enciclopédias

ocidentais) já eram produzidas, com o fi m de instituir os elementos

candidatos à burocracia em todos os níveis de avaliação exigidos.

Figura 3.2: Confúcio (século -6 a -5). Ilustração de 1922.Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Confucius_-_Project_Gutenberg_eText_15250.jpg

Page 65: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

64

Confúcio, portanto, teria se valido deste arcabouço para

editar aqueles que seriam os livros tidos como clássicos na literatura

chinesa: o Shu Jing (Livro das Histórias), o Shi Jing (Livro dos

Cânticos), o I Jing (Livro das Mutações. No Brasil, esta obra também

existe com a grafi a I Ching), o Liji (Livro dos Rituais), o Chun Qiu

(os Anais das Primaveras e Outonos, acrescidos de comentários

posteriores denominados Zhuo Quan) e o Yue Jing (Livro da Música

– este, perdido). Destes, dois são objetivamente históricos: o Shu Jing

e o Chun Qiu. O Shi Jing e o Liji dariam-nos ideias de como seriam

os hábitos e as práticas culturais e sociais do período Zhou (mas

que Confúcio transpõe igualmente para os períodos mais anteriores

da história chinesa); e por fi m, o I Jing, que seria um livro sobre as

formas primitivas de pensamento e de ciência chineses, bem como

de importante uso oracular e religioso.

Sua preocupação, porém, era arrumar o conhecimento

contido nos textos de acordo com sua pregação moral, embora ele

próprio tivesse difi culdades para garantir a veracidade das fontes.

Este problema não parecia ser sua preocupação mais importante:

os exemplos dados pelos grandes personagens históricos é que

bastavam por si sós para ilustrar as ideias por ele defendidas:

“Quem, ao repassar o velho, descobre o novo é apto para ser mestre”

(Lunyu ou “Diálogos”, cap. 2). E não é impossível, por conseguinte,

que mesmo Confúcio acreditasse nestas versões com fé, tendo em

vista sua veneração pelo passado: “Eu transmito, não invento nada.

Confi o no passado e o amo” (Lunyu, cap. 7).

Mas seu trabalho é um divisor de águas no desenvolvimento

da história chinesa: é ele quem constrói a primeira grande versão

da história antiga que envolve as dinastias, os personagens míticos

e a realidade de sua época. Outros escritos do gênero – como os

Anais de Bambu, descobertos recentemente – indicam que há uma

grande probabilidade de Confúcio ter condensado, pela primeira

vez, uma única versão histórica abrangente, utilizando-se, para

isso, de versões do Shu Jing, que tal como os outros livros existiam

anteriormente ao seu período de vida.

Page 66: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

65

O poder desta realização faz-se sentir na própria existência

das outras escolas de pensamento que foram contemporâneas ou

posteriores ao mestre: apesar de cada uma delas ter legado seus

escritos, nenhuma produziu um texto histórico ou uma versão do

Shu Jing que tenha sobrevivido. Parece-nos que era mais fácil as

mesmas se utilizarem da versão confucionista para tecer seus próprios

comentários e críticas.

Obviamente, as obras de Confúcio foram alteradas em

períodos posteriores por diversos autores, muitos deles seguidores de

sua escola. Na época da dinastia Qin (século -3, e que analisaremos

nas próximas aulas), quando ocorreu a primeira grande queima de

livros de que se tem notícia, as obras do pensamento confucionista

foram perseguidas e destruídas em grande número, o que fez com

que houvesse uma disparidade patente entre as versões sobreviventes

que foram redigidas durante a época da dinastia Han (século

-3 a +3), que substituiu os Qin e promoveu o resgate dos livros

confucionistas.

Por conta disso, o trabalho realizado por Sima Qian (séculos

-2 a -1), o Shi Ji, ou Recordações Históricas, situa-o como o primeiro

grande historiador de fato, não só da dinastia Han como de toda

a China antiga e posterior. Quanto aos trabalhos de Confúcio, as

versões de que dispomos de seus livros datam também dessa época,

após uma campanha, promovida pela dinastia Han, para recuperá-

los e reeditá-los, sendo apenas o Yue Jing (Livro da Música) o único

defi nitivamente perdido.

No vácuo deixado pelo trabalho de Confúcio, várias outras

obras históricas foram produzidas, mas em geral eram fragmentárias

e pouco abrangentes. O caos vivido pela época dos Estados

combatentes (período de crise na China, entre -441 a -221, no qual

uma guerra civil acabou favorecendo um novo tipo de unifi cação

política no país e que veremos nas próximas aulas) legou uma grande

quantidade de anais de cunho local, restritos à existência breve e

conturbada de efêmeros reinos, cuja sobrevivência era bastante

volátil. Foi com base nestas reminiscências que o pai de Sima Qian,

Page 67: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

66

Sima Tan, historiador da dinastia Han, iniciou, por conseguinte, a

redação de uma história da China que tivesse início nos tempos

mais antigos e que culminasse com a glória da dinastia Han, em

todo seu poder e força. Sima Tan morreu, porém, antes de concluir

seu trabalho: coube ao seu fi lho, Sima Qian, continuá-lo, o que fez

de forma brilhante.

Inicialmente, Sima Qian encarregou-se de verifi car a veracidade

das informações contidas nos registros históricos, inclusive nos escritos

da escola de Confúcio. Utilizando o apoio e os recursos fi nanciados

pela burocracia imperial, coletou informações em diversas regiões do

Império, que depois ele iria cruzar e avaliar. Partindo desta premissa,

não se limitou a fazer versões que conjugassem os dados obtidos, mas

tentou analisar, dentro de uma perspectiva crítica, qual das versões

existentes parecia ser a mais razoável. Comparou o resultado destas

observações com as tabelas astronômicas que continham os registros

de eclipses e posições astrológicas, verifi cando a autenticidade da

datação dos acontecimentos. E ainda, sendo meticuloso ao extremo e

sincero no seu trabalho, criticou tanto os personagens de sua história

quanto sua própria incapacidade, por vezes, de detalhar melhor a

biografi a das pessoas e acontecimentos.

O resultado disso era sua afi rmação de que sua obra não

poderia assegurar a validade dos acontecimentos até o ano de -841,

quando, então, as fontes estariam por demais obscuras. Hoje, está

comprovado, por uma série de análises arqueológicas e textuais,

que as datas apresentadas no Shi Ji, de Sima Qian, estão corretas,

realmente, até onde seu autor podia assegurar (GERNET, 1969).

Page 68: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

67

Figura 3.3: Manuscrito da primeira página do Shi Ji, obra de Sima Qian escrita de -109 a -91, ou seja, cerca de 20 anos, sendo o primeiro texto a sistematizar a história chinesa.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Shiji.jp

Supõe-se que o trabalho deste autor tenha ainda sofrido a

infl uência do confucionismo cosmológico de Dong Zhongshu,

fortemente calcado nas teorias da Escola Wu Xing ou Escola das

Cinco Energias. Esta corrente do pensamento chinês, que seria depois

uma das bases da ciência tradicional, defendia um sistema no qual

os ciclos de reprodução e destruição mútua dos cinco elementos (ou

identidades) básicos da natureza representavam a manifestação

da ordem cósmica e reproduziam-se em todas as instâncias da

existência. Sima Qian teria se utilizado, provavelmente, destas

concepções para modifi car ou interpretar certos acontecimentos

históricos, o que surpreendentemente não altera de fato seus

conteúdos, mas sim suas análises em certos pontos.

Dong Zhongshu(-179 a -104)

Principal pensador confucionista do

período Han, Dong acreditava que o ser humano poderia ser entendido por meio

de leis naturais e físicas, como a Teoria dos Cinco Elementos.

Assim, homens com um temperamento

muito “fogoso” davam bons guerreiros,

gente calma e com os “pés na terra” dava

bons pensadores etc. Baseando-se, pois, nesses elementos,

Dong acreditava que poderia compreender o curso da sociedade

chinesa e criar um regime ideal.

Page 69: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

68

Um destacado seguidor da linha de Sima Qian foi Ban Gu

(século +1), que foi o redator do Han Shu ou "Anais de Han". Mais

conciso e menos crítico, Ban Gu limitou-se a fazer somente uma

história de sua dinastia, até o período da grande divisão (anos +9

a +22), em que ele praticamente completa o trabalho do Shi Ji,

fi nalizando a longa cronologia estabelecida pelo seu predecessor.

A partir desta época, o modo de se fazer história ganhará uma

certa uniformidade.

Dessa forma, analisemos a seguir as fontes utilizadas na

construção e no estudo desta Antiguidade chinesa e os períodos

históricos elaborados pelos mesmos.

Documentação chinesa

Uma pesquisa sobre a China antiga não será efetiva se não

utilizarmos uma gama variada de fontes, datadas basicamente a

partir da época de Confúcio, como foi visto. Uma extensa coleção de

livros era a base, já na época Han, para o estudo e a compreensão

da cultura e do passado da China. No mesmo período, já havia

também uma certa preocupação em se determinar a época, o estilo

e as formas de alguns objetos artísticos, culminando com a criação

de pequenos museus e antiquários particulares onde especialistas

trabalhavam, tal como os bibliotecários, para determinar as

condições históricas de peças arqueológicas. Muito provavelmente

seus métodos eram os mesmos do Shi Ji: recolher, comparar e

analisar. Mas tal contribuição no campo da análise material não foi

de grande valia, ao que se saiba, para os antigos chineses, servindo

com interesse, realmente, à arqueologia moderna.

Voltando às nossas fontes literárias, os chineses elaboraram

classificações diversas das obras que julgavam ser as mais

importantes para o estudo de sua própria história e cultura, e no

século -1 já se havia estabelecido uma categorização para classifi car

os textos. Um sábio do qual sabemos pouco, conhecido como Cai

Yong (+133 a +192), fi xou depois o conteúdo dos seis clássicos

Page 70: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

69

(hoje, somente cinco: como comentamos anteriormente, o clássico

da música, o Yue Jing, foi defi nitivamente o período da queima de

livros promovida pela dinastia Qin), que seriam a base de estudo

da cultura, como proposto por Confúcio: o Shu Jing, o Shi Jing, o I

Jing, o Liji e o Chun Qiu. Na divisão estabelecida durante a dinastia

Han, além destes tratados, tidos como básicos, as categorias que se

seguiam eram: os textos históricos (o Shi Ji e o Han Shu) e os livros

das escolas de pensamento, subdivididos em: Escola de Confúcio

(Lunyu, ou "Diálogos", Daxue ou "Grande Ensinamento", Zhongyong

ou "Doutrina do Meio" e o livro Mengzi ou "Mêncio", recebendo

depois a adição do Xiao Jing ou "Clássico da Fraternidade", e o

livro Xun zi); Escola do Tao (Dao de Jing ou "Livro do Caminho e

da Virtude", de Lao zi, o livro de Lie zi, o livro de Zhuang Zi e,

ainda, um tratado intitulado Huainazi); Escola Legista (o livro de

Shang Yang e a coleção de Han Fei zi); Escola Moísta (o livro de

Mozi); e por fi m, uma parte em aberto onde eram agrupados os

diversos tratados de outras escolas e de vários gêneros tidos como

não clássicos, mas importantes. Não se preocupe agora com tantos

nomes de autores e de obras que, talvez, você desconheça! Nas

próximas aulas, veremos mais sobre estes autores e suas propostas.

Page 71: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

70

Figura 3.4: Imagem do livro Han ou Han shu.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Ming_Dynasty_wood_carving_books_in_Tian_Yi_Chamber_colllection.JPG. Autor: Gisling.

Jing, shu ou ji? Qual dessas palavras signifi ca “livro”

em chinês? Todas, mas com um sentido diferente.

Jing signifi ca um livro especial, que poderíamos

traduzir também como “tratado”, ou “clássico”. Já shu

designa livros em geral e documentos. Por fi m, ji designa

livros sobre o passado, algo como “memórias” ou

“recordações”.

Por isso mesmo, essa classifi cação arbitrária não impedia que

vários outros livros existentes fossem lidos e trabalhados amplamente.

É o caso do Nei Jing ou "Livro Interno", um tratado de Medicina e

ciência antiga, utilizado pela escola de pensamento do yin-yang

e pela Escola Wu Xing; havia também o famoso Sun Zi Bing Fa

ou "A Lei da Guerra", de Sun Zi, datado da época dos Estados

combatentes; o Zushun Jiniam (o citado “Anais de Bambu”) e o

Yantienlun ou "Diálogos do sal e do ferro", texto da época Han sobre

questões econômicas; somam-se o trabalho de Wang Fu (Qianfulun

Page 72: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

71

– uma coleta de textos críticos ao regime e à sociedade da época),

de Wang Chong (Luheng, um longo texto de refl exões críticas sobre

a Filosofi a e a Ciência), entre vários outros, o que demonstra, por

fi m, como eram variadas as fontes nas quais os chineses podiam

beber para construir sua própria história.

Figura 3.5: Página do Shu Jing, século +18. Reparem que os chineses antigos escreviam de cima para baixo e da direita para a esquerda, sendo a página da direita a primeira página com o título do capítulo.Fonte: http://history.cultural-china.com/en/173History596.html.

Assim, esta concisa apresentação tem apenas por objetivo

mostrar o que os próprios chineses consideravam como básico

para se ler: o que não quer dizer que lessem somente isso, mas

o que não quer dizer também que todos conseguissem ler, ao

menos, uma parte destes conteúdos, o que nos faz concluir que, na

China, a produção da história e da cultura estava (como em várias

outras partes do mundo) fortemente vinculada à elite. A partir da

época Han, teremos ainda uma fi xação mais defi nitiva dos textos

antigos, que sofrerão alterações ocasionais, mantendo, no entanto,

uma forma razoavelmente estável até as versões atuais. E, com os

Page 73: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

72

elementos arqueológicos, vamos construindo os modelos de que

dispomos – pois esta é uma das ciências que mais tem contribuído

para o conhecimento da China antiga.

A arqueologia tem resgatado do fundo da terra as imagens de

uma civilização rica, desenvolvida e poderosa desde a Antiguidade.

Já no início do século +20, descobriam carapaças de tartaruga com

inscrições antiquíssimas – origem remota da escrita chinesa, que lhe

deu base e a sustenta como a escrita em vigência mais antiga do

mundo; ao mesmo tempo, expedições pela Ásia Central revelavam

os incríveis depósitos de textos antigos de Dunhuang, bibliotecas

até hoje a serem traduzidas em sua completude, dada a quantidade

magnífi ca de achados; e na década de 1950, as tumbas Shang de

Anyang revelam o mundo dos bronzes antigos, confi rmando listagens

antigas de nobres e reis da Antiguidade, alçando a cronologia

chinesa a uma época cada vez mais distante.

Figura 3.6: Tumba dos guerreiros de terracota do imperador Qinshi Huangdi. Construída no século -3 para abrigar o imperador que reunifi cou a China e a transformou num novo Estado imperial, ela foi descoberta somente em 1974, e estima-se que apenas um décimo de todo o seu conteúdo tenha sido desenterrado e revelado ao público.Fonte: http://history.cultural-china.com/en/53History190.html.

Page 74: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

73

No seguir das décadas de 1960 e 1970, temos as descobertas

de tumbas antigas da época Zhou e Qin, incluindo aí a famosa tumba

do marquês de Yi, um nobre do século -9, e o colossal mausoléu

dos guerreiros de terracota do soberano Qinshi Huangdi, do século

-3. Enfi m, a arqueologia chinesa tem promovido a descoberta de

evidências, materiais e obras de arte que falam por si próprios perante

os documentos, mas que muitas das vezes os complementam e os

revelam. Sima Qian terá sua cronologia comprovada; a tumba de

Qinshi Huangdi demonstra também que seu relato sobre a magnífi ca

cripta não era exagerado. As documentações chinesas exigem

uma grande habilidade para serem trabalhadas, manipuladas e

analisadas, mostrando a complexidade e profundidade desta cultura

(THORP, 1998).

A construção da história chinesa foi considerada

tão bem-feita pelos intelectuais iluministas europeus

do século +18 que acabou gerando a controversa

“Querela das cronologias”. A discussão criou-se

em torno do seguinte tema: o método histórico,

considerado válido e racional pelos estudiosos

da época, entendia que o documento era a peça

fundamental de validade do discurso histórico. Ora,

também se acreditava que os documentos disponíveis

podiam traçar seguramente a cronologia do mundo,

de modo correto, até a época de Adão e Eva.

No entanto, descobriu-se, graças aos missionários

jesuítas que estavam na China, que a história chinesa

remontava seus primeiros soberanos a um período

anterior à criação do mundo judaico-cristão – e havia

documentos que comprovavam isso! Para complicar,

esses soberanos chineses teriam tido um período de

Page 75: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

74

vida absolutamente normal, diferente dos patriarcas

bíblicos. Esta descoberta colocou em xeque o método

de pesquisa dos iluministas; ou eles afi rmavam o valor

do documento e negavam assim o criacionismo, ou

afi rmavam o segundo em detrimento do primeiro. Apesar

dos protestos de Voltaire e de outros autores, a solução

conciliatória para a questão foi a pior possível; afi rmou-

se, deliberadamente, que antes da data de -841, como

apontava Sima Qian, todo o resto da história chinesa

era lenda, falsifi cação e mitologia, tendo sido criada da

mente de Confúcio e dos autores posteriores...

Cronologia tradicional

Os antigos chineses foram, talvez, o único povo do mundo a

não ter um mito universal de criação. Se o tiveram, era tão pouco

importante que não fi zeram nenhuma menção à sua existência.

Somente na época dos Han é que um mito deste gênero virá fazer

parte do folclore chinês, sendo importado, provavelmente, das áreas

que haviam sido recentemente conquistadas no sul do território, e,

ainda assim, seria deslocado da mitologia tradicional, não sendo

comentado pelos grandes historiadores da época.

A história tradicional chinesa já começa nos seres humanos.

Os tempos antigos, primitivos, reminiscências prováveis dos períodos

proto-históricos, são aqueles nos quais os chineses recebem os

enviados do céu para aprenderem o que precisam para viver. Esta,

com certeza, era uma projeção que os “historiadores” pouco anteriores

a Confúcio já realizavam sobre o seu próprio passado, humanizando

os elementos primitivos e lendários que existiriam em suas antigas

cronologias, como a da obra Shu Jing. Este período antigo dividir-se-

ia entre a época dos três patriarcas e a época dos Cinco Soberanos,

que antecederiam a primeira dinastia da China, os Xia.

Page 76: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

75

O período dos três patriarcas é uma construção resultante

de fragmentos de documentações diversas e de reproduções

iconográfi cas tardias. Constituir-se-ia no momento em que, nos

primórdios da humanidade chinesa, um sábio de nome Fuxi teria

surgido na Terra para ensinar os seres humanos a caçar, pescar,

fazer o calendário, estruturar as instituições sociais e de governo.

Teria também deduzido e ensinado os "guas" ou trigramas, utilizados

posteriormente no I Jing, através da observação da natureza.

O que são os “guas”?

O “gua” ou trigrama é uma representação de um

conjunto de três linhas, formadas por uma linha

contínua (-----), que representa o elemento yang,

o ativo, positivo, macho, quente, para cima, seco

etc.) e uma linha interrompida (-- --), que representa o

elemento yin, o passivo, negativo, feminino, frio, para

baixo, úmido etc.). Segundo as lendas, Fuxi estava

meditando sobre questões relativas ao sistema yin-

yang quando viu uma tartaruga saindo do rio. Em seu

casco, estariam desenhados esses conjuntos de três

linhas que seriam chamados de “guas”, formando um

conjunto de oito trigramas. Fuxi teria contemplado

ali a ordem do universo, compreendendo como yin e

yang estavam ordenados no espaço e quais seriam

suas primeiras manifestações na natureza. Foi assim

que ele teria concebido, por exemplo, que o “céu”,

representado por três linhas contínuas, seria totalmente

yang e, por isso, estaria na parte de cima dos “guas”,

representando tanto a direção norte como a esfera

celeste, enquanto que a “terra”, composta por três

linhas interrompidas, seria totalmente yin e fi caria na

parte de baixo, representando o sul, a terra em que

Page 77: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

76

pisamos e os subterrâneos. As variações dessas linhas

seriam o fogo, a montanha, o trovão etc., como vemos

na representação a seguir:

Figura 3.7: Os "guas" e sua organização por traços.Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Trigramas.png.

Figura 3.8: O “bagua” (sequência original dos “oito trigramas”), segundo concebido por Fuxi.Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Ba_Gua_pr%C3%A9N.png.

A primeira referência a esta fi gura lendária aparece nos

comentários de Confúcio no livro I Jing. Com Fuxi teria vindo sua

irmã (ou esposa) Nu Gua, que teria sido a inventora do ferro e da

administração, e, por fi m, Shen Nung, inventor da Medicina e da

agricultura, o que o inseriu, posteriormente, no panteão dos deuses

populares.

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Aula 3 – A construção da história chinesa

77

Figura 3.9: Neste afresco datado de +147, da dinastia Han, Fuxi e Nu Gua aparecem representados na parte de baixo, com corpos humanos e caudas de cobra no lugar das pernas. Não se sabe se esta é uma representação mitológica ou apenas uma licença artística do autor.Fonte: http://www.britannica.com/EBchecked/media/37726/Scenes-from-the-tomb-of-the-Wu-family-in-Shandong.

Estes três enviados (Fuxi, sua irmã ou esposa Nu Gua e Shen

Nung) são substituídos pelos Cinco Soberanos, dentre os quais se

destaca o primeiro, Huang Di, o Imperador Amarelo, Zhuanxu,

Ku, Yao e Shun. O mesmo Shun entregou o poder nas mãos de

Da Yu (o Grande Yu) para que este resolvesse o problema das

inundações chinesas – tal como o Noé ocidental, mas que, em

vez de construir uma arca, fez barragens, diques e canais, o que

torna totalmente humana a questão do “dilúvio” chinês – e que

seria o fundador, depois, da dinastia Xia. Huang Di teria sido um

imperador místico, patrono da Medicina, da magia, das armas e

do poder. Os outros governantes, tal como Yao e Shun, porém, já

haviam ganhado um ar muito mais humano, e a própria narrativa

Page 79: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

78

do Shu Jing reforça isso. A obra Shi Ji também não deu muita

importância à veracidade da mitologia que envolvia Huang Di,

tratando-o mais como um modelo.

Existia, porém, na época Han, uma discordância em torno

desta cronologia inicial. A primeira linha, tida como ortodoxa, de

forte infl uência confucionista, tendia a só aceitar os personagens

indicados nas obras de Confúcio, o que praticamente reduzia a

história à presença de Fuxi, Shen-Nung, Huang Di, Yao e Shun

como os primeiros governantes antes de Yu. A minimização dos

outros soberanos e a não inclusão de Nu Gua nesta linha não

eram preocupações destes estudiosos mais interessados nos

aspectos simbólicos e fi losófi cos das narrativas. Uma segunda

linha, originada na obra de Sima Qian, entrevia com clareza a

existência dos Cinco Soberanos e aceitava a complementação dos

três primeiros patriarcas, somando um número de oito personagens

fundamentais. A atitude deste autor de incluir no Shi Ji uma visão

completa destes sábios governantes parecia corresponder à crença

na Escola Wu Xing e nos ciclos dos cinco elementos, que somados

aos três patriarcas (o que formava a base do “gua”, um trigrama)

completavam o número de oito, tais como os oito "guas" do "Ba

Gua" (GRANET, 1979, p. 92-155).

Controvérsias à parte, a não ortodoxia do Shi Ji terminou por

prevalecer, valendo sua versão. Não devemos esquecer, porém, que

estes personagens não eram invenção de Sima Qian, já existindo

em outros compêndios históricos.

Após os Cinco Soberanos, a realeza Xia teria sido a primeira

a receber o Mandato do Céu (Ming Tien), uma investidura gerada

pelo Céu para que os sábios administrassem o homem e a terra. A

palavra Wang (rei), composta de três traços horizontais e um vertical

( ), que os corta, corresponde diretamente a esta concepção: que o

soberano é alguém encarregado de unir o céu, a terra e o homem.

O mandato extinguir-se-ia quando uma dinastia perdesse suas

virtudes (“De” = virtude), o que correspondia a um movimento cíclico,

reprodução direta da ordem cósmica e da natureza, inexoravelmente

Page 80: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

79

ligado aos processos de decadência e renascimento do universo. Tais

concepções, no entanto, são tidas atualmente como uma transposição

da cultura Zhou ao passado, e uma versão histórica mais atual e

palpável entende que o objetivo desta proposta ideológica era

fomentar a ideia de uma Antiguidade perfeita e harmoniosa,

justifi cadora do poder desta dinastia. Aliás, esta, de fato, é que

inaugura a prática do mandato como ritual político.

Durante a dinastia Zhou (séculos -12 a -3),

desenvolveu-se a crença no Céu (Tian) como

uma espécie de entidade ecológica que

governaria o cosmo por meio das leis (estações,

dias, números etc.). Céu não deve ser entendido

como uma fi gura pessoal, tal como Deus, mas

um conceito mais amplo, como o de “Natureza”.

Confúcio julgava, porém, que esta natureza era

inteligente e que o comando do mundo era concedido

aos homens que possuiam as características

necessárias para manter a harmonia entre os seres

humanos e esta natureza. Este mandato celeste,

porém, poderia ser perdido se o responsável não

efetuasse o necessário para estabelecer e manter este

equilíbrio.

D

A dinastia dos Xia teria sido, portanto, a primeira de uma

longa série na história da China, mas suas datações ainda são

incertas. Eles foram substituídos, em sua fase de decadência, pelos

Shang (Yin), que permaneceram no poder entre os séculos -20 a

-15 (ou, numa visão mais moderna, -18 a -13). Com uma cultura

tecnicamente avançada, os Shang aparecem na história chinesa

como os grandes empreendedores do politeísmo antropomórfi co

Page 81: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

80

e dos holocaustos humanos, dos carros de guerra, das técnicas

refi nadas do bronze e de uma escrita que aparece fartamente

representada nos ossos e carapaças oraculares de tartaruga.

Uma sucessão de confrontos políticos, intrigas e guerras

culminam com a decadência dos mesmos, o que permitiu a ascensão

dos Zhou ao poder em torno do século -12. Estes fundam um novo

sistema político, baseado na divisão feudal da terra, em que um

grupo de nobres trocava seu apoio à casa de Zhou por propriedades

e bens. Uma nova fase de expansão do território, inaugurada pelo

início bem-sucedido desta política, colocou os Zhou em contato com

os “bárbaros” do Norte (que já ameaçavam os Shang), lançando-os

num processo interminável de guerras que – num período posterior

– forçaram, inclusive, a transferência da capital, sob ameaça de

invasão nômade.

Assim, o sistema feudal chinês terminou por implodir na

disputa pelo poder político e pelos territórios. O período que

vai até próximo do século -6 seria conhecido como Primaveras

e Outonos, contidos nos anais do mesmo nome (Primaveras e

Outonos ou Chunqiu, escritos por Confúcio, como vimos na seção

“Documentação chinesa”). Neste momento, diversos confl itos e

violações das fronteiras entre os reinos e os pequenos Estados

que formavam o “império” Zhou forçaram os chineses a rever suas

posições diante do mundo e da sociedade.

Esse momento acabou por se ver engolido pelos aconteci-

mentos políticos da época, que numa crescente escalada de violência

culminaram com o período dos Estados combatentes (datado

tradicionalmente entre -481 a -221), quando se formaram os sete

principais Estados que lutariam pelo poder até a vitória de Qin,

em -221, resultando na unifi cação de todo o Império em um novo

sistema de governo centralizado.

Page 82: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

81

Figura 3.10: O mapa dos Estados combatentes no século -3. Em breve, o Estado de Qin iria unifi car novamente toda a China num único reino.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:EN-WarringStatesAll260BCE.jpg.

Infl uenciado pelos legistas, o primeiro autoproclamado impe-

rador Qin, Qinshi Huangdi, estabeleceu sua dinastia sob novas bases,

concentrando o poder em suas mãos e criando uma administração forte

e efi ciente, que regulava a vida social e econômica da população.

Foi um período de grande desenvolvimento técnico, mas também de

perseguição intelectual e política, quando ocorreu, inclusive, a grande

queima de livros, tidos como ortodoxos e retrógrados.

Mas seu reinado foi efêmero, tal como sua dinastia: apesar das

grandes realizações, como o início da construção da Grande Muralha

para a proteção contra as tribos do Norte ou mesmo da unifi cação

da escrita, Qin Shi Huang Di não era benquisto e, após sua morte

em -210, nenhum de seus sucessores conseguiu se manter.

Page 83: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

82

Figura 3.11: A muralha da China: a arquitetura militar da China imperial começou a ser construída em -221, quando Qinshi Huang Di estava no poder. Sua construção durou cerca de dois milênios e hoje é uma grande atração turística, apesar de, no passado, ter tido uma função de defesa de território.Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Great_Wall_of_China_July_2006.JPG.

Depois de quatro anos de lutas, um ex-camponês e pequeno

funcionário de nome Liu Bang fundou aquela que seria realmente a

primeira grande dinastia chinesa: os Han.

O período Han foi próspero para a China antiga, desenvolvendo

o comércio, as relações internacionais, expandido as fronteiras e

fazendo uma administração mais justa e menos asfi xiante que

os Qin. Nesta época, adota-se o confucionismo como doutrina

ofi cial de governo, apesar de algumas estruturas anteriores serem

mantidas. Após um interregno, ocasionado por um golpe articulado

por opositores do regime interessados na restauração dos antigos

costumes (o governo de Wang Mang, nos anos de +9 a +22), a

dinastia Han restabeleceu-se e conseguiu governar novamente até

o século +3, quando se desestruturou por completo, dando margem

a uma nova época de fragmentação. No entanto, as bases para a

estrutura imperial já haviam sido lançadas e, depois dos Han, as

outras grandes dinastias teriam o trabalho de recuperá-las.

Page 84: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

83

Historiografi a moderna

Na Europa, os estudos sobre a China foram bastante imprecisos

até o início da Era Moderna. Antes disso, versões históricas como

a de Marco Polo, atualmente bastante discutíveis, eram utilizadas e

aceitas como adequadas.

A virada nessas concepções veio com o impacto das navegações

mundiais, realizadas no século +16. Ao se depararem com uma

realidade bem diferente daquela concebida pelos seus antecessores

medievos, portugueses e espanhóis tiveram de por mãos à obra e

iniciaram uma pesquisa maior sobre as civilizações do Oriente, ainda

que sob o seu prisma colonialista e essencialmente cristão. A iniciativa

lusa, em especial, rendeu frutos, já que os missionários por eles levados

para as colônias orientais foram, por muito tempo, a fonte principal

de informações que toda a Europa recebia. Com grande sucesso, os

mesmos conseguiram se instalar nas cortes chinesas, possuindo uma

signifi cativa infl uência na assessoria aos assuntos estrangeiros até o

século +18.

Neste mesmo período, porém, vemos que o interesse econômico

e político de Inglaterra, França e Holanda haviam aumentado

signifi cativamente em relação ao Oriente e que o declínio do poder

ibero abriu as portas dessas civilizações a novos contatos.

Este processo foi acompanhado pela evolução da cultura e do

pensamento ocidentais. Toda uma geração de pensadores franceses,

alemães e ingleses buscou avidamente identifi car e analisar as formas

de fi losofi a e história vindas da China e da Índia. O fascínio despertado

pelas teorias confucionistas, por exemplo, pôs variadas vezes na

berlinda as realizações do proselitismo cristão. Mas este foi um período

de intensas trocas de informações e conhecimentos entre ambas as

partes do mundo, sem que houvesse (vale ressaltar) uma predominância

ocidental nesta via, como muitas vezes a história moderna tenta passar.

As abordagens mais sérias sobre a China só começaram, no

entanto, a partir do século +19. Isso se deve a alguns fatores bem

defi nidos: o Império chinês, até então, era bastante fechado à presença

Page 85: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

84

de estrangeiros, com exceção dos portugueses, restritos a Macau. Estes

períodos de xenofobia são cíclicos na história chinesa, devido às

ameaças de invasão do território: os chineses já haviam vivido sob

o domínio de uma dinastia estrangeira (os Yuan, +1280 a +1368) e,

nessa época, além da presença ocidental, viviam sob o jugo de outra

dinastia estrangeira, os Qing (+1644 a +1911, de origem manchu).

Os traumas decorrentes destes períodos complicados, somados à

incapacidade (e má vontade) dos estrangeiros de compreender a

cultura chinesa, geraram, por conseguinte, uma série de preconceitos

e enganos. Foi preciso uma evolução dos métodos historiográfi cos e

sociológicos para que as relações culturais pudessem se fl exibilizar

e distender-se entre europeus e chineses. O momento inicial desta

mudança foi, justamente, o conturbado fi nal do século +19.

Macau

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Macau_Location.svg.

Macau é uma região administrativa especial

(apenas Macau e Hong Kong cumprem essa função)

da República Popular da China. Foi colonizada por

Portugal por mais de 400 anos e foi a última colônia

europeia na China. A colonização portuguesa começou

no século +16 e, por conta dessa colonização, tornou-

se um campo mediador entre a China, a Europa e o

Japão, e só em dezembro de 1999 Macau conseguiu

sua integração à soberania chinesa.

M

Page 86: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

85

Guie-se pelas dinastias chinesas!

São mais de dois mil anos de História, por isso

não é fácil guardar tantas datas. Veja um quadro

das dinastias chinesas:

• Dinastia Xia (-2205 a -1766? - 1523?).

• Dinastia Shang (-1523 a -1027).

• Dinastia Zhou anterior (-1027 a -771).

• Dinastia Zhou posterior (-771 a -221).

• Primaveras e Outonos (-771 a -481).

• Estados guerreiros (-481 a -221).

• Dinastia Qin (-221 a -206).

• Dinastia Han ocidental (-206 a +12).

• Dinastia Xin (+12 a +23).

• Dinastia Han oriental (+23 a +221).

• Período dos três reinos e dinastias do Sul e do Norte

(+219 a +580).

• Dinastia Sui (+581 a +618).

• Dinastia Tang (+618 a +907).

• Cinco dinastias (+907 a + 960).

• Dinastia Song (+960 a +1279).

• Dinastia Yuan (+1280 a +1368).

• Dinastia Ming (+1368 a +1644).

• Dinastia Qing (+1644 a +1911).

• República da China (+1911 a +1949).

• República Popular da China (+1949 em diante).

Podemos adicionar a estes problemas o fato de a China ter

uma história milenar e complexa, e somente por caminhos tortuosos

e fatigantes o monólito desta estrutura começou a ser dissecado,

analisado, investigado e valorizado por suas características

singulares e impressionantes.

Page 87: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

86

Os primeiros historiadores modernos da China foram essen-

cialmente literatos, que no período dos séculos +19 a +20 iniciaram

o trabalho de tradução das obras clássicas e pesquisa dos “fatos”

históricos. Duas vertentes destacaram-se nesta época: a primeira,

que creditava legitimidade à cronologia clássica chinesa, devido à

sua aparente coerência; e a segunda, que tentou adaptar o modelo

clássico greco-romano para o contexto indo-chinês. Assim sendo,

a primeira corrente considerava a legitimidade dos conteúdos

culturais chineses, conquanto a segunda tentava delimitá-la como

uma manifestação aperfeiçoada da sociedade indiana.

Atualmente, História e Arqueologia tendem a comprovar a

originalidade cultural da China e, embora a cronologia tradicional

já não seja aceita sem as correções e análises posteriores, a segunda

vertente (indo-chinesa) verifi cou-se como sendo uma construção

totalmente irreal. No entanto, esta concepção arraigou-se fortemente

nos meios acadêmicos e no senso comum, o que nos gera, até hoje,

uma série de enganos na interpretação e na análise do Oriente,

tanto antigo quanto moderno.

Nesta fase dos estudos chineses (séculos +19 e +20), podemos

destacar importantes autores como Herbet Gilles, James Legge

(ambos ingleses) e Edouard Chavannes, da França. Este último é

considerado, em particular, o “pai” da moderna sinologia francesa,

por seus métodos amplos e abrangentes, que buscavam conjugar

Arqueologia, Literatura e História, realizando basicamente um

trabalho interdisciplinar.

Seu grande seguidor e um dos maiores especialistas em China

que o mundo já conheceu foi Marcel Granet, que nas primeiras

décadas do século +20 produziu livros diversos que, em muitos pontos,

continuam atuais até os dias de hoje. Não obstante ser um grande

sinólogo, Marcel Granet também foi um especialista em métodos

históricos e sociológicos, contribuindo na crítica e na reformulação

das técnicas de análise sobre as culturas.

As guerras trouxeram para a China, no entanto, uma séria

interrupção dos trabalhos históricos e arqueológicos. Em +1928,

Herbet Gilles(+1845 a +1935)Atuou como sinólogo e diplomata na China. Traduziu inúmeras obras da literatura clássica chinesa para o inglês.

James Legge(+1815 a +1897)Missionário protestante, tornou-se o primeiro grande tradutor das obras confucionistas para o inglês, lançando uma versão padronizada que é republicada até os dias de hoje.

Edouard Chavannes(+1895 a +1918)Sinólogo francês que organizou um vasto trabalho de ensino e tradução do chinês para o francês, sendo o primeiro tradutor abalizado da obra de Sima Qian.

Marcel Granet(+1884 a + 1940)Sinólogo e sociólogo, produziu uma grande quantidade de análises sobre a sociedade chinesa antiga e tradicional, que se tornariam clássicos dentro da sinologia. Em português, temos duas de suas obras traduzidas: A civilização chinesa e O pensamento chinês.

Page 88: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

87

por exemplo, foram descobertas grandes coleções de inscrições

Shang-Yin em carapaças de tartaruga, fomentando a revisão das

cronologias tradicionais em função da análise de genealogia dos

ideogramas. No entanto, na primeira década do século +20, a China

havia derrubado a Monarquia e instalado a República e, na década

de +1930, já estava sendo invadida pelo Japão. Logo, houve muito

pouco tempo para a realização destes trabalhos inovadores com

regularidade. Depois, com a Segunda Guerra, a revolução comunista

e outros processos tumultuosos, a China só veio a recuperar suas

pesquisas sobre a Antiguidade com maior efi ciência e constância

na década de +1960. Isso demonstra o quanto essa nova história

chinesa é recente. Para se ter ideia, o momento dourado da

arqueologia chinesa ocorre nos anos +1970, com a descoberta de

novos sítios Shang e Zhou (os primeiros haviam sido descobertos na

década de +1920 e depois, na de +1950) e do túmulo do imperador

Qin Shi Huang Di – até hoje em fase de escavação, tendo em vista

que as partes recuperadas provavelmente não correspondem nem

a 1/5 do monumento como um todo.

A partir dos anos +1950, a história da China começou,

então, a ser reavaliada em várias partes do mundo. Autores como

Chan Wing-tsit e Feng Youlan começaram a ser amplamente

valorizados por seus estudos no campo fi losófi co chinês. O trabalho

do sinólogo alemão Richard Wilhelm, da década de +1930, foi

recuperado e divulgado por suas considerações únicas em torno

da funcionalidade das ideias chinesas. O inglês Joseph Needham

(que já apresentamos na primeira aula) surge, depois desses anos

+1950, como o grande historiador das ciências chinesas.

Na China, a história esteve engajada no discurso marxista até

o início dos anos +1980, colocando o antigo pensamento chinês

como uma sobrevivência reacionária e conservadora. A arqueologia

trabalhou diretamente com métodos quantitativos, não dando muita

margem para considerações cognitivas e simbólicas. No entanto,

a partir desta época de distensão do sistema político, os chineses

começaram também a lidar com outras vertentes culturalistas,

Chan Wing-tsit(+1901 a +1994)

Erudito chinês que traduziu uma série de textos clássicos

chineses para o inglês, bem como escreveu

inúmeras obras sobre o pensamento chinês.

Trabalhou grande parte de sua vida no Havaí, onde montou um centro de estudos asiáticos que hoje é referência na área.

Feng Youlan(+1895 a +1990)

Filósofo chinês cuja atuação foi

fundamental para difundir o pensamento tradicional de seu país

no exterior. Escreveu uma História da

fi losofi a chinesa que se tornou um clássico, mas decidiu viver na

China, apesar de sofrer perseguições

por parte do regime comunista.

Page 89: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

88

e o resultado disso foi um resgate interessantíssimo das antigas

tradições, sob um novo olhar técnico e teórico. As tradições do

pensamento e da cultura têm sido valorizadas pelos seus aspectos

antropológicos e fi losófi cos, e a academia chinesa tem formulado

propostas metodológicas bastante criativas, inseridas num contexto

transculturalista que visa discutir todas as conceituações históricas

(essencialmente ocidentais) sob um novo prisma (embora uma parcela

signifi cativa destes mesmos autores nativos esteja se utilizando deste

expediente para reafi rmar uma suposta “superioridade cultural”

chinesa, acabando por cair em uma reminiscência xenófoba

e sinocentrista derivada, como podemos ver, da fusão entre as

sobrevivências culturais milenares com o revanchismo pelos tempos

coloniais e pela formulação de um novo nacionalismo chinês).

Podemos afi rmar, por conseguinte, que o estudo da China tem

sido abordado por vieses variados. A sinologia, enquanto “ciência

das coisas chinesas”, tem tentado se livrar de sua pesada carga

eurocentrista e colonialista para se tornar uma proposta abrangente

e mais completa de estudo sobre a civilização, englobando um

trabalho interdisciplinar na formação de especialistas. A história

cultural também tem dado espaço a uma ativa produção, bem

como a arqueologia chinesa tem se desenvolvido fortemente,

mas quase sempre nas mãos de pesquisadores nativos. O grande

desafi o hoje no estudo sobre a China tem sido, de fato, livrar-se

da incômoda bagagem dos tempos colonialistas (e racistas) que

tantas deformações trouxeram ao campo das Ciências Humanas,

como também esclarece o público sobre os estereótipos múltiplos

que se formaram em torno das culturas orientais, principalmente os

de caráter esotérico.

Page 90: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

89

CONCLUSÃO

Dando continuidade à nossa análise das visões modernas

sobre a história da China antiga, o que observamos hoje é um

consenso em torno de alguns aspectos que envolvem a cronologia

tradicional.

Em primeiro lugar, as fontes sobre as quais essa cronologia era

estruturada derivavam, essencialmente, da ortodoxia confucionista.

Assim sendo, podemos compreender que muitas das construções

propostas pela antiga história chinesa, principalmente em torno

das dinastias Xia e Shang-Yin, seriam, na verdade, superposições

da cultura Zhou sobre o passado. Isso fi ca evidente pelo trabalho

arqueológico que envolve a descoberta da cultura Shang.

Inicialmente, ainda são poucos os dados sobre a existência

de uma dinastia Xia. Mas, como afi rmamos, a arqueologia continua

se desenvolvendo: é possível, portanto, que num futuro próximo

seja identifi cado algum elemento que constitua uma prova defi nitiva

sobre o sistema monárquico antigo denominado Xia. Os momentos

iniciais dos Zhou também são um pouco obscuros: depois do

século -9 as datações melhoram, mas no caso das biografi as dos

personagens históricos, estas continuam um tanto confusas. Para

efeito comparativo, volte à tabela que colocamos nesta aula, que

apresenta a cronologia tradicional e a moderna.

*Nota: as datas registradas no período até -841 do Shi

Ji ainda são aceitas como corretas, sem grande contestação. A

variação de algumas aparece, somente, em relação às biografi as

de algumas fi guras importantes dos séculos -7 a -5.

Vimos que a cronologia tradicional coloca a cultura chinesa

como uma das mais antigas do mundo, junto com as da Índia e do

Médio Oriente. Tem-se feito um grande esforço, dentro da China,

para resgatar o valor das datações tradicionais, em função de uma

suposta Antiguidade longínqua que justifi casse a “ascendência”

cultural chinesa sobre as outras civilizações mundiais. Este trabalho,

Page 91: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

90

ideologicamente engajado, não tem conseguido grandes êxitos. Os

avanços arqueológicos têm sido signifi cativos, mas as tentativas

de sobrepor as descobertas materiais às datações antigas são

ocasionalmente falhas. A crítica que se faz a este trabalho é,

sobretudo, quanto ao seu discurso nacionalista, tal como tem

acontecido também com a história indiana. Mas, felizmente, essa

visão não é abrangente, e mesmo em seu país de origem ela é

contestada. No mais, devemos observar que algumas discordâncias

presentes na visão tradicional chinesa e na da arqueologia moderna

dão-se por conta dos conceitos que cada uma utiliza para defi nir

as fases históricas. A cronologia chinesa atém-se, por exemplo, a

marcos cronológicos e passagens dinásticas ou políticas, enquanto

a arqueologia utiliza outros recursos para efetuar suas datações. O

confl ito entre as duas derivas das recentes descobertas que estão

sendo feitas, como, por exemplo, de uma lista de reis Shang, feita

na época desta dinastia, que confi rma as datas apresentadas por

Sima Qian, conduz a arqueologia a comprovar, mais uma vez, a

proposta do texto...

Atividade Final

Atende aos Objetivos 1, 2 e 3

Análise de texto.

Sima Qian – Recordações Históricas

Busquei preservar e garantir a continuidade das antigas tradições imperiais para que elas

não fossem corrompidas ou perdidas. Sobre a carreira dos grandes reis, eu pesquisei

seus começos e examinei seus fi ns; eu vislumbrei seus tempos prósperos e observei seus

declínios. Em todos estes casos, eu os discuti e examinei, e o que fi z foi uma introdução

geral à história das três dinastias e aos anais de Qin e Han, vindo desde a época do

Imperador amarelo até os dias de hoje, que estão organizadas nos doze anais básicos.

Page 92: Extremo oriente da antiguidades

Aula 3 – A construção da história chinesa

91

Depois de tê-los posto em ordem e os completado, em função de algumas diferenças na

cronologia de alguns períodos, em que as datas não estão claras, eu as organizei nas

tabelas cronológicas. Sobre as mudanças nos ritos e na música, sobre a astronomia e o

calendário, sobre o poder militar, as montanhas e os rios, espíritos e deuses, a relação

entre o céu e a terra, as práticas econômicas e suas mudanças ao longo do tempo, eu

fi z os oito tratados. (...) Para aqueles que serviram com espírito moral aos seus senhores

e governantes, para estes eu fi z as trintas casas genealógicas. (...) para manter o nome

daqueles que legaram seu nome a posteridade do mundo, eu fi z as setenta biografi as. São

assim cento e trinta capítulos, 526.500 palavras, o livro da Grande História, compilado

em ordem para reparar as omissões e ampliar as seis disciplinas.* Este é o trabalho de

uma família, designado para completar as variadas interpretações dos seis clássicos e

pôr em ordem a grande miscelânea de ditos das cem escolas.

(...)

Este é o parecer do historiador: o governo da dinastia Xia foi marcado por bons augúrios,

mas com o tempo deteriorou-se e voltou a rusticidade e a decadência. Shang substituiu

Xia, e reformou seus defeitos por meio da virtude da piedade fi lial. Mas esta piedade

degenerou, e as pessoas dirigiram-se para o mundo das superstições e espíritos. Então

Zhou seguiu corretamente, corrigindo esta falta por meio dos rituais e da ordem. Mas

os ritos se deterioraram porque caíram nas mãos daqueles que os transformaram em um

simples espetáculo. Então, tornou-se necessário novamente acabar com este espetáculo,

reformar o mundo e buscar novamente um bom destino. Este foi o caminho das três

dinastias, e o ciclo dinástico é um caminho que começa, termina e continua sempre.

É óbvio então que no fi nal de Zhou e nos tempos iniciais de Qin os ritos estavam

deteriorados e a ordem corrompida. Mas o governo Qin falhou ao tentar corrigir estas

falhas, adicionando a elas leis e punições duríssimas. Este não foi um grave erro?

Por isso, quando os Han chegaram ao poder, buscando consertar as falhas de seus

predecessores, e trabalhando para corrigir o mundo e pô-lo em ordem, seus esforços

seguiram corretamente a ordem apropriada e determinada pelo Céu. Eles ordenaram

a corte em doze meses, coloriram as vestimentas e as carruagens de amarelo e o

restante o acompanhou.

Fonte: BUENO, A. Cem textos de história chinesa. Disponível em: http://chinologia.blogspot.com/2009/08/historia.html.

Page 93: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

92

Após a leitura desse documento, discuta quais os elementos que podemos nele identifi car,

mostrados ao longo da aula, sobre a questão da cronologia e do ofício do historiador na

China antiga.

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Resposta Comentada

Sima Qian propõe, aqui, como realizar o trabalho do historiador, organizar os temas, realizar o

trabalho de pesquisa e, por fi m, que em sua compreensão, a história chinesa tenha uma continuidade,

vinculada pelas sucessões dinásticas, como aparece na cronologia tradicional, baseadas na análise

dos cinco elementos, que estariam associados, cada um, a um período dinástico.

RESUMO

Nesta aula, discutimos sobre como foi construída a história

chinesa na Antiguidade e o olhar que os próprios chineses tinham

sobre si.

Informação sobre a próxima aula

Na próxima aula, você será apresentado às primeiras dinastias

chinesas: Xia, Shang e Zhou.

Page 94: Extremo oriente da antiguidades

André da Silva Bueno

Aula 4

d d l

As primeiras dinastias chinesas

Page 95: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

94

Meta da aula

Discutir os aspectos gerais das primeiras dinastias chinesas documentadas.

Objetivos

Esperamos que, ao fi nal desta aula, você seja capaz de:

1. reconhecer os elementos básicos da dinastia Xia;

2. identifi car os elementos básicos da dinastia Shang;

3. estabelecer um quadro geral da China antes do século -10.

Page 96: Extremo oriente da antiguidades

Aula 4 – As primeiras dinastias chinesas

95

INTRODUÇÃO

Estamos, ao longo dessas primeiras aulas, apresentando

um universo bastante diferenciado do nosso (que é de orientação

ocidental), e partimos sempre para um outro lado da moeda,

outra formação histórica, outra origem do mundo. Se estivéssemos

estudando a história do Ocidente, esta aula de hoje compreenderia

a Antiguidade Clássica, indo 2000 anos antes de Cristo e falaria

da formação da Mesopotâmia, das civilizações do Egito, dentre

outros acontecimentos. Mas no decorrer dessa nossa disciplina,

estamos com os pés fi ncados naquilo que, genericamente, rotula-se

como Oriente.

A história chinesa possui um hiato na passagem entre o seu

período pré-histórico e aquela que seria considerada a sua primeira

dinastia organizada, a dinastia Xia, cujas datas tradicionais

colocam-na entre -2205 a -1766. As culturas pré-históricas primitivas,

nas quais se destacam os sítios arqueológicos de Yangshao e de

Longshan, dão-nos alguns testemunhos do processo formativo da

civilização chinesa, mas as conexões com uma possível organização

política de caráter real ainda são incertas. Esses sítios são muito

próximos de onde teria ocorrido a dinastia Xia e as verossimilhanças

permitem-nos inferir que haja uma relação cultural entre as mesmas,

ou até um movimento de continuidade. Como afi rma Cotterell (1986):

Igualmente incertos são os antecedentes da cultura Yangshao,

que hoje é geralmente reconhecida como a gênese da cultura

chinesa por causa da influência permanente que a sua

agricultura autossufi ciente exerceu sobre as tribos que a partir

daí se consideraram o povo chinês. Fisicamente, os habitantes

das aldeias Yangshao são parecidos com os atuais chineses

das províncias do Sul, mas isso não deixa de fazer sentido

se nos lembrarmos como, durante a era imperial, a invasão

dos Nômades transformou a China do Norte num cadinho de

mistura de raças. Mas, mesmo a partir da era dos Zhou, em

Page 97: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

96

que se passou a dispor mais facilmente de fontes literárias, é

óbvio que o critério para defi nir quem pertencia ao mundo

chinês passava mais pela consciência duma herança cultural

comum do que pela afi nidade étnica. [...] Antes de se ter

esgotado o período de cultura Yangshao, surgiu outra cultura,

chamada Longshan, por ter sido descoberta em 1929, perto

de Longshan ou "Montanha do Dragão", na localidade de

Chengziyai, província de Shangdong. [...] Outras semelhanças

com os tempos posteriores eram, por exemplo, as técnicas de

adivinhação, as formas das peças de olaria e, o que não deixa

de ser interessante, uma série de tabuletas de oleiros que são

idênticas a caracteres descobertos em inscrições de oráculos

de Shang. Seja uma evolução da cultura Yangshao, seja

uma tradição oriental distinta com pontos de contacto que se

estendem para nordeste até a Sibéria oriental, a de Longshan

caracteriza-se essencialmente pela sua olaria avançada, uma

louça fi na, muito polida, cinzenta ou preta, que mostra sinais

de ter sido feita com roda. Esta cultura fl oresceu até ao princípio

da idade do bronze, pouco depois de 1800 a.C., e os seus

vestígios aparecem por baixo dos Shang, na província de

Henan, sede desta dinastia.

A China tem sido palco de importantes

revelações e descobertas arqueológicas nos

últimos tempos. Um dos primeiros seres humanos

da história, o Sinecantropus pequinensis (ou “homem

de Pequim”), tem forçado arqueólogos e antropólogos

a reverem suas hipóteses do surgimento da humanidade

na África. Além disso, as culturas pré-históricas de

Yangshao, Longshan, Erlitou e Majiayao apresentam

evidências de que a China desenvolveu-se desde

tempos remotos sem grandes contatos com o mundo

exterior, o que é um dos prováveis motivos de sua

originalidade cultural e de sua continuidade histórica.

Page 98: Extremo oriente da antiguidades

Aula 4 – As primeiras dinastias chinesas

97

Antes deste nosso primeiro momento nesta aula, você tinha

conhecimento ou ouvido falar alguma vez de Xia e Shang? No

caso de a resposta ser um “sim”, que ótimo! Você vai conhecer e

aprofundar ainda mais aspectos dessa história toda. Caso nunca

tenha ouvido falar nesses nomes antes, prepare-se para ir ao século

-20 e conhecer, com muito prazer, os bastidores das primeiras

dinastias chinesas!

A dinastia Xia

Figura 4.1: Mapa com a localização aproximada da dinastia Xia.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Xia_dynasty.svg

As considerações feitas pelos autores até a década de

1980, porém, não permitiam ainda confi rmar a existência dos Xia.

A descoberta de importantes vestígios arqueológicos só se deu

recentemente e poucos manuais tiveram oportunidade de reproduzir

estas novidades, que continuam em fase de estudo e análise.

Lam

assu

Des

ign

Page 99: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

98

Pouco ainda se sabe sobre eles e muito provavelmente

sua história está intimamente ligada à dos Shang (que veremos

a seguir, nesta aula), cuja sobrevivência política e documental

permite-nos defi nir melhor seu quadro de existência. As descobertas

arqueológicas apontam, no entanto, para a imensa riqueza técnica

e artística dos mesmos:

Na Idade do Bronze, que durou cerca de 2 mil anos na

China, a dinastia Xia é o período inicial no desenvolvimento

da tecnologia do bronze e que lançou sólidas bases para

a sua prosperidade. Os objetos de bronze da última fase

da dinastia, desenterrados na relíquia de Erlitou, podem ser

classifi cados em categorias de serviços de vinho, serviço de

cozinha, armas, instrumentos musicais, ferramentas e adornos

(CRI, 2011).

Figura 4.2: Vaso de bronze, atribuído à dinastia Xia. Perceba a estrutura de três pés, que será muito empregada durante a dinastia Shang, que veremos adiante.Fonte: http://www.fl ickr.com/photos/utishpenguin/1332397485/sizes/m/

Uta

uta

Page 100: Extremo oriente da antiguidades

Aula 4 – As primeiras dinastias chinesas

99

A exploração arqueológica da China ainda nos promete

surpresas, portanto. Tal como Troia, Xia está sendo gradualmente

desenterrada do chão e seus segredos devem aos poucos ser

revelados. Não serão poucas, porém, as difi culdades. Confúcio

tinha consciência de que seu resgate dos tempos antigos era

incompleto e possivelmente problemático – não foi o mestre, pois,

que reclamou da insufi ciência de textos, objetos e tradições das

dinastias antigas? Por isso ele questiona em sua obra Diálogos

(Lunyu, Capítulo 3):

Posso falar sobre o ritual Xia? Seu herdeiro, o país de Qi,

não preservou sufi cientes evidências. Posso falar sobre o ritual

Yin? Seu herdeiro, o país de Song, não preservou sufi cientes

evidências. Não existem registros sufi cientes e tampouco

homens sábios sufi cientes; caso contrário, eu poderia obter

evidências a partir deles.

Mesmo assim, fragmentos desta antiguidade garantem

subsídios mínimos para um estudo atual. Para os pensadores da

época de Confúcio, os Xia eram, de qualquer modo, a raiz da

civilização chinesa:

Foi a lição do nosso grande antepassado;

O povo devia ser tratado com carinho

E não olhado de cima;

O povo é a raiz de uma nação.

Se a raiz é fi rme, ela vive tranquila

(SHUJING, 2011).

Repare que, como toda formação histórica, esses dados

podem parecer frágeis, carentes de fontes mais seguras. Não

obstante, que história, demasiado antiga ou que se refi ra à extrema

antiguidade, não seria assim? Esse projeto de escavação das fontes

seria, por sua vez, a nossa única certeza de que toda a história está,

permanentemente, em aberto.

Page 101: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

100

Dinastia Shang

A civilização Shang, da qual falaremos a partir de agora,

é conhecida, também, como Idade do Bronze Chinês ou Época

da Realeza Palaciana. No entanto, ambos os termos são um tanto

quanto imprecisos. Nossa tendência é sempre de realizar uma

analogia entre os sistemas políticos e sociais da antiga China com

os nossos equivalentes ocidentais, mas tal consideração merece uma

avaliação cuidadosa.

Figura 4.3: Mapa com a localização da dinastia Shang.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Shang_dynasty.

Vejamos a denominação arqueológica: na época Shang, a

metalurgia do bronze desenvolveu-se tecnicamente de forma rápida

e avançada, ultrapassando em muito as conquistas do Ocidente.

No entanto, houve também um relativo domínio do ferro, que, no

entanto, conviveu muito tempo com o bronze sem substituí-lo. E,

Lam

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Page 102: Extremo oriente da antiguidades

Aula 4 – As primeiras dinastias chinesas

101

quando o ferro passa a ser utilizado mais amplamente, na época

dos Qin-Han, uma das etapas de transição (a do ferro martelado

para a do ferro fundido) parece não ter existido, conquanto as

técnicas do bronze possam ter sido utilizadas como substitutas

para tal fi m. Os Shang também dominavam a construção de carros

de combate, com os quais guerreavam e eram enterrados: e até a

época Han estes foram utilizados de forma ampla. Tais indícios, por

conseguinte, demonstram que a uniformidade que caracteriza os

períodos arqueológicos no Ocidente não pode ser aplicada, sem

uma devida adaptação, ao contexto chinês. O mesmo acontece em

relação à denominação histórica de Realeza Palaciana.

Figura 4.4: Vaso Shang em forma de pássaro, uma demonstração do domínio completo que esta dinastia obteve com o bronze. Este vaso servia como chaleira, para servir vinho quente e/ou bebidas variadas.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Ritual_wine_container_in_shape_of_owl,_Shang_Dynasty.jpg

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Page 103: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

102

Sabe-se que os Shang viviam em cidades-estado e que estas,

muito provavelmente, possuíam alguma autonomia. No entanto,

quais eram as relações entre as mesmas que caracterizariam,

possivelmente, uma monarquia, tal como existia na época? Podemos

falar de um imperador Shang ou de reis Shang? Sabemos também

que eles se identifi cavam como um grupo étnico de características

particulares e comuns, mas em que isso infl uenciava sua prática

política e social? As respostas que possuímos para este período são

ainda um pouco incompletas e inseguras.

Os Shang pareciam ser um grupo étnico, vinculado às culturas

pré-históricas de Longshan e Erlitou, antecessoras da dinastia Xia,

evidenciado por algumas semelhanças em suas culturas materiais:

uso de muros de terra batida em torno das cidades, utilização de

ossos e tartarugas em artes divinatórias, e um estilo artístico próprio

que aparecia nas cerâmicas antigas (preta e pintada). Seu modo de

vida, essencialmente agrícola, apresenta certa inclinação pecuária

que se refl etia nos hábitos alimentares e nos sacrifícios. Há um

hiato, no entanto, entre o surgimento dos Shang e a civilização

Longshan; a primeira surge, nos depósitos arqueológicos, longe dos

tempos ceramistas, dominando uma avançada técnica de emprego

do bronze:

Como os homens da cultura Longshan e os da cerâmica

cinzenta, os Shang fi zeram grande uso da madeira para as

suas construções e a sua baixela. Toda uma série de vasos de

bronze – aqueles cujas formas são angulares – seriam cópias

de vasos de madeira. Por outro lado, a arte dos Shang é uma

arte animalista, não apenas na decoração como nas formas,

dando provas, num tal domínio, de uma fantasia e um gênio

inventivo surpreendentes (vasos em forma de carneiros, de

corujas, de rinocerontes, de elefantes...). Só pela sua arte,

a civilização chinesa da época dos Shang apresenta-se já,

praticamente, tanto como uma civilização de caçadores e

criadores como de agricultores (GERNET, 1969).

Page 104: Extremo oriente da antiguidades

Aula 4 – As primeiras dinastias chinesas

103

Figura 4.5: Exemplar de vaso trípoda Shang, utilizado para servir bebidas. Notem-se as partes pré-moldadas e soldadas que o compõem.Fonte: http://www.fl ickr.com/photos/unforth/4223325129/sizes/m/

O bronze, aliás, é a grande marca dos Shang: inúmeras

coleções de recipientes dos mais variados tipos e funções são

normalmente encontradas nas tumbas deste período. O estilo

artístico, empregado em sua confecção (já nesta época realizada

em pré-moldados), manifesta os elementos identificadores da

cultura Shang. Sua composição étnica é comprovada pelo estilo

inconfundível dos vasos rituais trípodas e pela máscara Taotie, motivo

decorativo vulgar (e aparentemente estatal) que identifi cava o grupo.

Unf

orth

Page 105: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

104

Figura 4.6: Estilização do motivo Taotie, principal identifi cador da civilização Shang. Comum nas representações artísticas, esta fi gura de um animal mitológico aparecia em vários tipos de trabalhos, mas principalmente nos bronzes, em que em geral era aplicada no lugar de solda das placas de metal.Fonte: http://chinaknowledge.de/Art/Bronze/bronze.html

Figura 4.7: A representação de uma máscara Taotie em um vaso Shang para servir comida.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Liu_Ding.jpg

Quer ler um pouco sobre a máscara Taotie? Entre nos

sites a seguir e saiba mais!

http://www.cccm.mctes.pt/page.php?conteudo=&tare

fa=ver&id=17&item=Bronzes

ou

http://en.wikipedia.org/wiki/Taotie.

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Page 106: Extremo oriente da antiguidades

Aula 4 – As primeiras dinastias chinesas

105

Soma-se a isso a escrita, que aparece nos cascos de tartaruga

e ossos de animais para realização de presságios e oráculos. Este

sistema de inscrições está parcialmente decifrado e possui conexões

com os ideogramas que comporiam a escrita chinesa, tal como

conhecemos hoje.

O aspecto ritual e religioso desta sociedade é de suma

importância, tendo em vista a quantidade de achados do gênero:

sacrifícios constantes de carne e vinho de arroz eram feitos aos

deuses (que tinham características transitórias entre o zoomorfi smo

e o antropozoomorfi smo) e depositados em urnas especiais, das

quais muitas sobreviveram graça à sua qualidade. Por vezes, os

mesmos ritos buscavam atrair reis mortos e grandes antepassados.

As tumbas Shang demonstram que havia a prática da servidão e do

escravismo, já que eram feitos holocaustos maciços de condenados

presos e pessoas dedicadas em vida (e também, na morte) ao

nobre falecido. Este era enterrado com seus pertences materiais,

armas, animais e os mesmos servidores degolados, cuja cabeça era

depositada em separado do corpo. Os primeiros indícios da escrita

também surgem através da prática religiosa: ideogramas primitivos

aparecem, gradualmente, em ossos e carapaças de tartaruga,

utilizados com fi ns oraculares. Estas inscrições são a chave para

compreender as origens do sistema de escrita chinesa, tido como o

mais antigo – e ainda vivo e em uso – em todo mundo.

Zoomorfi smoRepresentações

de animais ou de elementos da natureza.

No caso da história das religiões, ocorre

nas culturas mais antigas, quando os

deuses ainda têm formas de animais

ou naturais (árvores, montanhas, astros etc.).

Antropozoo-morfi smo

Uma evolução do estágio zoomórfi co,

quando os deuses começam a retratar valores ou aspectos humanos. A religião

egípcia, por exemplo, era uma das que se

consolidou nesse estágio de representação

imagética, sendo seus deuses possuidores de cabeças animais que

identifi cavam igualmente seus atributos.

Page 107: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

106

Figura 4.8: Os ossos oraculares permitiram estudar diversos aspectos das crenças Shang, bem como serviram para identifi car e comprovar a existência de figuras e cenas históricas, descritas no Shiji de Sima Qian.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Shang-Orakelknochen_excerpt_adjusted_for_contrast.jpg

Os Shang não eram também um grupo disperso: apesar da

vida organizada em cidades semiautônomas, parece ter havido a

ascensão de reis responsáveis pela administração dos interesses

coletivos das comunidades. Três são os motivos que nos levam a

crer nisso: primeiro, a construção de cidades centrais (capitais),

dentre as quais se destaca Anyang, responsável pela articulação e

reprodução do poder Shang:

Os Shang parecem ter se organizado como uma forma

de cidade-Estado sob uma monarquia que, no início, foi

muito forte. Havia aldeias-satélites não muito longe da

capital central e o Estado tinha meios de controlar as

Dra

gonb

ones

Page 108: Extremo oriente da antiguidades

Aula 4 – As primeiras dinastias chinesas

107

comunidades a uma grande distância. Mais de 50 sítios

com restos dos Shang, nove deles de grande importância,

foram identifi cados na região do rio Amarelo e da planície

da China setentrional. A localização da capital murada

sofria mudanças e dois dos mais importantes sítios foram

Zhengzhou (provavelmente a antiga capital de Ao), fundada

durante o reinado do décimo monarca e ocupada desde

-1500 a -1300, e Anyang, também conhecida como Grande

Shang, que data do tempo do 19º rei, em -1300, até a queda

da dinastia em -1027 (MORTON, 1986).

Outro fator importante na dinastia Shang foi a necessidade

existente de resistir às invasões daqueles que eles julgavam ser

“bárbaros”, na verdade povos nômades ou mesmo outros reinos que

conviveram com esta dinastia no espaço físico da China Antiga; por

fi m, o fato de existirem listas com as gerações reais que coincidem,

com precisão razoável, com as apresentadas por Sima Qian no Shi Ji.

Figura 4.9: O refi namento Shang surge na diversidade de estilos, empregados na confecção de suas obras de arte, como neste vaso de bronze em forma de uma longa taça.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Gu_wine_vessel_from_the_Shang_Dynasty.jpg

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Page 109: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

108

O domínio dos mesmos restringiu-se bastante à região Norte

e suas fronteiras viviam em constante tensão e confl ito. Os Shang

possivelmente se entendiam continuadores dos Xia, mas em novos

termos, como se apresenta na proclamação de Tang (primeiro

imperador Shang, admirado por Confúcio):

O Céu fez descer calamidades sobre a Casa de Xia, a fi m

de patentear-lhe a culpa. Por conseguinte, eu, pobre criança,

intimado pelo decreto do Céu pelos seus gloriosos terrores,

não ousei perdoar o criminoso. Aventurei-me a utilizar um

touro de cor escura para o sacrifício; e, dirigindo uma clara

proclamação ao Céu, solicitei permissão para tratar como

criminoso o governante de Xia. Procurei, então, o grande

Sábio com quem poderia unir a minha força, visando solicitar

o favor do Céu em vosso benefício, minhas multidões. Os

Altos Céus demonstraram de fato a sua graça em favor do

povo aqui da terra e o criminoso [o último soberano Xia] foi

degradado e submetido. O que o Céu determina está isento

de erro; hoje, gloriosamente, como o fl orescer das plantas

e árvores, os milhões do povo apresentam um verdadeiro

revivescer. Compete a mim, o Primeiro Homem, assegurar a

harmonia e tranquilidade dos nossos Estados e clãs; e não

sei se ofendo as forças superiores e inferiores. Receio e tremo

como se estivesse em perigo de cair em profundo abismo. Em

todas as regiões que iniciam vida nova sob o meu governo,

não segui, vós, ó príncipes, os caminhos fora da lei; não vos

aproximeis da insolência e da dissolução; cada um cuide de

manter os seus estatutos, que assim possamos receber o favor

do Céu. Não ousarei conservar oculto o bem que existe em

vós; e quanto ao mal que existe em mim, não ousarei perdoar-

me. Examinarei esses assuntos em harmonia com o espírito

do Céu. Quando e onde quer que seja, fordes achados sem

culpa, vós que ocupais as inúmeras regiões, que ela recaia

sobre mim, o Primeiro Homem. Quando eu for achado em

culpa, ela não será atribuída a vós, que ocupais as inúmeras

regiões (SHUJING, 2011).

Page 110: Extremo oriente da antiguidades

Aula 4 – As primeiras dinastias chinesas

109

Existem indícios de que a agonia dos Shang, em torno dos

séculos -12 a -11, deu-se pela fragmentação de seu poder interno,

aliado ao contexto de invasão externa que teria sido promovido

pelos grupos constituidores da dinastia posterior, os Zhou. Os Zhou

formavam um grupo achinesado, porém não integrado ao mundo

Shang, que vivia ao norte de suas fronteiras. Nesse período, eles

invadem o território Shang e dominam sua dinastia, num processo

que parece ter sido legitimado pelo próprio povo. Os elementos

que denotam a diferenciação entre estes “estrangeiros” (os Zhou)

e os Shang estão presentes, por exemplo, nas questões religiosas.

Uma das primeiras medidas Zhou foi acabar com a prática dos

sacrifícios humanos quando da morte de nobres: estes foram

substituídos por estátuas de pedra ou madeira. Os Zhou aparecem

como mais guerreiros, dinâmicos, mas com uma mentalidade aberta

o sufi ciente para absorver os elementos culturais e técnicos que mais

lhes interessavam dos Shang. É o caso dos estilos artísticos e da

manutenção do bronze. No entanto, ocorreu uma transformação no

sistema político e social, já que os Zhou instauraram um novo tipo

de regime monárquico feudatário, que veremos na próxima aula.

CONCLUSÃO

Assim sendo, parece-nos que os Xia e Shang são os primeiros

grupos organizados, na civilização chinesa, a partir de uma série

de reminiscências pré-históricas que lhes garantem seu caráter. No

entanto, vemos que outros grupos conviveram com os Shang em

seu período de existência, o que nos faz concluir que a construção

confucionista de uma história dinástica e étnica linear não era

precisa: os Zhou seriam, em essência, uma fusão da cultura Shang,

modifi cada com os elementos trazidos por outros grupos étnicos

habitantes de um espaço entre noroeste e o alto sudoeste chinês. E

com os Zhou iniciar-se-ia, no imaginário chinês, o “grande período

de Ouro da Antiguidade”.

Page 111: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

110

Atividade Final

Atende aos Objetivos 1, 2 e 3

Análise de texto.

A Grande Declaração, do Shujing (por Confúcio)

Na primavera do décimo terceiro ano, houve uma grande assembleia em Mang-Qing.

Disse o rei: “Ah, vós, governantes hereditários de meus Estados amigos! E vós, todos

os meus funcionários, administradores de meus interesses: ouvi atentamente a minha

declaração”: “O Céu e a Terra são pais de todas as criaturas e entre todas as criaturas

o homem é o mais altamente dotado. Entre os homens, aquele que é sinceramente

inteligente chega a ser o grande soberano. E o grande soberano é o pai do povo. Pois

bem: Chou, rei de Shang, não venera o Céu e infl ige calamidades ao povo. Entregue

à embriaguez e à luxúria, atreveu-se a exercer uma opressão cruel. Estendeu o castigo

dos ofensores a todos os seus parentes. Colocou os homens nos postos administrativos

de acordo com o princípio hereditário. Utiliza-o para possuir palácios, torres,

pavilhões, diques, lagos e todas as outras extravagâncias, para mais penoso prejuízo

vosso, milhares de criaturas do povo. Queimou e chacinou os leais e os bons. Violou

mulheres prenhes. O Grande Céu indignou-se e encarregou meu falecido pai Wen de

desencadear o seu terror. Mas este morreu antes de terminar sua tarefa. “Por isto, eu,

Fa (também chamado Wu), o moço, por vosso intermédio, governantes hereditários de

meus Estados amigos, contemplei o governo de Shang. Mas Chou não tem um coração

arrependido. Senta-se de cócoras, não serve a Deus nem aos espíritos do Céu e da

Terra, abandona o templo dos seus antepassados e não sacrifi ca nele. Todas as vítimas

e os vasos de painço convertem-se em presa dos malvados ladrões, e ele diz: “O povo

é meu; a dignidade celestial é minha”. E nunca trata de corrigir sua mente desdenhosa.

“Para ajudar a gente humilde, deu-lhe o céu governantes e instrutores, para que possam

ajudar a Deus a assegurar a tranquilidade das quatro partes do reino. Acerca dos

que são e dos que não são criminosos, como me atrevo a fazer concessão aos meus

próprios desejos? “Quando o poder é o mesmo, medi a virtude das partes. Quando a

virtude é a mesma, medi sua retidão”. Chou possui centenas de milhares e milhares de

funcionários, mas estes têm centenas e milhares de opiniões. Eu não tenho mais do que

três mil funcionários, mas têm todos uma só opinião. A iniquidade de Shang é completa.

Page 112: Extremo oriente da antiguidades

Aula 4 – As primeiras dinastias chinesas

111

O Céu ordena que ela seja destruída. Se eu não obedecesse ao Céu, minha iniquidade

seria igualmente grande. “Eu, o jovem, estou repleto de apreensões do princípio ao

fi m. Recebi a ordem de meu falecido pai Wen. Ofereci sacrifícios especiais a Deus.

Cumpri os serviços à grande terra e conduzo à vossa multidão para executar o castigo

indicado pelo Céu. O Céu compadece-se do povo. O Céu realiza aquilo que o povo

deseja. Ajudai-me, eu que sou o único, a purifi car para sempre tudo o que está dentro

dos quatro mares. Agora é o tempo! Não se deve perdê-lo”.

Chou foi o último rei dos Shang, antes da ascensão da dinastia Zhou. Nesse texto, Confúcio

apresenta as razões pelas quais o rei Wu conclama a nação a derrubar o rei.

Explique, sob a continuidade da cultura e da civilização chinesa, qual a visão historiográfi ca

de Confúcio acerca do passado e presente nesse texto.

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Resposta Comentada

Nela, Confúcio demonstra a ideia de continuidade histórica das dinastias e da civilização

chinesa. É fundamental que você fi xe bem esta ideia, que é o centro das análises chinesas sobre

sua própria história. Além disso, Confúcio insiste no aspecto moralizante da história, conforme

discutimos antes, projetando sobre o passado uma perspectiva de sua época.

Page 113: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

112

RESUMO

Nesta aula, discutimos sobre as primeiras dinastias chinesas

conhecidas e comprovadas pela arqueologia, a Xia e a Shang,

que constituíram o período primitivo da civilização chinesa. Nelas

surgem a escrita, o bronze e uma agricultura desenvolvida que

levariam a China a ser uma civilização tão poderosa quanto suas

contemporâneas na Mesopotâmia e no Egito.

Informação sobre a próxima aula

Na próxima aula, você será apresentado à dinastia Zhou, o

período dinástico mais longo da história chinesa.

Page 114: Extremo oriente da antiguidades

André da Silva Bueno

Aula 5

A dinastia Zhou

Page 115: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

114

Meta da aula

Evidenciar os aspectos gerais da dinastia Zhou, considerada a mais duradoura da

história chinesa.

Objetivos

Esperamos que, ao fi nal desta aula, você seja capaz de:

1. identifi car elementos básicos da dinastia Zhou;

2. analisar o conceito de feudalismo chinês e suas contrapartes ocidentais;

3. reconhecer o panorama geral de formação das escolas de pensamento chinesas.

Page 116: Extremo oriente da antiguidades

Aula 5 – A dinastia Zhou

115

INTRODUÇÃO

A época Zhou é conhecida por uma terminologia variada: ela

já foi chamada de Idade dos Principados, Época Feudal Chinesa

e Primeiro Grande Império. Analisemos cada uma dessas visões.

O termo Idade dos Principados remete-se à política da casa de

Zhou de distribuição de terras e títulos de nobreza para os aliados

e servidores fi éis. Desta forma, era possível dentro do “Império

Zhou” a existência de reinos quase autônomos, que guerreavam

entre si, sob o arbítrio da casa imperial. Esta denominação parece

ser adequada, portanto, ao contexto da época fi nal dos Zhou, mas

não sabemos se vale para os períodos iniciais, em que não existiria

uma fragmentação política tão grande.

Já o termo Feudalismo Chinês é uma sobreposição do

equivalente linguístico ocidental ao sistema político e econômico,

implementado pelos Zhou, que incluía relações de vassalagem e

uma hierarquia social, baseada em títulos e funções sociais. No

entanto, este termo também é criticado pela sua especifi cidade, que

não parece ser plenamente aplicável ao caso chinês, tendo em vista

as diferenças que caracterizam as instituições constituintes do poder

no modelo Zhou, como assim nos conta Jaques Gernet em sua obra

O mundo chinês, de 1979 (p. 58). Talvez a melhor maneira de evitar

um anacronismo seja utilizar o termo chinês próprio da época, que

designava este conjunto de relações como Fengjian.

A ideia de primeiro grande Império é uma sobrevivência

das interpretações clássicas confucionistas sobre a História Antiga.

Vemos que os chineses tinham a tendência de articular os períodos

passados numa única linha cronológica e espacial, sem observar

suas variações étnicas e materiais. No entanto, a preocupação

dos mesmos era explicar os momentos contemporâneos de

suas vidas, para os quais as alterações nas estruturas históricas

passadas nada signifi cavam; portanto, se fossem desprovidas de

um sentido simbólico. Assim, o fato de os Zhou representarem

Page 117: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

116

uma casa monárquica que intermediava a ação política dentro da

China Antiga e que havia inaugurado o Mandato do Céu como

instituição, por si só bastava aos classicistas para denominá-lo como

Império. Na verdade, temos de considerar que o que chamamos

realmente de Imperium Chinês (ou seja, a partir dos Qin) é,

também, uma construção da nossa historiografi a. O que é para

nós uma radical mudança no sistema político antigo, através dos

Qin, que caracterizaria o processo de unifi cação e construção de

uma nova estrutura administrativa e cultural, era (e ainda é, para

alguns chineses) apenas uma mudança na continuidade histórica. E

devemos lembrar ainda que o termo “Império” é de origem latina:

existem alguns termos equivalentes na língua chinesa, mas nenhum

deles é totalmente idêntico. Assim, é difícil pensar em como podemos

associar a terminologia Imperium ao caso chinês. No entanto, a

contestação que se faz desta linha historiográfi ca é que ela tende

a não observar as rupturas e transformações históricas de forma

signifi cativa, tendendo a um imobilismo cultural e ideológico. Ela

não observa também as modifi cações institucionais que asseguram

uma nova perspectiva social e política ao longo da história chinesa.

Logo, podemos afi rmar com segurança que este terceiro ponto de

vista é uma reprodução direta do imaginário antigo, que criou uma

cronologia única e articulada, mas que não é pertinente com as

transformações que ocorreram no plano material e institucional.

Vemos assim que a utilização destas três terminologias não

é, por conseguinte, totalmente confl itante ou impossível, mas exige

cuidado e especifi cidade nos casos de análise.

Page 118: Extremo oriente da antiguidades

Aula 5 – A dinastia Zhou

117

A história dos Zhou

Figura 5.1: Mapa da dinastia Zhou.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Zhou_dynasty_1000_BC.png.

A história dos Zhou, segundo uma tradição ainda aceita (de

acordo como o Shujing e com o Shiji), começa com a derrocada dos

Shang em torno dos séculos -12 e -11. Os grupos étnicos que comporiam

os Zhou teriam uma ascendência próxima dos Shang (manifesta pelos

estilos artísticos e pela escrita), mas habitavam fora do território “imperial”

e viviam em contato direto com os “bárbaros”. Como nos diz o Shujing:

Foi na madrugada seguinte que o rei Wu marchou em

derredor das suas seis hostes formadas e fez uma declaração

otimista a todos os ofi ciais. Disse ele: “Meus valentes homens

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s

Page 119: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

118

do oeste! Do Céu, emanam brilhantes rumos ao dever,

cujas diversas exigências são bem nítidas. E, no entanto,

Shou, o rei de Shang, trata com desdenhosa negligência

as cinco virtudes regulares e entrega-se à desenfreada

ociosidade e irreverência. Rompeu com o Céu e acarretou

a inimizade entre ele próprio e o meu povo. Ele cortou

as tíbias daqueles que a custo caminhavam, pela manhã;

arrancou o coração dos homens dignos. Usando do seu

poder, matando e assassinando, envenenou e afl igiu a todos

aqueles compreendidos nos quatro mares. As suas honrarias e

a sua confi ança são atribuídas aos vilãos e aos maus. Afastou

de si os instrutores e tutores. Lançou aos ventos os estatutos

e as leis penais. Aprisionou e escravizou os funcionários

retos. Mostrou-se negligente nos sacrifícios ao Céu e a Terra.

Suspendeu as oferendas no Templo dos Ancestrais. Concebe

projetos de maravilhoso artifício e extraordinária astúcia para

agradar à mulher. Deus já não é tolerante com ele; mas sim,

faz descer esta ruína, acompanhada de maldição. Apoia-me

com o vosso infatigável zelo, a mim – o Primeiro Homem,

para reverentemente executarmos a punição ordenada pelo

Céu. Disseram os Antigos: “Aquele que nos alivia é o nosso

soberano; aquele que nos oprime é o nosso inimigo”, Chou,

esse homem solitário, tendo exercido grande tirania, é o vosso

perpétuo inimigo. Afi rma-se, ainda: “Ao implantar a virtude

de um homem, esforçai-vos por fazê-lo pelas raízes”. Agora,

eu, pobre criança, com o poderoso auxílio de todos vós,

meus ofi ciais, exterminarei completamente o vosso inimigo.

Todos vós, meus ofi ciais, marchai à frente com determinada

audácia, a fi m de apoiar o vosso príncipe. Se houver mérito,

haverá grandes recompensas; se vós assim não avançardes,

haverá notória desgraça.

A análise do documento mostra alguns destes pontos de forma

clara: Wu (o príncipe que destronou, por fi m, os Shang) identifi ca o

soberano Shang como opressor de seu povo, mas, ao mesmo tempo,

clama pelas virtudes morais e políticas que, em sua visão, deveriam

ser comuns a todos e cuja prática encontrava-se ausente.

Page 120: Extremo oriente da antiguidades

Aula 5 – A dinastia Zhou

119

Figura 5.2: Os Zhou incorporaram muito das técnicas Shang, como demonstra esta refi nada peça de metal. Embora similar aos caldeirões Shang, ela não tem o símbolo taotie, substituído por padrões geométricos.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Dake_Ding.jpg.

De tradição militarista (embora seus costumes sociais e fúnebres

fossem muito menos cruéis que os dos Shang), os Zhou promoveram a

invasão do território, conduzidos por um rei chamado Wen, que tinha

por objetivo fi ndar com a sucessão de terríveis déspotas Shang que

afl igiam a sociedade. Após uma grande batalha, os Zhou derrubam

os antigos soberanos e assumem o poder. Depois disso, o rei Wen é

sucedido por Wu (seu fi lho), cujas realizações consolidam a posição

da nova dinastia. No entanto, ainda ocorreriam rebeliões e confl itos

que só seriam resolvidos, após algum tempo, pelo duque Zhou.

Estas três fi guras são fundamentais tanto na antiga história chinesa

quanto na própria sinologia moderna. Os reis Wen e Wu, tanto quanto

o duque Zhou, eram considerados modelos de virtude e sabedoria

dentro do pensamento chinês. A eles foi atribuída, por Confúcio, a

primeira redação do Vi Jing. Se a existência verídica destes personagens

procede, tornou-se difícil (em função da própria documentação) saber

muito sobre eles; no entanto, isso parece já não ser tão importante,

tendo em vista o que foi realizado em nome dos mesmos.

Mou

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Page 121: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

120

Uma das distinções mais claras entre os

Shang e os Zhou é a transformação gradual

dos rituais funerais. Na época Shang, vários

auxiliares eram sacrifi cados e postos na tumba do

rei ou do nobre morto, com o objetivo de servi-lo

na sua “outra vida”. Os Zhou desaprovavam esse

costume, que foi gradualmente abolido. No lugar de

seres humanos vivos e animais, eles empregavam

estátuas de bronze e cerâmica que eram ritualmente

“sacrifi cadas” com o morto e acreditavam que as

mesmas lhe serviriam na vida post-mortem como

autômatos – uma espécie de “robô”, mas que só

funcionava no “outro mundo”.

U

Partindo dos séculos -11 e -10, o tempo dos Zhou é dividido

em períodos distintos: o primeiro, que iria de -1027 a -700 seria o

dos Zhou anteriores, também chamados de ocidentais ou antigos.

Esta divisão é marcada pela transferência da capital para a cidade

de Chengzhou e pela modifi cação de alguns parâmetros culturais

e artísticos. A data aproximada de -770 marcaria o auge desta

dinastia, que depois iria declinar em função da desestruturação

interna e dos confl itos com os bárbaros.

O segundo período dos Zhou posteriores, ou ainda orientais,

é marcado pela decadência política, mas se constitui numa época

fértil para o pensamento e para a ciência chinesa. Ele estaria datado

de -771 a -221, quando da vitória dos Qin e a unifi cação chinesa.

Está subdividido em duas partes: a primeira, que vai de -771 a

-481 é chamada, como já citado anteriormente, de Primaveras

e Outonos (presentes nas narrativas do Chun Qiu), e a segunda,

quando se inicia o período dos Estados Combatentes (Zhang Guo),

Page 122: Extremo oriente da antiguidades

Aula 5 – A dinastia Zhou

121

que vai de -481 até -221. Os chineses opunham os dois períodos,

demonstrando claramente a perspectiva de confl ito e corrupção do

poder e da sociedade que se estabeleceram, a partir dos séculos -7

a -6. No séculos -6 a -5, é interpolado o período, denominado Época

das Cem Escolas, que marca o alvorecer dos sistemas clássicos de

pensamento chinês.

A análise histórica e arqueológica demonstra que houve uma

expansão territorial e econômica das atividades Zhou, no primeiro

período. É o período de construção de uma nova cultura, conjugando

elementos próprios com os dos antigos Shang. A organização

política desdobra-se, nalguns aspectos, em torno das antigas

relações arcaicas dos Shang: os soberanos são responsáveis não

só pela administração pública quanto pelo espiritual e o militar na

comunidade. Há uma inovação, porém, fundamental para a nova

estrutura monárquica: a divisão em reinos e feudos do território,

ligados por relações de vassalagem à casa de Zhou. Decorrente

disso, há também a formação de um corpo regular de assistentes

burocráticos e funcionários no qual se confundem cidadãos livres e

escravos. No entanto, se a autoridade moral é a base do novo poder

monárquico, o que se veria ser uma degradação da capacidade de

infl uência dos governantes em relação aos principados. A situação

foi estável até o recrudescimento das invasões bárbaras no Norte

(século -9 a -8), que puseram em dúvida, diante da sociedade, o

mandato celeste em mãos dos Zhou.

O Império Zhou

A época Zhou denota a formação de uma classe nobre

importante dentro da sociedade, interligada ao funcionamento

da política, da força militar e da economia. Ela manipulava o

funcionamento das práticas administrativas, sociais e religiosas

através deste corpo burocrático, criado para executar o poder na

extensão do território. Como afi rma Aymard:

Page 123: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

122

Tem-se a impressão de que, na época dos Zhou ocidentais,

a sociedade ainda não foi submetida a uma hierarquia

complicada, como será o caso, à medida que se desenvolver a

tendência para a unidade política e a centralização do poder. A

sociedade estava dividida em duas grandes classes: embaixo,

a plebe camponesa; em cima, a classe patrícia (nobres

hereditários). Pouco a pouco, ramifi car-se-ão e classifi car-se-ão

os elementos médios, começando no grau mais baixo com os

escravos e trabalhadores rurais, elevando-se progressivamente

pelos artesãos e mercadores, letrados e funcionários, ministros

e altos funcionários, nobres e príncipes, até o imperador, que

domina a pirâmide hierárquica (AYMARD, 1957).

A época Zhou fi cou marcada pelo sistema Fengjian, que

comentamos no início da aula. Ele pressupunha uma espécie de

feudalismo, distribuindo o território entre senhores que possuíam títulos

semelhantes aos de conde, duques, marqueses etc. Responsáveis pela

administração das terras, eles estavam ligados a estados maiores, em

geral governados por reis (Wang) ou grandes senhores mandatários

(Ba). O papel do imperador era manter a aliança entre esses estados

e feudos por meio da instituição dos ritos e do arbítrio no confl ito entre

seus servos. Por conta disso, a dinastia Zhou constituiu, praticamente,

uma federação de estados que não raro brigavam entre si, possuíam

leis próprias e tinham um alto grau de independência.

Page 124: Extremo oriente da antiguidades

Aula 5 – A dinastia Zhou

123

Figura 5.3: Sino de bronze da dinastia Zhou. Sinos como esse eram organizados em carrilhões de até uma dúzia de sinos de tamanhos variados e utilizados em orquestras musicais, que foram amplamente difundidas nessa dinastia.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Freer_007.jpg.

Foi, porém, um momento de refi namento e desenvolvimento

para a cultura: os Zhou eram apreciadores da música, da literatura

e das belas-artes. Mantiveram, sem grandes modificações, a

organização econômica Shang, implementando a cobrança dos

impostos sobre a utilização do território. Novos tipos de produção

agrícola foram introduzidos, bem como o artesanato e a manufatura

foram estimulados, pela primeira vez, num sentido de exportação:

A invenção tecnológica foi, uma vez mais, tão útil à agricultura

quanto era na guerra. Nessa época; foi inventado o arnês de

peitoral, ou coelheira, que aumentava a efi ciência, seguindo-

lhe pouco depois, já no século 5 a.C., um novo tipo de

coelheira rígida. Esses dois tipos de arreios permitiram a um

único cavalo fazer o que dois ou até quatro faziam antes,

quando o arnês de pescoço ameaçava estrangular o animal,

se tivesse de deslocar um peso excessivo no tiro. O maior

avanço técnico de todos foi a introdução dos processos de

Perc

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Page 125: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

124

fusão e fundição do ferro, mencionados pela primeira vez em

513 a.C. O ferro fundido é encontrado em objetos que datam

de 400 a. C., época em que o uso desse minério já entrara em

uso bastante generalizado. Um dos primeiros usos conhecidos

do ferro na China era como revestimento das bordas cortantes

de pás de madeira, e para outros implementos agrícolas,

como: enxadas, facões e foices (MORTON, 1986).

Figura 5.4: O refi namento tecnológico e a perícia alcançada pelos Zhou no domínio dos metais são representados por esse vaso, num estilo absolutamente inovador em relação aos vasos Shang.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:CMOC_Treasures_of_Ancient_China_exhibit_-_square_bronze_hu.jpg.

No campo religioso, vemos sumir no meio das classes

abastadas o politeísmo folclórico, que dá lugar a uma concepção

mais abstrata de metafísica, baseada em princípios ecológicos das

noções de Céu e Terra, ligadas ao ser humano.

Edito

r at l

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Page 126: Extremo oriente da antiguidades

Aula 5 – A dinastia Zhou

125

Figura 5.5: Exemplares desta misteriosa cabeça de metal foram encontrados em alguns túmulos Zhou de Shanxi, junto de seus corpos. Os Zhou inauguram uma fase em que os sacrifícios humanos foram proibidos, substituindo as possíveis vítimas por representações de bronze ou cerâmica.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Sanxingduimasks.jpg.

Nos discursos daoístas e confucionistas, observamos claramente

que os deuses não aparecem: o Céu, uma entidade sem forma, é que

governa os destinos da civilização. Era ele quem gerava o Mandato

Celeste, atributo de uma dinastia para realizar a conexão entre o

mesmo Céu, a Terra e a Humanidade, gerando a Harmonia universal.

O período das Cem Escolas de pensamento

A percepção de um confl ito eminente e em escala nacional,

que poderia pôr fi m à civilização Zhou, foi atentada pelo surgimento

de inúmeras escolas fi losófi cas que compõem o período chamado

Cem Escolas de pensamento. Surgidas basicamente no século -6, os

conteúdos destas escolas baseavam-se na proposta de recuperar a

antiga dignidade e autoridade real Zhou e na reforma da sociedade

Vino

grad

19

Page 127: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

126

e da cultura. A ideia fundamental era, em tempo de crise, como

trazer novamente a estabilidade social, moral e política para a

civilização chinesa?

Figura 5.6: O ideograma Dao.Fonte: André Bueno.

O que é Dao?

Representado pelas grafi as Dao ou Tao, o ideograma

representa a ideia de caminho ou via. Seu sentido

original seria o de um método ou teoria, uma proposta

que conjuga uma ideia original com os meios ou

instrumentos utilizados para sua aplicação e realização.

Todas as escolas de pensamento chinesas tinham seu

próprio Dao e apenas os daoístas pregavam que seu

método seria “O Método”, gerando a confusão que

existe hoje quando os leitores iniciantes acreditam que

os daoístas teriam sido os criadores do conceito.

A ordenação e a separação destes grupos de pensamento

foram feitas de forma didática no período dos Han, mas é provável

que nos séculos -6 e -4 elas ainda se vissem mais vinculadas aos

seus mestres do que propriamente a uma ideia de “escola”. A

organização clássica dessas escolas é a seguinte: escola dos

letrados, mais especifi camente os confucionistas, seguidores da

Page 128: Extremo oriente da antiguidades

Aula 5 – A dinastia Zhou

127

linha de Confúcio, Mêncio e Xunzi; moístas, de Mozi; daoístas, ou

taoístas, da linha de Laozi, Liezi e Zhuangzi, escolas dos nomes, de

Huizi; a escola das leis, de ShangYang, Han Fei e Lisi; e, ainda, a

escola dos políticos, dos ecléticos, do Yin-Yang, dos cinco elementos

e da Agricultura. Estas teriam sido as mais importantes do período,

havendo outras de caráter secundário. Um ligeiro quadro fornece-nos

ideias básicas sobre as propostas morais destas escolas.

Figura 5.7: Miniatura em cerâmica, reproduzindo o encontro de Laozi e Confúcio.Fonte: http://www.fl ickr.com/photos/steambadger/3464967632/sizes/m/://em

Daoístas ou taoístas: movidos pelos escritos de um suposto

sábio, chamado Laozi (o Daodejing, ou Tratado do caminho e

da virtude), construíram uma doutrina fi losófi ca que defendia a

compreensão do Dao (Tao) como a única forma de os homens viverem

em harmonia e retornarem a sua natureza primordial. Dao (Tao) aí

se entende por um conceito abrangente cujas traduções aproximadas

podem signifi car de “caminho” até “natureza”, ou mesmo “cosmos”.

As diversas especulações sobre a não ação, sobre a realidade

do homem em relação ao meio e sua consciência sobre a vida

inauguraram uma nova perspectiva de discussão fi losófi ca na China.

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Page 129: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

128

Os daoístas tinham em mente, antes de tudo, um abandono da vida

material, uma fl exibilidade nas relações sociais e um distanciamento

do poder político pra a resolução das crises sociais, como ilustra

esta história do Zhuangzi (2011):

Zhuangzi estava pescando no rio Pu, quando o príncipe de

Zhu mandou dois altos funcionários convidá-lo para assumir o

cargo de administrador do Estado Zhu. Zhuangzi, continuou

pescando e, indiferente, disse: – Ouvi falar que em Zhu há

uma tartaruga sagrada que morreu há cerca de três mil anos.

E que o príncipe guarda cuidadosamente essa tartaruga em

um cofre no altar de seus ancestrais. Ora, para essa tartaruga

seria melhor estar morta e ter os seus restos venerados, ou

estar viva e arrastando a sua cauda na lama? “Seria melhor

estar viva e arrastando a sua cauda na lama”, responderam

os dois altos funcionários. “Ide embora!”, gritou Zhuangzi.

“Eu também prefi ro arrastar a minha cauda na lama”. Por

que se deixar prender em obrigações materiais e transitórias,

cujas preocupações cotidianas e monótonas nada têm a ver

com a realidade última do mundo?

Os dois daoístas que popularizaram a doutrina foram justamente

Zhuangzi e Liezi (que não se sabe ao certo se existiu), que transformaram

em histórias e contos a teoria obscura do Dao, escrita no Daodejing.

O daoísmo desde cedo, porém, aglutinou-se com as práticas mágicas,

alquímicas e xamânicas, perdendo grande parte do seu conteúdo

fi losófi co e transformando-se numa religião.

Confucionismo: diferente dos daoístas, Kongzi (Confúcio)

preocupou-se desde o inicio em empreender uma volta ao passado

imperial Zhou. Ele acreditava no poder da educação para retifi car a

conduta do homem e sua proposta extremamente pragmática indicava

um caminho acessível a todos para o reerguimento social:

Uma pessoa não pode andar em rebanho com pássaros e

bestas. Se eu não sou um homem entre outros homens, então

o que sou? Se o Caminho prevalece, debaixo do céu, não

devo tentar alterar as coisas (SMITH, 2011).

Page 130: Extremo oriente da antiguidades

Aula 5 – A dinastia Zhou

129

Para o sábio, a única maneira de civilizar o povo e instituir

bons costumes sociais é pela educação. Assim como uma

pessoa não pode saber o gosto de um alimento sem o ter

provado, por melhor que seja, tampouco se poderá, sem a

educação, chegar a conhecer as excelências de um vasto

acervo de conhecimentos, mesmo que eles aí estejam. Só

por meio da educação, pois tornar-se-á alguém insatisfeito

com o que sabe; e só quando tem de ensinar a outrem é que

a gente dá-se conta da incômoda insufi ciência dos próprios

conhecimentos. Insatisfeita com o que sabe, a pessoa então

percebe que é seu o mal e dando-se conta da incômoda

insufi ciência de seus conhecimentos, sentir-se-á impelida a

aprimorar-se (LIJI, 2011).

Confúcio era um dos principais defensores da concepção de

Tian (Céu), teoria que defendia um princípio inteligente e ecológico

que administrava a natureza –, mas seu entendimento sobre a

realidade humana mostrava uma lucidez incrível e, por estes motivos,

suas proposições não podiam deixar de considerar a difi culdade

em realizar o trabalho de instruir a sociedade:

O que é dado pelo Céu é o que chamamos natureza humana.

Cumprir a lei de nossa natureza humana é o que chamamos

Caminho. O cultivo do caminho é o que chamamos Educação.

O Caminho é uma lei a que não podemos, por um só instante

que seja em nossa existência, fugir. Se pudéssemos dele

escapar, não seria mais o Caminho. Por consequência, eis

porque o sábio espreita diligentemente o que seus olhos não

podem ver, receia e atemoriza-se com o que seus ouvidos

não podem ouvir (ZHONG YONG, 2011).

Assim sendo, a escola confucionista estimulava seus discípulos

a participarem da vida pública e da burocracia para que estes

pudessem efetivar mudanças sociais salutares. A data clássica de

vida de Confúcio foi de -551 a -479 e os dois grandes confucionistas

posteriores foram Mengzi (Mêncio) e Xunzi, que teriam vivido

aproximadamente nos séculos -4 e -3. Estes desenvolveram uma

Page 131: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

130

grande discussão acerca da natureza humana e do papel da

educação e do governo. O confucionismo transformou-se, na época

Han, na doutrina ofi cial do estado imperial, mas com algumas

modifi cações e infl uências das outras escolas.

Legismo: a escola da Lei (Fajia) representa a ascensão de

uma razão de governo pragmática, dura e violenta. Ela não se

dispõe a retornar ao passado ideal, mas a criar um governo forte

e centralizador em torno dos príncipes. Semelhante ao que ocorreu

na Europa com Maquiavel, os legistas apresentavam uma proposta

despótica de poder e governo e foram muitas vezes absorvidos

na máquina administrativa, como no caso da dinastia Qin. Seus

maiores autores teriam sido Shang Yang e Hanfeizi. Este último viveu

no século -3 e foi o artífi ce das teorias unifi cadoras dos Qin. Ele

organizou os conteúdos dessa escola, que separava a política da

moral, aliava a prática a uma teoria muito bem planejada e baseava-

se em princípios completamente severos e racionais, desprovidos de

qualquer sentimentalismo:

Nenhum país é permanentemente forte. Nem todo país é

permanentemente fraco. Se ele se conforma com leis fortes,

então o país é forte; se ele se conforma com leis fracas, o

país é fraco... se existir alguma regra capaz de expulsar

os ladrões do privado e sustentar a lei pública, os povos se

acharão seguros e o Estado em ordem; e alguma regra capaz

de expurgar a ação privada no ato da lei pública, encontrará

um exército forte e um inimigo fraco. Assim, procure homens

de fora que sigam a disciplina das leis e os regulamentos, e

os coloque num lugar acima do corpo de ofi ciais. Então, o

soberano não poderá ser iludido por qualquer um com fraudes

e falsidades (HANFEIZI, 2011).

Moísmo: algumas décadas depois de Confúcio, um grupo

surgiu sobre a égide de Mozi, um retórico religioso que pregava

a paz, a igualdade e desprezava a dita “proposta educativa” dos

confucionistas, por achar que ela naturalmente excluía os menos

Page 132: Extremo oriente da antiguidades

Aula 5 – A dinastia Zhou

131

providos. Mozi propunha uma espécie de comunismo primitivo, em

que as comunidades aldeãs funcionariam por meio de cooperativas,

administradas de modo livre, independente, e sem a presença dos

nobres. Curiosamente, os moístas eram materialistas, utilitaristas e

dominavam inúmeras técnicas militares, que utilizavam para defender

aqueles que acreditavam ser os “mais fracos”:

Poderia cada um nortear-se pelo exemplo de seu mestre?

Muitos são os mestres; mas poucos os mestres dotados de

uma alma grande. Logo, se todos imitarem o seu mestre, nem

sempre imitarão um bom exemplo. Nortear-se pelos maus

exemplos não é adotar o padrão apropriado. Convém que

cada um imite o seu soberano? Há muitos soberanos; raros,

porém, são exemplares. Imitando-os, nem sempre andaremos

bem. Não é boa norma copiar um mau proceder. Logo, nem

os pais nem o mestre ou o soberano podem ser aceitos como

padrões de governo. Que devemos então escolher como

padrão de governo? Nada melhor do que orientarmo-nos pelo

Céu. O Céu abrange tudo; é imparcial nas suas atividades,

generoso e incessante nas suas bênçãos, guia infatigável e

constante. Assim, quando os reis sábios tomaram o Céu por

modelo, moldaram por ele as suas ações e empresas. Faziam

o que o Céu desejava e evitavam o que o Céu pudesse

condenar. Ora, que é que o Céu preza e que é que o Céu

abomina? Indubitavelmente, o Céu deseja que os homens

amem-se e auxiliem mutuamente, e reprova que se odeiem e

hostilizem. Como chegamos a esta conclusão? Simplesmente,

porque o Céu ama e favorece toda a humanidade. E como

sabemos que o Céu ama e favorece a humanidade inteira?

Porque o Céu protege a todos e de todos aceita oferendas

(MOZI, 2011).

O cerne da proposta moísta encontrava-se neste discurso

social, calcado no esvaziamento de poder da elite e na autonomia

do povo – única via possível, para eles, para uma sociedade

harmoniosa.

Page 133: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

132

Nominalistas: os ditos “sofi stas”, chineses que surgiram mais ou

menos na mesma época destas outras escolas e destacaram-se pelo

uso da retórica na discussão de assuntos políticos e jurídicos. Tiveram

pouco expoentes nos séculos -4 e -3, mas alguns dos fragmentos

que sobraram revelam um grupo altamente intelectualizado, capaz

de elaborar paradoxos complexos. Eram, antes de tudo, mestres na

arte do discurso, mas não defi niram qualquer proposta consistente

de reforma social.

Escola dos cinco elementos: a doutrina dos cinco elementos

foi um desdobramento da antiga ciência chinesa, contida em

livros, como o Neijing e o Ijing. Ela se preocupou em entender as

problemáticas científi cas como decorrentes de um ciclo natural que

envolvia as correntes Yin e Yang e o domínio dos cinco estados da

matéria (água, fogo, metal, terra e madeira). Estes ensinamentos

encontraram um sucesso enorme na época dos Han, principalmente

no campo tecnológico, mas também foram aproveitadas para

explicar eventos históricos e sociais.

Essas escolas foram a base do pensamento chinês, embora

devam ser analisadas com cuidado diante das inúmeras alterações

que sofreram em suas propostas ou mesmo em seu discurso.

No entanto, elas nos fornecem os elementos necessários para

compreender a lógica dessa civilização, mesmo em seus períodos

mais antigos. Todas estas escolas tinham como objetivo fundamental

resgatar – ou criar – alguma espécie de ordem social, tendo em vista

as inúmeras crises que se desenrolavam na época. O desfecho deste

processo só se daria, porém, com a dinastia Han.

Page 134: Extremo oriente da antiguidades

Aula 5 – A dinastia Zhou

133

O advento dos Estados Combatentes

Figura 5.8: Mapa dos Estados Combatentes.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:EN-WarringStatesAll260BCE.jpg

O início dos Estados Combatentes é marcado pelo fi m da

capacidade de arbítrio dos Zhou sobre os problemas internos e a

concentração de força em apenas sete principados: Qi, Qin, Chu,

Zhao, Han, Yen e Wei. Cada qual, com sua força militar e seu próprio

corpo de funcionários, encetou um processo de guerra ininterrupta

que culminou com a vitória do melhor organizado (e cruel) Estado

Qin, em -221. O novo soberano decide, após a vitória sobre os

Zhou, assumir o título de Primeiro Grande Imperador Amarelo, ou

Qinshi Huangdi, marcando, para a historiografi a moderna, a fase

do “Império real” na China:

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88

Page 135: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

134

O início do declínio do feudalismo, bem como o movimento no

sentido da unidade, é visível no período da Primavera e Outono

(-770 a -481), nome que recebeu de anais, assim chamados.

É nesta altura que se verifi ca o primeiro enfraquecimento do

princípio da hereditariedade, sendo a própria casa real dos

Zhou a vítima mais visível dessa mudança. O Livro da História

dá-nos uma visão clara das circunstâncias de extrema carência

em que fi cou o Filho do Céu depois de, em -771, os nobres

terem-se aliado contra os invasores bárbaros. Apesar de todos

os grandes senhores terem declarado a sua lealdade ao trono,

o novo rei não pôde deixar de reconhecer a dependência em

que fi cara da «benevolência de todos, sem a qual a Terra não

goza de paz». As ofertas de arcos e fl echas que fez aos mais

destacados membros da nobreza são sinal duma fl agrante falta

de força, na medida em que representam o reconhecimento do

direito a punir quem desobedecesse a ordens reais. A pouco e

pouco, esta devolução de autoridade deixou os reis Zhou com

uma função apenas religiosa e um reino empobrecido a rodear

Luoyang. Com efeito, os achados arqueológicos mostram o

crescimento de centros de poder independentes nas grandes

quantidades de bronzes, descobertas em diversos pontos da

cidade fortifi cada e nos túmulos suntuosos, cujas inscrições não

se referem já ao monarca Zhou, mas proclamam os nomes

dos nobres para os quais foram feitos. Com o declínio das

obrigações feudais e a erosão do poder central, os chefes dos

estados emergentes lutavam entre si pela conquista de território

e competiam para atrair artífi ces e agricultores. A oeste, os

primitivos Qin incentivavam a imigração de estados rivais,

oferecendo casas e isenção do serviço militar. Um estado de

guerra permanente, ora entre os próprios Chineses, ora com os

Bárbaros invasores, vindos das estepes do Norte, provocou uma

redução substancial no número de estados. Segundo o Livro dos

Ritos (Liji), existia durante o período da Primeira Dinastia dos

Zhou (-1027 a -771) um total de 1763 feudos. No princípio do

século -7, só havia 200 territórios feudais; por volta de -500, esse

número tinha caído para menos de 20. Durante o período dos

Reinos Combatentes (-481a -221), as lutas intestinas tornaram-se

Page 136: Extremo oriente da antiguidades

Aula 5 – A dinastia Zhou

135

tão ferozes e intensas que só sete estados feudais conseguiam

reunir recursos sufi cientes para fazer a guerra. Impotente, o

monarca Zhou, via duas grandes potências, Qin e Chu, ainda

incompletamente sinizadas, conquistarem território, tirando

partido das lutas entre os estados feudais mais antigos. Em -221,

a força de Qin foi sufi ciente para destruir todos os seus rivais e

unifi car toda a antiga China num só império. Em -256, o último

rei Zhou foi brutalmente expulso do trono pelas tropas de Qin

(COTTERELL, 2000).

CONCLUSÃO

O arcabouço gerado pelos Zhou foi a base sobre o qual os

Qin pensaram uma nova estrutura de governo. Infl uenciados pela

escola legista e, temerosos de criarem um sistema político falho,

os Qin promoveram uma proposta centralizadora e unifi cante,

pautada numa lei rígida, que efi cazmente colocou este principado na

ponta pela corrida do poder. Souberam aproveitar as experiências

negativas da intelectualidade Zhou em resgatar o passado e

elaboraram um projeto novo de governo, naquela época, contestado

por suas características novas e desvirtuado das antigas tradições.

No entanto, o pragmatismo dessas propostas de criação de um

novo império vingou, gerando uma estrutura política na China que

seria milenar. O Zhangouce (Anedotas dos Estados Combatentes)

possui uma história bastante interessante sobre a ação dos Qin nesta

época, que terminou por tornar-se uma história de sabedoria entre

os chineses, até os dias de hoje:

Zhao ia invadir Yen. Su Tai foi falar ao Rei Hui de Zhao em favor

de Yen. – Esta manhã. – disse Su Tai, – quando eu vinha pelo

meu caminho, passava pelo Rio Yi. Vi ali uma ostra aquecendo-se

ao sol e um grou aproximou-se para picá-la na carne, e a ostra

fechou fi rmemente a sua concha sobre o bico do grou. Disse o

grou: “Se não chover hoje e se não chover amanhã, haverá uma

Page 137: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

136

ostra morta”. E disse também a ostra: “Se não puderes soltar-te

hoje e se não puderes amanhã, haverá um grou morto”. Nenhum

dos dois queria largar, quando um pescador se aproximou e

apanhou a ambos. Ora, se fores atacar Yen, os dois países

fi carão presos na luta por muito tempo até que o povo de ambos

esteja esgotado. Temo que o forte Qin venha a ser o pescador.

Pensa nisso cuidadosamente (LIN, 1958).

Su Tai estava certo: Qin estava pronto a ser o novo “Império”

da China.

Atividade Final

Atende aos Objetivos 1, 2 e 3

1. O que é dado pelo Céu é o que chamamos natureza humana. Cumprir a lei de

nossa natureza humana é o que chamamos caminho. O cultivo do caminho é o que

chamamos de aprendizado (Confúcio). Se as estações da lavoura não forem alteradas,

haverá mais trigo do que é possível comer. Se não se permitir que se mergulhem redes

espessas nas lagoas, sobrarão peixes e tartarugas. Se a foice e o machado entrarem

na fl oresta da montanha, em tempo oportuno, os bosques serão mais cerrados do que

é preciso. Quando o trigo, os peixes, as tartarugas e a madeira excedem o consumo,

o povo conta com o seu sustento e cuida de se preparar para a morte, sem rancor

contra ninguém. Mas esta condição: ter o povo o sustento assegurado, para viver em

sossego, sem ressentimento, é o primeiro passo na senda real. Plantem-se amoreiras à

roda das herdades e as pessoas de cinquenta anos poderão usar seda; se na criação

de aves, de cães e de porcos, não se descurarem as épocas da procriação, as pessoas

de setenta anos comerão carne. Cultivando a tempo o campo de cem acres, a família de

várias bocas não sofrerá fome. Dedique-se escrupulosa atenção ao ensino nas diferentes

escolas, inculcando repetidamente a noção dos deveres fi lial e fraternal, e não se verão

nas estradas homens grisalhos, carregando fardos na cabeça ou aos ombros. Num

estado, onde se observam estes resultados, jamais se viram setuagenários vestindo sedas

Page 138: Extremo oriente da antiguidades

Aula 5 – A dinastia Zhou

137

e comendo carne, enquanto a população mais jovem sofre fome e frio; nem houve ali

governante que não atingisse a dignidade real (O ZHONG YONG..., 2011).

2. [...] O Homem Prudente:

dirige negócios sem operar;

prega a doutrina sem palavras;

e as coisas todas tomam impulso, mas ele não lhes vira as costas;

ele as verifi ca sem se apossar delas;

e age sem apropriação;

e atinge seus fi ns sem reivindicar credenciais

isto porque ele não clama por créditos

e por isso o crédito dele nunca se afasta (LAOZI..., 2011).

3. Que devemos então escolher como padrão de governo? Nada melhor do que

orientarmo-nos pelo Céu. O Céu abrange tudo; é imparcial nas suas atividades, generoso

e incessante nas suas bênçãos, guia infatigável e constante. Assim, quando os reis sábios

tomaram o Céu por modelo, moldaram por ele as suas ações e empresas. Faziam o que

o Céu desejava e evitavam o que o Céu pudesse condenar. Ora, que é que o Céu preza

e que é que o Céu abomina? Indubitavelmente, o Céu deseja que os homens amem-se e

auxiliem mutuamente, e reprova que se odeiem e hostilizem (A NECESSIDADE..., 2011).

4. Os meios pelos quais uma regra inteligente controla seus ministros são somente os dois

punhos. Os dois punhos são a punição e a recompensa. Que signifi cam o castigo e a

recompensa? Quando se infl ige a morte ou a tortura em cima dos culpados, é chamado

castigo; já os incentivos para homens do mérito são chamados de recompensa. Os

ministros são receosos da censura e da punição, mas são afeiçoados ao incentivo e a

recompensa. Consequentemente, se o senhor dos homens usar os punhos do castigo e da

recompensa, todos os ministros temerão sua severidade e, por seu turno, sua liberdade.

(...) Agora, supondo que o senhor dos homens colocasse sua autoridade da punição

e do lucro não em suas mãos, mas deixando os ministros administrarem os casos de

recompensa e de punição, a seguir todos no país temeriam os ministros, e também a

regra, voltando-se para os mesmos e afastando-se da última. Esta é a calamidade da

perda da regra dos punhos do castigo e da recompensa (HANFEIZI, 2011).

Nesses trechos, observamos a presença de quatro discursos distintos sobre a administração

da sociedade.

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O Extremo Oriente na Antiguidade

138

Identifi que às quais escolas eles pertencem e quais as suas características fundamentais.

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Resposta Comentada

O primeiro, de Confúcio e Mêncio, é da escola dos letrados, o segundo, dos daoístas, o terceiro,

dos moístas e o quarto, dos legistas. No primeiro, deve-se destacar que a preocupação dos

letrados é o projeto de educação das pessoas e da defesa de uma boa e sábia administração

pública; no segundo, dos daoístas, valorizar o aspecto do desprendimento das questões materiais

e morais; no terceiro, moísta, identifi car o padrão igualitário que os moístas desejavam para a

sociedade; por fi m, nos legistas, a importância da lei, como elemento fundamental do Dao legista.

RESUMO

Nesta aula, vimos a dinastia Zhou, o período das Cem Escolas

de pensamento e o período dos Estados Combatentes.

Informação sobre a próxima aula

Na próxima aula, conheceremos as dinastias Qin e Han, as

primeiras dinastias do novo Império chinês.

Page 140: Extremo oriente da antiguidades

André da Silva Bueno

Aula 6

A d d S l

As dinastias Qine Han

Page 141: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

140

Meta da aula

Discutir os aspectos gerais das dinastias chinesas Qin e Han, que reunifi cam a China

antiga e inauguram um novo período imperial.

Objetivos

Esperamos que, ao fi nal desta aula, você seja capaz de:

1. identifi car os elementos básicos da dinastia Qin e da dinastia Han;

2. reconhecer um quadro geral da civilização chinesa neste período e a formação do

novo grande Império chinês, cujo modelo subsistiria até o século +20.

Page 142: Extremo oriente da antiguidades

Aula 6 – As dinastias Qin e Han

141

INTRODUÇÃO

Você, talvez, já deve ter ouvido falar da incrível tumba dos

guerreiros de terracota da China. É, provavelmente, o maior túmulo

já encontrado no mundo, só tendo como rival em antiguidade e

tamanho as pirâmides do Egito. Milhares de guerreiros de barro

cozido (a terracota) guardam o caixão do autointitulado “primeiro

imperador Qin” ou Qinshi Huangdi, que até agora não foi aberto.

Estima-se que inúmeros tesouros de pedras preciosas, objetos

arqueológicos e materiais históricos preciosos possam ser perdidos

ou degradados com a abertura da câmara central.

Essa fi gura enigmática, autoritária, mas, também, poderosa

e arrebatadora, conseguiu construir um dos maiores impérios da

Antiguidade. Ele já foi retratado como ditador, mas fi lmes como

O herói, de Zhang Yimou, tentam resgatar sua imagem, mostrando-o

como um visionário incompreendido. Nesta aula, buscaremos

entender um pouco mais sobre o império que ele fundou, após o

catastrófi co período dos Estados combatentes. Os excessos de sua

administração, porém, fi zeram com que a dinastia fosse rapidamente

derrubada por uma guerra civil após sua morte, levando ao poder a

Casa de Han, criadora de um regime imperial mais ameno, afável e

intelectual, que resgatou o confucionismo e a educação, abriu suas

portas para o mundo através da famosa Rota da Seda e criou as

bases sobres as quais todas as dinastias posteriores se seguiriam,

até o fi m do Império, em 1911. Vejamos, mais detalhadamente,

estas e outras histórias que fazem parte destes impérios.

TerracotaMaterial feito por

argila cozida no forno, utilizado em cerâmica e construção. O termo

"terracota" também pode estar relacionado

a objetos feitos com esse material ou à sua

cor natural, laranja-acastanhado.

Page 143: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

142

Dinastia Qin

Figura 6.1: Mapa da dinastia Qin.Fonte: http://www-chaos.umd.edu/history/welcome.html

Relativamente bem documentado, o período Qin-Han estabe-

leceu as bases sobre as quais as dinastias posteriores iriam governar

a China. A estrutura construída era tão sólida que não só resistiu ao

tempo como foi capaz de converter povos e dinastias estrangeiras

aos modos chineses.

Os Qin empreenderam uma reforma completa na sociedade e

no governo, utilizando-se das teorias legistas para tal fi m. Ainda que

seu reinado tenha sido breve, entre -206 a -221, eles unifi caram o

poder em torno da fi gura do imperador Qinshi Huangdi, suprimindo

grande parte da infl uência e dos direitos dos nobres. Centralizaram a

Leon

Poo

n

Page 144: Extremo oriente da antiguidades

Aula 6 – As dinastias Qin e Han

143

administração pública nas mãos do corpo burocrático, estabelecendo

as diretrizes funcionais dos cargos e atributos das posições. Como

afi rma J. Gernet:

O que importa é que o príncipe seja a única fonte de

benfeitorias e de honras, de castigos e de penas. Se delega

a menor parte que seja do seu poder, corre o risco de criar

rivais, que cedo tentarão usurpar-lhe esse poder. Do mesmo

modo, é necessário que as atribuições dos funcionários

do Estado sejam estritamente defi nidas e delimitadas para

que não surja nenhum confl ito de alçada e para que os

funcionários não se aproveitem da imprecisão dos seus

poderes, para se arrogarem uma autoridade ilegítima. Mas,

acima de tudo, o que deve assegurar o funcionamento do

Estado é a instituição de regras objetivas, imperativas e gerais.

(...) Não só deve a lei ser pública, conhecida por todos,

não consentindo qualquer interpretação divergente, mas

também a sua própria aplicação deve ser independente dos

juízos incertos e variáveis dos homens. A ideia era impedir

a superposição e a concentração de poder nas mãos de

elementos discordantes do governo, o que poderia criar novas

sublevações (GERNET, 1969).

Sugestões de fi lmes sobre o período Qin

Três fi lmes retratam um pouco da época Qin

e são uma excelente fonte de informação para

nós. O primeiro, que já comentamos, é O herói

(2002), de Zhang Yimou, que trata de uma suposta

conspiração para matar Qinshi Huangdi, tendo

o artista Jet Li no papel principal. O fi lme aborda

muito bem os dilemas que tanto o assassino quanto

o imperador vivenciam para realizar a unifi cação do

país. Já o fi lme O imperador e o assassino (1998), de

Jing Ke, trata de um acontecimento real: a trama

Page 145: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

144

malsucedida de assassinato do imperador Qinshi

Huangdi, documentada nos "Registros Históricos" (Shiji),

de Sima Qian. Nesse fi lme, Qinshi é abordado como

uma fi gura corajosa, porém indecisa e levada à prática

do mal, uma vítima das circunstâncias de sua época.

Fon te : h t tp ://www.ba ixe f i lmeon l i ne .com/2011/02/download-o-pequeno-grande-guerreiro_25.html

Por fi m, O pequeno grande guerreiro (2010), de Jackie

Chan, o famoso lutador-comediante, aborda o confl ito

e as intrigas entre os reinos que levam à guerra civil no

período dos Estados combatentes. Um camponês covarde

e engraçado (Jackie) consegue capturar um general

inimigo e tenta levá-lo para sua terra natal para obter a

recompensa. Ambos passam diversas aventuras juntos,

que retratam o confuso contexto da época. Esse fi lme,

porém, não é uma comédia, como as outras obras do

ator, mas uma de suas primeiras tentativas num gênero

de aventura mais sóbrio e até mesmo dramático.

Page 146: Extremo oriente da antiguidades

Aula 6 – As dinastias Qin e Han

145

O regime centralizado possuía características despóticas, e

essa era a real intenção dos Qin. Pelo controle burocrático estatal,

diminuía-se a capacidade de afi rmação das elites de cada um dos

principados, fi ltrando a participação das mesmas no regime através

da atuação junto ao governo.

No campo econômico, as mudanças políticas também surtiram

efeito junto à produção agrícola, manufatureira e nas obras públicas.

Houve uma reformulação na arrecadação de impostos, no

recolhimento de reservas em grãos para as épocas de carestia, crise

ou guerra, e o estímulo ao comércio externo. Grandes obras de

irrigação, barragens, arroteamento de novos terrenos e fortifi cação

de cidades foram empreendidas, ao custo de milhares de escravos,

servos e camponeses livres convocados para o trabalho compulsório.

A Grande Muralha é um dos demonstrativos do projeto megalômano

de Qinshi Huangdi: construída pela união de várias outras pequenas

muralhas locais, seu objetivo era regular a presença dos nômades

do Norte nas fronteiras chinesas.

Figura 6.2: A extensão da Grande Muralha.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:GreatWallofQinDynasty.png

D-K

uru

Page 147: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

146

Quase trezentas mil pessoas foram empregadas na

construção da Grande Muralha, entre soldados,

camponeses e condenados. Qinshi estava preocupado

com as invasões na fronteira norte, provocadas por

povos nômades, vindos das estepes mongólicas

(onde hoje se localiza o país do mesmo nome, a

Mongólia). Por outro lado, a construção da muralha

representava uma “obra nacional”, que concentrava as

atenções do povo e garantia o controle sobre ele. O

imperador aproveitou partes de muralhas construídas

anteriormente e conectou-as numa só, estabelecendo

uma vigilância efi caz sobre o Norte da China.

Contudo, a muralha foi relativamente abandonada

após o governo Qin, sendo apenas retomada de modo

efetivo durante o governo Ming, já no século +14.

Conta uma lenda que tantas pessoas morreram na

construção da muralha que uma viúva, transtornada

pela perda do seu marido, chorou aos pés do grande

muro copiosamente durante dias. A muralha apiedou-

se dela e devolveu o corpo de seu marido, que havia

sido incorporado à argamassa.

As lendas sobre a muralha não terminam por aí: uma

das mais difundidas, na era moderna, é de que ela

pode ser observada do espaço, quando, na verdade,

ela mal pode ser vista a três quilômetros de distância.

Alguns trechos da muralha não têm mais do que cinco

metros de altura.

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Aula 6 – As dinastias Qin e Han

147

Figura 6.3: Muralha da China em 1907. Notem o total estado de abandono da mesma. Nessa época, tijolos eram retirados ou roubados para a construção de casas populares.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Greatwall_large.jpg

Qinshi Huangdi ainda fez mais pelo Império chinês: unifi cou

pesos, medidas e moedas para facilitar o trânsito de mercadorias.

Promoveu também a uniformização dos ideogramas, criando o

primeiro dicionário gramático da língua chinesa de caráter universal.

Esta síntese permitiu que, nos séculos posteriores, várias outras

nações pudessem falar e escrever chinês, sendo a base, ainda, dos

ideogramas modernos.

Em meio a tantas medidas positivas, a dinastia Qin também

foi marcada pela violência: perseguições aos sábios discordantes

do regime, queima de livros, supressão de práticas religiosas, culto à

imagem do imperador, exaustão das classes baixas pela exploração

do trabalho... Desse modo, a unifi cação do Império teve um alto custo

Fina

von

Page 149: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

148

social, que em breve despertou a insatisfação popular. Para se ter uma

ideia, o imperador, aconselhado por seu ministro legista Lisi, comandou

a execução de mais de 400 intelectuais que discordavam das medidas

arbitrárias do regime e realizou a primeira grande queima de livros

da história da humanidade. Uma ironia macabra, se pensarmos que

foi essa mesma civilização que criou o papel e a impressão gráfi ca...

O reinado de Qinshi Huangdi foi marcante, porém efêmero:

em -210 ele morre, provavelmente envenenado por elixires que

tomava para obter a imortalidade. Onde vários assassinos falharam,

a vaidade enterrou o tirano. Depositado em seu fabuloso mausoléu,

descoberto em 1974, foi guarnecido por soldados de terracota que,

planejados para defendê-lo em outro mundo, não puderam protegê-

lo da fúria dos camponeses. A tumba foi saqueada e soterrada.

Sem deixar substitutos à altura, a China foi lançada numa nova

guerra civil, mas dessa vez rápida, que fez ascender ao poder o

ex-camponês Liu Bang, fundador da dinastia Han, em -206.

A tumba dos guerreiros de terracota de

Qinshi Huangdi

Figura 6.4: Imagem dos guerreiros de terracota alinhados.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Terracotta_Army-China2.jpg.

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Page 150: Extremo oriente da antiguidades

Aula 6 – As dinastias Qin e Han

149

A realização de grandes obras públicas foi uma das

marcas do governo Qin – e um modo de deixar o

povo ocupado, requisitando-o constantemente, o que

na mente dos ministros de Qin evitaria o surgimento

de pensamentos perniciosos. A tumba do imperador

foi planejada nesse sentido. Qinshi levou ao extremo

um costume religioso, herdado da época Zhou, e

resolveu que enterraria consigo uma cópia inteira

de seu exército e servidores fi éis, de modo que

esses o servissem do “outro lado”. Eles foram feitos

em terracota, ou barro cozido, um material fácil de

manipular e moldar em larga escala. Os corpos dos

soldados foram feitos em moldes, o que garantia

a rapidez na produção e reposição, e somente as

cabeças foram encaixadas em separado – e nenhuma

é igual a outra, o que deu origem à lenda de que

o imperador teria ordenado que cada um de seus

soldados posasse para a confecção de seus bustos.

A tumba foi descoberta por acidente, em 1974, e

levou um tempo para que os arqueólogos entendessem

a magnitude da descoberta. Naquele mesmo ano,

alguns livros de história chinesa foram retirados das

prateleiras, pois haviam fi cado desatualizados, de

um momento para outro. A tumba era uma fábula até

então, e ninguém acreditava ao certo que existisse.

Hoje, estima-se que apenas um quinto a um décimo

tenha sido escavado, e seu tamanho gigantesco tornou

qualquer previsão de término da escavação inviável.

Mas a pergunta é: por que Qinshi Huangdi fez

questão de morrer com seu exército? Dentro da lógica

religiosa chinesa da época, como vimos, desde

a época Zhou, cópias em barro ou bronze eram

magicamente associadas às pessoas, para que se

evitassem os sacrifícios humanos. Assim, uma estátua

Page 151: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

150

de barro transformava-se num tipo de autômato, com

vida, que serviria ao falecido no mundo dos mortos.

O objetivo de Qinshi, portanto, era claro: mais do

que unifi car a China terrestre, ele queria também

conquistar a China celeste e, se possível, unifi car o

mundo dos vivos e dos mortos num só...

Figura 6.5: Ao contrário do que se imagina, os guerreiros de terracota eram totalmente coloridos e não cor de barro. Hoje, estuda-se um meio para reconstituir com exatidão os esquemas de cores originalmente utilizados.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Terracotta_colour.jpg

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Aula 6 – As dinastias Qin e Han

151

Atende ao Objetivo 1

1. Análise de texto:

Édito Qin, promulgado por Lisi, primeiro-ministro de Qinshi Huangdi

No passado, o Império passou por diversas difi culdades e confrontos. Ninguém conseguia

unifi cá-lo. Vários príncipes reinavam ao mesmo tempo. Os letrados discutiam sempre as

mesmas coisas e adiavam a solução dos problemas. Até hoje, eles usam falsas ideias para

lançar confusão entre as pessoas e desrespeitar as decisões do soberano. Assim como

o imperador submeteu-se a todos, eles também têm de se submeter a vossa majestade.

Afi nal, quando eles estão na corte, escondem suas críticas, mas discutem nas ruas suas

ideias, encorajando a subversão. Assim, se o imperador não tomar uma decisão séria

contra isso, em breve seu poder estará ameaçado. Assim, vosso ministro propõe que os

exemplares do Shujing e do Shijing, bem como os livros das cem escolas, sejam entregues

aos funcionários para serem queimados. Aqueles que elogiarem o passado e denegrirem

o atual regime serão executados junto com suas famílias. (...) Os cinco imperadores não

imitaram uns aos outros e as três dinastias não seguiram o exemplo das anteriores. Cada

dinastia tem sua forma de governar e a de Qin é a atual. O imperador fundou uma glória

que vai durar dez mil gerações, mas os letrados não entendem isso. Continuam invocando

o passado de Shun e das três dinastias. Quando os soberanos ouviam os letrados, só havia

guerra, mas agora o Império foi pacifi cado. As leis e as ordens emanam de um só poder

unifi cado. O povo trabalha na agricultura e no artesanato, os funcionários estudam as leis

e os métodos de governo; mesmo assim, os letrados conduzem-se do modo que querem e

utilizam as histórias e o passado para bagunçar o presente e confundir o povo. Por isso,

seu ministro devotado manda avisar: um mês após este decreto, aqueles que não tiverem

queimado seus livros serão aprisionados e condenados a trabalhar na grande muralha.

Os livros permitidos serão apenas os de Medicina, adivinhação, Agricultura e Botânica.

Os que quiserem estudar as leis e o governo, devem se tornar funcionários públicos.

Fonte: BUENO, A. Disponível em: http://chinologia.blogspot.com/2009/08/politica.html

Page 153: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

152

Explique qual a relação desse texto com a Escola Legista, responsável pela unifi cação

do governo Qin. Relembre os conteúdos da aula anterior (Aula 5) para estabelecer a

comparação sugerida.

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Resposta Comentada

Nesse texto, encontramos o édito pelo qual Lisi, ministro de Qinshi Huangdi, ordena a perseguição

aos letrados e a punição daqueles que possuíssem livros, discordantes da ideologia legista. O

objetivo era o de unifi car o pensamento do povo, criando uma ideologia única, que punia a

discordância e proibia a diferença. Para os legistas, a possibilidade de se “pensar diferente”

era uma incitação à sedição e à confusão. O resultado, como sabemos, foi a execução de mais

de 400 pensadores da época, que se recusaram a aceitar essas medidas que consideravam

injustas e arbitrárias.

Page 154: Extremo oriente da antiguidades

Aula 6 – As dinastias Qin e Han

153

Dinastia Han

Figura 6.6: Mapa da dinastia Han. Note a extensão para oeste, ligada à Rota da Seda.Fonte: http://www-chaos.umd.edu/history/imperial.html

Os Han foram ainda mais efetivos na administração do Império,

embora tenham suavizado suas características autoritárias. Preservando

muito da estrutura administrativa Qin, algumas reformas foram feitas

para dinamizar a burocracia: realização de exames para a admissão

de funcionários, criação de escolas públicas e universidades para

formação e renovação do corpo e ampliação dos quadros. Reformaram

o exército, combatendo de forma efi caz os sempre ameaçadores

bárbaros do Norte. Restituíram parte dos títulos nobiliárquicos, mas

sem a importância dos tempos Zhou. No campo ideológico, a grande

reforma foi a adoção do confucionismo como doutrina ofi cial de Estado,

o que alçou a posição desta escola ao patamar de ideologia estatal.

Leon

Poo

n

Page 155: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

154

Figura 6.7: Fragmento de uma estela de pedra com parte de um texto confucionista. Durante o período Han, os clássicos confucionistas foram reconstituídos, após a queima de livros feita pelos Qin. A versão fi nal desses textos foi gravada em pedra, para a posteridade.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:CMOC_Treasures_of_Ancient_China_exhibit_-_fragment_of_Xiping_stone_classics.jpg.

Foi um período fértil para a cultura chinesa: o daoísmo também

se desenvolveu bastante (tanto como fi losofi a quanto religião), e o

Império ainda recebeu a entrada dos primeiros pregadores budistas.

A literatura cresceu em todos os campos, estendendo-se pela Filosofi a

(que encontra um período de fusão incomum entre diversas correntes,

dando origem aos chamados “pensadores ecléticos”), pela História

(é a época de Sima Qian), pelo romance, pela poesia etc. Há uma

renovação da arte, promovida pelo contato com novas estéticas, vindas

do estrangeiro. Destaca-se a inventividade da cerâmica, do bronze e o

desdobramento de novas técnicas, como o relevo e a pintura:

Edito

r at l

arge

Page 156: Extremo oriente da antiguidades

Aula 6 – As dinastias Qin e Han

155

A pintura da dinastia Han inicia na arte chinesa uma linguagem

verdadeiramente nova e característica. Se até agora o

esplendor dos exemplares modelados no bronze ou no barro,

ou a preciosidade dos jades talhados nos surpreendem pela

capacidade e genialidade de transmitir com extremo rigor

formas puras, magnífi cas de cor, preciosas pelo contorno e

pela intrínseca beleza da matéria, subordinada aos valores

da arte, a pintura Han apresenta-nos uma página de vida

vívida e amada. (...) É um mundo em si vivido e impossível de

repetir, cuja linguagem atinge uma íntima expressão de vida.

Se podemos interpretar o caráter de um rito, segundo as formas

do vaso, se da geometria de um túmulo podemos deduzir a

concepção social de uma civilização, a obra pictórica chinesa

fala-nos uma linguagem mais universal, mais fácil e evidente:

fascina-nos para nos fazer participar num instante de vida que

destrói as distâncias no tempo e no espaço (PISCHE, 1963).

Figura 6.8: Esta famosa lamparina em bronze do período Han mostra a habilidade de seus artistas. O foco em que é colocado o pavio é móvel, podendo apontar a luz em direções diferentes.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:ChangXingongdeng.jpg.

Shiz

hao

Page 157: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

156

Política Han

Os Han desenvolveram ainda mais a expansão do Império

em direção a oeste. Durante o reinado de Wudi (século -2 a -1),

estabelecem-se contatos com os impérios do Ocidente (Roma e

Partia) e com a Índia, abrindo a Rota da Seda (que analisaremos

detalhadamente na Aula 12) para difundir suas mercadorias em

todas as partes do Mundo Antigo:

A mais importante realização do reinado de Wudi foi sem

dúvida a expansão do poder chinês e dos limites territoriais

da China, fatos que merecem um exame mais detalhado. A

expansão deu-se em três direções: para o noroeste, para o

nordeste e para o sul. O primeiro imperador Han, Gao Zu (Liu

Bang), como vimos, teve de enfrentar o problema – que, mesmo

naquela época, não era novo – dos nômades das estepes. Os

Xiong-nu haviam conseguido uma forte liderança antichinesa

ao formarem uma confederação regional de tribos. Havia na

corte chinesa uma corrente contrária à solução conciliatória

e ao acordo, com base no fato de que as doações feitas

aos líderes Xiong-nu aumentavam não só sua riqueza, mas

também seu poder de oposição. Por outro lado, a política

exterior chinesa, de caráter pacífi co, havia conseguido tirar

proveito dos acordos de paz com os nômades, da seguinte

maneira: os reféns das tribos que eram enviados à corte

chinesa como garantia de bom comportamento não só eram

tratados magnifi camente, mas também recebiam educação

chinesa e até postos nas funções palacianas. Assim, quando

voltavam a seus lares, incentivavam amizade com a China

e davam oportunidade de os chineses intervirem na política

local, quando fosse o caso (MORTON, 1986).

Page 158: Extremo oriente da antiguidades

Aula 6 – As dinastias Qin e Han

157

Figura 6.9: Mapa da Rota da Seda.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Transasia_trade_routes_1stC_CE_gr2.png.

Quem eram os Xiong-nu?

Sima Qian conta-nos que os Xiong-nu constituíam

um povo seminômade que, ocasionalmente,

forçado pela fome ou por interesses políticos,

fl agelava as fronteiras no Norte chinês com ataques e

saques súbitos e devastadores. Enquanto Qin buscou

afastá-los com muralhas, os Han resolveram suborná-

los com tesouros e casamentos arranjados, o que de

início deu resultado. No entanto, com o passar do

tempo, os Xiong-nu perceberam que podiam extorquir

cada vez mais e mais recursos da dinastia Han, sob a

ameaça de invadi-la. O imperador Wudi entendeu que

a situação era insustentável e utilizou os tributos que

enviava para eles na formação de um exército, que os

Shiz

hao

Page 159: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

158

derrotou em defi nitivo e pacifi cou por anos a fronteira

norte. Os Xiong-nu, que não foram aculturados, então

foram expulsos, dirigindo-se para o oeste. Após

alguns séculos de peregrinação, passando pela Índia

e Pérsia, eles chegaram à Europa causando terror,

fi cando conhecidos na história romana como hunos...

A vida dos Han

A vida dos Han testemunhou uma série de progressos notáveis

também na economia e na tecnologia:

O mundo chinês manifesta, a partir da segunda metade do

século -2, uma vitalidade notável, confi rmada pelos testemunhos

concordantes dos textos e da arqueologia. Benefi cia-se dos

progressos, conseguidos no decurso desse período, tão rico

em inovações, como foi o dos dois séculos que precederam

o Império, e das vantagens proporcionadas pela unifi cação

política. (...) Mas existiam também empresas privadas, criadas

por famílias de ricos mercadores. Acontecia o mesmo com as

lacas, fabricadas sobretudo no Sichuan e no Henan. Algumas

peças encontradas em estações arqueológicas trazem o nome

do artífi ce que dirigiu o seu fabrico e outras não trazem

nenhuma marca e poderiam provir de ofi cinas particulares.

As descobertas arqueológicas e as alusões de certos textos

deixam supor que as empresas privadas tiveram um papel

importante na economia da China dos Han. (...) Verifi caram-

se nítidos progressos no domínio da produção e das técnicas

agrícolas. Os instrumentos de ferro são de melhor qualidade

que nos séculos -4 e -3 e o uso do arado, puxado por bois

generaliza-se. Na época do imperador Wu, foi empreendido

um enorme esforço para aumentar a superfície das terras

regadas e para valorizar novas terras na China do Norte.

Page 160: Extremo oriente da antiguidades

Aula 6 – As dinastias Qin e Han

159

Agrônomos experimentados são encarregados de difundir

novos métodos de cultura e, a partir de fi ns do século -1,

certos funcionários esforçam-se por converter à cultura dos

cereais as tribos nômades, estabelecidas aquém das Grandes

Muralhas.(...) Verdadeiramente, mesmo na época em que o

controle do Estado sobre a economia do Império era mais

efi caz, o governo central contou sempre com os notáveis

locais. Uma das particularidades sociais da época dos Han no

seu conjunto é, com efeito, a existência de famílias riquíssimas

que dirigem simultaneamente empresas agrícolas (produção

cerealífera ou agrícola, pastorícia, piscicultura etc.), industriais

(fi ação, fundições, lacas etc.) e comerciais, e que dispõem de

uma abundante mão de obra (GERNET, 1969).

Figura 6.10: Reprodução em cerâmica do maquinário utilizado numa fazenda. Temos uma joeira a manivela, que separa o joio do grão, uma prensa de grãos, com um martelo de balanço, para produção de farinha.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Winnowing_machine_and_tilt_hammer.JPG.

Tais evidências sobre o processo constante de evolução

econômica, política e tecnológica advêm de um intenso controle

que o Império buscara exercer sobre as atividades produtivas –

uma marca, evidentemente, do período legista, mas fundamental

Peric

les

of A

then

s

Page 161: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

160

para compreender a estrutura do pensamento estatal chinês deste

período. Sima Qian destaca, em um capítulo do Shiji, a importância

que a produção e o comércio alcançam, em sua época, para a

vida cotidiana:

Os homens do campo os produzem [os bens de consumo], os

atacadistas os trazem do interior, os artesãos trabalham neles

e os mercadores com eles negociam. Tudo isto se verifi ca sem

a intervenção do governo ou dos fi lósofos. Cada qual faz o

melhor que pode e utiliza seu trabalho para obter o que quer.

Assim, os preços procuram seu nível, indo as mercadorias

baratas para onde são mais caras e dessa forma baixando

os preços mais altos. As pessoas seguem suas respectivas

profi ssões e o fazem por sua própria iniciativa. É como o fl uir

da água, que procura o nível mais baixo dia e noite, sem

parar. Todas as coisas são produzidas pelo próprio povo sem

que lho peçam e transportadas para onde há precisão delas.

Não é verdade que tais operações ocorrem naturalmente, de

acordo com seus próprios princípios? O Livro de Zhou diz:

“Sem os lavradores, não serão produzidos víveres; sem os

artesãos, a indústria não se desenvolverá; sem os mercadores,

os bens de valor desaparecerão; e sem os atacadistas, não

haverá capitais e os recursos naturais de lagos e montanhas

não serão explorados.” Nossos alimentos e nossas vestes vêm

dessas quatro classes, e a riqueza e a pobreza variam com o

volume dessas fontes. Com isso, em escala maior, benefi cia-

se um país; em escala menor, enriquece-se uma família. São

estas as inevitáveis leis da riqueza e da pobreza. Os argutos

têm bastante e poupam, ao passo que os estúpidos nunca

têm quanto baste (...) (SHIJI).

Page 162: Extremo oriente da antiguidades

Aula 6 – As dinastias Qin e Han

161

CONCLUSÃO

Por conta disso, tanto a experiência dos Qin quanto a dos Han

foram defi nitivas para o estabelecimento de um novo Império chinês.

Foi a partir deste momento que a sociedade constituiu a estrutura

mais duradoura de sua existência, encontrando seu apogeu na

mesma época Han e, depois, com os Tang (+618 a +907). Nunca,

depois do terceiro século, a China criaria outro sistema imperial

que não fosse diretamente inspirado no antigo regime Han. Este foi

o marco da Antiguidade chinesa, sobre o qual a civilização iria se

desenvolver posteriormente.

Atividade Final

Atende aos Objetivos 1 e 2

Lujia – o governo ideal

Ao assumir o poder e fundar a dinastia Han, Liu Bang era um ex-burocrata, capaz e

audacioso, porém intelectualmente limitado. Lujia foi um dos fi lósofos que se apresentaram

perante a corte e ofereceu seus préstimos ao novo soberano. Liu Bang, a princípio, ignorou

o pensador, dizendo-lhe: “Conquistei o Império em cima de um cavalo, que mais preciso?”,

ao que Lujia respondeu: “O senhor o conquistou em um cavalo, mas pode governá-lo de cima

dele?” Esta mistura de sabedoria e insensatez conquistou a confi ança do novo imperador.

Lujia escreveu, então, seu tratado Xinyu ou “Novas Discussões”:

O primeiro governante de Qin reforçou as punições penas, inventou o suplício do

emparedamento, a fi m de pôr um freio na delinquência e na sedição. Edifi cou uma

grande muralha sobre as terras dos bárbaros rong e construiu defesas contra os

nômades das estepes e os nativos das fl orestas ao sul. Lançou campanhas contra os

grandes Estados – e tomou os pequenos reinos. Seu prestígio fazia tremer o universo.

Seus exércitos tomaram o império – e subjugaram os povos estrangeiros. Seu ministro

Page 163: Extremo oriente da antiguidades

O Extremo Oriente na Antiguidade

162

Meng Qian reprimiu os problemas internos, bem como Lisi impôs impiedosamente a lei.

Porém, por mais que Qin se impusesse por meios militares, as revoltas aumentaram; por

mais severa que a lei fosse, o povo prevaricava ainda mais; quanto mais cavalheiros

e sábios foram perseguidos, mais cresceu o número de inimigos. Não que Qin não

desejasse impor a ordem, mas ele não conheciam a justa medida, como provam suas

numerosas iniciativas e suas punições excessivas. Um príncipe deve ser generoso e

liberal, e deve preservar a vida; ele deve adotar uma conduta conciliadora e equânime,

se deseja controlar ao longe. O povo aceitará sua autoridade, bem como se submeterá

à sua infl uência civilizadora. Promovido por sua grandeza, ele infl uirá sobre todo o

território; admirarão seu governo e ele não terá problemas com as leis. As pessoas serão

respeitosas quanto às suas sanções e zelosas sem a necessidade de recompensa. Estes

são os resultados que se consegue quando se apoia na impregnação da virtude e na

infl uência produtiva do que é correto e pacífi co. As leis e as regras servem para reprimir

os violentos (...), [mas] quando o pequeno imita o grande, as minorias submetem-se às

maiorias e assim se alcança a paz. Na capital, o príncipe deve fornecer os modelos

nos quais o povo deve se inspirar. Por isso, um soberano deve sempre agir dentro das

normas. (...) os superiores infl uem nos inferiores como o vento dobra as ervas. Quando

um príncipe deve ir à guerra, os camponeses levam para o campo suas couraças. O

homem de bem rege os inferiores, mostrando-se parcimonioso quando o povo é pródigo

e se mostra regrado quando o povo é dispendioso e debochado. (...) Por isso, que

Confúcio disse “transformar os hábitos e mudar os costumes” seria como comandar

cada família e cada pessoa. Para isso, o príncipe deve simplesmente dar a si mesmo

como modelo para todos.

Qual a relação do discurso de Lujia como estabelecimento da ideologia confucionista do

Império Han?

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Aula 6 – As dinastias Qin e Han

163

Resposta Comentada

Lujia propõe que o governo seja mais brando e menos violento do que o de Qin. Ele afi rma que

a ideologia legista de Qin foi prejudicial, pois causou descontentamento e revolta. Baseado

nos princípios confucionistas adotados pelos Han, poderia ser criada uma sociedade mais

justa e produtiva.

RESUMO

Nesta aula, aprendemos um pouco mais sobre as dinastias

Qin e Han, responsáveis pela construção do modelo de império

mais duradouro da história mundial.

Informação sobre a próxima aula

Na próxima aula, analisaremos diversos aspectos da vida e

da cultura chinesa na Antiguidade.

Page 165: Extremo oriente da antiguidades
Page 166: Extremo oriente da antiguidades

Refe

rênc

ias

O Extremo Oriente na Antiguidade

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