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FACULDADE DE DIREITO
FERNANDA PAZUTTI DA SILVA
ABORTO DOS ANENCÉFALOS: o histórico julgamento da ADPF 54 do Supremo Tribunal Federal
CANOAS 2013
FERNANDA PAZUTTI DA SILVA
ABORTO DOS ANENCÉFALOS: o histórico julgamento da ADPF 54 do Supremo Tribunal Federal
Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Me. José Francisco de Fyschinger
CANOAS 2013
FERNANDA PAZUTTI DA SILVA
ABORTO DOS ANENCÉFALOS: o histórico julgamento da ADPF 54 do Supremo Tribunal Federal
Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito, pela banca examinadora constituída
por:
___________________________________ Nome do Professor
___________________________________ Nome do Professor
___________________________________ Nome do Professor
CANOAS 2013
Dedico este trabalho aos meus pais, Valmir e Jane, e à minha irmã Milene, como forma de agradecimento por todo apoio, paciência e amor incondicional.
Agradeço aos professores, que fizeram parte da minha formação acadêmica, em especial ao meu professor orientador José Francisco de Fyschinger, pelos estímulos e companheirismo durante a realização do presente trabalho. Aos meus colegas, que me acompanharam durante esses anos e fizeram a diferença no meu dia a dia. Às minhas amigas, que sempre me incentivaram, apoiaram e, principalmente, compreenderam a minha ausência.
A vida e a morte, dois extremos, dois opostos, dois fenômenos em cuja sequência se desenvolve todo o destino do homem, do ser humano considerado como pessoa de direito (D. GOGLIANO).
RESUMO
A presente monografia objetiva ponderar sobre a interrupção da gestação de fetos anencefálicos, desde o pleito, a tramitação até o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, que estendeu-se por quase oito anos desde que foi levada pela primeira vez ao STF, para, então, resultar em decisão histórica do Pleno da Suprema Corte. Abrange, também, estudos referentes à anencefalia, o aborto e o aborto de anencéfalos, especificamente. Um dos temas mais controversos, polêmicos e antigos da sociedade, o aborto enseja posições totalmente divergentes, compreendendo aqueles que almejam a descriminação, principalmente no que tange à anencefalia, assim como aqueles que defendem de forma incondicional e absoluta que sua proibição se mantenha. Porém, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação de que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta típica, prevista nos artigos, 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal. Ou seja, que é atípica a conduta realizada pela gestante quando opta por realizar a interrupção da gestação do feto anencefálico.
Palavras-chave: Anencefalia. Interrupção da gestação de fetos anencefálicos. Aborto. ADPF 54. Supremo Tribunal Federal.
LISTAS DE SIGLAS
ADI Ação Direita de Inconstitucionalidade
ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
ANIS Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
CF Constituição Federal
CNTS Conselho Nacional dos Trabalhadores da Saúde
CP Código Penal
DATN Defeito aberto do tubo neural
DFTN Defeito do fechamento do tubo neural
DHEG Doença hipertensiva específica da gestação
FEBRASGO Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia
FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz
HC Habeas Corpus
IEG Interrupção eugênica de gestação
IFF Instituto Nacional Fernandes Figueira
ISC Interrupção seletiva da gestação
ITG Interrupção terapêutica da gestação
IVG Interrupção voluntária da gestação.
ONU Organização das Nações Unidas
STF Superior Tribunal de Justiça
STF Supremo Tribunal Federal
SUS Sistema Único de Saúde
THEMIS Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................... 9
2 ANENCEFALIA: ELEMENTOS ESSENCIAIS.................................... 11
2.1 DEFINIÇÃO MÉDICA........................................................................... 11
2.2 A POLÊMICA EM TORNO DO CONCEITO VIDA DO ANENCÉFALO 20
2.3 PRECEDENTES HISTÓRICOS DE ANENCEFALIA NO BRASIL ...... 26
2.3.1 Caso Severina..................................................................................... 26
2.3.2 Caso Gabriela..................................................................................... 29
2.3.3 Caso Marcela de Jesus...................................................................... 30
3 ABORTO NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA........................... 32
3.1 HISTÓRICO JURÍDICO SOBRE O ABORTO...................................... 32
3.2 PUNIÇÃO E EXCLUSÃO DO CRIME ................................................. 39
3.3 EM BUSCA DA DESCARACTERIZAÇÃO DO ABORTO DO FETO
ANENCEFÁLICO: UM OLHAR RETROSPECTIVO ............................
44
4 A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL Nº 54 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ........
56
4.1 O JULGAMENTO................................................................................. 56
4.1.1 Voto do Relator Ministro Marco Aurélio .......................................... 56
4.1.2 Voto da Ministra Rosa Weber ........................................................... 60
4.1.3 Voto do Ministro Joaquim Barbosa ................................................. 62
4.1.4 Voto do Ministro Luiz Fux ................................................................. 64
4.1.5 Voto da Ministra Cármen Lúcia ........................................................ 66
4.1.6 Voto do Ministro Ricardo Lewandowski ......................................... 69
4.1.7 Voto do Ministro Ayres Britto ........................................................... 73
4.1.8 Voto do Ministro Gilmar Mendes ..................................................... 74
4.1.9 Voto do Ministro Celso de Mello ...................................................... 79
4.1.10 Voto do Ministro Cezar Peluso ......................................................... 82
4.2 AS RAZÕES ADOTADAS PELO STF ................................................. 85
5 CONCLUSÃO...................................................................................... 89
REFERÊNCIAS.................................................................................................. 91
1 INTRODUÇÃO
A presente monografia expõe os caminhos que conduziram à atual
possibilidade da antecipação da gestação dos fetos anencefálicos, o que se deu
através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54,
julgamento realizado em abril de 2012, sob relatoria do Ministro Marco Aurélio de
Mello.
Através de uma retrospectiva sobre a interrupção da gestação dos
anencéfalos, desencadeou-se uma pesquisa envolvendo aspectos que
envolvessem todas as áreas relacionadas, como a medicina, a biomedicina, a
biologia e o direito.
Em primeiro momento, será abordada, em um capítulo específico, a
anencefalia e seus elementos essenciais, como a definição médica, as possíveis
causas que provocam essa malformação fetal e os métodos de prevenção; a
realização do diagnóstico de anencefalia atualmente, definições a respeito do
início da vida e a morte dos fetos anencefálicos, abordando, também, as
incidências, estatísticas, efeitos a respeito da anencefalia e os riscos ocasionados
às gestantes durante a gravidez.
Devido à inexistência de amparo legal para a interrupção da gestação de
fetos anencefálicos, cada gestante obrigava-se a recorrer à Justiça
individualmente, para, assim, obter a autorização para a interrupção, estando
dependentes de íntima convicção de juízes e promotores, que, muitas vezes,
acabavam não concedendo a autorização requerida, causando enorme
insegurança jurídica.
Até o julgamento da ADPF 54, em meados de 2012, ocorreram casos que
ficaram conhecidos frente à dificuldade encontrada pelas gestantes em obter uma
autorização judicial para realizarem a antecipação da gestação, como forma de
amenizar o sofrimento vivenciado. Casos como de Severina, Gabriela e Marcela
de Jesus, que serão abordados de forma específica ao decorrer da pesquisa.
Tema polêmico e de inimaginável antiguidade, o aborto teve grande
repercussão na mídia, principalmente no último ano, quando, após percorridos
10
quase oito anos desde a petição inicial interposta pelo Conselho Nacional dos
Trabalhadores da Saúde (CNTS), através do escritório Luís Roberto Barroso e
associados, o Supremo Tribunal Federal autorizou a antecipação do parto quando
comprovada a malformação fetal da anencefalia.
Longe de esgotar-se com pesquisas acerca da anencefalia e do aborto
dos anencéfalos, busca-se compreender quais foram os parâmetros e quais os
critérios utilizados pelos Ministros para fundamentarem seus votos; ou seja, a
pesquisa tem o objetivo principal de explorar se, ao julgar a Arguição de
Descumprimentos de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54), o Supremo Tribunal
Federal adotou parâmetros estritamente jurídicos, ou, por outro lado, adotou
parâmetros interdisciplinares, relacionados a fatores estranhos à teoria do crime.
Duas hipóteses eram aceitáveis: a primeira delas é de que o Supremo
Tribunal Federal resolveu o conflito com base em critérios puramente jurídicos,
vinculados à teoria do crime e no preceito fundamental de proteger e assegurar os
Direitos Humanos e a Dignidade da Pessoa Humana; a segunda, de que o STF,
seguindo uma tendência que se verifica nos últimos anos, buscou fazer uma
abordagem interdisciplinar sobre a questão, levando em consideração fatores que
não se relacionem estritamente com o exame da tipicidade da aludida conduta, ou
seja, abordando fatores religiosos, científicos ou sociais.
2 ANENCEFALIA: ELEMENTOS ESSENCIAIS
Este capítulo tem o objetivo de elencar os principais elementos referentes
à anencefalia, como, por exemplo, a definição médica a respeito dessa
malformação letal, suas possíveis causas e formas de prevenção, o diagnóstico,
incidências, repercussão e estatísticas comparativas entre o Brasil e os demais
países, bem como os problemas relativos à saúde da gestante que surgem
durante a gravidez de fetos anencefálicos. Abordará, ainda, as polêmicas em
relação à vida e à morte do feto anencéfalo, do ponto de vista biológico, médico e
jurídico, buscando embasamento legal na Constituição Federal, no Código Penal
e no Código Civil, assim como demais dispositivos legais. Finalizará abordando
casos de anencefalia em nosso país.
2.1 DEFINIÇÃO MÉDICA
A anencefalia representa um defeito de fechamento da porção anterior do
tubo neural e a espinha bífida na porção posterior, ocorrido aproximadamente nos
25º e 27º dias, respectivamente; mas o período crítico ocorre normalmente do 21º
ao 26º dia.1
O sistema nervoso do neonato está submetido a malformações
ocasionadas por anormalidades ocorridas durante o período embrionário ou fetal.
O ciclo considerado mais significativo para a formação do sistema nervoso do
embrião é o da formação do tubo neural, a qual ocorre entre a terceira e quarta
semanas de gestação. Indiscutivelmente, a anencefalia revela-se uma das mais
graves malformações congênitas do sistema nervoso central do embrião.2
Segundo Daniel Piovesan:
Anencefalia é um defeito no tubo neural (uma desordem envolvendo um desenvolvimento incompleto do cérebro, medula, e/ou suas coberturas
1 FONTELES, Cláudio; LEÃO, Cecília. II Seminário de Bioética – Regional Sul 1 (ADPF 54 e
Anencefalia). Disponível em: <www.anecencefalia.com.br>. Acesso em: 24 mar. 2013. 2 TERRUEL, Suelen Chirieleison. Anencefalia Fetal: causas, conseqüências e possibilidades de
abortamento. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/4787/1/Anencefalia-Fetal-CausasConsequencias-E-Possibilidade-De-Abortamento/pagina1.html>. Acesso em: 24 mar. 2013.
12
protetivas). O tubo neural é uma estreita camada protetora que se forma e fecha entre a 3ª e 4ª semanas de gravidez para formar o cérebro e a medula do embrião. A anencefalia ocorre quando a parte de trás da cabeça (onde se localiza o tubo neural) falha ao se formar, resultando na ausência da maior porção do cérebro, crânio e couro cabeludo. Fetos com esta disfunção nascem sem testa (a parte da frente do cérebro) e sem um cerebrum (a área do cérebro responsável pelo pensamento e pela coordenação). A parte remanescente do cérebro é sempre exposta, ou seja, não protegida ou coberta por ossos ou pele. A criança é comumente cega, surda, inconsciente, e incapaz de sentir dor. Embora alguns indivíduos com anencefalia talvez venham a nascer com um tronco rudimentar de cérebro, a falta de um cerebrum em funcionamento permanente deixa fora de alcance qualquer ganho de consciência. Ações de reflexo tais como a respiração, audição ou tato podem talvez se manifestar. A causa da anencefalia é desconhecida. Embora se acredite que a dieta da gestante e a ingestão de vitaminas possam caracterizar uma resposta, cientistas acreditam que há muitos fatores envolvidos.3
Conforme André Martins Lara:
A anencefalia é uma malformação que faz parte dos defeitos do fechamento do tubo neural (DFTN). Quando o defeito se dá na extensão do tubo neural, acontece a espinha bífida. Quando o defeito ocorre na extremidade distal do tubo neural, tem-se a anencefalia, levando a ausência completa ou parcial do cérebro e do crânio. O defeito, na maioria das vezes, é recoberto por uma membrana espessa de estroma angiomatoso, mas nunca por osso e pele normal. A anencefalia é uma malformação incompatível com a vida.4
Afirma-se que a anencefalia é uma malformação incompatível com a vida,
pois a ausência do tronco encefálico prejudica as funções mecânicas de
respiração e batimentos cardíacos, sendo este o responsável pelo controle
dessas funções vitais. Torna-se impossível a vida extrauterina, pois, sem o auxílio
de aparelhos que supririam essas necessidades vitais, ficaria o bebê vegetativo,
impossibilitado de desenvolver os sentidos.5
Do ponto de vista clínico, em análise realizada pela Federação Brasileira
das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO):
Anencefalia consiste em malformação congênita caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente
3 SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia (Coord.) Nos limites da vida: aborto, clonagem
humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.114. Tradução livre, retirado de: <http://www.anencephaly.net/anencephaly.html>. Acesso em: 11 mar. 2013.
4 LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello. Existe aborto de anencéfalos? Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6467>. Acesso em: 07 abr. 2013.
5 BASSO, Marco Antonio; FRIANO, Émerson. Anencefalia: aspectos jurídico-penais. Revista FMU Direito, São Paulo, ano 24, n.34, p.94-107, 2010.
13
de defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária, entre os dias 23 e 28 da gestação. Ocorre com maior frequência em fetos femininos, pois parece estar ligado ao cromossomo X.6
Anencefalia é uma afecção congênita em que há ausência de parte do
encéfalo, ossos do crânio e couro cabeludo. O nome mais apropriado a esses
casos seria meroanencefalia (meros significando parte). O encéfalo embrionário é
dividido em três partes: encéfalo anterior, encéfalo médio e encéfalo posterior.
Também há a divisão do encéfalo em: telencéfalo, diencéfalo, mesencéfalo,
ponte, bulbo e cerebelo.7
Em bebês anencéfalos, há o tronco cerebral, mas os hemisférios
cerebrais que possui um bebê com formação normal são ausentes ou
extremamente rudimentares. A área cerebrovasculosa contém vasos e massas
irregulares de tecido cerebral. O tronco encefálico e o diencéfalo podem estar
presentes em proporções variáveis. O cerebelo pode ser normal ou malformado.
Quanto maior a ausência óssea, menos tecido nervoso é achado na base do
crânio.8
A medicina fetal tem por função avaliar a saúde e a vitalidade fetal e,
através dela, proporcionar a saúde do ser humano. Suas melhorias com os
decorrer dos anos foram tantas que permitem o acompanhamento de todo o
desenvolvimento do bebê, desde o estágio embrionário e, principalmente, o seu
crescimento no ventre materno.9
A anencefalia sempre existiu, mas foi através desses novos métodos
tecnológicos e técnicas inovadoras que se tornou possível aos médicos a
percepção de alguma deformação no feto durante a gestação, pois, antigamente,
6 NETTO, Jorge Andalaft. Anencefalia: posição da Febrasgo. Disponível em:
<http://www.bioeticaefecrista.med.br/textos/anencefalia_febrasgo>. Acesso em: 12 abr. 2013. 7 FONTELES, Cláudio; LEÃO, Cecília. II Seminário de Bioética – Regional Sul 1 (ADPF 54 e
Anencefalia). Disponível em: <www.anecencefalia.com.br>. Acesso em: 24 mar. 2013. 8 FONTELES, Cláudio; LEÃO, Cecília. II Seminário de Bioética – Regional Sul 1 (ADPF 54 e
Anencefalia). Disponível em: <www.anecencefalia.com.br>. Acesso em: 24 mar. 2013. 9 FREITAS, Patrícia Marques. Os fetos anencefálicos e a Constituição Federal de 1988. São
Paulo: Ícone, 2011. p.15.
14
só era possível o reconhecimento dos fetos com essa anomalia no momento de
seu nascimento.10
O diagnóstico da anencefalia ocorre através da ultrassonografia no
momento em que ele se encontra em desenvolvimento no ventre materno, entre a
12ª e a 15ª semanas de gestação, mais especificamente pelo exame de alfa-
fetoproteína contida no soro materno e no líquido amniótico, que normalmente
está aumentada em 100% dos casos de anencefalia em torno já da 11ª até a 16ª
semanas de gestação.11 É desnecessária a realização de outros exames ou
procedimentos mais invasivos para a confirmação diagnosticada através da
ultrassonografia, pois a sensibilidade é de 100% para a detecção da anencefalia
fetal.12
Normalmente, a ultrassonografia é repetida dentro de uma ou duas
semanas, indicada pelo próprio médico ultrassonografista, com o objetivo de
confirmar a malformação diagnosticada. Ainda que não seja necessária a
utilização de outros métodos para a identificação de malformações em fetos,
como anencefalia ou outras anormalidades, a ressonância magnética, juntamente
com a ultrassonografia de nível três, mostrou-se um importante meio de
diagnóstico, pois auxilia no reconhecimento de outras afecções associadas, como
a raquisquise e a espinha bífida, que se fazem presentes na maioria dos casos. 13
Para Marco Antonio Basso e Émerson Friano, “uma vez diagnosticada a
anencefalia, não há nada que a ciência médica possa fazer quanto ao feto
inviável. O mesmo, todavia, não ocorre com relação ao quadro clínico da
gestante”.14
10 FREITAS, Patrícia Marques. Os fetos anencefálicos e a Constituição Federal de 1988. São
Paulo: Ícone, 2011. p.15. 11 LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello. Existe aborto de anencéfalos? Jus
Navigandi, Teresina, ano 10, n.617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6467>. Acesso em: 07 abr. 2013.
12 MORAES FILHO, Olimpio Barbosa; COLÁS, Osmar Ribeiro; MELO, Nilson Roberto. FEBRASGO se posiciona sobre fetos anencéfalos. Disponível em: <http://www.febrasgo.org.br/?op=300&id_srv=2&id_tpc=5&nid_tpc=&id_grp=1&add=&lk=1&nti=818&l_nti=S&itg=S&st=&dst=3>. Acesso em: 12 abr. 2013.
13 NETTO, Jorge Andalaft. Anencefalia: posição da Febrasgo. Disponível em: <http://www.bioeticaefecrista.med.br/textos/anencefalia_febrasgo>. Acesso em: 12 abr. 2013.
14 BASSO, Marco Antonio; FRIANO, Émerson. Anencefalia: aspectos jurídico-penais. Revista FMU Direito, São Paulo, ano 24, n.34, p.94-107, 2010. ISSN: 2316-1515.
15
Esta má formação congênita atinge 1 a cada 1.000 bebês.15
Não se pode confundir anencefalia com algum tipo de deficiência, pois não há
crianças ou adultos com anencefalia no mundo. A maior parte dos fetos
anencefálicos não resiste à gravidez toda, ou então não sobrevive ao parto.16
Segundo Jorge Andalaft Neto, Presidente da Comissão Nacional de
Violência Sexual e Interrupção da Gestação Prevista por Lei:
Estimativas apontam para incidência de aproximadamente 1 caso a cada 1.600 nascidos vivos. A cada ano o número de registros de crianças nascidos vivos no Brasil tem oscilado entre 2,7 e 3,0 milhões/ano. Também o número de casos comprovados de anencefalia tem aumentando significativamente, exigindo práticas adequadas ao seu manuseio. O risco de incidência de anencefalia aumenta 5% a cada gravidez subsequente. Inclusive, mães diabéticas têm 6 vezes maior probabilidade de gerar filhos com este problema. Há também maior incidência de casos de anencefalia em mães muito jovens ou nas de idade avançada.17
Em pesquisas realizadas pela Organização Mundial da Saúde, com
divulgação no ano de 2004, relata-se que o Brasil é o quarto país do mundo em
casos de anencefalia. Comparado com outros países como França, Bélgica e
Áustria, o Brasil possui uma taxa de incidência cinquenta vezes maior, a qual
chama a atenção por ser muito elevada. Haveria explicações para isso? Há duas
possíveis hipóteses: a primeira delas é a da maior ocorrência, e a da segunda é
da inexistência de autorização legal da interrupção, sendo esta a única que possui
respaldo sólido nos dados colhidos.18
Segundo Marcelo Medeiros:
A primeira hipótese é a de que a ocorrência de anencefalia é muito mais frequente no Brasil do quem em outros países. Por ser muito mais frequente, seria natural esperar maior prevalência de parto de anencéfalos aqui. A segunda hipótese é de que a anencefalia ocorre com frequência semelhante entre os países em que a diferença nos números de gestações levadas a termo deve-se ao fato de as interrupções de
15 ANENCEPHALY. Disponível em: <http://www.anencephalie-info.org/index.php>. Acesso em: 11
mar. 2013. 16 DINIZ, Débora; PENALVA Janaina. Anencefalia e tortura. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16,
n.192, p.19, nov. 2008. 17 NETTO, Jorge Andalaft. Anencefalia: posição da Febrasgo. Disponível em:
<http://www.bioeticaefecrista.med.br/textos/anencefalia_febrasgo>. Acesso em: 12 abr. 2013. 18 MEDEIROS, Marcelo. Anencefalia no Brasil: o que os dados mundiais revelam. In: INSTITUTO
DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO. Anencefalia: o pensamento brasileiro em sua pluralidade. Brasília: ANIS, out. 2004. p.21.
16
gestantes serem claramente autorizadas em vários países, mas não no Brasil.19
Presume-se que a causa mais frequente, nesses casos, seja a deficiência
de ácido fólico. Médicos indicam a uso de ácido fólico cerca de três meses antes
mesmo da concepção, e nos primeiros meses de gravidez também, acreditando
ser o melhor modo de prevenção para esta malformação.20 Essa prevenção é
conhecida como suplementação adequada de ácido fólico, ou então, como
vitamina B9 ou vitamina M.21 Mesmo sendo o melhor meio de prevenir, de fato, é
apenas uma prevenção, pois não há cura para a anencefalia e nenhuma
perspectiva ou então a possibilidade de vida extrauterina do feto.22
A incidência pode ser maior em gestantes em idades consideradas
limítrofes, ou muito jovens, ou, então, de idade avançada.23 Todavia,
fatores ambientais e nutricionais podem influenciar indiretamente na
malformação, como, por exemplo, o alcoolismo, o tabagismo, irradiações e a
exposição da mãe, durante os primeiros dias de gestação, a produtos químicos e
solventes.24
Além disso, existem fatores de alto risco:
i) gravidez anterior de filho com diagnóstico confirmado de Defeito
Aberto do Tubo neural (DATN);
ii) uso de medicamentos anticonvulsivantes;
iii) diabetes insulinodependente;
19 MEDEIROS, Marcelo. Anencefalia no Brasil: o que os dados mundiais revelam. In: INSTITUTO
DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO. Anencefalia: o pensamento brasileiro em sua pluralidade. Brasília: ANIS, out. 2004. p.21.
20 NETTO, Jorge Andalaft. Anencefalia: posição da Febrasgo. Disponível em: <http://www.bioeticaefecrista.med.br/textos/anencefalia_febrasgo>. Acesso em: 12 abr. 2013.
21 FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA. Anencefalia: é possível prevenir! Orientações baseadas na 1ª “Recomendação sobre a suplementação periconcepcional de ácido fólico na prevenção de defeitos de fechamento do tubo neural (anencefalia e outros defeitos abertos do tubo neural” – FEBRASGO/2012.
22 GOLLOP, Thomaz. Riscos graves à saúde da mulher. In: INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO. Anencefalia: o pensamento brasileiro em sua pluralidade. Brasília: ANIS, out. 2004. p.28.
23 SARMENTO, Daniel. Nos limites da vida: Aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2007. p.114.
24 NETTO, Jorge Andalaft. Anencefalia: posição da Febrasgo. Disponível em: <http://www.bioeticaefecrista.med.br/textos/anencefalia_febrasgo>. Acesso em: 12 abr. 2013.
17
iv) uso de medicamento antagonista de folato (metotrexato,
sulfonamidas, etc.);
v) obesidade ou sobrepeso;
vi) síndrome da má absorção, como cirurgias de redução de
estômago;
vii) exposição a altas temperaturas no início da gravidez (febre alta);
viii) baixo nível socioeconômico.25
Prosseguindo na comparação entre países: sendo o Brasil mais pobre
que os países europeus e levando-se em consideração que haveria maior
incidência de carências nutricionais, seria isso o suficiente para justificar as
grandes diferenças apresentadas na pesquisa realizada pela Organização
Mundial da Saúde? Ao contrário do que se esperava, mesmo os países com
maiores incidentes nutricionais e mais pobres que o Brasil possuem uma
quantidade de partos de fetos anencéfalos menor, enquanto o Chile é o país que
apresenta as maiores taxas mundiais de partos com esta malformação fetal, e
mesmo assim apresenta as menores taxas em relação a problemas nutricionais.26
Em relação à China, Bolívia e Equador, que possuem carências
nutricionais maiores do que o Brasil, as taxas de partos de fetos anencéfalos são
menores, pois nesses países o aborto é autorizado para a interrupção da
gestação, garantindo, assim, o Direito à saúde das gestantes. Já o Chile possui
uma cultura e legislação rígidas e restritivas em relação à autorização da
interrupção da gestação nestes casos, o que acaba elevando ainda mais as suas
taxas, superando o Brasil.27
Através dessa pesquisa, é possível chegar à conclusão de que, em
países em que há a possibilidade de escolha, as gestantes de fetos anencéfalos
optam por não levarem adiante a gestação, o que é uma possível explicação para
25 FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA.
Anencefalia: é possível prevenir! Orientações baseadas na 1ª “Recomendação sobre a suplementação periconcepcional de ácido fólico na prevenção de defeitos de fechamento do tubo neural (anencefalia e outros defeitos abertos do tubo neural) – FEBRASGO/2012.
26 MEDEIROS, Marcelo. Anencefalia no Brasil: o que os dados mundiais revelam. In: INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO. Anencefalia: o pensamento brasileiro em sua pluralidade. Brasília: ANIS, out. 2004. p.21-22.
27 MEDEIROS, Marcelo. Anencefalia no Brasil: o que os dados mundiais revelam. In: INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO. Anencefalia: o pensamento brasileiro em sua pluralidade. Brasília: ANIS, out. 2004. p.22.
18
que o índice brasileiro seja tão mais elevado que os demais países. Ou seja, a
diferença não está somente atrelada a condições financeiras que acarretariam
prejuízo à nutrição, mas principalmente aos obstáculos para realizar a interrupção
da gestação em tempo hábil, nas condições de saúde esperadas e, o mais
importante, de forma autorizada.28
Nos casos de anencefalia irreversível, o homem enfrenta um dilema ético:
manter a criança viva ou privá-la desse direito sob a alegação do sofrimento
materno29, principalmente pelo fato de que apenas 25% dos anencéfalos
apresentam sinais vitais na 1ª semana após o parto. E cerca de 15-33% dos
anencéfalos apresentam outras malformações congênitas graves, normalmente
relacionadas a defeitos cardíacos, como hipoplasia de ventrículo esquerdo,
persistência do canal arterial, atresia pulmonar, coarctação da aorta e ventrículo
único.30
Pesquisa realizada pela Federação Brasileira das Associações de
Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) relata inúmeras complicações e
problemas que podem ocorrer durante a gestação de um feto anencéfalo, tais
como:
i) eclâmpsia;
ii) embolia pulmonar;
iii) aumento do volume do líquido amniótico;
iv) prolongamento da gestação além de 40 semanas;
v) associação com polihidrâmnio, levando ao desconforto respiratório,
edema de membros inferiores, estase venosa;
vi) associação com vasculopatia periférica de estase;
vii) associação com doença hipertensiva específica da gestação
(DHEG);
28 MEDEIROS, Marcelo. Anencefalia no Brasil: o que os dados mundiais revelam. In: INSTITUTO
DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO. Anencefalia: o pensamento brasileiro em sua pluralidade. Brasília: ANIS, out. 2004. p.22.
29 NETTO, Jorge Andalaft. Anencefalia: posição da Febrasgo. Disponível em: <http://www.bioeticaefecrista.med.br/textos/anencefalia_febrasgo>. Acesso em: 12 abr. 2013.
30 LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello. Existe aborto de anencéfalos? Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n.617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6467>. Acesso em: 07 abr. 2013.
19
viii) dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de
anencéfalos (no tempo considerado normal de 38 e 42 semanas de
gestação);
ix) necessidade de bloqueio da lactação;
x) puerpério com maior incidência de hemorragia materna por falta de
contratilidade uterina;
xi) maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras
obstétricas do parto de termo.
Além disso, e principalmente, alterações comportamentais e psicológicas
durante a gestação e até mesmo após, necessitando apoio psicoterápico,
mormente na realização de registro de nascimento e sepultamento do recém-
nascido.31
O médico obstetra Thomas Gollop, especialista em Medicina Fetal, relata
que as gestações de fetos anencefálicos acarretam riscos graves à saúde da
gestante:
Em primeiro lugar, há pelo menos 50% de possibilidade de polidramnio, ou seja, excesso de líquido amniótico que causa maior distensão do útero, possibilidade de atonia no pós parto, hemorragia e, no esvaziamento do excesso do líquido, a possibilidade de deslocamento prematuro da placenta, que é um acidente obstétrico de relativa gravidade. Além disso, os fetos anencéfalos, por não terem o pólo encefálico, podem iniciar sua expulsão antes da dilatação completa do colo do útero e ter o que nós chamamos de distócia do ombro, porque nesses fetos, com frequência, o ombro é grande ou maior do que a média e pode acarretar dificuldades muito grandes do ponto de vista obstétrico. Assim sendo, há inúmeras complicações em uma gestação cujo resultado é um feto sem nenhuma perspectiva de sobrevida. A distócia de ombro acontece em 5% dos casos, o excesso de líquido em 50% dos casos e a atonia do útero pode ocorrer em 10% a 15% dos casos.32
31 LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello. Existe aborto de anencéfalos? Jus
Navigandi, Teresina, ano 10, n.617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6467>. Acesso em: 07 abr. 2013.
32 GOLLOP, Thomaz. Riscos graves à saúde da mulher. In: INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO. Anencefalia: o pensamento brasileiro em sua pluralidade. Brasília: ANIS, out. 2004. p.27-28.
20
2.2 A POLÊMICA EM TORNO DO CONCEITO VIDA DO FETO ANENCEFÁLICO
Afinal, o que é vida? Como podemos conceituar algo de extrema
complexidade, que não envolve só a medicina, mas também os preceitos de cada
sociedade, abrangendo diversas opiniões, de modo que em todo mundo não
existe concordância de quando a vida se principia?33 Definir o que é vida é
complexo até mesmo para os cientistas, quando sob o ponto de vista biológico.34
Questão de enorme relevância e de infinitas discussões médicas e
também jurídicas é a definição do conceito de vida humana; para muitos, não há
grandes mistérios sobre em que momento a vida se inicia e o momento em que
ela acaba, razão porque este debate é visto por muitos como simplório. Porém, é
fundamental compreendermos os limites da vida abrangidos pelo Direito, sob o
prisma da aquisição da personalidade jurídica.35
Luiz Regis Prado, a respeito do bem jurídico vida humana, esclarece que
[...] este não pode ser compreendido a partir de uma perspectiva estritamente físico-biológica ou puramente valorativa, já que, embora o direito penal deva determinar o conteúdo do bem jurídico vida humana, este deve guardar alguma consonância com a realidade naturalística que “constitui, inequivocamente, um limite para a valoração.36
Na visão de Carolina Alves de Souza Lima:
O conceito de vida humana e o momento em que ela esta se inicia são temas que pertencem às ciências médicas e biológicas. À ciência jurídica cabe, tão-somente, dar-lhe o enquadramento legal, ou seja, estabelecer quando se inicia e quando termina a proteção jurídica do bem da vida e com qual abrangência.37
33 BRAGHIN, Camila Berbert. Anencefalia: antecipação do parto de fetos anencefálicos. Presidente
Prudente, 2009. Monografia (Graduação) Bacharel em Direito. Faculdade de Direito, Faculdades integradas Antonio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente – SP, 2009.
34 MINAHIM, Maria Auxiliadora; PRADO, Luiz Regis (Coord.). Direito Penal e a biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. (Ciência do direito penal contemporânea; v. 8). p.70.
35 BARBATO JR, Roberto. O aborto de fetos anencéfalos: o direito e a realidade atual. Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 96, v.865, p.436-437, nov. 2007.
36 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte especial. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v.2, p.44.
37 LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão. Curitiba: Juruá, 2012. p.40.
21
Para Maria Auxiliadora Minahim, “a vida, no plano jurídico, é considerada
como direito básico, cuja tutela é a própria razão de ser do direito, já que constitui
condição essencial para a existência dos demais”.38
A Constituição Federal de 1988, ao assegurar o direito à vida, preserva
sua intangibilidade. Costuma-se sustentar que este é um direito absoluto, que
compreende o direito de tutelar a própria vida, sendo um dever do Estado
protegê-la com efeito erga omnes, inclusive contra o próprio Estado, caso
ocorram atos contrários ao direito, causando danos a pessoa juridicamente
protegida.
No entanto, é importante ressaltar que estes atos contrários ao Direito
“sugerem desde logo a possibilidade de realização, no plano jurídico material, de
condutas que atinjam a vida sem que a ordem jurídica as considere como
violação à proteção que oferece”.39 Porém, essa intangibilidade em relação à vida
deverá ser apreciada de forma relativa, pois, em caso de aborto de anencéfalos,
por exemplo, através de alvarás judiciais é permitida a realização de interrupção
terapêutica do parto, tendo em vista a fundamentação de que não há vida a ser
tutelada.40 Além do mais, a Constituição Federal de 1988, diferentemente dos
Códigos Civis brasileiros de 1916 e 2002, garante o direito à vida em seu artigo
5º, mas não traz previsão de que esse direito esteja garantido desde a
concepção.41
Para Daniel Sarmento:
[...] a ordem constitucional brasileira protege a vida intra-uterina, mas que esta proteção é menos intensa do que a assegurada à vida das pessoas nascidas, podendo ceder, mediante uma ponderação de interesses, diante de direitos fundamentais. E pode-se também afirmar que a tutela da vida do nascituro é mais intensa no final do que no início da gestação, tendo em vista o estágio de desenvolvimento fetal
38 MINAHIM, Maria Auxiliadora; PRADO, Luiz Regis (Coord.). Direito Penal e a biotecnologia.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. (Ciência do direito penal contemporânea; v. 8). p.70. 39 MINAHIM, Maria Auxiliadora; PRADO, Luiz Regis (Coord.). Direito Penal e a biotecnologia.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. (Ciência do direito penal contemporânea; v. 8). p.70. 40 MINAHIM, Maria Auxiliadora; PRADO, Luiz Regis (Coord.). Direito Penal e a biotecnologia.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. (Ciência do direito penal contemporânea; v. 8). p.70-71. 41 BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: conquistas
médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.23.
22
correspondente, sendo certo que tal fator deve ter especial relevo na definição do regime jurídico do aborto.42
Para o Direito Penal, com entendimento majoritário da doutrina brasileira,
é a partir da fecundação que se tem o início da vida; sendo assim, é considerado
aborto tudo o que for realizado para retirar esse óvulo fecundado. Já para o
Direito Civil, enquanto o nascituro ainda estiver dentro do útero materno existe
apenas uma mera perspectiva de vida, e somente no momento do nascimento
com vida e que se dará início ao funcionamento do aparelho respiratório próprio
que assegurará a personalidade jurídica, tornando o nascido, assim, sujeito de
direito.43
Conforme mencionado acima, o Código Civil, em seu artigo 2º, especifica
e possui correspondência legislativa parcial desde o Código Civil de 1916. “A
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a
salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.44
Na visão de Warley Belo, o Direito Civil e o Direito Penal protegem os
interesses do ser humano desde a sua concepção.45
Há previsão legal, também, no que diz respeito ao direito à vida, no art. 4
da Convenção Americana de Direitos Humanos, no conhecido Pacto de San José
da Costa Rica de 1969, o qual foi ratificado pelo Brasil somente em 1992.46
1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.47
Ou seja, é desde a concepção que a lei protege o direito à vida do
nascituro, mas estamos tratando a respeito do direito à vida de um feto
42 SARMENTO, Daniel. Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a
perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.36. 43 BRAGHIN, Camila Berbert. Anencefalia: antecipação do parto de fetos anencefálicos. Presidente
Prudente, 2009. Monografia (Graduação) Bacharel em Direito. Faculdade de Direito, Faculdades Integradas Antonio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente – SP, 2009.
44 BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.> Acesso em: 3 abr. 2013.
45 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p.26.
46 MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2006. p.84.
47 COLETÂNEA DE DIREITO INTERNACIONAL. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p.1009.
23
anencéfalo, que compreende uma esfera muito mais complexa, tendo em vista a
inviabilidade de vida extrauterina; então, as principais críticas e opiniões giram
justamente em torno do conceito de vida desde a concepção nas gestações de
fetos anencefálicos.
Na visão de Márcio Bártoli, “a ausência de definição legal leva a maioria
dos penalistas a se manifestar no sentido de que a proteção legal inicia-se a partir
da concepção, evoluindo até o momento do início do parto”.48
Para Nélson Hungria:
O Código, ao incriminar o aborto, não distingue entre óvulo fecundado, embrião ou feto: interrompida a gravidez antes do seu termo normal, há o crime de aborto. Qualquer que seja a fase da gravidez (desde a concepção até o início do parto, isto é, até o rompimento da membrana amniótica), provocar a sua interrupção é cometer crime de aborto.49
Para Luiz Regis Prado:
[...] O estágio da evolução do ser humano em formação não importa para a caracterização do delito de aborto. Dessa forma, é o objeto material do crime o produto vivo da concepção, em qualquer fase do seu desenvolvimento. Segundo o estágio de desenvolvimento do produto da concepção, o aborto se distingue em ovular, se praticado nos dois primeiros meses da gestação; embrionário, se perpetrado no terceiro e no quarto mês de gestação; e fetal quando praticado no quinto mês de gravidez em diante. O termo inicial para a prática do delito em exame é, portanto, o começo da gravidez. Do ponto de vista biológico, o início da gravidez é marcado pela fecundação. Todavia, sob o prisma jurídico, a gestação tem início com a implantação do óvulo fecundado no endométrio, ou seja, com a sua fixação no útero materno (nidação), que ocorre cerca de quatorze dias após a concepção. O termo final é o início do parto, que, conforme examinado, é marcado pelas contrações da dilatação (parto normal) ou com o início dos procedimentos cirúrgicos (v.g., cesariana).50
Segundo Nelson Neri Junior:
Independentemente da viabilidade do ser nascido, a personalidade inicia-se com o nascimento com vida e termina com a morte da pessoa natural. O nascimento com vida caracteriza-se pelo fato de o nascituro respirar. A personalidade é inerência do homem. Personalidade é atributo
48 BÁRTOLI, Márcio; PANZERI, André; FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (Coord.). Código
Penal e sua Interpretação: doutrina e jurisprudência. 8.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p.662.
49 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal: arts. 121-136. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1953. v.5, p.277.
50 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte especial, arts. 121 a 183. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. v.2, p.105-106.
24
de dignidade do homem. É o que faz sua figura viva se distinguir dos outros seres animados. É o que, no direito, atribui ao homem a condição de sujeito de direito e de deveres e obrigações. É o atributo que impede que o homem seja objeto de direito. As certidões de nascimento e de óbito fazem prova, respectivamente, do início e do fim da personalidade de uma pessoa.51
Seu pensamento está diretamente ligado ao art. 6º do Código Civil de
2002: “A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta,
quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão
definitiva”.52
Entende-se por nascituro a pessoa por nascer, já concebida no ventre
materno, mas que, antes de nascer, não possui personalidade jurídica, somente
natureza humana, ou seja, humanidade, razão da sua proteção jurídica perante o
Código Civil (infans concepctus pro nato habetur).53
O direito de nascer é o primeiro conquistado pelo homem, antes mesmo
de adquirir personalidade, em razão da proteção dos direitos do nascituro sob a
ótica de sua natureza humana. No entanto, entende-se por natimorto aquele que
nasceu morto, ou seja, que não adquiriu personalidade jurídica, conforme o art. 2º
do Código Civil, sendo consequência disto que não se tornou um sujeito de
direito; mas, mesmo não nascendo com vida, ele é detentor de humanidade e, em
razão disto, recebe a proteção jurídica do sistema de Direito Privado, estendendo-
se relativamente a ele os direitos de personalidade (nome, imagem, sepultura
etc.).54
Para Maria Auxiliadora Minahim:
À dificuldade para a exata definição de vida e seu começo, corresponde à do momento de seu fim e, portanto, da ocorrência de morte. Definir a morte significa pode diagnosticá-la, o que, segundo neurologistas, constitui um problema tão antigo quanto à própria humanidade e que tem variado no curso histórico. A concepção teológica que se tem do mundo, o conhecimento científico e sua democratização são elementos que contribuem para a construção de diferentes conceitos. [...] O progresso
51 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 7.ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p.207. 52 BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.> Acesso em: 3 abr. 2013. 53 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 7.ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p.208. 54 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 7.ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p.208.
25
científico e a crescente disponibilização de recursos de intervenção na vida, seja em sua geração, seja na sua manutenção, tornam cada vez mais fluidas as fronteiras entre a vida e a morte. Fala-se em subumanidade, categoria na qual se insere o anencéfalo, em pré-embrião, em humano em potencial, em morte técnica, expressões que merecem, antes de serem juridicamente firmadas, uma incursão pela biologia, filosofia da biologia, medicina, ética e pelas outras áreas do conhecimento que têm mantido uma interlocução fecunda através da bioética.55
Médicos buscam chegar a um consenso sobre o instante em que a vida
deixa de existir. Durante muitos e muitos anos, a incapacidade de respirar foi o
único parâmetro responsável por dimensionar os indícios vitais, ou seja, o único
meio de se certificar que o indivíduo havia morrido; com o passar dos anos, e
devido às novas tecnologias surgidas no decorrer deste tempo, novos fatores
passaram a constituir elementos importantes para essa verificação, auxiliando,
assim, em uma das tarefas mais delicadas para estudiosos da área médica:
determinar o momento da morte do ser humano.56
Para a medicina, há dois métodos que evidenciam o momento morte: a
morte clínica e a morte cerebral. A morte clínica, também chamada de biológica
ocorre com a parada irreversível das funções cardiorrespiratórias, através de uma
parada cardíaca, e, por consequência, a morte cerebral, por falta de irrigação
sanguínea que leva, posteriormente, à necrose celular. Já a morte cerebral é a
parada total, e também irreversível, das funções encefálicas, em consequência do
processo irreversível e de causa já conhecida, ainda que o tronco cerebral esteja
funcionando temporariamente.57
O Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução nº 1.480, de 08 de
Agosto de 1997, determinou, em seu artigo 3º, que compete ao Conselho Federal
de Medicina definir os critérios para diagnóstico de morte encefálica: “Art. 3º. A
55 MINAHIM, Maria Auxiliadora; PRADO, Luiz Regis (Coord.). Direito Penal e a biotecnologia.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. (Ciência do direito penal contemporânea; v. 8). p.72-73. 56 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 7.ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p.208. 57 LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello. Existe aborto de anencéfalos? Jus
Navigandi, Teresina, ano 10, n.617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6467>. Acesso em: 07 abr. 2013.
26
morte encefálica deverá ser consequência de processo irreversível e de causa
conhecida”.58
A polêmica em relação à interrupção da gestação de fetos anencéfalos
somente encontrará a solução aceitável após a unificação de conceitos e critérios
tanto médico quanto jurídico para a definição do momento morte.59
Para o Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução nº 1.752/04, os
anencéfalos são natimortos cerebrais, e, por não possuírem o córtex, mas apenas
o tronco encefálico, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte
encefálica.60 O CFM aborda uma significativa e intensa concepção a respeito dos
fetos anencéfalos, não hesitando a opinião.61
Para André Martins Lara, “sendo o anencéfalo o resultado de um processo
irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida, por
não possuir a parte vital do cérebro, é considerado desde o útero um feto morto
cerebral”.62
2.3 PRECEDENTES HISTÓRICOS DE ANENCEFALIA NO BRASIL
2.3.1 Caso Severina
Com grande repercussão na mídia, tornou-se tema do documentário Uma
História Severina, dirigido pela jornalista Eliane Brum juntamente com a
antropóloga Débora Diniz, contando o drama vivido por Severina Maria Leôncio
Ferreira, casada com Rosivaldo, mãe de Walmir, que esperava pelo segundo filho,
58 BRASIL. Resolução Conselho Federal de Medicina nº 1.480/97. Disponível em:
<http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1997/1480_1997.htm>. Acesso em: 10 abr. 2013.
59 LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello. Existe aborto de anencéfalos? Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n.617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6467>. Acesso em: 07 abr. 2013.
60 LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello. Existe aborto de anencéfalos? Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n.617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6467>. Acesso em: 07 abr. 2013.
61 BARBATO JR, Roberto. O aborto de fetos anencéfalos: o direito e a realidade atual. Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 96, v.865, p.436-437, nov. 2007.
62 LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello. Existe aborto de anencéfalos? Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n.617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6467>. Acesso em: 07 abr. 2013.
27
quando a gravidez foi diagnosticada com a malformação fetal incompatível com a
vida extrauterina, a anencefalia. Severina queria muito o outro filho; seu marido
Rosivaldo sonhava com uma menina.63
Até receber o diagnóstico, Severina realizava o tratamento pré-natal
acompanhada de outras grávidas da zona rural, onde, juntas, teciam roupinhas e
planos para seus filhos. Porém, os destinos das gestantes se separaram a partir
do momento em que recebeu a notícia de que o bebê que estava esperando era
um anencéfalo.64
Em 20/10/2004, Severina estava internada no hospital de Recife para
realizar o procedimento de interrupção da gestação do feto anencéfalo. No
entanto, o médico decidiu realizar o procedimento somente no próximo dia, o que
acarretou ainda mais sofrimento em Severina, pois no mesmo dia em que foi
internada o Supremo Tribunal Federal derrubou a liminar que permitia o aborto de
anencéfalos sem a necessidade de autorização judicial. Assim, Severina deixou o
hospital carregando a dor e o seu filho em sua barriga, sabendo que ele não
sobreviveria.65
O casal de pobres e analfabetos, plantadores de brócolis, morava em Chã
Grande, um pequeno município de Recife. Mesmo diante de todas as
dificuldades, decidiram procurar a Justiça em busca da autorização para
interromper a gravidez, com o objetivo de minimizar também o martírio que estava
sendo vivenciado.66
Se a liminar não tivesse sido derrubada, a interrupção da gestação de
Severina ocorreria no quarto mês; mas, devido à necessidade de entrar na
Justiça, o sofrimento foi prolongado até o sétimo mês, quando conseguiu,
63 BRUM, Eliane. Chega de torturar mulheres. Disponível em:
<http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/04/chega-de-torturar-mulheres.html>. Acesso em: 02 maio 2012.
64 BRUM, Eliane. Chega de torturar mulheres. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/04/chega-de-torturar-mulheres.html>. Acesso em: 02 maio 2012.
65 BRUM, Eliane. Chega de torturar mulheres. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/04/chega-de-torturar-mulheres.html>. Acesso em: 02 maio 2012.
66 BRUM, Eliane. Chega de torturar mulheres. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/04/chega-de-torturar-mulheres.html>. Acesso em: 02 maio 2012.
28
finalmente, a autorização. Somente aí é que Severina foi atrás de roupas para
enterrar seu bebê, e preocupava-se em comprar alguma que protegesse a cabeça
do feto, não ficando, assim, exposta à curiosidade da comunidade, mas até nisso
encontrou dificuldade perante o clima de sua cidade.67
Para uma das autoras do documentário, a jornalista Eliane Brum, que
acompanhou a gestação de Severina, os três últimos meses foram um martírio
desnecessário vivido pela gestante, espécie de tortura que o Estado lhe impôs.
Relata que Severina viveu sentimentos de medo e esperança, medo de machucar
a cabeça do bebê, e esperança de que algo mágico pudesse acontecer,
consertando assim essa malformação.68
Rosivaldo ficou conhecido por muitos como o “pai do bebê sem cabeça”,
ou o “pai do monstro”, o que lhe acarretou muito sofrimento também, e, de certa
forma, a necessidade de um controle imenso para se conter diante das agressões
verbais que sofria por parte da comunidade.69
Após meses de sofrimento, quando já possuía a autorização para realizar
a interrupção da gestação, Severina ainda assim encontrou problemas pelo
caminho, como a falta de vagas nos hospitais, ou então o fato de os médicos
serem contra o aborto, pedindo para que tivesse paciência.70
Acompanhada de Paula Viana, representante de uma ONG de Curumim,
fez valer seus direitos, apesar de ser submetida a mais de trinta horas de trabalho
de parto, conseguindo realizar a antecipação do parto de seu filho anencéfalo.71
67 BRUM, Eliane. Chega de torturar mulheres. Disponível em:
<http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/04/chega-de-torturar-mulheres.html>. Acesso em: 02 maio 2012.
68 BRUM, Eliane. Chega de torturar mulheres. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/04/chega-de-torturar-mulheres.html>. Acesso em: 02 maio 2012.
69 BRUM, Eliane. Chega de torturar mulheres. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/04/chega-de-torturar-mulheres.html>. Acesso em: 02 maio 2012.
70 BRUM, Eliane. Chega de torturar mulheres. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/04/chega-de-torturar-mulheres.html>. Acesso em: 02 maio 2012.
71 BRUM, Eliane. Chega de torturar mulheres. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/04/chega-de-torturar-mulheres.html>. Acesso em: 02 maio 2012.
29
2.3.2 Caso Gabriela
A jovem Gabriela de Oliveira Cordeiro recebeu o diagnóstico de
anencefalia no 4º mês de gestação, através de uma ultrassonografia colorida. A
partir de então, iniciou-se uma longa saga judicial, onde se buscava que a
interrupção da sua gestação de feto anencefálico fosse autorizada. Sua primeira
tentativa foi em 06/11/2003, representada pela Defensoria Pública, que
apresentou o pedido de interrupção terapêutica do parto ao Juízo Criminal de
Teresópolis, no Rio de Janeiro. O pedido foi indeferido liminarmente, com base na
inexistência de previsão legal a respeito. O magistrado que julgou o caso alegou
que não havia, dentro das hipóteses de exclusão de ilicitude elencadas no art.
128 do CP, a possibilidade de autorização para interrupção da gestação em casos
de malformação fetal.72
Em segundo momento, foi interposto um recurso de Apelação, com
contrarrazões do Ministério Público sendo favoráveis ao pedido, perante a 2ª
Câmara Criminal, onde, em 19/11/2003, a desembargadora concedeu a liminar
requerida; porém, antes mesmo de Gabriela ser notificada, dois advogados
católicos interpuseram um recurso de Agravo Interno, o qual resultou que, no dia
21/11/2003, o Presidente do mesmo colegiado suspendeu de imediato a liminar
concedida, fazendo com que a decisão anterior, desfavorável a Gabriela, fosse
reformada e mantida. Ainda, antes do julgamento definitivo do caso, na mesma
data, um padre impetrou Habeas Corpus em favor do feto perante o Superior
Tribunal de Justiça (STJ).73
Diante de todo esse percurso, duas organizações não-governamentais, a
ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), juntamente com a
THEMIS (Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero), impetraram mais um Habeas
Corpus perante o Supremo Tribunal Federal, mas este em favor da gestante, com
o intuito de reverter a situação. O HC 84.025 foi distribuído ao Ministro Joaquim
Barbosa, que chegou a elaborar seu voto e levá-lo a plenário em pouco tempo; 72 FERNANDES, Maíra Costa (Coord. Daniel Sarmento e Flavia Piovesan). Nos limites da vida:
aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.124.
73 FERNANDES, Maíra Costa; SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flavia (Coord.). Nos limites da vida: Aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.124-125.
30
porém, era tarde demais, pois, durante a sessão plenária, receberam a
informação de que o parto já havia ocorrido, e o feto anencefálico, chamado de
Maria Vida, sobrevivido apenas sete minutos. A sessão no STF foi interrompida e
o habeas corpus foi julgado prejudicado em razão da perda do objeto.74
2.3.3 Caso Marcela de Jesus
Marcela de Jesus nasceu em 20/11/2006 e faleceu em 31/07/2008, um
curioso caso que gerou muitas divergências a respeito de seu real diagnóstico,
principalmente por ter vivido um ano e oito meses, pois nascera sem o córtex
cerebral e possuía apenas o tronco cerebral, o qual era encarregado por sua
respiração e batimentos cardíacos. Alguns médicos diagnosticaram a pequena
Marcela de Jesus como uma malformação do crânio (encefalocete) associada a
um desenvolvimento reduzido do cérebro (microcefalia); outros atestavam com
uma forma não conhecida de anencefalia. Os médicos detentores deste
pensamento afirmavam que a anencefalia, no entanto, não possuía um
diagnóstico definitivo; mesmo sendo um mistério para a pediatra que acompanhou
o caso, ela fez questão de não compará-la com uma criança com morte cerebral,
pois possuía sentimentos e não estava em estado vegetativo. Porém, não se sabe
como a criança processava isso.75
Os pais, Cacilda e Dionísio, lavradores de uma cidadezinha do interior de
São Paulo, nunca haviam ouvido falar a respeito desse tipo de malformação fetal.
Foi no quarto mês de gestação que receberam o diagnóstico de anencefalia, o
que ainda perdurou por alguns meses após o seu nascimento. Os médicos, na
época, deram a opção de a gestante efetuar a interrupção terapêutica do parto,
mas em nenhum momento isso foi admitido pelos pais que, inclusive, agregaram
ao nome Marcela a expressão “de Jesus”, por serem extremamente católicos e
contra a interrupção.76
74 FERNANDES, Maíra Costa; SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flavia (Coord.). Nos limites da
vida: Aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.124-125.
75 REVISTA ÉPOCA. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR76301-6014,00.html>. Acesso em: 13 abr. 2013.
76 REVISTA VEJA. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/150807/p_122.shtml>. Acesso em: 13 abr. 2013.
31
O caso, polêmico, teve bastante repercussão no julgamento da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54), realizado em abril
de 2012, onde a maioria dos Ministros fez menção a esse curioso caso em seus
votos, alegando, com base em informações e opiniões médicas, que houve erro
no diagnóstico da malformação fetal de Marcela, concluindo, assim, que não se
tratava de anencefalia.77
77 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº
54. Brasília, 17 de junho de 2004. Inteiro Teor do Acórdão do julgamento da ADPF nº 54, de 2012.
3 ABORTO NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA
Neste capítulo serão abordados os mais importantes aspectos do aborto,
como a sua origem histórica, sua definição, suas características, seus ciclos, tanto
pelos aspectos médicos quanto jurídicos, analisando a opinião de diversos
doutrinadores e especialistas no assunto.
A abordagem compreenderá tanto a tipificação do aborto no Código Penal
atual como de suas primeiras previsões legais, além do Projeto de reforma
previsto. O tema, de inúmeras polêmicas e críticas, será analisado, aqui,
principalmente no que tange à sua punição e à exclusão da tipificação em casos
de fetos anencefálicos, com uma retrospectiva que abrange desde a interposição
da petição inicial em 2004 até o julgamento ocorrido em 2008.
3.1 HISTÓRICO JURÍDICO SOBRE O ABORTO
Etimologicamente, aborto quer dizer privação do nascimento. Advém do
latim, abortus, onde ab significa privação e ortus, nascimento.78
O aborto tem-se mostrado um dos temas mais controversos e polêmicos
da sociedade, encontrando tanto aqueles que defendem a descriminalização total
da conduta quanto os que lutam e almejam pela sua proibição incondicional e
absoluta.79 A questão envolve uma ampla e complexa área, que abrange ciência,
ética, política, aspectos jurídicos e até a religião.80
78 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. p.19. 79 WITT, Caroline Teles. Interrupção da gestação de feto anencefálico: uma análise
sociojurídica em face dos preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: PUCRS, 2011. Monografia (Graduação) Bacharel em Direito, Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Direito, 2011.
80 MEIRA, Affonso Renato; FERRAZ, Flávio Roberto Carvalho. Liberação do aborto: opinião dos estudantes de Medicina e de Direito, São Paulo, Brasil. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v.23, p.465-472, 1989. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsp/v23n6/04.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2013.
33
Segundo Guilherme de Souza Nucci, “o conceito de aborto é a cessação
da gravidez, cujo início se dá com a nidação, antes do tempo normal, causando a
morte do feto ou embrião”.81
Na abordagem de Warley Rodrigues Belo:
O aborto, especificamente, é um dos crimes que se apresenta com grande diversidade repressiva determinada pelas modificações culturais ao longo do tempo e dos espaços geopolíticos. Outrora, legislações antigas não consideravam crime. Havia, em verdade, uma indiferença do Direito face à problemática do aborto. O feto era considerado como simples anexo ocasional do organismo materno (parsmulieris), de cujo destino a mulher podia livremente decidir, salvo quando casada, devido à proeminência do direito marital. Se nessa época chegava-se, eventualmente, a castigar a administração, por terceiros, de substâncias abortivas, não era o aborto que se punia, mas o dano que daí resultasse para o organismo da mulher.82
O processo de desenvolvimento normal do feto se inicia na cópula e se
estende até o nascimento, e passa pelas seguintes fases:
i) coito ou fecundação externa;
ii) conjunção nas vias genitais femininas (útero e trompas) de um
espermatozóide com um óvulo maduro e fecundável (fecundação
interna);
iii) fixação do óvulo fecundado na mucosa uterina já preparado para
recebê-lo (aninhamento);
iv) segmentação e desenvolvimento do ovo aninhado até a maturidade
do produto da concepção (gravidez);
v) expulsão do feto a termo (parto).
Caso em alguma dessas fases haja a interrupção do processo de
gravidez, há, então, a prática do aborto.83
81 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 10.ed. rev., atual e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010. p.629. 82 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. p.21. 83 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. p.19-20.
34
Segundo Warley Belo: “O aborto pode ser classificado como natural,
acidental, criminoso, terapêutico, humanitário (ou sentimental), estético, eugênico
(ou eugenésico) e social (ou econômico)”.84
A doutrina especializada da área médica assinala quatro situações de
aborto, abordagem que, ao mesmo tempo abrangente e interessante, acaba
servindo à doutrina penal para realizar o exame jurídico.85
São elas: a interrupção eugênica de gestação (IEG), em que normalmente
ocorre prática eugênica, ou seja, com base nos valores de raça, sexo, ou étnicos,
ou então, quando as mulheres eram obrigadas a abortar pelo simples fato de
serem negras, ciganas ou judias; a interrupção terapêutica da gestação (ITG),
normalmente para salvar a vida da gestante, ou seja, em nome da saúde materna,
atualmente sendo raros os casos em que é necessário interromper a gestação em
situações que acarretem riscos para a gestante, tendo e vista os avanços
tecnológicos trazidos pela medicina; interrupção voluntária da gestação (IVG),
normalmente levando em consideração a autonomia reprodutiva da gestante, isto
é, quando não deseja mais a gravidez, seja por estupro ou relação consensual;
esse tipo de interrupção não é aceito por todas as legislações e, quando
permitido, estipula limites em relação à sua prática; e a interrupção seletiva da
gestação (ISC), que é a classificação mais importante, pois abrange o caso da
anencefalia, ou seja, casos de abortos ocorridos por anomalias fetais, onde a
gestação é interrompida quando se dá a constatação de lesões incompatíveis
com a vida extrauterina do feto.86
Conforme Glaucia Benute:
A prática do aborto é tão antiga quanto a própria existência humana. O primeiro relato que se tem notícia diz respeito a uma receita de abortífero oral, descrito pelo Imperador Chinês, Shen Ning, entre 2737 a.C. e 2696 a.C. Apesar de o primeiro registro datar do século III a.C.,
84 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. p.20. 85 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial 2, dos crimes contra a
pessoa. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.179-180. 86 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial 2, dos crimes contra a
pessoa. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.179-180.
35
estudos antropológicos fazem acreditar que o aborto faça parte da civilização desde os primórdios de sua existência.87
Para Nélson Hungria, “a prática do aborto é de todos os tempos, mas nem
sempre foi objeto de incriminação: ficava, de regra, impune, quando não
acarretasse dano à saúde ou a morte da gestante”.88
Remetendo-nos à Antiguidade, percebe-se, logo de início, que os hebreus
já puniam, em determinados casos até mesmo com pena de morte, aqueles que
provocassem o aborto.89 Foi por intermédio da lei mosaica que depois de algum
tempo passou-se a considerar ilícita a prática do aborto entre os hebreus, até
então, somente por meio de violência, mesmo que involuntária, é que era punido
o aborto.90
Grandes filósofos e teólogos da Antiguidade, como Aristóteles, em
princípio, mostravam-se contrários à prática do aborto, e posteriormente
acabaram por admiti-lo devido ao “excesso de população” já existente, mas desde
que o embrião ainda não tivesse sensibilidade nem vida.91
Aristóteles fazia uma distinção entre foetus inanimatus e foetus animatus,
o qual era assim considerado após sessenta dias de vida, contados da
concepção.92 Ou seja, nas palavras de Nélson Hungria, “aconselhava o aborto,
desde que o feto ainda não tivesse adquirido alma”.93
87 BENUTE, Glaucia Rosana Guerra. Do diagnóstico de malformação fetal letal à interrupção
da gravidez: psicodiagnóstico e intervenção. 2005. São Paulo: USP, 2005. Tese (Doutorado) – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2005.
88 HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentário ao Código Penal. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. v.V, arts. 121-136, p.269.
89 MEIRA, Affonso Renato; FERRAZ, Flávio Roberto Carvalho. Liberação do aborto: opinião dos estudantes de Medicina e de Direito, São Paulo, Brasil. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v.23, p.465-472, 1989. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsp/v23n6/04.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2013.
90 HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentário ao Código Penal: arts. 121-136. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. v.V, p.269.
91 MEIRA, Affonso Renato; FERRAZ, Flávio Roberto Carvalho. Liberação do aborto: opinião dos estudantes de Medicina e de Direito, São Paulo, Brasil. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v.23, p.465-472, 1989. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsp/v23n6/04.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2013.
92 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p.23.
93 HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentário ao Código Penal: arts. 121-136. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. v.5, p.270.
36
A problemática voltou mais tarde na teologia e filosofia, mais
especificamente no começo da Idade Média, retomadas primeiramente por Santo
Agostinho e, posteriormente, por Santo Tomás de Aquino.94
Na Grécia, era comum ocorrer o aborto, mas Licurgo e Sólon o
proibiram.95
Em 400 antes de Cristo, Hipócrates não temia em recomendar métodos
anticoncepcionais ou abortivos às parteiras, mesmo com seu juramento “não dar
à mulher grávida nenhum medicamento que possa fazê-la abortar”. Já seu
contemporâneo Sócrates era a favor de facilitar o aborto quando fosse o desejo
da mulher, e, ainda, o seu discípulo Platão possuía a opinião de que mulheres
com mais de 40 anos obrigatoriamente deveriam abortar, opinião relacionada à
regulação do aumento excessivo que a população vinha apresentando, visão
compartilhada por Aristóteles.96
Durante o Império Romano, a questão em tela também foi abordada, tanto
no âmbito social quanto no âmbito jurídico. Primeiramente, não era considerado
crime, porque se considerava o feto parte integrante do corpo materno (portio
viscerum matris), sendo, aos poucos, considerado prática imoral, até o advento do
cristianismo, quando foi definitivamente proibido.97
Em Roma, a escola estóica orientava que partus antequam edatur
mulieris pars est velviscerum, ou seja, a mulher que optava por abortar estava
dispondo do seu próprio corpo, então nada demais fazia, partindo de um
pressuposto irrecusável jus in se ipsa, tornando o aborto comuníssimo.98
94 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. p.23. 95 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal: arts. 121-136. 4.ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1958. v.5, p.269. 96 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. p.22-23. 97 MEIRA, Affonso Renato; FERRAZ, Flávio Roberto Carvalho. Liberação do aborto: opinião dos
estudantes de Medicina e de Direito, São Paulo, Brasil. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v.23, p.465-472, 1989. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsp/v23n6/04.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2013.
98 HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentário ao Código Penal: arts. 121-136. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. v.5, p.270.
37
Porém, foi com o cristianismo, sob influência dos imperadores Adriano,
Constantino e Teodósio, que se estabeleceu a reprovação social do aborto.99
E, no século XVIII, o aborto já era equiparado ao homicídio pela maioria
das legislações, principalmente baseadas na filosofia iluminista e também na
Revolução Francesa, através da Declaração dos Direitos do Homem.100
No Código Criminal do Império de 1830, o aborto era punido somente
quando realizado por terceiros, com ou sem o consentimento da gestante, sendo
conhecido também como aborto consentido e aborto sofrido, respectivamente; já
aborto praticado pela própria gestante, ou o autoaborto, não era punido em
nenhuma hipótese. O simples fornecimento de métodos abortivos, então chamado
de atos preparatórios, mesmo que o aborto não fosse praticado de fato, já era
criminalizado.101
O Código Penal de 1890 fazia distinção entre ocorrer ou não a expulsão
do feto, e, caso houvesse a morte da gestante, seria agravado o crime.
Diferentemente do Código precedente, punia o autoaborto, ou seja, o aborto
praticado pela própria gestante. O aborto com objetivo de salvar a vida da
gestante já era autorizado por este Código Penal, mas, caso viesse a falecer, o
médico ou a parteira eram punidos culposamente, com base na imperícia.102
Sendo proibido ou liberado, percebe-se, com base nesse breve relato
histórico, que o aborto é uma prática social constante, e um dos problemas mais
antigos da sociedade.103
99 HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentário ao Código Penal: arts. 121-136.
5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. v.5, p.271. 100 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. p.22-23. 101 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial 2, dos crimes contra a
pessoa. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.162. 102 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial 2, dos crimes contra a
pessoa. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.162. 103 MEIRA, Affonso Renato; FERRAZ, Flávio Roberto Carvalho. Liberação do aborto: opinião dos
estudantes de Medicina e de Direito, São Paulo, Brasil. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v.23, p.465-472, 1989. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsp/v23n6/04.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2013.
38
Os países desenvolvidos do mundo, ainda na década de 70, se
adaptaram às modernas técnicas para diagnosticar as malformações fetais na
fase intrauterina.
A Argentina, antes mesmo de 2004, já autorizava alvarás em favor a
anomalias fetais incompatíveis com a vida extrauterina, e o Uruguai, em 2004,
passou por uma revisão em seu Código Penal; no Brasil, o Código Penal ainda é
de 1940, ou seja, arcaico, e, em razão disto, não acompanha as atualidades,
principalmente em relação às modernas técnicas utilizadas na medicina.104
Para Cezar Roberto Bitencourt:
O Código Penal de 1940 foi publicado segundo a cultura, costumes e hábitos dominantes na década de 30. Passaram mais de sessenta anos, e, nesse lapso, não foram apenas os valores da sociedade que se modificaram, mas principalmente os avanços científicos e tecnológicos, que produziram verdadeira revolução na ciência médica. No atual estágio, a Medicina tem condições de definir com absoluta certeza a precisão eventual anomalia do feto e, consequentemente, a inviabilidade de vida extrauterina. Nessas condições é perfeitamente defensável a orientação do Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal, que autoriza o aborto quando o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais, ampliando a abrangência do aborto eugênico ou piedoso.105
Em 1993, no Estado de São Paulo, foi dado o primeiro alvará judicial com
o intuito de obter a autorização da interrupção de uma gravidez de feto
anencéfalo. Até então havia poucos casos no Brasil com trânsito em julgado a
respeito deste assunto. Em um deles, foi concedido alvará em 1989, em
Rondônia, e em outro, em 1992, na cidade de Londrina, no Paraná, com grande
repercussão na mídia da época, concedido através do juiz Miguel Kfouri Neto,
extremamente católico.106
Por se tratar do primeiro pedido a respeito da interrupção de fetos
anencéfalos em São Paulo, acreditava-se ser mais complexo propor uma ação
desta natureza ali do que em outros Estados, gerando uma grande expectativa, 104 GOLLOP, Thomaz Rafael. A liminar do STF sobre o aborto em casos de anencefalia: onde
estamos e para onde deveríamos ir? Boletim IBCCRIM, São Paulo, v.12, n.141, p.9-10, ago. 2004.
105 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial 2, dos crimes contra a pessoa. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.162.
106 GOLLOP, Thomas Rafael. A liminar do STF sobre o aborto em casos de anencefalia: onde estamos e para onde deveríamos ir? Boletim IBCCRRIM, São Paulo, v.12, n.141, p.9-10, ago. 2004.
39
pois, na hipótese de ser negada a autorização, poderiam ser comprometidas as
futuras concessões. Mas foi deferido pelo juiz corregedor Geraldo Pinheiro
Franco, também católico, que afirmou, na época, que, apesar de suas convicções
pessoais a respeito do assunto serem totalmente contrárias, como juiz sentia-se
na obrigação de acatar a angústia daqueles pais para que a interrupção da
gestação fosse aceita.107
3.2 PUNIÇÃO E EXCLUSÃO DO CRIME
O crime de aborto está tipificado em nosso Código Penal (Decreto-Lei nº
2.848/1940) no Título I, dos crimes contra a pessoa, e aí, no Capítulo I, dos
crimes contra a vida, artigos 124 a 128.
Nos termos dos arts. 124 a 127 do Código Penal, todo o aborto cometido
contra feto é considerado crime.108
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de um a três anos. Aborto provocado por terceiro Art. 125 – Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de três a dez anos. Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência Forma qualificada Art. 127 – As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.109
107 GOLLOP, Thomas Rafael. A liminar do STF sobre o aborto em casos de anencefalia: onde
estamos e para onde deveríamos ir? Boletim IBCCRRIM, São Paulo, v.12, n.141, p.9-10, ago. 2004.
108 GOMES, Luis Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, v.854, p.406, dez. 2006.
109 BRASIL. Código Penal Brasileiro. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 14 abr. 2013.
40
Em se tratando do tema desta pesquisa, o dispositivo mais importante é o
artigo 128, que talvez seja o mais polêmico do Código Penal110, por tratar de
aborto não punível quando praticado por médicos, a princípio em dois casos
específicos, sendo eles o aborto necessário e o aborto nos casos de gravidez
resultante de estupro, considerados legais.
O Código Penal brasileiro, em seu art. 128, expressamente prevê a
possibilidade do aborto terapêutico e do aborto sentimental ou humanitário, da
seguinte forma:111
Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro: II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.112
Entende-se por aborto terapêutico uma hipótese específica de estado de
necessidade conflitante entre dois bens tutelados; neste caso, a vida da gestante
e a vida do feto ou embrião. Porém, o Direito deixa clara a opção pela vida da
mãe, e então se prescinde do consentimento da gestante acima de tudo. Já o
aborto humanitário ou piedoso leva em consideração o princípio da dignidade da
pessoa humana: o Direito permite a manutenção da vida do feto ou embrião; são
dois valores fundamentais em confronto, mas é prioridade preservar aquele já
existente.113
Alexandre de Morais aborda:
Entendemos em relação ao aborto, que além das hipóteses já permitidas pela lei penal, na impossibilidade de o feto nascer com vida, por exemplo, em casos de acrania (ausência do cérebro) ou, ainda, comprovada total inviabilidade de vida extrauterina, por rigorosa perícia médica, nada justiçaria sua penalização, uma vez que o direito não estaria a serviço da finalidade constitucional de proteção à vida, mas sim estaria ferindo direitos fundamentais da mulher, igualmente protegidos:
110 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. p.58. 111 MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 7.ed. São Paulo: Atlas,
2006. p.85. 112 BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 14 abr. 2013. 113 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10.ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010. p.633.
41
liberdade e dignidade humanas. Dessa forma, a penalização nesses casos seria de flagrante inconstitucional.114
Com o mesmo entendimento, Geraldo Francisco Pinheiro Franco, desde
1993, abordou a ideia da seguinte maneira:
Ora, se esse posicionamento, de inegável alcance, sempre foi aceito na sociedade em geral, por que razão não se admitir o aborto no caso em que por anomalia séria devidamente evidenciada e constatada por profissionais habilitados mediante a utilização das técnicas mais modernas de medicina haja certeza da impossibilidade de vida fora do útero materno?115
E, ainda, no Boletim nº 11 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
(IBCCRIM):
[…] se o legislador ordinário admitiu o aborto necessário, independentemente das condições de saúde do feto, tenho que no espírito de seu posicionamento admitiu igualmente a interrupção da gravidez no caso de impossibilidade de vida do feto após o nascimento cujo diagnóstico prévio hoje é possível. Por outro lado, se permitiu, há mais de cinquenta anos, com reconhecida e necessária coragem, o aborto sentimental independentemente dos riscos de vida à mãe e das condições do feto, admitiu como possível havendo risco à saúde física ou psíquica da mulher (e não só à vida) bens individuais que necessitam igual tutela o aborto de feto sem possibilidade de vida autônoma. Essa interpretação parece mais condizente com o intuito da lei, não atenta contra o direito à vida e se reveste creio de ponderáveis contornos humanitários.116
Uma das principais polêmicas em relação ao art. 128 do CP, se inicia logo
no caput, com a expressão “não se pune”, indagando-se: trata-se de uma
excludente de ilicitude ou uma escusa absolutória?117
114 MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 7 ed. São Paulo: Atlas,
2006. p.85. 115 FRANCO, Geraldo Francisco Pinheiro. Impossível a sobrevida do feto, deve ser autorizado o
aborto. Boletim IBCCRIM, n.11. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/novo/boletim_artigo/2123-Imposs%EDvel-a-sobrevida-do-feto,-deve-ser-autorizadAo-o-aborto>. Acesso em: 04 maio 2013.
116 FRANCO, Geraldo Francisco Pinheiro. Impossível a sobrevida do feto, deve ser autorizado o aborto. Boletim IBCCRIM, n.11. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/novo/boletim_artigo/2123-Imposs%EDvel-a-sobrevida-do-feto,-deve-ser-autorizadAo-o-aborto>. Acesso em: 04 maio 2013.
117 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p.58.
42
Júlio Fabbrini Mirabete defende que as hipóteses do art. 128 do Código
Penal são causas de exclusão de criminalidade, embora a redação do dispositivo
pareça indicar causas de ausência de culpabilidade ou punibilidade.118
Celso Delmanto é partidário da concepção de que se trata de abortos
lícitos os descritos no art. 128, excluindo a antijuridicidade.119
Magalhães Noronha opina:
Segundo cremos, não é das mais felizes a redação do art. 128. Se o fundamento do inciso I é o estado de necessidade, e o inciso II ainda o mesmo estado, conforme alguns, ou a prática de um fato lícito, não nos parece que na técnica do Código se devia dizer “não se pune...”. Dita frase pode levar à conclusão de que se trata de dirimente ou de escusa absolutória, o que seria insustentável. Em tal hipótese, a enfermeira que auxiliasse o médico, no aborto, seria punida. Nos incisos do art. 128, o que desaparece é a ilicitude ou a antijuridicidade do fato, e, consequentemente, devia dizer-se: “Não há crime”.120
Damásio Evangelista de Jesus doutrina no mesmo sentido:
A disposição não contém causas de exclusão de culpabilidade, nem escusas absolutórias ou causas extintivas da punibilidade. Os dois incisos do art. 128 contêm causas de exclusão de antijuridicidade. Note-se que o CP diz que “não se pune o aborto”. Fato impunível em matéria penal é fato lícito. Assim, na hipótese de incidência de um dos casos do art. 128, não há crime por exclusão de ilicitude.121
Porém, há quem entenda diferente.
Ricardo Henry Dip critica a doutrina nacional e afirma que
[...] as hipóteses previstas em ambos os itens do art. 128, Código Penal, ou configurem isenções de pena – no limite, dirimentes (causas de exclusão da culpabilidade ou da punibilidade) – ou se fulminam de manifesta inconstitucionalidade.122
118 MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de direito penal: parte especial –
arts. 121 a 234-B do CP. 27.ed. São Paulo: Atlas, 2010. v.2, p.63. 119 DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto; DELMANTO, Fábio
M. de Almeida. Código Penal comentado. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.469. 120 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o
patrimônio. 31.ed. São Paulo: Saraiva, 2000. v.2, p.63-64. 121 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal: parte especial: dos crimes contra a pessoa e
dos crimes contra o patrimônio. 26.ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2004. v.2, p.128. 122 DIP, Ricardo Henry Marques. Uma questão biojurídica atual: a autorização judicial de aborto
eugenésico – alvará para matar. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 85, v.734, p.517-540, dez. 1996.
43
Segundo Julio Fabbrini Mirabete:
Atualmente, grande número de países não mais incrimina o aborto quando provocado até o terceiro ou quarto mês de gravidez (Suécia, Dinamarca, Finlândia, Inglaterra, França, Alemanha, Áustria, Hungria, Japão, Estados Unidos etc.).123
Ademais, há alguns anos já vem se desenvolvendo o projeto de reforma
da parte especial do Código Penal, o qual resultaria em mudanças no que se
refere ao presente tema:
Exclusão de ilicitude Art. 128. Não constitui crime o aborto praticado por médico se: I – não há outro meio de salvar a vida ou preservar a saúde da gestante; II – a gravidez resulta de violação da liberdade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida; III – há fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais. § 1º. Nos casos dos incisos II e III, e da segunda parte do inciso I, o aborto deve ser precedido de consentimento da gestante, ou quando menor, incapaz ou impossibilitada de consentir, de seu representante legal, do cônjuge ou de seu companheiro; § 2º. No caso do inciso III, o aborto depende, também, da não oposição justificada do cônjuge ou companheiro.124
O anteprojeto tem o objetivo de excluir a ilicitude, iniciando pelo caput,
onde encerra a discussão a respeito da existência ou não de aborto legal no
Brasil, passando a titular que “não constitui crime o aborto praticado por médico
se”, reforçando a ideia de exclusão de crime.
O inciso I não apresentou mudança significativa, e continua tratando de
aborto necessário próprio ou impróprio, em situações de risco à vida da gestante
ou na hipótese de risco à sua saúde, respectivamente. O inciso II já apresenta
modificações, principalmente em sua segunda parte, onde se insere a moderna
questão da inseminação artificial não consentida, pois a tipificação se faz
pertinente ao direito de liberdade da gestante de buscar uma gravidez desejada,
consciente e livre. E o novo inciso III, que foi criado e inserido nesse anteprojeto
de lei, busca autorizar o que podemos chamar de aborto eugênico.125
123 MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato. Manual de direito penal – parte especial: arts.
121 a 234-B do CP. 27.ed. São Paulo: Atlas, 2010. v.2, p.57. 124 REFORMA DO CÓDIGO PENAL (relatório e anteprojeto de lei). Disponível em:
<http://www.mp.rs.gov.br/infancia/projetos_de_lei/id2953.htm>. Acesso em: 07 abr. 2013. 125 BELO, Warley Rodrigues. Aborto: considerações jurídicas e aspectos correlatos. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999. p.69.
44
Enfim, em meados do ano passado, o tema esteve muito presente na
mídia, uma vez que a tentativa de legalizar a interrupção da gestação em casos
de fetos anencefálicos retornou às votações perante o STF, com o intuito de uma
decisão definitiva, esperada há tantos anos.126
O Supremo Tribunal Federal, em abril de 2012, estabeleceu que a
interrupção da gravidez nestes casos, quando comprovada a malformação fetal
de anencefalia, não constitui crime. Então, através da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, o aborto de bebês anencéfalos
foi descriminalizado, e pode ser feito com assistência médica na rede de saúde.
Ainda assim, cabe à mulher a decisão de prosseguir ou não com a gestação.
Cabe também à equipe médica que a acompanha respeitar sua decisão, pois a
mãe e seu bebê com anencefalia têm os mesmos direitos à assistência, como em
qualquer outra gestação.127 Porém, o Conselho Federal de Medicina é que ficou
encarregado de estabelecer as regras para a interrupção. E, através da
Resolução nº 1989/2012, aprovada em 11 de maio e publicada no Diário Oficial da
União no dia 14 de maio, com unanimidade pela Plenária do Conselho Federal de
Medicina, estabeleceu as regras que regulam o diagnóstico em casos de
anencefalia.128
3.3 EM BUSCA DA DESCARACTERIZAÇÃO DO ABORTO DO FETO
ANENCEFÁLICO: UM OLHAR RETROSPECTIVO
Em meados de março de 2004, o advogado Luís Roberto Barroso
recebeu em seu escritório (Luís Roberto Barroso & Associados) a doutora em
antropologia e diretora da ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero,
organização não governamental voltada para a defesa dos direitos das mulheres)
Débora Diniz, acompanhada da Doutora Dafne Horovitz, médica e geneticista do
Instituto Nacional Fernandes Figueira (IFF), conhecido como centro de referência
126 FREITAS, Patrícia Marques. Os fetos anencefálicos e a Constituição Federal de 1988. São
Paulo: Ícone, 2011. p.16. 127 ANENCEPHALY. Disponível em: <http://www.anencephalie-info.org/p/index.php>. Acesso em:
11 mar. 2013. 128 PORTAL DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Disponível em:
<http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=22934:comissao-de-direitos-humanos-do-senado-aprova-projeto-que-preve-aborto-de-fetos-anencefalos&catid=3>. Acesso em: 13 set. 2012.
45
materno-infantil da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Juntamente com elas, o
Procurador da República Daniel Sarmento.129
As frustrações já presenciadas a respeito do tema impulsionaram os mais
diversos órgãos e pessoas130, e, assim, mobilizados com o drama enfrentado por
muitas mulheres de gerar fetos anencéfalos, a ANIS e seus parceiros resolveram
tomar providências com o objetivo incomum de ajudar essas gestantes.131
Naquele momento, a insegurança e a incerteza dominavam, pois, de fato,
era necessário requerer a autorização judicial para a antecipação do parto,
quando, na verdade, o que as gestantes mais queriam era abreviar os sofrimentos
físicos e psíquicos causados pela gestação de fetos incompatíveis com a vida.
Sujeitavam-se à espera pelo deferimento ou indeferimento do pedido, e, em
muitos casos, a decisão acabava vinda tarde demais. Além disso, não havia na
época uma posição pacífica; muito pelo contrário, viam-se decisões
desencontradas, o que acabava sujeitando as gestantes à convicção religiosa de
juízes e promotores.132
Para Guilherme de Souza Nucci:
O juiz invocava, por vezes, a tese da inexigibilidade de conduta diversa, por vezes a própria interpretação da norma penal que protege a “vida humana” e não a falsa existência, pois o feto ou embrião só está “vivo” por conta do organismo materno que o sustenta.133
129 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal:
antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.13.
130 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal: antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.5.
131 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal: antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.13.
132 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal: antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.13.
133 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p.634.
46
Na época, já estavam sendo concedidas permissões judiciais para
abortamento. Analisando a gravidez de fetos anencefálicos, os juízes, na maioria
das vezes, levavam em consideração que eram fetos ou embriões com graves
anomalias, cujas vidas, segundo estudos e medicina atual, estariam
inviabilizadas.134 Houve casos como o da jovem gestante Gabriela de Oliveira
Cordeiro, que percorreu todas as instâncias do Poder Judiciário; face às decisões
conflitantes, o seu caso foi levado ao Supremo Tribunal Federal, através da HC
84.025-6/RJ; porém, antes que o julgamento ocorresse, o feto anencefálico
nasceu e, sete minutos após parto, veio a falecer. Na época, o relator sorteado
para o caso foi o Ministro Joaquim Barbosa, o qual chegou a elaborar o seu voto,
favorável à interrupção da gestação.135
Era, evidentemente, insatisfatória a situação em vigor na época, em que
cada gestante buscava individualmente a Justiça, sendo necessário idealizar uma
maneira de ingressar diretamente perante o STF, em busca de uma decisão geral,
válida para todos os casos que tratassem de anencefalia. Somente o Supremo
Tribunal Federal era competente para proferir decisões para esses casos, e, além
do mais, pacificar um entendimento.136 Cerca de 3.000 alvarás já haviam sido
concedidos até 2004 em diversos Estados do Brasil, sendo que a maioria deles
eram deferidos ainda em primeira instância, e, em casos de indeferimentos na
primeira instância, acabavam sendo deferidos em segunda instância, através de
recursos.137
Apesar de ser uma via pouco utilizada no escritório de advocacia acima
citado, a arguição de descumprimento de preceito fundamental foi o meio
escolhido, mas havia um problema: conforme o art. 103 da Constituição Federal,
a propositura da ADPF é limitada a um conjunto de pessoas determinadas, 134 FREITAS, Patrícia Marques. Os fetos anencefálicos e a Constituição Federal de 1988. São
Paulo: Ícone, 2011. p.16. 135 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal:
antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.14-15.
136 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal: antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.14-15.
137 GOLLOP, Thomas Rafael. A liminar do STF sobre aborto em casos de anencefalia: onde estamos e para onde deveríamos ir? Boletim IBCCRIM, São Paulo, v.12, n.141, p.9-10, ago. 2004.
47
normalmente órgãos e entidades políticas ou de Estado. Com base no inciso IX
do art. 103 da Constituição Federal, surgiu a possibilidade de ajuizamento da
ação pela Confederação Nacional de Trabalhadores na Saúde (CNTS), pois,
através de pesquisas realizadas na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a
CTNS se fez presente em outros casos, dentro das diversas confederações
sindicais anteriormente admitidas como legítimas.138
A partir dai, ocorreram contatos políticos entre a CNTS e a ANIS, sendo
realizado um seminário na cidade de Brasília para apresentar os aspectos
jurídicos e médicos envolvidos na ação. Depois de um seminário muito bem
sucedido, a CNTS convocou assembleia geral, onde as federações que a
integram optaram por levar adiante a causa, em razão de seu caráter humanitário
e também de interesses de profissionais da saúde em solucionar o problema.139
A Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CTNS), no
começo de 2004, através do advogado Luís Roberto Barroso, ingressou perante o
Supremo Tribunal Federal com uma Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental, autuada sob n° 54, com fundamento principalmente na Constituição
Federal de 1988, mais especificamente no art. 102, §1º, assim como na Lei nº
9.882/99.
O objetivo do pleito perante a Suprema Corte era obter uma interpretação
conforme a Constituição de dispositivos legais no Código Penal, principalmente os
que se referem diretamente ao delito de aborto, mais especificadamente os arts.
124, 125, 126 e 128. Visava-se, então, que o STF declarasse que o aborto
anencefálico não é um fato materialmente típico, ou seja, não se enquadra no
138 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal:
antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.14-15.
139 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal: antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.14-15.
48
âmbito da proibição penal.140 Em suma, buscava obter da Suprema Corte uma
interpretação mais atualizada no que se refere ao delito de aborto.141
A inicial contou com a sugestão de diversos advogados e participantes do
projeto para a sua elaboração, até mesmo através de pesquisas a respeito do
assunto em Direito estrangeiro, como a decisão proferida pela Suprema Corte
argentina, a qual tratava especificamente a respeito da anencefalia.142
A intenção não era de que o STF, para autorizar o aborto anencefálico,
criasse uma nova norma jurídica, até mesmo porque o Judiciário não é
competente para tal. O que se buscava, efetivamente, era saber se o aborto
anencéfalo está ou não inserido na parte prevista pela proibição legal, ou seja,
nos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal.143
Segundo Luís Roberto Barroso:
O pedido central veiculado na ADPF, sintetizado de forma simples, era para que o STF, interpretando o Código Penal à luz da Constituição, declarasse que os artigos nele previstos que tipificam o crime de aborto não se aplicam nem à gestante nem aos profissionais de saúde no caso de antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico. E que, como consequência, fosse reconhecido às gestantes que se encontrassem nessa situação o direito de interromperem a gestação, sem necessidade de autorização judicial prévia ou qualquer outra forma de permissão especifica do Estado.144
O Conselho Nacional dos Trabalhadores da Saúde, autor da ação de
descumprimento de preceito fundamental, referiu como violados os preceitos dos
arts. 1°, III, que assegura o princípio da dignidade humana; o art. 5°, II, sobre o
princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade; art. 6°, caput, e
também o art. 196, que trata do direito à vida, todos eles constantes na
140 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos
Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. 141 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos
Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. p.406. 142 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal:
antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.15.
143 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. p.406-407.
144 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal: antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.16.
49
Constituição Federal, sendo estes os causadores da lesão ao conjunto normativo
presente nos arts. 124, 126 caput e 128, I e II do Código Penal.145
Sustentou-se um grande conflito de interesses: o público e o individual,
pois o interesse público visa à proteção do bem jurídico vida do feto, e, de outro
lado, o interesse individual e geral de liberdade, que aborda também a dignidade
da pessoa humana.146
De forma mais abrangente, o art. 1°, III CF147, no que dispõe sobre a
dignidade da pessoa humana, seria violado a partir do momento em que se
submete a gestante a levar até o final uma gravidez inviável, o que afeta sua
integridade física e principalmente psicológica, tendo em vista o enorme e inútil
sofrimento.148
Em relação ao art. 5°, II, CF149, a violação ocorre em relação ao direito de
liberdade da gestante, pois estaria sendo aplicada a ela a vedação prevista no
Código Penal no que se refere ao aborto, sendo que, nesses casos, não se
tratava de aborto, face à falta de potencialidade de vida do feto.150
145 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos
Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. 146 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos
Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. 147 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana; [...].
148 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal: antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.16-17.
149 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; [...].
150 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal: antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p,16-17.
50
Ainda, com base nos arts. 6°151 e 196 da CF152, o direito à saúde da
gestante é violado a partir do momento em que obrigada a levar a gestação a
termo, apesar de se tratar de uma gravidez inviável, quando há possibilidade de
minimizar seu sofrimento físico e psicológico através de procedimento médico
adequado, sendo que, em relação ao feto, infelizmente não há nada que possa
ser feito.153
Segundo Luís Roberto Barroso:
A ação foi distribuída ao Ministro Marco Aurélio de Mello, que levou sua decisão liminar “em mesa”, isto é, independentemente da pauta divulgada com antecedência, na última sessão plenária do STF antes de iniciado o recesso, realizada na manhã do último dia 1º de julho. À vista da precedência dos processos de natureza criminal, a ADPF n. 54 não pôde ser chamada. Na tarde desse mesmo dia, véspera do recesso, o Ministro Marco Aurélio, valendo-se da faculdade que lhe confere a lei, decidiu conceder a liminar monocraticamente, ad referendum do Plenário, que deverá se reunir para deliberar a matéria na volta do recesso, a partir de agosto.154
A liminar concedida reconhecia às gestantes de fetos anencefálicos o
direito, caso fosse de sua vontade, de antecipação terapêutica do parto, desde
que a anomalia fosse atestada através de laudo médico. Além disto, demandou o
sobrestamento dos processos e as decisões a respeito da matéria que ainda não
tivessem transitado em julgado.155
Para o Ministro,
[...] diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até
151 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
152 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
153 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal: antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.17.
154 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal: antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.17.
155 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal: antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.17.
51
aqui notados [...] diante de uma deformação irreversível de feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia a dia, de sentimentos mórbidos, mas justamente, para fazê-los cessar.156
A partir de então começaram a surgir as críticas, através de
manifestações de pessoas e entidades, analisadas pelo âmbito religioso.157
Passados alguns meses158, a corajosa decisão proferida pelo Ministro
Marco Aurélio foi revogada. O Tribunal concluiu, então, que a matéria não deveria
ser deliberada através de medida liminar, e por isso a revogou.159
Outras opiniões alegam que o Supremo Tribunal Federal derrubou a
liminar concedida pelo Ministro Marco Aurélio ao pedido de ADPF para a
antecipação terapêutica da gestação de fetos anencéfalos, baseando-se,
principalmente, nos princípios constitucionais da liberdade, autonomia da vontade,
direito à saúde e dignidade da pessoa humana, e também da legalidade.160 O
principal argumento para a cassação da liminar constituiu em sua natureza
satisfativa, ou seja, uma vez sendo realizado o aborto, caso o mérito da ação não
fosse julgado procedente, tal conduta seria irreversível, pois a vida, quando
eliminada, não há possibilidade de retorno.161
O Pleno do Supremo Tribunal Federal, em 27/04/2005, concluiu pela
admissibilidade e adequação da ação de descumprimento de preceito
156 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal:
antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.17-18.
157 BARROSO, Luís Roberto. A discussão da anencefalia no Supremo Tribunal Federal: antecedentes, estratégia jurídica e expectativas. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.11-18. p.18.
158 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. p.406.
159 BARROSO, Luís Roberto. STF e anencefalia: nada foi decidido. In: BARROSO, Luís Roberto; MARTINS, Ives Gandra da Silva; GOMES, Luiz Flávio et al. Anencefalia nos tribunais. São Paulo: Migalhas, 2009. p.25-29. p.27.
160 LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello. Existe aborto de anencéfalos? Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n.617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6467>. Acesso em: 07 abr. 2013.
161 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. p.406.
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fundamental, por sete votos a favor, quatro contra, restando, ainda, o exame de
mérito da questão.162
Segundo Luiz Flávio Gomes:
Múltiplas foram as razões invocadas para o positivo juízo de admissibilidade da ADPF: (a) a questão do aborto anencefálico é muito relevante; (b) que no atual estágio há muita insegurança nessa área; (c) que são muito relevantes os direitos e interesses envolvidos (vida do feto, liberdade da gestante, dignidade etc.); (d) que há muitas decisões discrepantes sobre a matéria; (e) que não há outro meio jurídico mais idôneo para se discutir o tema; (f) que é incabível qualquer outra ação constitucional de controle de constitucionalidade por se tratar de direito pré-constitucional etc.163
O informativo 385 do STF amplia esse ponto, esclarecendo:
Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, resolveu questão de ordem suscitada pelo Procurador-Geral da República, no sentido de assentar a adequação da arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, na qual se pretende obter posicionamento do STF sobre o aborto de feto anencéfalo – v. Informativos 354, 366 e 367. A arguente aponta como violados os preceitos dos artigos 1º, IV (dignidade da pessoa humana); 5º, II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade); 6º, caput, e 196 (direito à saúde), todos da CF, e, como ato do Poder Público, causador da lesão, o conjunto normativo ensejado pelos artigos 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, requerendo, em última análise, a interpretação conforme à Constituição dos referidos dispositivos do CP, a fim de explicitar que os mesmos não se aplicam aos casos de aborto de feto anencéfalo. Entendeu-se, nos termos do voto do relator, que os requisitos concernentes à ação foram devidamente atendidos (Lei 9.882/99, arts. 1º, 3º e 4º, § 1º). Salientando de um lado a presença de argumentos em torno de valores básicos inafastáveis no Estado Democrático de Direito e, de outro, os enfoques do Judiciário com arrimo em conclusões sobre o alcance dos dispositivos do Código Penal que dispõem sobre o crime de aborto, concluiu-se pela necessidade do pronunciamento do Tribunal, a fim de se evitar a insegurança jurídica decorrente de decisões judiciais discrepantes acerca da matéria. Assentou-se a inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesividade alegada, apontando-se, como fundamento, o que verificado relativamente ao habeas corpus 84025/RJ (DJU de 25.6.2004), da relatoria do Min. Joaquim Barbosa, no qual a paciente, não obstante recorrer a essa via processual, antes do pronunciamento definitivo pela Corte, dera à luz a feto que veio a óbito em minutos, ocasionando o prejuízo da impetração. Ressaltou-se, também, o que consignado na ADPF 33 MC/PA (DJU de 6.8.2004), por seu relator, Min. Gilmar Mendes, quanto ao caráter acentuadamente objetivo da ADPF e a necessidade de o juízo da subsidiariedade ter em vista os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional – a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de
162 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos
Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. 163 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos
Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006.
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constitucionalidade. Assim, incabíveis estas, como no caso de controle de legitimidade do direito pré-constitucional, possível a utilização daquela.164
O informativo 366 do STF assinalou:
O Tribunal iniciou julgamento de questão de ordem suscitada pelo Procurador-Geral da República, quanto à admissibilidade da ação, em arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, em que se pretende obter posicionamento do STF sobre o aborto de feto anencéfalo – v. Informativo 354. Inicialmente, o Min. Marco Aurélio, relator, admitiu a ação. Quanto a essa questão, o Min. Carlos Britto pediu vista dos autos. Em seguida, o Pleno resolveu suspender o julgamento da questão de ordem a fim de deliberar sobre a manutenção da liminar concedida pelo relator que, em 1º.7.2004, sobrestaram os processos e decisões não transitadas em julgado e reconhecera o direito constitucional da gestante de se submeter à operação terapêutica de parto de fetos anencéfalos a partir de laudo médico que atestasse a deformidade. Referendou-se, por maioria, a primeira parte da liminar concedida (sobrestamento de feitos) e revogou-se a segunda (direito ao aborto), com efeitos ex nunc. Entendeu-se que não havia justificativa para manutenção da liminar, tendo em conta a pendência de decisão quanto à admissibilidade da ação. Salientou-se, ainda, o caráter satisfativo da medida deferida e a indevida introdução, por meio dela, de outra modalidade de excludente de ilicitude no ordenamento jurídico. Vencidos, em parte, os Ministros Marco Aurélio, relator, Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence, que referendavam integralmente a liminar, ressaltando sua vigência temporal de quase quatro meses. Vencido, também, parcialmente, o Min. Cezar Peluso, que não referendava a liminar em sua totalidade.165
O ministro Carlos Britto, seguindo o relator, reafirmou a possibilidade da
interpretação conforme a Constituição, visando à amplitude de entendimentos
quanto ao alcance e conteúdo dos artigos tratados do Código Penal, assim como
as divergências que dela resultaram. Já o Ministro Gilmar Mendes retomou os
fundamentos por ele abordados na ADPF 33 MC/PA.
Segundo Luiz Flávio Gomes o Ministro Sepúlveda Pertence também
acompanhou o voto do relator, mas fazendo uma ressalva em relação
[...] à tese de que só o cabimento de um processo objetivo outro obstaria a utilização da ADPF, entendeu ser patente a relevância da controvérsia constitucional e que apenas a medida extrema, com efeito erga omnes e de eficácia vinculante, seria capaz de reparar a lesão ocorrida ou obviar
164 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo385.htm>. Acesso em: 02 maio 2013.
165 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo366.htm#ADPF.%20Anencefalia.%20Aborto>. Acesso em: 02 maio 2013.
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a ameaça identificada. Refutou, ainda, o fundamento de que a ADPF se reduziria a requerer que fizesse incluir uma 3º alínea no art. 128 do CP, por considerar que a pretensão formulada é no sentido de se declarar, em homenagem aos princípios constitucionais aventados, não a exclusão de punibilidade, mas a atipicidade do fato.
166
O Ministro Nelson Jobim, presidente na época, detinha opinião contrária:
compreendia que, para o art. 128 e seus incisos, sempre há vida possível,
trazendo a ideia de análise paralela com o art. 124, para, assim, aventar a
inclusão um tipo de feto não detentor dessa possibilidade, ou seja, feto
incompatível com a vida extrauterina, tudo com o objetivo de verificar se a
interpretação está compatível com o art. 5º da Constituição Federal ou não, sendo
que este assegura a inviolabilidade do direito à vida.167
Foram vencidos, naquela época, os Ministros Cezar Peluso, Eros Grau e
Ellen Gracie por não conhecerem da ação e considerarem ofensa ao princípio da
reserva legal o pedido de interpretação conforme dos artigos do CP, buscando
mais uma hipótese de excludente de punibilidade. Também foi vencido o Ministro
Carlos Velloso, que entendia ser incabível equivaler a pretensão da autora a uma
declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto e de
disposições legais pré-constitucionais. E, por fim, determinou que os autos
retornassem ao relator Ministro Marco Aurélio para examinar a aplicação do art.
6º, parágrafo 1º da Lei nº 9.882/99.168
Em julgamentos ou entrevistas, diversos Ministros do Supremo Tribunal
Federal já deixaram evidências de serem favoráveis, nos casos detectados de
anencefalia, ao direito da mulher de escolher a interrupção da gravidez.
Na propositura da ação, em 2004, o relator, Ministro Marco Aurélio de
Mello, concedeu a autorização da antecipação da gestação nesses. Alegou não
se tratar de aborto, tendo em vista que não há possibilidade de sobrevivência do
feto fora do útero materno.169 A concessão foi dada com o intuito de afastar a
166 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos
Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. 167 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos
Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. 168 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos
Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. p.408-409. 169 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos
Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. p.408-409.
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ilicitude nos casos de aborto anencefálico, com eficácia erga omnes, para que se
aplicasse em todo o país.170
O relator contou, naquele momento, e também no dia do julgamento da
admissibilidade da ADPF 54, com o apoio de quatro Ministros: Carlos Ayres Britto,
Celso de Mello, Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa, sendo que o Ministro
Nelson Jobim, em entrevista, emitiu opinião a favor da legalização do aborto em
nosso país.171
No entanto, também houve quatro votos pelo arquivamento da ação, que
foram de Cezar Peluso, Eros Grau, Ellen Gracie Northfleet e Carlos Velloso.
Esses quatro Ministros alegaram que o STF estaria legislando no lugar do
Congresso, por acreditarem que, se concedida a liminar, estariam criando uma
hipótese de aborto não prevista no Código Penal. O Ministro relator aguardava, na
época, que o julgamento do mérito ocorresse em breve.172
Somente após quatro anos da impetração da ADPF acima mencionada,
ou seja, no ano de 2008, é que o tema voltou às discussões no STF,
restabelecendo-se a esperança de o mérito ser julgado pela Suprema Corte.
Então, através de uma audiência pública realizada e dividida em quatro sessões,
participaram sociedades civis organizadas, representantes religiosos e médicos.
Mas ainda não foi dessa vez que o processo entrou em pauta.
Concomitantemente, projetos de leis eram propostos às casas legislativas, com o
objetivo de compreender no ordenamento jurídico pátrio a possibilidade de
excludente de ilicitude no que se refere ao aborto de anencéfalos.173
170 FREITAS, Patrícia Marques. Os fetos anencefálicos e a Constituição Federal de 1988. São
Paulo: Ícone, 2011. p.15-16. 171 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos
Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. p.408-409. 172 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material. Revista dos
Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 95, n.854, p.405-410, dez. 2006. p.408-409. 173 FREITAS, Patrícia Marques. Os fetos anencefálicos e a Constituição Federal de 1988. São
Paulo: Ícone, 2011. p.16.
4 A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº
54 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Neste ponto será realizada uma análise dos votos proferidos pelos
Ministros no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 54 pelo Supremo Tribunal Federal, que trata exclusivamente
sobre a anencefalia. Iniciou-se em 11 de abril de 2012, depois de percorridos
oito anos desde primeira vez a questão que foi levada ao Pleno da Suprema
Corte, ao qual finalmente foi dado um desfecho. O objetivo dessa apreciação
dos votos é explorar os principais fundamentos que levaram à procedência da
ação.
4.1 O JULGAMENTO
Representando a Requerente, falou o advogado Luís Roberto Barroso,
e, representando o Ministério Público Federal, o Procurador Geral da
República, Roberto Monteiro Gurgel Santos.
No primeiro dia, votaram o Relator, Ministro Marco Aurélio de Mello,
acompanhado dos Ministros Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Rosa Weber e
Cármen Lúcia, que julgaram procedente a arguição de descumprimento de
preceito fundamental. No mesmo dia também votou o Ministro Ricardo
Lewandowski, o qual foi o único que julgou a ação improcedente.174
4.1.1 Voto do Relator Ministro Marco Aurélio de Mello
O Ministro Marco Aurélio iniciou seu voto relembrando palavras ditas
pelo Padre Antônio Vieira, logo após mencionando que a problemática da Ação
de Descumprimento de Preceito Fundamental era uma das mais importantes
até então analisadas pelo Supremo Tribunal Federal. Afirmou que o tema é de
enorme importância, e acarretará diversas discussões a respeito, aproveitando
para expor dois dados que considera essenciais em relação à relevância do
174 A análise dos votos presente neste capítulo foi realizada com base no Inteiro Teor do
Acórdão do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, realizada em abril de 2012.
57
tema a ser tratado pelo STF: um deles é que, até o ano de 2005, houve cerca
de três mil autorizações para a interrupção da gestação em casos de
incompatibilidade do feto com a vida extrauterina, autorizações realizadas
através de juízes e tribunais; outro dado é que o Brasil perde somente para o
Chile, México e Paraguai em casos de fetos anencefálicos, ou seja, o Brasil é o
quarto país no mundo com maior índice de malformação gestacional de
anencefalia.
Abordou desde o princípio que há grande diferença entre o aborto e a
antecipação terapêutica do parto, desconsiderando, em sua opinião, as
expressões utilizadas por alguns autores como: “aborto eugenésico ou
eugênico” ou, então, “antecipação eugênica da gestação”.
Aludiu que o tema envolve a dignidade da pessoa humana, a liberdade,
a autodeterminação, o usufruto da vida, a saúde, o reconhecimento total dos
direitos individuais (principalmente no que se refere aos direitos sexuais e
reprodutivos da mulher), mais acreditando não se tratar de colisão entre os
direitos fundamentais, somente um conflito aparente.
Expôs que o principal objetivo pleiteado na inicial é
[...] saber se a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencéfalo coaduna-se com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde.
Então, de forma extensiva, abordou cada um dos principais tópicos da
ADPF, começando pelo Estado laico, desde os primórdios até a atual
Constituição Federal, sendo que esta, além de consagrar a liberdade religiosa,
prevista no art. 5º, inciso VI, prevê também o caráter laico do Estado, em seu
art. 19, inciso I. Referiu também ao preâmbulo da atual Carta, que
expressamente alude à religião cristã, e, com base neste preâmbulo, concluiu
que “O Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente
neutro”.
Alegou, desta forma, que é vedado ao Estado brasileiro promover
qualquer religião; muito pelo contrário, pois, de certa maneira, impõe mesmo
58
um distanciamento quanto à religião, para que não acabe assegurando
concepções morais religiosas que acabem por coagir os cidadãos a observá-
las, ainda que indiretamente.
Portanto, no que se refere ao Estado laico e à liberdade religiosa,
conclui-se que
[...] as religiões não guiarão o tratamento estatal dispensando a outros direitos fundamentais, tais como o direito à autodeterminação, o direito à saúde física e mental, o direito à privacidade, o direito à liberdade de expressão, o direito à liberdade de orientação sexual e o direito à liberdade no campo de reprodução.
Assim, a questão proposta na ação “não pode ser examinada sob os
influxos de orientações morais religiosas. Essa premissa é essencial à analise
da controvérsia”.
Após a abordagem em relação ao Estado laico, analisou de forma
ampla a anencefalia, fazendo referência a diversos médicos renomados,
resultados de pesquisas que realizou; citou também o caso Marcela, onde o
diagnóstico estava equivocado, o que foi comprovado por médicos
especialistas. Afastou, mais uma vez, o aborto eugênico dos casos de
interrupção da gestação de fetos anencefálicos, pois este tipo de aborto é
interpretado em sentido negativo, como, por exemplo, nas práticas nazistas, ou
então, em casos de alguma deficiência, como lábio leporino, pés tortos, sexo
dúbio, Síndrome de Down.
Enfatizou, assim, que a ação de descumprimento de preceito
fundamental tratava somente de anencefalia, e não fetos portadores de alguma
deficiência, em que, apesar de existir alguma malformação, ainda assim é
possível a vida extrauterina.
Ao final dessa abordagem, passou para os argumentos favoráveis à
proteção do anencéfalo, com base na laicidade do Estado.
O primeiro ponto exposto foi o da doação dos órgãos de anencéfalos,
afirmando que não cabe a sustentação da proteção dos fetos anencéfalos para
uma possível doação de órgãos, pois, pelo simples fato de ser o feto
59
anencéfalo, diversas outras anomalias estão presentes, tais como órgãos
menores, o que acaba impossibilitando a doação.
Então, se utilizar deste interesse para assim manter a gravidez de feto
anencéfalo violaria o princípio da dignidade da pessoa humana.
Em outra abordagem, quanto ao direito à vida dos anencéfalos, afirmou
que o aborto é considerado o crime contra a vida, e, em casos de anencéfalos,
não existe vida possível a ser tutelada. Ou seja, se colocados em uma balança
os direitos da mulher, de um lado, ficará ausente o direito à vida ou à dignidade
da pessoa humana do outro lado, pelo simples fato de que não há viabilidade
de vida, não há ninguém por vir. Fez menção ao conhecido HC 82.025, ainda
em relação a este tópico, e concluiu ser a conduta atípica.
Mencionou Nélson Hungria, que, já na década de 50, abordava
questões relacionadas à configuração do tipo penal em relação ao aborto e à
existência de potencialidade de vida:
[...] caso de gravidez extrauterina, que representa um estado patológico, a sua interrupção não pode constituir crime de aborto. Não está em jogo a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que as consequências dos atos praticados se resolvem unicamente contra a mulher. O feto expulso (para que se caracterize o aborto) deve ser um produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto.
Ou seja, o que se pode perceber, com base nisso, é que a questão
repercute há anos, e somente após cerca de sessenta anos é que ela está
sendo julgada perante a Corte Suprema, apesar de sua grande importância e
repercussão.
Alegou, em seu voto, que, com certeza, nas décadas de 30 e 40 não
existiam os meios necessários para que fosse detectada previamente uma
anomalia fetal grave que torna o feto incompatível com a vida extrauterina,
acreditando que o Código Penal está de acordo com o que era possível
detectar naquela época, o que acarreta, por óbvio, a falta de um dispositivo que
trate especificamente da atipicidade da interrupção da gravidez de um
60
anencéfalo. Mencionou, mais uma vez, as palavras do Padre Antônio Vieira: “o
tempo e as coisas não param. Os avanços alcançados pela sociedade são
progressivos”.
Fez relação com os dispositivos previstos no Código Penal,
principalmente o art. 128, dos abortos não puníveis, sendo que nele constam
fetos totalmente saudáveis e com uma vida extrauterina possível, como o caso
da gestação oriunda de estupro.
Em um breve comentário, também mencionou a ADI 3.510, onde existe
uma problemática principalmente em relação ao começo da vida humana, e
comparou com o anencéfalo, no sentido de que não há possibilidade e nunca
haverá de este feto tornar-se um indivíduo-pessoa, como ocorre possivelmente
com as células-tronco. Somente após torna-se o indivíduo pessoa, quando teria
os direitos e garantias, ou os direitos de pessoa humana, garantidos, como o
direito à liberdade, à igualdade, à vida, à segurança e à propriedade. E com
base nisto é que deve haver a ponderação dos direitos, que, no caso de
proteção à vida do anencéfalo, acabam limitando outros direitos das mulheres,
como a dignidade, a liberdade, a autodeterminação, os direitos sexuais e
reprodutivos e o direito à saúde.
Traz em seu voto que o direito à vida não é de valor constitucional
absoluto, é o que os Tribunais Constitucionais e o Direito comparado
asseguram; além disto, conforme diz em seu voto, “a proteção a ele conferida
comporta diferentes gradações, consoante enfatizou o Supremo no julgamento
da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510”.
4.1.2 Voto da Ministra Rosa Weber
A Ministra Rosa Weber, em princípio, fez um breve resumo de toda a
ADPF, deixando claro que formou sua convicção à luz do ordenamento
positivo, tendo como farol e norte a Constituição Federal. Acreditava que o
tema é de uma delicadeza ímpar, que perpassa pelas convicções e crenças, ou
então as descrenças mais profundas, o que acaba nos remetendo, de alguma
forma com certa angústia, até quando nascemos.
61
Abordou, em seu voto, o Habeas Corpus nº 32.159-RJ e o também
conhecido Habeas Corpus nº 84.025, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa.
Elogiou o voto do Relator, acreditando que esgotou o tema, e
registrando ter o maior respeito às opiniões contrárias às dela.
Considerou o caso Marcela de Jesus, que foi diagnosticada com
anencefalia, mas viveu um ano e oito meses. Com base na literatura dos fetos
anencéfalos, há relatos de casos com sobrevida por meses ou mais de um ano,
levando em consideração que talvez houvesse um erro de diagnóstico ou
imprecisão terminológica na designação do fenômeno. Referiu que a proteção
ou não do feto, de uma ótica constitucional, não pode depender somente dos
critérios utilizados pela medicina, mas sim dos critérios jurídicos, principalmente
em relação ao conceito vida, ou seja, a ciência não pode determinar um dever
de proteção a partir de um fato que considera verdadeiro ou falso.
No primeiro julgamento não esteve presente, mas acompanhou nos
vídeos da TV Justiça.
Acredita que essas opiniões, muitas vezes tão antagônicas dentro de
uma sociedade plural, devem-se às crenças e convicções religiosas, filosóficas,
morais, científicas, culturais, sociais de cada um de nós.
Criou o seu voto com base nas considerações iniciais que fez, de que
resultaram três direcionamentos:
[...] (i) atipicidade da antecipação terapêutica do parto, em caso de anencefalia, quanto ao crime de aborto; (ii) vontade do legislador na retirada da anencefalia do rol das excludentes de ilicitude; e (iii) ponderação dos valores entre liberdade, dignidade e saúde da mulher e a vida do feto anencéfalo. A sopesar, ainda, à luz da causa de pedir aberta própria dos processos objetivos, o fundamento adicional trazido da tribuna, qual seja, o de que a criminalização da interrupção da gestação de feto anencéfalo, ou de feto sem viabilidade de vida extrauterina, implica violação de direito fundamental da mulher no tocante aos chamados direitos reprodutivos.
A Ministra concluiu o voto com base na teoria da proporcionalidade,
acreditando que a liberdade da gestante deve ser preservada, levando em
consideração todos os sofrimentos suportados desde o diagnóstico, deixando-a
livre para decidir com base em suas convicções.
62
E acrescentou:
Enfim, seja do ponto de vista epistemológico, seja por meio de análise histórica, seja a partir da hermenêutica jurídica, e forte ainda nos direitos reprodutivos da mulher, todos os caminhos levam ao reconhecimento da autonomia da gestante para a escolha, em caso de comprovada anencefalia, entre manter a gestação ou interrompê-la. A postura contrária não se mostra, data vênia, sustentável em qualquer dessas perspectivas, o que enseja a procedência da presente ação de descumprimento de preceito fundamental para dar interpretação conforme os artigos 124 e 126 do Código Penal, excluindo, por incompatível com a Lei Maior, a interpretação que enquadra a interrupção da gravidez, ou antecipação terapêutica do parto, no caso de comprovada anencefalia, como crime de aborto.
4.1.3 Voto do Ministro Joaquim Barbosa
O Ministro Joaquim Barbosa fez de imediato uma antecipação do voto.
Relembrou que há exatos oitos anos e dois meses desde o presente
dia, ele trouxe a julgamento naquele Plenário o Habeas Corpus 84.025, mas,
apesar de ter chegado a elaborar seu voto sobre a matéria naquela ocasião,
infelizmente o julgamento, por decisão do Presidente na época, Ministro
Maurício Correa, foi interrompido bruscamente.
O HC mencionado por Joaquim Barbosa foi impetrado perante o
Supremo Tribunal Federal no dia 26 de fevereiro de 2004. Tal caso se refere a
uma jovem de dezoitos anos, gestante de feto anencefálico, que estaria, na
época, sofrendo constrangimento ilegal por parte do Superior Tribunal de
Justiça (HC 32.159), que indeferira a interrupção da gravidez. O HC chegou a
ser submetido ao plenário do STF em 4 de março, mas, devido ao recebimento
da notícia de que o feto já havia nascido no dia 28 de fevereiro e sobreviveu
somente sete minutos, foi julgado prejudicado, por perda do objeto.
O seu voto a respeito teve publicação no livro “Nos Limites da Vida:
Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia Sob a Perspectiva dos Direitos
Humanos”. Então, requereu a juntada do voto anterior, apenas com algumas
modificações sofridas, aderindo ao voto do Relator, o qual declarou
brilhantíssimo.
63
Levou em consideração, no decorrer do seu voto, com base em
estudos multidisciplinares realizados, as reações sofridas pelos pais,
principalmente o estado emocional frente a um diagnóstico de malformação
fetal. Ocorre uma mistura de sentimentos dolorosos, tais como: culpa,
impotência, perda do objeto amado, raiva, choque, ambivalência, tristeza,
frustração.
Alegou que
[...] não se discute a ampla possibilidade de se interromper a gestação. A questão aqui se refere exclusivamente à interrupção de uma gravidez que está fadada ao fracasso, pois seu resultado, ainda que venham a ser envidados todos os esforços possíveis, será, invariavelmente, a morte do feto.
Em abordagem, ligada diretamente à anencefalia, mencionou:
[...] não é preciso ser um especialista no assunto para entender que sem o órgão vital que comanda as funções básicas do corpo humano e também os sentimentos e emoções, é absolutamente impossível se falar em vida extrauterina independente.
O fundamento do seu voto favorável é acreditar que a dignidade da
mulher deverá prevalecer, assim como o direito à liberdade, para que a
gestante decida com base nos seus sentimentos, interesses pessoais, suas
convicções religiosas e morais, entendendo, assim, que outros valores jurídicos
tutelados pelo Direito estariam assegurados, como a autonomia privada da
mulher e a sua intimidade.
Encaminhando-se para o final do seu voto, levou em consideração que,
na época da promulgação do Código Penal, não havia meios tecnológicos
necessários aptos a diagnosticar a inviabilidade, mesmo após o parto, do
desenvolvimento do nascituro.
E, então, finalizou seu voto com as seguintes palavras:
Concluo. O feto, desde a sua concepção até o momento em que se constatou clinicamente a irreversibilidade da anencefalia, era merecedor de tutela penal. Mas, a partir do momento em que se comprovou sua inviabilidade, embora biologicamente vivo, deixou de ser amparado pelo art. 124 do Código Penal.
64
Expôs ainda que a antecipação do parto, nesses casos não encontra
tipicidade no Direito brasileiro. De fato, se a conduta não é típica, sequer há de
se cogitar de ilícito penal:
[...] Pelas razões expostas, voto pela procedência do pedido formulado na presente arguição de descumprimento de preceito fundamental, a fim de que seja dada interpretação conforme a Constituição ao art. 124 do Código Penal, de forma que seja excluída do âmbito de sua incidência a antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo.
4.1.4 Voto do Ministro Luiz Fux
O Ministro Luiz Fux afirmou que não teve a oportunidade de participar
anteriormente de nenhum julgamento, nem sobre as questões de ordem,
tampouco as questões antecedentes referentes à liminar, sendo a primeira vez
que participava do julgamento; e apesar disso, já havia recebido e-mails e
cartas a respeito da questão, inclusive lendo, ao decorrer do seu voto, uma das
cartas recebidas. Demonstrou-se bastante espiritual, do início ao fim de seu
voto.
Mencionou que um bebê anencéfalo é geralmente cego, surdo,
inconsciente e incapaz de sentir dor. Apesar de alguns indivíduos com
anencefalia poderem viver minutos, a falta de um cérebro em funcionamento
permanente descarta completamente a possibilidade de qualquer ganho de
consciência.
Fez menção ao HC 82.025, já destacado pelo Ministro Joaquim
Barbosa, para explicar que não se sente confortável para fazer a ponderação
de qual das duas vidas é mais importante, se a do feto ou a da mulher.
Acredita que o STF irá consagrar e respeitar as mulheres que
desejarem realizar o parto, mesmo em casos de anencefalia, dando espaço ao
direito à liberdade a elas conferido.
Expôs um aresto, da Corte Constitucional da Itália, que exarou a
sentença número 35, de fevereiro de 1997, a qual, embora acredite que o
direito à vida do feto mereça uma forte proteção, reconhece que esta pretensão
65
deve se dar na medida do possível, e que, nos casos de presente risco sério à
saúde física ou psíquica da gestante, essa proteção seja cedida, sendo
previsto esse requisito no art. 4º da Legge nº 194, de 1978.
Em suas pesquisas a respeito do tema, mencionou doutrinas e,
inclusive, um periódico sobre Obstetrícia e Ginecologia norte-americano que foi
publicado em 2012, afirmando que a média de vida calculada em casos de
anencefalia em que a gravidez chega ao final é de cinquenta e um minutos de
vida.
Citou Günther Jakobs, para quem “é razoável aceitar um encurtamento
da vida para combater dores mais graves”.
Em determinado momento do seu voto, em razão das pesquisas
realizadas e dos dados colhidos, chegou a três conclusões consideradas por
ele lastimáveis:
[...] a expectativa de vida do anencéfalo fora do útero é absolutamente efêmera; o diagnóstico de anencefalia pode ser feito, com razoável índice de precisão, a partir das técnicas hodiernamente disponíveis; e as perspectivas de cura dessa deficiência na formação do tubo neural são absolutamente inexistentes nos dias atuais. Por isso o neonato anencéfalo tem uma expectativa de vida reduzidíssima.
Ainda, relatou ficar totalmente convencido, após ouvir o voto do
Ministro relator Marco Aurélio de Mello, de que “levar a gestação até os seus
últimos termos causa na mulher um sofrimento incalculável, do qual resultam
chagas eternas, que podem ser minimizadas caso interrompida a gravidez de
plano [...]”.
Assinalou, também, que, na época em que foi publicado o Código
Penal, não havia possibilidade de o legislador prever hipóteses de permissão
de antecipação terapêutica do parto ou de diagnosticar a anencefalia ainda
durante a gravidez, tendo em vista que a ultrassonografia, que é o meio pelo
qual os médicos garantem 100% de certeza através do diagnóstico, foi criada
somente no final de 1940, na Alemanha, ou seja, no mesmo ano em que foi
publicado o Código Penal brasileiro.
66
No seu ponto de vista, acredita ser injusto levar mulheres a um Tribunal
do Júri para responder pelo fato de ter antecipado o parto de um feto
anencefálico:
O sacrifício da penalização de uma gestante de feto anencefálico não se revela necessário aos fins do direito punitivo, mas, antes, demonstra a desproporcionalidade da sanção diante da inafastável defesa da dignidade humana da mulher infortunada, fundamento do Estado democrático de Direito e garantia revestida da categoria de direito fundamental.
Aduziu que o interessante é que a maioria das pessoas que se
demonstraram contrárias à decisão de descriminação nunca sentiram na
própria pele a dor tanto física quanto moral sentida pela gestante; todas as
pessoas que foram ouvidas por ele possuíam em suas casas filhos e netos,
sãos, com nenhuma doença incompatível com a vida.
Baseando-se na vontade do povo, diz haver até um desacordo moral
razoável em permitir ou não o aborto.
[...] sob o ângulo da vontade popular, sobressai extreme de dúvidas o repúdio social à penalização da mulher vitimada por uma gravidez de risco, que impõe manter no seu ventre materno nascituro com morte anunciada, dor maior no arrebate da maternidade desejada. Por incidir, no meu modo de ver, em uma causa de justificação, por se enquadrar no estado de necessidade, na antijuridicidade e na inexigibilidade de conduta diversa, a gestante de feto anencefálico que opta pelo abortamento [...].
Então, chegando à conclusão, votou pela procedência da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, “a fim de conferir interpretação
conforme a Constituição ao art. 128 do Código Penal, para reconhecer não
configurado o crime de aborto nas hipóteses de interrupção voluntária da
gravidez de feto anencefálico”.
4.1.5 Voto da Ministra Carmén Lúcia
A Ministra Carmén Lúcia iniciou realizando uma antecipação ao voto, e
avisou ter um voto muito longo, por isso fazia juntada dele. Mencionou que
poderia seguir os brilhantíssimos votos a partir do relator, mas gostaria de fazer
67
somente algumas observações para tentar resumir seus fundamentos, os quais
levaram à conclusão da procedência da arguição.
Fez observação quanto aos votos do Relator, da Ministra Rosa Weber
e do Ministro Fux, os quais a afirmou pertinentes. Acredita que o foco da
preocupação exposta por todos foi em relação ao direito à vida, de maneira
rigorosa, e também à dignidade da pessoa humana, claro que cada um
abordando à sua maneira de enxergar o mundo e a vida, dando-se espaço à
democracia brasileira, em um momento de pluralidade.
Segundo ela, o principal objetivo do Supremo Tribunal Federal naquela
tarde era: “saber se a interpretação que é possível de ser dada aos dispositivos
do Código Penal são compatíveis ou não com a interpretação que vem sendo
dada no sentido de se considerar crime também a interrupção de gravidez de
feto anencéfalo”.
Ressalvou que o intuito não era possibilitar o aborto no Brasil de forma
generalizada, nem em casos de qualquer deformação, e sim em situações
específicas, como a anencefalia. E, principalmente, que o objeto da arguição,
em hipótese alguma, seria obrigar a gestante de feto anencefálico a
interromper a gravidez, já que a busca é justamente em relação à liberdade da
mulher. Ou seja, a discussão refere-se à possibilidade jurídica de a gestante
(ou do médico de dar a sugestão) minimizar seu sofrimento, sendo única e
exclusivamente a mulher que fará a escolha.
Expôs, em determinado momento do voto: “Fundamentei o meu voto,
tal como fez o Relator, Ministro Marco Aurélio, exatamente no princípio
constitucional da dignidade da vida e também no direito à saúde, mas
principalmente no direito à dignidade da pessoa humana”. E, a seguir, fez uma
interessante consideração a respeito da dignidade: “[...] a possibilidade de
morte antes mesmo da vida. Talvez esse seja o dado que mais toca a
dignidade do ser humano”.
Aludiu, em seu voto, à história do livro de Guimarães Rosa “Manuelzão
e Miguilim”, por acreditar ser esta um grande exemplo de dignidade da pessoa
68
humana, o da mãe, pois a dignidade de uma mãe vai além dela mesma, além
do seu corpo, segundo a Ministra. Afirmou que:
[...] quando se faz a escolha pela interrupção do que poderia ser a vida de um momento ou a vida por mais um mês, não é escolha fácil, é escolha trágica sempre; é a escolha que se faz para continuar e para não parar; é a escolha do possível numa situação extremamente difícil. Por isso, acho que é preciso que se saiba que todas as opções como essa, mesmo essa interrupção, é de dor. A escolha é qual a menor dor; não é de não doer, porque a dor do viver já aconteceu, a dor do morrer também. Ela só faz a escolha possível nesse sentido.
Mencionou em seu voto os relatos do Doutor Pinotti em uma
audiência pública, que expôs uma grande e profunda verdade, de que os
avanços tecnológicos e da medicina acabam dispondo que mais cedo haja a
detecção de alguma anomalia, o que acredita causar um sofrimento maior,
pois, antigamente, a mulher não sofria durante meses por carregar um feto
anencéfalo, devido à falta de tecnologia para detectar tal anomalia. Mas,
segundo o Doutor, o sofrimento, apesar de antecipado, antecipou também a
possibilidade de lidar com tal situação.
Como seu voto inteiro girou em torno da dignidade, aduziu que: “[...]
quando falamos em dignidade, estamos falando de todos: do feto, da mulher,
do pai, do que seria o irmãozinho mais velho”. Pois, para ela, o pai também
sofre muito, e o direito também deve ser englobado nas discussões, e que a
sua dignidade também seja levada em consideração.
Em relação ao direito à saúde, apontou que é necessário levar em
consideração o feto e a gestante, mas esse direito não se refere somente à
saúde física, mas também mental e psicológica.
Afirmou, ainda, de maneira breve, antes de encerrar o seu voto, que
recebeu uma carta de uma gestante de um feto anencefálico, a qual não saiu
de casa depois de receber o diagnóstico da malformação letal, pois tinha
vergonha de não ter escolhas e de não saber o que responder às pessoas que
a questionavam em relação ao seu bebê. Conclui que “não há bem jurídico a
ser tutelado como sobrevalor, pela norma penal”, pois o caso relatado
demonstra, na prática, a teoria de que o que mais demonstra a fragilidade
humana são o medo e a vergonha.
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Concluindo o voto, explicou:
[...] considero que na democracia a vida impõe respeito, e neste caso há um feto que não tem perspectiva de vida; e outras vidas que dependam da decisão que possa ser tomada livremente por esta família, por esta mulher, por este pai, exatamente no sentido de garantir a continuidade livre de uma vida digna precisam ser reveladas e terem sua dignidade garantida.
Encerrou, confirmando a sua opção pela procedência da ADPF, para
que não se considere crime, nestes casos, a interrupção da gravidez.
4.1.6 Voto do Ministro Ricardo Lewandowski
Antes de votar, o Ministro Ricardo Lewandowski explicou que ele seria
dividido em alguns tópicos, realizando, assim, um resumo de alguns, mas de
forma breve. Antecipou que seu voto seria em sentido contrário ao dos demais
colegas que o antecederam, mas que respeitava devidamente cada um deles
pelas suas opiniões.
Em sua primeira parte, relatou o que fora tratado nos autos até o
momento, relatando o objetivo da Confederação Nacional dos Trabalhadores
da Saúde (CNTS), o que, em sua opinião, acabava conflitando com os
princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da autonomia da
vontade, do direito à saudade e da legalidade, dentre outros. Na segunda parte
do seu voto, abordou a lei penal vigente, transcrevendo determinados
dispositivos.
Mencionou, o desde início, que o feito já foi anteriormente distribuído
ao Ministro Marco Aurélio e, posteriormente, cassado pelo Plenário desta
Suprema Corte, “[...] por considerá-la satisfativa, em razão da irreversibilidade
dos procedimentos médicos deles decorrentes”.
Abordou cada um dos artigos do pedido realizado pela CNTS, relativos
aos arts. 124, 126 e 128, II do Código Penal, afirmando que: “[...] o legislador,
de modo explícito e deliberado, não afastou a punibilidade da interrupção da
gravidez nessas situações. Quer dizer, considerou penalmente imputável o
abortamento induzido de um feto mal formado”.
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Citou as palavras de Delmanto:
[...] o objeto jurídico dos citados preceitos da legislação penal vigente, quer dizer os bens ou valores que o legislador pretendeu preservar são de duas ordens: de um lado, a vida do nascituro; de outro, em especial no abortamento provocado por terceiro, a vida e a incolumidade física e psíquica da gestante.
Considerou que o legislador “não afastou a punibilidade da interrupção
da gravidez nessas situações. Quer dizer, considerou penalmente imputável o
abortamento induzido de um feto mal formado”.
Aduziu que o fato de não existir previsão legal na época em que foi
realizada a promulgação do Código Penal não quer dizer que não havia
métodos para o conhecimento da malformação fetal, pois exames como do
líquido amniótico já se encontram há muitos e muitos anos disponíveis na
medicina para realizar o diagnóstico de deformidades ou patologias fetais.
Acredita, também, que o Congresso Nacional, como figura
representativa da vontade soberana, caso almejasse uma reforma,
especialmente em relação ao aborto, já poderia tê-la feito, o que não ocorreu;
ao contrário, manteve a norma intacta.
Segundo Lewandowski, pesquisas baseadas em doutrinadores como
Hans Kelsen, Konrad Hesse, Uadi Lammêgo Bulos e Paulo Bonavides
permitem concluir que, “em resumo, a interpretação conforme a Constituição
configura método preferível à pura e simples declaração de
inconstitucionalidade, quando mais não seja em homenagem à vontade
soberana do legislador”.
Asseverou que ao STF, “considerado como o mais alto órgão judicante
do País”, não é dado criar novas normas legais, realizando a interpretação
conforme a Constituição; ou seja, nas palavras do Ministro, “não é dado aos
integrantes do Poder Judiciário, que acarretam função legitimadora do voto
popular, promover inovações no ordenamento normativo como se
parlamentares eleitos fossem”.
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Admitiu ser um tema de extrema complexidade e de grandes
controvérsias, não só no âmbito jurídico, mas ético e cientifico. Em sua
opinião, o princípio da dignidade humana é levado em consideração tanto pelas
pessoas que são contrárias e como por aqueles que são favoráveis à
interrupção da gestação, o que é bastante interessante.
Assim como outros Ministros, que abordaram em seus votos conceitos
emitidos por médicos, fez menção ao Doutor Rodolfo Acatuassú Nunes que,
em audiência pública realizada também no STF, consolidou:
A anencefalia é ainda, nos dias de hoje, uma doença congênita letal, mas certamente não é a única; existem outras: acardia, agenedia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal, holoprosencefalia, ontogênese imperfeita letal, trissomia do cromossomo 13 e 15, trissomia do cromossomo 18. São todas afecções congênitas letais, listada como afecções que exigirão de seus pais bastante compreensão devido à inexorabilidade da morte. Por que foi escolhida a anencefalia para provocar-se a antecipação da morte, ainda no ventre materno, não se esperando o nascimento natural? Em primeiro lugar, a anencefalia é um termo que induz ao erro. Há uma grande desinformação, que faz prevalecer e difundir a ideia de que a anencefalia significa a ausência do encéfalo. Na realidade, anencefalia corresponde à ausência de uma parte do encéfalo. O nome mais correto para anencefalia seria “meroencefalia”, já que “mero” significa “parte”.
Finalizou o pensamento do médico, levando em consideração que, se
houver a decisão pela autorização do aborto de fetos portadores de
anencefalia, excluindo a sanção penal, abrir-se-ia oportunidade para que
diversas outras gestações passassem a serem interrompidas, com base em
portarem os fetos doenças genéticas ou adquiridas. Sendo assim, muitas
outras vidas passariam por um encurtamento precoce.
72
Salientou que decisão de procedência entraria em confronto com
outras normas que defendem o nascituro, principalmente o Código Civil, assim
como a portaria nº 487175 do Ministério da Saúde, pois, para os médicos, os
fetos anencéfalos, comprovadamente, reagem a estímulos internos e sentem
sim dores, mesmo sendo portadores apenas de um sistema nervoso central
incompleto.
O Congresso Nacional possui projetos de lei em tramitação, refere o
Ministro, deixando claro que não está alheio à problemática. Existem o Projeto
de Lei nº 4403/2004 e o nº 50, sendo que, desde 2004, já haviam tramitado os
Projetos de Lei nº 183 e 227, o primeiro deles retirado pelo próprio autor, o
Senador Duciomar Costa, e o segundo apresentado pelo Senador Mozarildo,
que é o atual Projeto de Lei nº 50, que reapresentou em 2011, por ter sido
arquivado anteriormente.
Concluiu seu voto com as seguintes palavras:
Por todo o exposto, e considerando, especialmente, que a autora, ao requerer ao Supremo Tribunal Federal que interprete extensivamente duas hipóteses restritivas de direito, em verdade pretende que a Corte elabore uma norma abstrata autorizadora do aborto eugênico nos casos de suposta anencefalia fetal, em outras palavras, que
175 PORTARIA GM/MS nº 487, de 02 de março de 2007. Dispõe sobre a remoção de órgãos
e/ou tecidos de neonato anencéfalo para fins de transplante ou tratamento. O MINISTRO DE ESTADO DA SAÚDE, no uso de suas atribuições previstas no inciso II do parágrafo único do art. 87 da Constituição Federal; Considerando que o respeito à dignidade da pessoa humana, prevista no inciso III do art. 3º da Constituição Federal, implica que toda pessoa humana, indistintamente, deve ser tratada como um fim em si mesma; Considerando que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, nos termos do disposto no art. 2º do Código Civil; Considerando que a Portaria nº 3.407/GM, de 05 de agosto de 1998, que aprova o Regulamento Técnico referente às atividades de transplante e à Coordenação Nacional de Transplantes; Considerando a Lei nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento; e Considerando o consenso adotado no Seminário para Discussão sobre Anencefalia e Doação de Órgãos, realizado pela Secretaria de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde – SAS/MS, em 24 de maio de 2006, composto pelo Coordenador-Geral do Sistema Nacional de Transplantes, representantes da Academia Brasileira de Neurologia, da Sociedade Brasileira de Pediatria, do Conselho Federal de Medicina, da Ordem dos Advogados do Brasil, da Procuradoria Regional da República, da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde, resolve: Art. 1º- A retirada de órgãos e/ou tecidos de neonato anencéfalo para fins de transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de parada cardíaca irreversível. Art. 2º- O descumprimento desta Portaria constitui infração nos termos dos arts. 14, 16 e 17 da Lei nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997. Parágrafo único. Os infratores estão sujeitos às penalidades dos artigos citados no caput, bem como às demais sanções cabíveis. Art. 3°- Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/Portaria%20GM%20487_02.03.07.pdf>. Acesso em: 31 maio 2013.
73
usurpe a competência privativa do Congresso Nacional para criar, na espécie, outra causa de exclusão de punibilidade ou, o que é ainda pior, mais uma causa de exclusão de ilicitude, julgo improcedente o pedido.
Ao final, o julgamento foi suspenso, retornando no dia seguinte para os
demais Ministros prosseguirem seus votos. O Ministro Dias Toffoli estava
impedido de votar, tendo em vista que atuara na condição de Advogado Geral
da União.
Então, prosseguiu a votação já no dia 12/04/2012, o Ministro Ayres
Britto; logo após, os Ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello e o Presidente
Cezar Peluso.
4.1.7 Voto do Ministro Ayres Britto
Abriu o segundo dia de votação o Ministro Ayres Britto, primeiramente
fazendo algumas abordagens a respeito do último voto do dia anterior, o do
Ministro Ricardo Lewandowski.
Logo após, analisou o início da vida no Código Penal, o qual refere não
ter definição, sofrendo de deficiência conceitual, assim como a Constituição
também não define quando a vida humana começa. No entanto, não havendo
essa definição de quando a vida se inicia, entende ser estranho ocorrer a
criminalização da interrupção de uma gravidez humana.
Aludiu ao conceito de feto anencéfalo, utilizando palavras do Ministro
Sepúlveda Pertence: “é destinada ao nada”. Referiu-se à mulher comparando-a
com Deus, para aqueles que lhe são devotos, “porque somente ela pode gerar
dentro de si uma criatura verdadeiramente humana”.
Interpretou a interrupção como penalmente atípica, pois não se
enquadra a um fato-tipo legal, com o seguinte pensamento:
[...] o desfazimento da gravidez anencéfala só é aborto em linguagem simplesmente coloquial, assim usada como representação de um fato situado no mundo do ser – kelsenianamente falando. Não é aborto, contudo, em linguagem depuradamente jurídica.
74
[...] se todo aborto é uma interrupção voluntária da gravidez, nem toda interrupção voluntária de gravidez é um aborto, para os fins penais.
Acredita que a antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos
pode até ser considerada aborto, mas não que configure uma prática que deva
ser punida penalmente, por levar em consideração os abalos sofridos pela
mulher, o que acaba ganhando na ponderação, se colocados na balança os
direitos fundamentais assegurados. Aludiu ao princípio da dignidade da pessoa
humana, sendo este de valor universal, tanto para o Direito Penal quanto para
o Direito Constitucional.
Ressaltou que a autonomia da mulher deve ser respeitada, e que não
será obrigada a nada, não é uma questão de forçar a gestante a interromper a
gravidez, e, sim, somente, dar a ela a liberdade de escolha, e que, a partir de
então, realize o que achar ser menos doloroso. Acreditar que forçar a mulher a
levar até o final a gravidez, sob penalização caso faça o contrario, é o mesmo
que sofrer um tratamento cruel, equiparado à tortura.
Ao final, decidiu juntar o voto em razão de ser muito longo, mas
mencionou seguir o Relator na aplicação da técnica da “interpretação
conforme”, e que, em sua opinião, trata-se de atipicidade, julgando procedente
o pedido realizado na inicial.
4.1.8 Voto do Ministro Gilmar Mendes
O Ministro Gilmar Mendes iniciou realizando uma antecipação de voto,
onde referiu que a questão que tratada é extremamente sensível, anunciando o
cabimento da arguição de descumprimento de preceito fundamental e pela
procedência da ADPF, conforme o pedido da inicial, para que se realize a
interpretação conforme os dispositivos presentes no Código Penal, acreditando
que, possivelmente, não foram recepcionados pela Constituição Federal de
1988. Por outro lado, referiu também a decisão da cassação da liminar naquela
época, o que entende tenha sido absolutamente correto, justamente tendo por
base “um tema de múltiplas sensibilidades”.
75
Acredita ser fundamental essa questão ser posta perante o Supremo
Tribunal Federal, mesmo que a tese de cabimento de liminar seja aceitável, ou
em casos de Habeas Corpus, sendo que a ADPF acaba abrangendo o tema de
forma geral. E, justamente por haver as decisões analisado caso a caso
através de Habeas Corpus em instâncias ordinárias, muitas vezes eram
julgadas prejudicadas quando chegavam a instâncias superiores, como o caso
do HC 82.025, que somente chegou ao STF por causa de sucessivos
indeferimentos do pedido de Habeas Corpus, e, quando chegou, já era tarde
demais, apesar de o Ministro Joaquim Barbosa ter trazido o tema a plenário,
pois o parto já havia se realizado.
Mencionou a relevância da ação, por se tratar de um instrumento de
proteção de direitos fundamentais “como se fosse um recurso constitucional
especial”. Aludiu também as Leis nºs. 9.868 e 9.882, referentes ao tema, que
“foram formuladas a partir dessa perspectiva da sociedade aberta dos
intérpretes da Constituição”, com realização de audiências públicas e peritos
designados, para que interessados possam manifestar a sua visão da
interpretação constitucional.
Primeiramente, abordou o Estado Laico e as sociedades abertas dos
intérpretes da Constituição, mencionando que “é importante refutar a
compreensão de que o Estado laico previsto na CF/1988 impede a
manifestação e a participação de organizações religiosas nos debates
públicos”.
Portanto, a prática americana do amicus curie permite que a Corte
Suprema converta um processo subjetivo em objetivo, ou seja, que interesse a
todos. Acredita que a participação desses diferentes grupos, principalmente em
processos judiciais de grande importância para toda a sociedade, acaba
cumprindo com a função de integração no Estado de Direito.
Acredita que “a admissão de amicus curie confere ao processo um
colorido diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto, fundamental
para o reconhecimento de direitos e a realização de garantias constitucionais
em um Estado Democrático de Direito”.
76
Além disso, mencionou que o Tribunal não poderá deixar de lado as
funções de sua competência, enquanto está cumprindo funções de Corte
Constitucional, “especialmente no que se refere à defesa dos direitos
fundamentais em face de uma decisão legislativa, sob a alegação de que não
dispõe dos mecanismos probatórios adequados para examinar a matéria”.
Encerrou esse ponto, ressaltando que defende a possibilidade de
manifestação da sociedade, principalmente em ações sensíveis e delicadas
como esta.
Em segundo momento, fez uma análise do Direito Comparado em
relação ao tratamento do aborto, mencionando ser válido verificar como as
demais nações lidam com o presente tema e de que modo abordam; assim,
através de experiências estrangeiras, pode-se comprovar o grau de
complexidade da matéria tratada.
Remeteu-se às Cortes Constitucionais italiana, alemã e espanhola.
Mencionou que, em estudos realizados, praticamente a metade dos
países membros da Organização das Nações Unidas, ou seja, 94 dos 194
países vinculados, reconhecem a interrupção da gestação. E que em quase
todos os países, como Espanha, Alemanha, Estados Unidos, Canadá, Rússia,
França, África do Sul, Itália, México e Portugal, apesar de serem reconhecidos
como religiosos, a discussão a respeito da interrupção da gestação de feto
anencefálicos ocorreu há mais de uma década, especialmente no que se refere
a debates em relação à licitude do aborto.
Comparou o aborto de gravidez advindo de estupro, onde o feto é
perfeitamente sadio e, mesmo assim, o Código Penal prevê que a gestante, se
desejar realizar o aborto nestes casos, não será punida, assim como também
referiu que, em 1940, ano da publicação do Código Penal no Brasil, não seria
possível, com base na tecnologia da época, que identificasse esta malformação
fetal para que se inserisse no ordenamento jurídico. Ainda em relação ao
aborto resultante de estupro, lembrou que o aborto de fetos anencéfalos
também acarreta danos psíquicos, tendo em vista a inviabilidade da vida
extrauterina.
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Fez breves considerações a respeito da anencefalia, logo após
relembrando os principais fundamentos presentes na inicial da ADPF, onde o
primeiro deles é a atipicidade do fato, “pois a configuração do aborto depende
da comprovação da relação causal entre a utilização dos meios abortivos e a
interrupção do desenvolvimento de um feto com potencialidade de vida
extrauterina”. Assim, segundo a inicial, não havendo potencial vida extrauterina,
não há como se falar em aborto, em razão de não ocorrer ofensa ao bem
jurídico tutelado.
Fundamentou seu voto muitas vezes em Nélson Hungria e Kelsen.
Rejeitou a atipicidade do aborto em hipóteses de anencefalia,
acreditando que, se não fosse a falta de consenso a respeito da proteção
jurídica em relação ao feto anencéfalo, o STF nem estaria julgando um caso
tão delicado. Expressou sua opinião de forma clara:
Além disso, em uma sociedade heterogênea e que tem por princípio constitucional o pluralismo político, parece-me também inadequado tratar o aborto do feto anencéfalo como fato atípico, pois tal postura afigurar-se-ia até mesmo ofensa àquela parcela da sociedade que defende a vida e a dignidade desses fetos.
Explicou que seu voto trata especificamente do caso de fetos
anencefálicos, não devendo ser estendido às demais hipóteses de aborto.
Ainda, referiu que “os desacordos morais razoáveis geram a incapacidade de
se chegar a consensos sobre diversos assuntos”.
Concluiu essa abordagem dizendo que, em seu pensamento, é
inadequado falar em atipicidade do fato nesses casos, ou então da ponderação
realizada muitas vezes em relação à dignidade humana da mulher e do feto.
Expôs os artigos trazidos na inicial e explicou cada um deles do seu
ponto de vista, a começar pelo inciso I do art. 128, que trata de estado de
necessidade, uma proteção à vida da gestante. Em abordagem ao inciso II,
citou que “a segunda excludente de ilicitude relativa ao aborto é aquela em que
a gravidez é resultante de estupro”; mesmo o feto sendo perfeitamente viável
com a vida extrauterina, desde 1940 pode-se realizar o aborto resultante de
estupro, sem punição. No entanto, referiu que “é possível aferir um norte
78
interpretativo a partir das próprias opções do legislador, que transitam entre o
estado de necessidade e a inexigibilidade de conduta diversa”:
[...] o aborto de fetos anencefálicos está certamente compreendido entre as duas causas de excludentes de ilicitude, já previstas no Código Penal; todavia, era inimaginável para o legislador de 1940. Com o avanço das técnicas de diagnóstico, tornou-se comum e relativamente simples descobrir a anencefalia fetal, de modo que a não inclusão na legislação penal dessa hipótese de excludente de ilicitude pode ser considerada uma omissão legislativa não condizente com o espírito próprio do Código Penal e também não compatível com a Constituição.
Além disso:
O estabelecimento de ações positivas, por parte do Estado, com a finalidade de prevenir a ocorrência de aborto e, em especial, a concepção de fetos com anencefalia é, como já mencionei, tendência em diversos ordenamentos jurídicos da atualidade, tendo em vista o viés despenalizante que se vem adotando.
Mencionou em seu voto que o Brasil, no entanto, já vem adotando
medidas de prevenção, contando com o Ministério da Saúde, para promover
ações para a prevenção da anencefalia, disponibilizando ácido fólico para
todas as mulheres que pretendem estar ou que já estão em período
gestacional, e também a disponibilização de serviços de saúde qualificados,
que garantam segurança às gestantes e assistência terapêutica para a mulher
e seus familiares, garantindo, assim, uma melhor consciência na hora de
decidir qual o caminho a seguir.
Finalizando seu voto, disse que o Supremo Tribunal Federal, visando à
necessidade de atualização do conteúdo normativo presente no art. 128 do
Código Penal, “venha a prolatar uma decisão com efeitos aditivos para admitir
que além do aborto necessário [...] e do aborto no caso de gravidez resultante
de estupro, não se deve punir o aborto praticado por médico, com
consentimento da gestante, se o feto padece de anencefalia”.
Portanto, votou pela procedência da ADPF, para dar interpretação
conforme a Constituição, mas com efeitos aditivos em relação ao art. 128 do
Código Penal, não punindo o aborto praticado por médicos, com o
consentimento da gestante também em casos de comprovada malformação por
junta médica, conforme pré-requisitos a serem estipulados pelo Sistema Único
79
de Saúde (SUS), e ainda alertou sobre a necessária manifestação do Ministério
da Saúde, para que regulamente o reconhecimento da anencefalia, estipulando
normas de organização e procedimentos a serem adotados.
4.1.9 Voto do Ministro Celso de Mello
Celso de Mello adiantou o voto, manifestando-se pela procedência da
ADPF. E, logo após, iniciou seu voto, elogiando o voto do Relator Ministro
Marco Aurélio e dizendo que “nunca participei de um processo que se
revestisse da magnitude que assume o presente julgamento”.
Acredita que este julgamento traz esperança a muitas mulheres, que,
mesmo não podendo fugir da dor da realidade, pelo menos terão o direito de
escolha sobre interromper a gestação em casos de fetos anencéfalos, ou seja,
a partir daqui, terão amparo do Supremo Tribunal Federal para não sofrerem
punições criminais ou intervenção do Estado em sua esfera de autonomia
privada.
Mencionou em seu voto diversos tratados e convenções internacionais,
como, por exemplo, a Declaração de Viena, que protegem a expansão dos
direitos básicos da pessoa humana.
Acredita que não pode haver uma disputa entre Estado e Igreja, ou
entre a fé e a razão, entre princípios jurídicos e postulados teológicos, ou então
entre o poder secular e o poder espiritual.
Ou seja:
Na realidade, o debate em torno da possibilidade de antecipação terapêutica de parto do feto anencefálico não pode ser reduzido à dimensão de uma litigiosidade entre o poder temporal e o poder religioso, pois o sistema jurídico brasileiro estabelece, desde o histórico Decreto 119-A, de 07/01/1890, elaborado por RUI BARBOSA e DEMETRIO RIBEIRO, então membros do Governo Provisório da Republica, a separação entre Estado e Igreja, com o afastamento do modelo imperial consagrado na Carta monárquica de 1824, que proclamava o catolicismo como religião oficial do Estado brasileiro (art. 5).
80
Para o Ministro, como vivemos em uma república laica, o Direito não
pode nem deve se submeter à religião, e as autoridades que têm o poder de
aplicar as leis, quando no exercício de suas funções, não podem repercutir as
suas próprias convicções religiosas.
A seguir, traz a seguinte ideia:
[...] a meu juízo, considerados os aspectos ora referidos, que este Supremo Tribunal Federal deve sustentar o seu julgamento em razões eminentemente não religiosas, considerada a realidade de o Estado brasileiro, fundado no pluralismo de ideias e apoiado em bases democráticas, qualifica-se como uma república essencialmente laica e não confessional [...].
Abordou de forma bastante ampla a questão em relação ao começo da
vida e referiu a ADI 3.510/DF. Investigou o “início da vida humana” sob diversos
prismas, analisando diferentes teses científicas, como a genética, embriológica,
neurológica, ecológica e gradualista ou metabólica. Assim como também
abordou a questão em relação às religiões, como catolicismo, judaísmo,
islamismo, budismo e hinduísmo.
Com base em todas as teorias científicas que buscam estabelecer a
definição bioética do início da vida, acabou se desvinculando de razões de
natureza religiosa, buscando a concepção que mais se enquadre com o
interesse público, com o intuito de respeitar os direitos fundamentais,
principalmente no que se refere ao princípio da dignidade da pessoa humana, o
direito à vida, à saúde e à liberdade.
Aduziu, especialmente no que se refere à interrupção da gestação de
fetos anencefálicos:
A atividade cerebral, referência legal para a constatação da existência de vida humana, pode, também, “a contrario sensu”, servir de marco definidor do início da vida, revelando-se critério objetivo para afastar a alegação de que a interrupção da gravidez de feto anencefálico transgrediria o postulado que assegura a inviolabilidade do direito à vida, eis que, nesses casos, sequer se iniciou o processo de formação do sistema nervoso central, pois inexistente, até esse momento, a figura da pessoa ou de um ser humano potencial. Nem se diga que a permissão da antecipação terapêutica do parto de feto portador de anencefalia representaria ofensa ao dever de proteção que incumbe ao Estado em matéria de ofensa dos direitos fundamentais da pessoa humana.
81
Ponderou que a Declaração Americana de Direitos e Deveres da
Pessoa Humana, em seu artigo I, assegura o direito à vida, mas não menciona
em nenhum momento que esta iniciaria ao momento da concepção. O Pacto
Internacional das Nações Unidas sobre Direitos Civis e Políticos também não
refere em momento algum que é desde a concepção que está assegurada a
inviolabilidade do direito à vida.
Já se conduzindo para o final de seu voto, disse: “o estado de
anencefalia e o direito penal, com o objetivo de demonstrar que o conceito de
antecipação terapêutica do parto, porque destituído de tipicidade penal, não se
subsume à ideia de aborto”.
Para ele, com base no que o Conselho Federal de Medicina diz, que o
anencéfalo é um “natimorto cerebral”, não há que se falar em crime, pois não
existe o objeto protegido pelo Código Penal, tratando-se de “caracterização de
absoluta impropriedade do objeto”. Tendo em vista a inviabilidade do feto com a
vida extrauterina e plena certeza de letalidade, tanto no curso da gestação
quanto no momento do nascimento, mesmo que o feto sobreviva somente
alguns minutos, conclui que “não se mostra configurado o próprio objeto
material do tipo penal, a tornar evidente a ausência de tipicidade penal da
própria conduta da mulher gestante e de quem a auxilia no procedimento de
antecipação terapêutica de parto”.
Acredita que, resultando procedente a ação, assim acrescentando-se
outra modalidade de exclusão de aborto, prevista no art. 128, não estaria
atuando mais como “legislador negativo”, pois uma terceira hipótese surgiria,
“antecipação terapêutica de parto concernente a feto portador de anencefalia –
que, longe de se identificar com a prática criminosa de aborto, caracteriza
antes uma situação de ausência de tipicidade penal”.
E, ainda, mesmo que considerada típica a conduta nestes casos, não
haveria porque reconhecer delituosidade no comportamento. Ou então,
“hipótese configuradora de causa supralegal de exclusão de culpabilidade que
se revela apta a descaracterizar a própria delituosidade do fato”.
82
Em sua opinião, trata-se de
[...] uma típica “sentença de perfil aditivo”, proferida em sede de jurisdição constitucional, vocacionada a impedir, em razão da omissão normativa constatada, a incriminação do comportamento da mulher que opta, no caso de anencefalia, pela interrupção do processo fisiológico da gestação.
Portanto, ainda que, nestes casos, haja tipicidade, caracteriza-se a
inexigibilidade de conduta diversa, evitando que o sofrimento desnecessário se
prolongue, com o objetivo de impedir maiores danos à vida da gestante,
principalmente no que se refere à saúde psíquica.
Ao final de seu voto, referiu que este julgamento, juntamente com a ADI
3.510, é um dos mais importantes que o STF já julgou no decorrer de todos
esses anos, julgando, assim, procedente a ADPF, dando interpretação
conforme o pedido da inicial, para que
[...] seja declarada a inconstitucionalidade, com eficácia ‘erga omnes’ e efeito vinculante, de qualquer interpretação que obste a realização voluntária de antecipação terapêutica de parto do feto anencefálico, desde que essa malformação fetal seja diagnosticada e comprovadamente identificada por profissional médico legalmente habilitado, reconhecendo-se à gestante o direito de se submeter a tal procedimento em necessidade de prévia obtenção de autorização judicial ou de permissão outorgada por qualquer outro órgão do Estado.
4.1.10 Voto do Ministro Cezar Peluso
O então Presidente da Suprema Corte, Ministro Cezar Peluso, foi o
último a votar e, apesar de já haver maioria absoluta em relação à procedência
do pedido da ADPF, pediu paciência aos demais Ministros para que pudesse
expor o seu ponto de vista também. Referiu-se ao Ministro Relator Marco
Aurélio de Mello, ao dizer que, no seu ponto de vista, acreditava realmente se
tratar do mais importante julgamento realizado naquela Corte.
Declarou que não são os critérios religiosos que estão envolvidos no
caso, e sim algo muito mais envolvente, no que diz respeito ao modo de ver, de
ser, a cultura e a formação de cada magistrado ali presente, deixando claro:
“[...] tenho que ser fiel às minhas mais profundas convicções jurídicas [...]”.
83
Fez uma ressalva em relação ao caso, distinguindo-o da ADI nº 3.510,
que dispõe a respeito das células tronco embrionárias. Alegou que:
A caracterização do crime de aborto tem por pressuposto necessário a preexistência de vida intrauterina, isto é, de gravidez, pois a gestação é circunstância elementar do tipo penal (arts. 124 e ss. do Código Penal). Ora, abstraindo-se por ora a questão de existir, ou não, vida no embrião congelado, não há como nem por onde imaginar-se delito de aborto sem gestante. Quem seria a gestante na hipótese das pesquisas? Os tanques de nitrogênio líquido?
Citou, a seguir, o raciocínio de Lenise Martins Garcia: “o anencéfalo
morre, e ele só pode morrer porque ele está vivo. Se ele não estivesse vivo, ele
não poderia morrer”.
Abordou também, em seu voto, a morte encefálica e os resultados
contraditórios, no que diz respeito às atividades e ondas cerebrais existirem ou
não nos anencéfalos.
No seu ponto de vista, uma conduta visivelmente punida pelo Código
Penal não poderia ser extraída tão facilmente e sem grandes esforços,
principalmente no que diz respeito à proibição, incriminação e punição do
aborto, previsto no art. 124. E ainda: [...] “para que se possa ter por configurado
o aborto como crime basta, ao meu juízo, a eliminação da vida, abstraída toda
especulação quanto a sua viabilidade futura ou extrauterina”.
Acredita que, para muitos, a antecipação terapêutica do parto de fetos
anencefálicos não corresponderia a crime por se tratar de excludente de
ilicitude ou punibilidade; mas, em sua opinião, não se poderia aplicar essas
excludentes pelo ordenamento jurídico em vigor, e sim punir o fato. A partir de
então, discordou dos demais Ministros que seguiam o pedido da inicial, no
sentido de criar uma terceira excludente de punibilidade. Aludiu, também, que
ninguém admitiria que matassem fetos anencefálicos recém nascidos pelos
simples fatos de não possuírem uma longa perspectiva de vida, dando ideia,
assim, de ser necessária a preservação dessa vida intrauterina.
Para ele, o anencéfalo
[...] é sujeito de direito, por outra razão, curta mas decisiva, consistente em que, embora não tenha ainda personalidade civil, o
84
nascituro é, anencéfalo ou não, investido pelo ordenamento, segundo velha e fundada tradição jurídica, na garantia expressa de resguardo de seus direitos, entre os quais se contra a fortiori o da proteção da vida, como dispõe hoje o art. 2 do Código Civil. [...] A questão aqui, como se percebe, não é da capacidade ativa de exercício desses direitos, por si ou por outrem, o que, sabe-o toda a gente, depende de nascimento com vida, mas da capacidade jurídica passiva que, ainda no seio materno, o ordenamento lhe reconhece como sujeito de direito, enquanto portador de vida. E, nascendo com vida, ainda quando de brevíssima duração, pode receber e transmitir herança! Tudo isto significa, à margem de qualquer dúvida, que é sujeito de direito, não coisa ou objeto de direito alheio. E, que é, pois, supinamente falsa a ideia de que todo o anencéfalo não seria nunca sujeito de direito.
No seu entendimento, a vida, como o valor mais importante do
ordenamento jurídico, quando há vida, se trata de um valor jurídico inegociável,
mesmo em casos de fetos anencéfalos. Então, mesmo que breve, a vida do
feto anencéfalo é constitucionalmente protegida. A sua compatibilidade com a
vida extrauterina não lhe retira o mesmo status que qualquer outro ser humano
possui em relação à proteção recebida. Se for atestada, em algum momento, a
existência de vida, não há que se falar em justificação para a interrupção, pois
nenhuma consideração futura será válida, nem de valor forte o bastante para
justificar.
Em seu voto, trouxe algumas vezes o relato de uma mãe, Mônica
Torres Lopes Sanches, que compartilha da mesma ideia do Ministro, que se
tem vida, tem vida e pronto, que mesmo que sua filha Giovanna tenha falecido
seis horas e quarenta e cinco minutos após o parto, ainda a viu respirar
sozinha, como qualquer outro bebê faz.
Fez até mesmo uma comparação do aborto do anencéfalo com a
eutanásia, pois acredita que ambas acabam tendo o mesmo resultado, a
subtração da vida humana, ou de um ser humano ainda por nascer ou já
nascido, comparando aborto a auxílio ao suicídio ou homicídio,
respectivamente.
O Ministro teme que, se for julgada procedente a temática desta ADPF,
abrir-se-ão caminhos para que mulheres busquem a interrupção da gestação
em casos de anomalias menos graves, com o intuito do pleitear um tratamento
jurídico igual.
85
Utilizou como exemplo o caso Marcela, afirmando que a medicina atual
ainda não possui condições necessárias para concluir com 100% de certeza a
anencefalia, podendo ser confundida com a “holoanencefalia” ou a
meroencefalia. Assim como também não possui condições de prognosticar
quanto tempo o feto anencefálico poderá sobreviver. Ou seja, nada poderá ser
dado de maneira absoluta, o que concederia segurança às gestantes na hora
de tomar suas decisões.
Além do mais, referindo-se à questão da tortura, indagou: seria o
próprio feto com anencefalia ou o Estado que estaria exercendo a tortura? O
Estado, personificado no Poder Legislativo, que não prevê hipóteses de licitude
ou impunidade do aborto? Ou o feto, fruto de um acaso natural, que possui
falha biológica em sua constituição? Acredita que não é possível se encontrar
nenhum culpado.
Já em sua conclusão do voto, mencionou que a justificativa de que
uma gestação de fetos anencefálicos traz perigos graves à gestante não vem
ao caso, e que também essa tarefa não é de competência da Suprema Corte, e
sim do Congresso Nacional, pois acredita que o STF não possui legitimidade
para criar tal hipótese legal. Aludiu ainda às palavras do Ministro Carlos
Velloso, quando, em outro julgamento, votou pela inadmissibilidade da ADPF,
pois estaria inovando, criando normas de exclusão do crime de aborto, sendo
que isto só poderia ser realizado mediante lei. Caso o fizesse, o STF estaria
substituindo o papel do Congresso Nacional. Então, ao final, julgou totalmente
improcedente a ADPF, com base nas razões expostas por ele, não podendo
dar razão à douta maioria.
4.3 AS RAZÕES ADOTADAS PELO STF
Após apreciação de quatro dias, o Supremo Tribunal Federal encerrou
o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54.176
176 DINIZ, Débora; PENALVA, Janaina. Anencefalia e tortura. Boletim IBCCRIM, São Paulo,
ano 16, n.192, p.19, nov. 2008.
86
Apesar de uma grande diversidade de posicionamentos a respeito do
tema, foram atingidos também alguns consensos. As sociedades médicas e
cientificas que se fizeram presentes sustentaram de forma unânime a tese da
inviabilidade fetal, ou seja, que comprova o caráter irreversível e letal da
anencefalia.177
Então, com base na análise dos votos dos Ministros, é possível chegar
à conclusão de que, unanimemente, o critério religioso foi afastado pelos
Ministros no momento da fundamentação dos votos, mesmo que alguns
tenham se demonstrado bastante religiosos, acreditando que, neste caso, o
tema é de tamanha importância que não deve ser analisado pelo aspecto
religioso e muito menos com base em suas convicções religiosas.
A votação finalizou com oito votos favoráveis à interrupção da gestação
de fetos anencefálicos e, contra, somente dois.
Os votos dos Ministros Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski, que
foram os únicos contrários à procedência da ADPF 54, levaram em
consideração, principalmente, não se tratar de um tema de competência do
STF e, sim do Congresso Nacional.
Já os votos dos Ministros Marco Aurélio, Rosa Weber, Joaquim
Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ayres Britto, Gilmar Mendes e Celso de
Melo, apesar de votarem pela procedência da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 54, apresentaram divergências de opiniões, a maioria
deles alegando ser atípica a conduta realizada pela gestante, porém havendo
entendimento totalmente contrário, como, por exemplo, de que não podem ser
considerados atípicos esses casos de interrupção da gestação de fetos
anencefálicos.
A maioria dos ministros que votaram pela procedência da ADPF 54
defendeu que fosse dada a interpretação conforme pedida na inicial.
177 DINIZ, Débora; PENALVA, Janaina. Anencefalia e tortura. Boletim IBCCRIM, São Paulo,
ano 16, n.192, p.19, nov. 2008.
87
Na inicial, consta, no pedido principal:
Por todo o exposto, a CNTS requer seja julgado procedente o presente pedido para o fim de que essa Eg. Corte, procedendo à interpretação conforme a Constituição dos arts. 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal (Decreto-lei nº 2.848/40), declare inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a interpretação de tais dispositivos como impeditivos da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticado por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de se submeter a tal procedimento sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado.178
O pedido alternativo era de que, caso julgada descabida a ADPF, que
fosse recebida como Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), pois o que se
pretende “é a interpretação conforme a Constituição dos arts. 124, 126 e 128
do Código Penal, sem redução de texto”.179
O advogado Luís Roberto Barroso, na inicial, aludiu que a hipótese de
interrupção da gestação dos fetos anencefálicos somente não foi abrangida
pelo art. 128 do Código Penal como excludente de ilicitude porque, em 1940, “a
tecnologia existente não possibilitava o diagnóstico preciso de anomalias fetais
incompatíveis com a vida”.180
Com o mesmo pensamento do advogado impetrante, Carolina Alves de
Souza Melo aduz que:
A permissão do aborto nos casos de anencefalia, desde que haja o consentimento da gestante, enquadra-se em uma hipótese de exercício regular de direito, causa excludente de ilicitude, conforme o inc. III do art. 23 do Código Penal. A fundamentação do exercício regular de direito está nos princípios de interpretação constitucional dos direitos fundamentais, em especial no princípio da proporcionalidade [...] [...] A ilicitude manifesta-se quando há a transgressão do ordenamento jurídico por meio da prática do tipo penal. É a contrariedade de uma conduta em relação ao determinado pelo ordenamento jurídico e que vem a causar efetiva lesão a um bem jurídico protegido pelo ordenamento. Agir licitamente, ou seja, agir no exercício regular do direito, significa atual com respeito ao ordenamento jurídico.
178 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
nº 54. Brasília, 17 de junho de 2004. Retirada do Pedido Inicial da ADPF 54, 2004. p.22. 179 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
nº 54. Brasília, 17 de junho de 2004. Retirada do Pedido Inicial da ADPF 54, 2004. p.23. 180 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
nº 54. Brasília, 17 de junho de 2004. Retirada do Pedido Inicial da ADPF 54, 2004, p.6.
88
Porém, através da ADPF 54, o STF julgou procedente a ação para
declarar a inconstitucionalidade da interpretação de que a interrupção da
gravidez de feto anencéfalo é conduta típica, prevista nos artigos, 124, 126,
128, incisos I e II, todos do Código Penal.181
Decisão dada pelo Supremo Tribunal Federal (Extrato de ata):
O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal, contra os votos dos Senhores Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello que, julgando-a procedente, acrescentavam condições de diagnóstico de anencefalia especificadas pelo Ministro Celso de Mello; e contra os votos dos Senhores Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (Presidente), que a julgavam improcedente. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Joaquim Barbosa e Dias Toffoli. Plenário, 12.04.2012.182
Conclui-se, assim, que o Supremo Tribunal Federal julgou a ação com
base em critérios estritamente jurídicos, vinculados à teoria do crime, com o
preceito fundamental de proteger e assegurar os Direitos Humanos, baseando-
se em um dos princípios mais importantes, de imensurável valor jurídico,
assegurado em nossa Constituição Federal como o princípio da dignidade da
pessoa humana.
181 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
nº 54. Brasília, 17 de junho de 2004. Ressalva incluída no Código Penal a partir do julgamento em 12 de abril de 2012.
182 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Brasília, 17 de junho de 2004. Inteiro Teor do Acórdão do julgamento da ADPF nº 54, de 2012, p. 433.
5 CONCLUSÃO
Julgamento histórico e talvez um dos mais importantes realizados pelo
Supremo Tribunal Federal, principalmente por tratar-se de um tema extremamente
polêmico como o aborto, onde o maior bem tutelado pelo ordenamento jurídico, o
direito à vida, foi discutido. A ADPF 54 suscitou diversas opiniões e críticas.
Acredita-se ser o aborto uma questão tão antiga quanto a existência humana,
assim como a anencefalia, cujo diagnóstico se desenvolveu há alguns anos
somente, não significando que esta malformação não se equipare à antiguidade
do aborto, principalmente pela falta de estrutura e prevenção que somente os
avanços tecnológicos trazidos pela medicina e áreas correlatas proporcionaram.
Com a finalidade de conceder às gestantes de fetos anencefálicos a
faculdade de interromperem a gestação, quando comprovada a malformação
fetal, sem a necessidade de autorização judicial, o Supremo Tribunal Federal, em
12/04/2012, após quatro dias de sessão, julgou procedente a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, que trata especificamente de
casos de anencefalia.
Representando a Requerente, estava presente o advogado Luís Roberto
Barroso e, representando o Ministério Público Federal, o Procurador Geral da
República, Roberto Monteiro Gurgel Santos.
O julgamento resultou em oito votos a favor, somente dois contra. Os
Ministros que votaram pela procedência da ação foram o Relator, Marco Aurélio
de Mello, Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Carmén Lúcia, Ayres Britto,
Gilmar Mendes e Celso de Mello; os dois Ministros que votaram pela
improcedência foram Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, presidente na época.
O Ministro Dias Toffoli estava impedido de votar, tendo em vista sua atuação como
Advogado Geral da União na ocasião.
Com base na análise realizada através dos votos dos Ministros no
julgamento da ADPF 54, notavelmente o critério religioso foi afastado por todos,
pois, devido à tamanha importância do caso, não deviam ser levadas em
consideração convicções religiosas.
90
Percebe-se, ainda, que a maioria dos Ministros que votaram pela
procedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54
defenderam que fosse dada a interpretação conforme pedida na inicial, ou seja,
que fosse realizada a interpretação conforme a Constituição dos arts. 124, 126 e
128, I e II todos do Código Penal. Assim, declararam inconstitucional a
interpretação desses dispositivos como impeditivos da antecipação terapêutica do
parto em casos de gravidez de fetos anencefálicos, comprovadamente por
médicos habilitados, tutelando à gestante o direito subjetivo de submeter-se ao
procedimento quando de sua vontade, sem a necessidade de buscar a prévia
autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão por parte do Estado.
Deram eficácia erga omnes e efeito vinculante à decisão.
Através de pesquisas realizadas, percebeu-se que a grande maioria dos
doutrinadores, assim como o advogado Luís Roberto Barroso e alguns dos
Ministros, acreditam que a hipótese de interrupção da gestação de fetos
anencefálicos somente não se fez presente como excludente de ilicitude, no art.
128 do Código Penal de 1940, devido à falta de tecnologia existente naquela
época para detectar essa malformação fetal.
Dentre as hipóteses elencadas no inicio dessa pesquisa conclui-se que o
Supremo Tribunal Federal julgou a ação de descumprimento de preceito
fundamental 54, com base em critérios estritamente jurídicos, vinculados à teoria
do crime, com o objetivo de proteger e assegurar os Direitos Humanos, tendo com
base o princípio da dignidade humana previsto em nossa Constituição Federal,
sendo este princípio um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
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