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FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA DA ASSOCIAÇÃO CRISTÃ DE MOÇOS DE SOROCABA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR CONSTRUÍDA SOBRE O CURRÍCULO CULTURAL TAIS DE SOUZA SOROCABA 2015

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA DA

ASSOCIAÇÃO CRISTÃ DE MOÇOS DE SOROCABA

EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR CONSTRUÍDA

SOBRE O CURRÍCULO CULTURAL

TAIS DE SOUZA

SOROCABA

2015

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA DA

ASSOCIAÇÃO CRISTÃ DE MOÇOS DE SOROCABA

EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR CONSTRUÍDA

SOBRE O CURRÍCULO CULTURAL

Tais de Souza Orientador: Rubens Gurgel

Trabalho de Conclusão do Curso de Educação Física Escolar apresentado à Faculdade de Educação Física da Associação Cristã de Moços de Sorocaba, como parte dos requisitos para obtenção do Certificado de Especialização em Educação Física Escolar

SOROCABA

2015

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O senhor mire, veja: o mais importante e bonito, do

mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre

iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas

vão sempre mudando. Afinam ou desafinam,

verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que

me alegra montão.

(Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas).

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RESUMO

Nesse trabalho de revisão bibliográfica, busca-se discutir a educação física para além dos aspectos biológicos, incluindo a dimensão cultural do ser humano, o que implica na consideração dos aspectos históricos e sociais que atravessam a formação e desenvolvimento dos grupos humanos. Nessa dinâmica, as sociedades desenvolveram diversos modos de relacionamento com o mundo. Por conseguinte o corpo, em cada conjunto social, interagiu e se expressou de variadas maneiras, transmitindo através dos gestos corporais seus significados, configurando na linguagem corporal. A partir dessa ótica denominada Currículo Cultural, a educação física terá uma prática pedagógica preocupada com a vivência e leitura da cultura corporal, ou seja, dos textos corporais transmitidos e construídos por diferentes grupos sociais, ao longo da história. Apoiado nas teorias críticas e pós-críticas educacionais, o currículo cultural da educação física por entender a escola como um espaço público, não fará distinção entre as manifestações corporais classificando-as hierarquicamente e atentará para as formas de socializá-las. Por meio das ferramentas de análises fornecidas pela teorização crítica e pós-crítica, no estudo das práticas corporais foi fomentada a busca do percurso sócio-histórico, possibilitando o entendimento do contexto em que foram elaboradas, porque estão sendo estudadas, quais grupos elas representam e seus posicionamentos na sociedade.

Palavras chave: Educação Física Escolar; Currículo Cultural; Cultura; Teoria

crítica, Teoria pós-crítica.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ....................................................................................... 6

2. BREVE HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO FÍSICA NO BRASIL ................. 9

2.1. As influências do Milistarismo, Higienismo, Eugenia, Ginástica e

Esportes na Educação Física .................................................................. 9

2.2. As propostas curriculares no final dos anos 70, década de 80 e

90 ............................................................................................................. 13

2.2.1 Desenvolvimentista ......................................................................... 14

2.2.2 Psicomotora .................................................................................... 15

2.2.3 Saúde-Renovada ............................................................................ 16

2.3. Início do Currículo Cultural ............................................................ 18

3. CURRÍCULO CULTURAL E SEUS FUNDAMENTOS ........................ 23

3.1. Teorias Críticas ............................................................................... 23

3.1.1. Currículos Críticos da Educação Física ......................................... 25

3.2. Teorias Pós Críticas ........................................................................ 29

3.2.1 - Estudos Culturais .......................................................................... 32

3.2.2 - Pós-modernidade .......................................................................... 33

3.2.3 - Multiculturalismo ........................................................................... 35

3.2.4 – Pós-Estruturalismo ....................................................................... 36

4. CURRÍCULO CULTURAL DA EDUCAÇÃO ....................................... 38

4.1. Currículo Cultural da Educação Física.......................................... 40

4.2. Princípios do Currículo Cultural .................................................... 43

4.2.1. Justiça Curricular ........................................................................... 43

4.2.2. Evitar o daltonismo cultural ............................................................ 44

4.2.3. Ancoragem social dos conteúdos .................................................. 45

5. O CURRÍCULO CULTURAL EM AÇÃO NA EDUCAÇÃO FÍSICA ..... 48

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5.1. Tematização ..................................................................................... 48

5.2. Mapeamento .................................................................................... 49

5.3. Atividades de ensino ...................................................................... 50

5.4. Leitura .............................................................................................. 51

5.5. Vivência ............................................................................................ 52

5.6. Ressignificação ............................................................................... 52

5.7. Aprofundamento e Ampliação ....................................................... 53

5.8. Processo de avaliação .................................................................... 55

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................. 57

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................... 61

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1. INTRODUÇÃO

O que me impulsionou a discorrer sobre a educação física na

perspectiva do currículo cultural foi perceber a importância dada às

referências de manifestações corporais vivenciadas pelas alunas e

alunos, às quais estão ligadas aos seus contextos sociais e culturais.

Nesse sentido, a visão que se tem das crianças e adolescentes que

frequentam a escola está longe de situar-se daquela que apresenta os

discentes vazios de conteúdos, de conhecimentos, de leituras do mundo e

que por isso o professor deve inserir, como bem trata Paulo Freire, o

ensino bancário. Pelo contrário, os discentes são vistos como pessoas

que possuem história, contexto social, cultura. Enfim, são vistos como

pessoas que podem participar, opinar, criticar, discordar, construir, etc.

“Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina ensina alguma coisa a alguém.” (FREIRE, 2009, p. 23).

Acredito que a educação é um processo interno, subjetivo. Por

isso, avaliar, mensurar esse processo é uma tarefa difícil. Requer um

profundo e comprometido conhecimento do sujeito, que envolve o seu

contexto social e histórico. Conhecer o espaço em que ele vive, a

sociedade em que está inserido, os valores que transitam naquele local,

as suas necessidades, as suas aspirações, a forma como concebe a vida,

etc. Entender o aluno como uma pessoa que se apresenta na escola com

uma cultura, possuidor de uma história, a qual o professor deve

considerar para em seguida construir e ressignificar o conhecimento com

o educando, aprofundando com o educando o que traz na sua bagagem e

ampliando com o educando outros saberes (FREIRE, 2009, p. 63-64).

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Vale ressaltar, que as concepções de educação são várias, o que

acarreta em muitas formas de trabalho escolar. Dessa maneira, ao me

referir ao processo educativo caracterizando-o como um caminho e não

como um produto, de resultado x ou y, parto de uma visão de homem e

de mundo vinculada essa concepção. Porque como explica Madalena

Freire:

“Toda pedagogia sedimenta-se num método, maneira de ordenar, organizar com disciplina a ação pedagógica, segundo certos pressupostos pedagógicos. Toda pedagogia está engajada a uma concepção de sociedade e à política, sempre.” (FREIRE, M., 2008, p. 63).

Penso que quando refletimos sobre os princípios que nos norteiam

na educação, quando vamos tornando-os mais nítidos, mais claros,

conseguimos elaborar propostas, práticas, trabalhos com maior

propriedade e com maior coerência. Nesse sentido, percebo que os

professores de educação física escolar precisam atentar pra esse

exercício. Situar a sua atuação dentro de uma concepção educacional é

assumir uma posição filosófica de homem e de mundo. É conscientizar-se

que o seu trabalho contribui e influencia na construção de pessoas,

impactando na visão de mundo e de homem elaborada por seus alunos, e

em decorrência, colabora na construção da sociedade. Portanto, é ver-se

como um agente político.

“A prática de todo professor, mesmo que de forma pouco consciente, apoia-se numa determinada concepção de aluno e de ensino e aprendizagem que é responsável pelo tipo de representação que o professor constrói sobre o seu papel, o papel do aluno, a metodologia, a função social da escola e os conteúdos a serem trabalhados.” (DARIDO, 2012, p. 34).

Assim, é necessário ao professor de educação física escolar

assumir cada vez mais o papel de professor. Pensar suas ações e

justificá-las a partir de uma linha pedagógica. Porque mesmo não tendo

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consciência de qual concepção está se contemplando, conforme disse

Madalena Freire (2008, p. 49): “Não existe prática sem teoria, como

também não existe teoria que não tenha nascido de uma prática”. Desta

forma, clarificar as ações educativas ligadas ao componente, procurando

desvelar qual abordagem que pauta estas ações, permite o

desenvolvimento de um trabalho pedagógico, colocando o professor de

educação física como um agente educacional mais consciente do seu

fazer e da sua função na escola.

Atualmente, na educação física escolar, existem diversas

tendências/abordagens pedagógicas, ou melhor, diversas propostas

curriculares.

A palavra currículo na sua origem latina significa “pista de corrida”,

que ao ser trazida para o âmbito escolar, traduz-se no curso dessa

“corrida” que é o currículo, que faz com que nos tornamos o que somos.

Tendência pedagógica é aqui entendida como proposta curricular, porque

possui uma teoria curricular, um curso a ser trilhado e que pretende

formar um determinado tipo de sujeito, através da seleção de

conhecimentos que subsidiarão aquele projeto formativo (NEIRA E

NUNES, 2006, p. 105-106).

Cada proposta curricular defende a sua visão de homem e de

mundo. Desenvolvimentista, Psicomotora, Saúde-Renovada, Cultura

Corporal, entre outras são currículos com um ponto em comum: romper e

superar com o modelo esportivo, o qual privilegiava a execução de gestos

motores advindos dos esportes e que excluía os alunos que não

realizavam de acordo com o que se esperava. Isso constituiu um avanço

na área, propiciando reflexões que buscavam alargar o sentido da

educação física na escola (DARIDO, 2003).

Nesse cenário, de efervescência de discussões sobre o

componente, encontra-se a proposta de educação física escolar na

perspectiva cultural. Proposta que coaduna com a visão de educação

anteriormente descrita, ou seja, um processo que deve primar pela

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valorização da cultura do educando, buscando aprofundá-la e ampliá-la.

Deste modo, busca-se neste trabalho compreender o significado da

proposta curricular fundamentada na Cultura Corporal, a sua história, a

sua ancoragem teórica e a sua aplicação na escola.

2. BREVE HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO FÍSICA NO BRASIL

2.1. As influências do Militarismo, Higienismo, Eugenia, Ginástica e

Esportes na Educação Física

A educação física brasileira, ao longo da sua história, recebeu

influências do militarismo, do higienismo, da eugenia, dos métodos

ginásticos, do esportivismo. Segundo Castellani Filho (1988), a marca

militar está na origem da educação física no Brasil, já que foi por meio das

instituições militares, como: a Academia Real Militar, fundada dois anos

antes da chegada da família real, em 1860; a Escola Militar, que teve

como contramestre de Ginástica, o alemão Pedro Guilhermino Meyer; o

embrião do que seria Escola de Educação Física da Força Policial do

Estado de São Paulo, o mais antigo estabelecimento especializado do

país, fundado por uma missão militar francesa em 1907; o Centro Militar

de Educação Física, cujo objetivo era dirigir, coordenar e difundir o novo

método de Educação Física e suas aplicações desportivas; que a referida

área iniciou a sua trajetória.

Tendo sua origem marcada pela influência militar, uma organização

que continha os ideais positivistas e que assumiu o papel de se

responsabilizar pelo estabelecimento e manutenção da “ordem social”,

fator fundamental para alcançar o tão desejado “Progresso”, a educação

física desde o século XIX, foi vista como um recurso de extrema

relevância para a formação do indivíduo “forte”, “saudável”, indispensável

para a implementação do processo de desenvolvimento do país.

Entretanto, essa visão não era exclusiva do militarismo e recebia

também contribuições dos médicos, que propunham uma medicina social

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baseada em princípios higiênicos, buscando redefinir os padrões de

conduta física, moral e intelectual da família “nova” brasileira.

““A Educação Física Higienista é uma concepção que se preocupa em erigir a Educação Física como agente de saneamento público, na busca de uma “sociedade livre das doenças infecciosas e dos vícios deteriorados da saúde e do caráter do homem do povo”.” (GUIRALDELLI JR., 1998, p.17).

Os trabalhos acadêmicos da época, na área de medicina, retratam

a importância dada à educação física, que era considerada como um

elemento fundamental para a formação de homens e mulheres saudáveis,

fortes, prontos para ação, caracterizando assim a linha higienista.

As concepções higienista e militarista consideravam a Educação

Física uma disciplina essencialmente prática, prescindindo de um

embasamento teórico que justificasse a sua forma de trabalho. Dessa

forma, a Educação Física e a instrução física militar eram muito

semelhantes nas suas práticas (DARIDO, 2003, p. 2).

A ideia de eugenia da raça brasileira foi tratata por Fernando

Azevedo, autor de densa obra sobre Educação Física, no início do século

XX. Definia a Eugenia como sendo a ciência que cuida das medidas

sociais, econômicas, sanitárias e educacionais que impactam, física e

mentalmente, no desenvolvimento das qualidades hereditárias dos

indivíduos, e em decorrência, das gerações.

“O raciocínio era simples: mulheres fortes e sadias teriam mais condições de gerarem filhos saudáveis, os quais, por sua vez, estariam mais aptos a defenderem e construírem a Pátria, no casos dos homens, e de se tornarem mães robustas, no caso das mulheres.”(CASTELLANI FILHO, 1988, p.56).

Os métodos ginásticos dominaram a cena nas quatro primeiras

décadas do século XX. Entre seus autores estão o francês Amoros, o

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alemão A. Spiess e o sueco P. H. Ling, que marcaram a educação física

na escola como uma disciplina merecedora de respeito e consideração

perante os demais componentes.

Assim, a Educação Física passou a ser vista como um instrumento

que contribuiria, através do exercício físico, para o aperfeiçoamento dos

corpos dos indivíduos. Em consequência da atividade física ministrada na

escola, as pessoas ficariam mais fortes e com mais saúde, preparadas

para colaborar com pujança na indústria que estava nascendo, nos

exércitos, bem como com a prosperidade da pátria (SOARES, 1992,

p.35).

O domínio do esporte na educação física escolar passa a ocorrer a

partir da década de 60. O governo militar, que comanda o Brasil, investe

intensamente nessa proposta no intuito de fazer do país uma potência

esportiva, visando desviar a atenção dos problemas internos e deixando

transparecer um clima de prosperidade e desenvolvimento.

“Essa influência do esporte no sistema escolar é de tal magnitude que temos, então, não o esporte da escola mas sim o esporte na escola. Isso indica a subordinação da educação física aos códigos/sentido da instituição esportiva, caracterizando-se o esporte na escola como um prolongamento da instituição esportiva: esporte olímpico, sistema desportivo nacional e internacional.” (SOARES, 1992, p. 37).

As influências citadas nesse capítulo mostram como a Educação

Física, ao longo da sua trajetória, refletiu, na escola, concepções

educacionais que visavam formar determinados tipos de homem e de

mulher, de sociedade, de modo de vida. Mesmo sendo uma disciplina

trabalhada de maneira essencialmente prática, porque usava o exercício

físico como instrumento principal na aula, essas propostas curriculares

(militarismo, do higienismo, da eugenia, dos métodos ginásticos, do

esportivismo) eram movidas de pretensões, de objetivos, de projetos.

Portanto, não eram neutras nas suas ações educativas, buscavam

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transmitir uma visão de homem e de mundo, independente do professor

ou professora estarem cônscios disso.

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2.2. As propostas curriculares no final dos anos 70, década de 80 e

90

No final dos anos 70 e a partir da década de 80, ocorreu uma

efervescência de discussão em torno do que e como ensinar a educação

física na escola. Nessa época, foram apresentados inúmeros discursos

acerca do objeto de estudo da educação física e a sua aplicação na

escola. Esses discursos trouxeram maneiras diferentes de olhar a

educação física escolar e foram importantes tanto em quantidade quanto

em qualidade. Assim sendo, propiciaram um intenso debate entre os seus

representantes (DAÓLIO, 1997).

Apesar das tendências curriculares serem diferentes entre si, os

autores possuíam um ponto em comum: romper e superar com a

educação física escolar até então praticada, que privilegiava a execução

de gestos motores advindos das práticas esportivas excluindo do

processo os alunos que não se adequavam a ela (DARIDO, 2003).

Foram propostas diversas abordagens curriculares sobre o

componente: a Desenvolvimentista, Psicomotora, no final dos anos 70 e

década de 80. E a Saúde Renovada, Crítico-Superadora, Crítico-

Emancipatória, na década de 90. Nesse item, serão tratados os currículos

denominados acríticos, ou seja, que não são oriundos das teorias críticas

da educação, quais sejam: Desenvolvimentista, Psicomotor e Saúde-

Renovada, que segundo Neira (2009, apud Moreira, 2009, p.68) são

currículos oriundos das teorias tradicionais, que propagam as

representações da cultura hegemônica, pois englobam os sentidos e

significados das classes dominantes, atuando em prol do projeto de

continuidade da sociedade neoliberal. Apresentam os conteúdos

destituídos de seus contextos de produção social e cultural, fechados à

produção de significados alternativos, transmissores de um conhecimento

dado como certo, irrefutável. Conforme o entendimento de Moreira e

Candau (2003) citados por Neira (2009, p. 69 apud Moreira 2009), os

currículos tradicionais não valorizam o lastro cultural inerente a qualquer

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conhecimento, ou seja, propõem práticas motoras que são consumidas

pelos discentes, que as executam e até se divertem, porém não acessam

o percurso sócio-histórico daquelas práticas pra poderem entender de

onde elas vieram, porque estão sendo estudadas e quais grupos elas

representam.

2.2.1. Desenvolvimentista

A obra de maior destaque dessa abordagem é Educação Física

Escolar: Fundamentos de uma Abordagem Desenvolvimentista (Tani et

alii, 1988). Essa proposta tem como principal representante Go Tani.

Nesta abordagem o movimento é colocado como o principal objetivo a ser

trabalhado na aula de educação física. O desempenho adequado das

habilidades motoras identificadas como apropriadas para cada fase do

desenvolvimento motor do ser humano é o trabalho a ser realizado pelos

professores e professoras com os/as seus/suas alunos/as. Pra saber o

que considerar como apropriado foi apresentada uma classificação

hierárquica dos movimentos humanos proposta por Gallahue (1982) e

ampliada por Manoel (1994). Com esse suporte, estabeleceu-se uma

ordem de progressão de aquisição das habilidades que parte das

denominadas básicas (ex.: andar, arremessar, girar) e vai até as

chamadas habilidades complexas (influenciadas pela cultura, como

esportes, danças).

Sendo assim, o conceito de habilidades motoras é um dos

conceitos mais importantes dessa abordagem, porque é por meio delas

que os seres humanos se adaptam às demandas do cotidiano resolvendo

problemas motores (DARIDO, 2003)

Neira e Nunes (2006, p. 216) apresentam críticas a esse modelo de

educação de educação física, apontando que o objetivo de

desenvolvimento motor, por meio dos conteúdos de habilidades de

locomoção, equilíbrio e manipulação, pode ser trabalhado para além dos

muros escolares. Ou seja, outros locais como: academias de ginástica,

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escolinha de esportes, lutas e danças também podem contribuir para a

aquisição das citadas habilidades.

Portanto, a especificidade, o diferencial proposto na abordagem

desenvolvimentista não é de uso exclusivo dos professores de educação

física escolar. Em decorrência, há a possibilidade – na aula de educação

física – da presença de uma variedade de vivências motoras trazidas

pelas crianças, que irá interferir no processo do desenvolvimento motor.

Além disso, os autores questionam a ausência de reflexão sobre a

produção dos significados dos movimentos, sobre quem os produz e

quem os valida.

2.2.2 Psicomotora

O autor que mais influenciou a abordagem psicomotora foi o

francês Jean Le Boulch, através da sua visita ao Brasil, de seus livros e

formações pela América Latina. O desenvolvimento integral da criança

envolvendo os aspectos cognitivos, afetivos e motores é o ponto central

dessa concepção. Levar a criança a tomar consciência de seu corpo e da

lateralidade, a situar-se no espaço, a dominar o tempo, a adquirir

habilmente a coordenação de seus gestos e movimentos, respeitando as

suas possibilidades é uma responsabilidade do professor de educação

física, bem como conduzir esse processo atuando na dimensão da

afetividade visando a sua expansão e equilíbrio nas trocas entre a criança

e o ambiente humano que a cerca (DARIDO, 2003, p. 38).

A psicomotricidade agregou ao trabalho do professor de educação

física na escola um destaque por conta da importância da sua atuação na

formação das estruturas psicomotoras de base dos escolares. Porém, a

psicomotricidade não é um campo restrito aos profissionais da área de

educação física, é também indicada para psicólogos, psiquiatras,

neurologistas, reeducadores, orientadores educacionais, professores e

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outros profissionais que trabalham junto às crianças (DARIDO, 2003, p.

38).

Para Bracht (1999, p.79), João Batista Freire, autor do livro

Educação de Corpo Inteiro, que teve grande sucesso na área de

educação física escolar, mesmo tendo ressaltado a importância da cultura

infantil nas aulas do componente, coloca a proposta, do referido autor,

próxima aos currículos psicomotor e desenvolvimentista, devido a sua

fundamentação teórica estar ancorada na basicamente na psicologia do

desenvolvimento.

Neira e Nunes (2008, p. 112) entendem que o currículo psicomotor

se deu em duas variantes: uma que partia de uma visão experimental,

onde eram propostos exercícios identificados na avaliação diagnóstica

feita pelos professores/professoras, visão baseada na ótica de Vayer

(1997) e Le Boulch (1986); e outra que mais adiante, sob a orientação de

ideias construtivas da aprendizagem, fez uso de atividades lúdicas, e

fundamentou as abordagens de autores brasileiros como Freire (1989).

Uma das críticas que se faz à abordagem psicomotora na

educação física escolar é a negação de conteúdos tidos como próprios da

área, como o esporte. Outra crítica refere-se ao entendimento da

psicomotricidade centrado na “educação pelo movimento” para atingir a

formação integral da criança, tornando a educação física na escola um

meio, um apoio para o desenvolvimento das outras disciplinas, perdendo,

assim, a sua especificidade. (DAÓLIO, 1997, p. 30).

2.2.3 Saúde-Renovada

Darido (2003) informa que a dimensão biológica é uma das

pioneiras na área de educação física, mas que esteve afastada das

questões escolares por duas razões, aparentemente. A primeira se deve

ao status, verbas, financiamento e reconhecimento social que é superior

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no âmbito esportivo. A segunda seria devida à refutação dada pelos

discursos da área pedagógica, que não valorizavam e/ou não entendiam

a dimensão biológica em suas propostas. Pelo contrário, denunciavam a

visão acrítica e homogeneizadora da perspectiva biológica na educação

física escolar.

Durante a década de 90, a discussão entre os estudiosos da área

passa a ser menos pessoal e mais acadêmica, abrindo espaço para

aqueles que tinham interesse em aprofundar seus conhecimentos sobre a

educação física na escola na perspectiva biológica, e que propunham

superar o modelo eugênico e higienista tão presentes na construção

histórica do componente.

Autores como Guedes & Guedes (1996) e Nahas (1997),

ressaltaram a importância da visão da educação física na escola voltada

pra promoção da saúde ou para indicação de um estilo de vida ativo, em

virtude da grande incidência de distúrbios orgânicos por falta de atividade

física. A prática de atividades físicas favorecia o desenvolvimento de

atitudes, habilidades e hábitos que poderiam direcionar as crianças e

adolescentes a um estilo de vida fisicamente ativo na fase adulta.

Os defensores da tendência Saúde-Renovada entendem que todos

os alunos seriam contemplados pela proposta, principalmente aqueles

que mais precisam: os sedentários, os de baixa aptidão física, os obesos

e os portadores de deficiências. Destacam a importância das informações

e conceitos relacionados à aptidão física e saúde, para que os escolares

possam decidir sobre a adoção de hábitos saudáveis de atividade física

ao longo de toda a vida (DARIDO, 2003, p. 19).

A crítica ao currículo da Saúde-Renovada é devida ao seu caráter

denominado de estilo de vida saudável que transfere às pessoas a

responsabilidade de cuidarem da sua saúde, independente de possuírem

os recursos necessários pra se adequarem ao padrão de corpo posto

como correto. Além disso, essa proposta curricular trata o percurso de

adoção de um estilo saudável de vida como um caminho a ser

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conquistado individualmente e que está ao alcance de todos, enaltecendo

a hegemonia dos valores neoliberais (NEIRA E NUNES, 2006).

2.3. Início do Currículo Cultural

Conforme explica Neira e Nunes (2006), a década de 60 foi um

período da história de grandes movimentos sociais que tinham como

bandeira a contestação das estruturas sociais estabelecidas. As lutas dos

estudantes na França e em outros países; a oposição à guerra do Vietnã;

a incursão de Che Guevara na América do Sul e Central; as revoltas

contra a ditadura militar no Brasil; o enfrentamento das antigas colônias

europeias pela independência; o movimento feminista; a revolução do

proletariado em Cuba; a continuidade da busca pelos direitos civis nos

Estados Unidos; o movimento de contracultura; a liberação sexual são

alguns exemplos das agitações sociais que ocorreram na década de 60

pelo mundo.

A produção teórica no campo educacional não ficou imune a essas

transformações sociais. Nos anos 60 surgiram livros, ensaios e

teorizações que expunham as incoerências do pensamento e da estrutura

da educação tradicional, e partiam na direção de uma perspectiva crítica

da teoria educacional.

Autores como Althusser (1983), Bourdier e Passeron (1975),

Baudelot e Establet (1980) e Bowles e Gintis (1977), fundamentados pelo

marxismo, apresentaram uma visão reveladora quanto às pretensões

formativas dos currículos tradicionais, que caracterizavam a escola como

um local de igualdade e ascensão social e contribuíram para mostrar que

os currículos não são neutros, veiculam valores, conhecimentos de

determinadas parcelas da sociedade, as quais intentam manter os seus

interesses e formar homens e mulheres que atuem em prol dessa

manutenção. (NEIRA apud MOREIRA, 2009)

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A teoria crítica da educação tem como pauta principal analisar o

papel da escola e do currículo na produção e reprodução das formas de

dominação, com ênfase na luta de classes. Para a pedagogia crítica o

importante não é aprender a executar alguma coisa, e sim compreender o

porquê de ensinar tal conhecimento, ou seja, o que esse conhecimento

pretende formar naquele sujeito. As categorias centrais das análises da

Pedagogia Crítica passam pela reprodução social e cultural, ideologia,

hegemonia, resistência, poder, classe social, emancipação e libertação

(NEIRA E NUNES, 2009).

Cabe esclarecer que o currículo engloba os aspectos: relação

humana (ambiente da sala de aula), pedagógico (objetivos, conteúdos,

métodos e avaliação) e os culturais (oriundos da sociedade) (NEIRA E

NUNES, 2009).

Apoiados em Saviani (1992), Neira e Nunes (2009) explicam que

ao contrário das teorias críticas, as pedagogias tradicionais e tecnicistas –

denominadas teorias não críticas – procuram transmitir uma cultura

entendida como um produto acabado e resultante de pessoas que

apreenderam os fenômenos naturais e humanos, bem como atingiram um

estado elevado de espírito, isto é, estão num estado culto. Que sendo

assim, essa cultura é tida inquestionável e deve ser absorvida pelos

alunos e alunas como a verdade, a cópia da realidade. E no caso dos

estudantes que se encontram à margem desse conhecimento irrefutável,

para a pedagogia tradicional, a escola é o local onde ocorrerá a

superação pelos referidos estudantes da marginalização, que é vista

como desvio social que pode e deve ser corrigido pela educação.

“Trata-se de uma visão sincrética, superficial e frangmentada, que apreende apenas a aparência e o efeito dos problemas e desconsidera o movimento, a historicidade, a contradição e a totalidade das relações que a escola mantém com outros esferas sociais...”(SAVIANI apud NEIRA E NUNES, 2009)

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As teorias acríticas colocam a escola como instância redentora das

mazelas da sociedade, quais sejam: desigualdade, marginalidade, falta de

cultura, etc., pois ao passarem pelos anos escolares, os discentes

situados nas classes desfavorecidas sairão dos portões transformados e

adequados a participarem da sociedade estabelecida, tratando a

educação como algo apolítico, neutro. Cabe à escola, então, aproximar a

cultura considerada correta e verdadeira dos grupos desfavorecidos

desse conhecimento, desprezando qualquer análise sobre as

consequências desse currículo sobre as pessoas.

Para as diversas vertentes da teoria crítica, o papel da escola e do

currículo basicamente é desenvolver a compreensão da organização da

sociedade numa ótica mais abrangente. Envolvendo nessa compreensão

a educação, a política e a sociedade como elementos que estão ligados,

visando uma ação concreta de transformação social que possibilite lutar

contra as injustiças presentes na sociedade. A pedagogia crítica centra

suas análises sobre os conhecimentos que disfarçam suas vinculações

com as formas de dominação e poder das classes dominantes (SILVA,

2007 apud NEIRA E NUNES, 2009). Defende um currículo que comporte

conteúdos que representem a classe trabalhadora.

Os reflexos desse novo panorama sobre a educação, advindos das

teorias críticas, trouxeram, para a educação física escolar brasileira,

inquietações que provocaram um repensar das práticas ligadas às

perspectivas biológicas e/ou psicológicas. Foram apresentadas as

propostas curriculares Críticas Superadora e Emancipatória.

Além disso, muitos pesquisadores da área de Educação Física

foram buscar nas produções e trabalhos acadêmicos fundamentados nas

Ciências Sociais e Humanas, como os de: Sigmund Freud, na

Psicanálise, que sozinho na sua época, previa os problemas sociais

confinados nos corpos; Marcel Mauss, na Antropologia, que inseriu o

corpo como elemento constituinte da cultura; Merleau-Ponty, na Filosofia,

que conferiu um status ontológico à corporeidade; Michel Foucault, Pierre

Bourdieu e Luc Boltanski, na Sociologia, que trouxeram a discussão do

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uso do poder sobre o corpo na formação da identidade do indivíduo;

Norbert Elias, na História, que apontou que o processo civilizador ocorre

através da inibição dos sentidos; Harry Pross, na semiótica da cultura,

que afirmou o corpo como forma de mídia, e os Estudos Culturais que

investigam as relações de poder geradas na cultura; subsídios para o

debate intelectual do componente (NEIRA E NUNES, 2008).

Essa busca foi derivada do grande interesse demonstrado pelas

Ciências Sociais e Humanas pelo corpo, que antes tinha seu estudo

restrito às Ciências Naturais. Desse modo, a educação física passou a

agregar conhecimentos para além dos aspectos biológicos e psicológicos,

englobando uma visão baseada na dimensão cultural do ser humano.

Ao conceber o ser humano na perspectiva cultural, a compreensão

do comportamento humano passa a abranger elementos relacionados à

forma diferenciada, que os grupos sociais ou cada indivíduo foram

desenvolvendo ao longo da história, de lidar com as inúmeras instâncias

que compõem a vida. Desafiados pelo ambiente geográfico, pela busca

da sobrevivência, entre outros fatores, os grupos humanos enfrentaram

seus problemas e buscaram soluções de maneiras diferentes, criando um

universo de possibilidades culturais de organização, comunicações,

funções e papéis sociais, ou seja, de modos de viver (NEIRA E NUNES,

2008).

Dessa forma, o olhar sobre o corpo, a forma como o corpo se

apresenta, os movimentos que realiza também são diferentes em cada

cultura.

“Ao se pensar o corpo, pode-se incorrer no erro de encará-lo como puramente biológico, um patrimônio universal, já que os homens de nacionalidades diferentes apresentam semelhanças físicas. Entretanto, para além das semelhanças ou diferenças físicas, existe um conjunto de significados que cada sociedade escreve nos corpos de seus membros ao longo do tempo, significados estes que definem o que é corpo de variadas maneiras.” (DAÓLIO, 1995, p. 25-26)

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As sociedades desenvolveram diversas formas de compreensão e

relacionamento com o mundo, por conseguinte o corpo, em cada conjunto

social, interage e se expressa de variadas maneiras.

É a partir do solo cultivado pelas contestações recaídas sobre a

educação tradicional, derivando numa teoria crítica da educação e pelo

interesse das Ciências Sociais e Humanas acerca da temática corpo, que

a semente do currículo cultural é germinada.

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3. CURRÍCULO CULTURAL E SEUS FUNDAMENTOS

3.1. Teorias Críticas

As teorias críticas contribuíram para o despertar sobre as

intencionalidades presentes nas pedagogias tradicionais, denunciando o

seu caráter reprodutor da sociedade de classes no interior da escola.

Neira e Nunes (2009) recorrem a Silva (2007) e explicam as diferenças

entre as teorias críticas da educação. De um lado estão as análises

sociológicas mais amplas realizadas por teóricos críticos como os

franceses Althusser, Bourdier e Passeron, e os estadunidenses Bowles e

Gintis. Tais autores contribuíram para uma análise desmistificadora das

intenções pretendidas pela pedagogia tradicional, que se intitulava

portadora dos conhecimentos que deviam ser transmitidos às novas

gerações com a finalidade de propiciar igualdade e ascensão. Esses

sociólogos, fundamentados por referências marxistas, denunciaram a

reprodução cultural e social da diferença de classes, que assim como

acontece na sociedade onde uma parcela detém os recursos materiais,

“na escola, há uma classe dominante que possui os recursos simbólicos

que tornarão sua trajetória mais suave, enquanto à classe dominada resta

padecer diante das diferenças apresentadas pela sua cultura de origem,

com relação ao que é valorizado no currículo.” (NEIRA E NUNES, 2009,

p.110). Em decorrência, esse currículo que seleciona os conhecimentos

de um determinando grupo, propicia a exclusão e o fracasso escolar dos

grupos desfavorecidos de tais conhecimentos.

Ainda sobre as contribuições dos sociólogos citados, Neira (apud

Moreira, 2009) salienta que eles apresentaram o currículo como um

campo privilegiado, que em cada época, foi usado por determinados

setores da sociedade visando formatar homens e mulheres para servir e

perpetuar seus interesses.

De outro lado, encontram-se as análises críticas da educação que

enfatizam as questões relacionadas à construção do currículo feitas pelo

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brasileiro Paulo Freire, os estudos realizados pelo inglês Michael Young,

os trabalhos feitos pelos franceses Baudelot e Establet, e nos Estados

Unidos e Canadá, as investigações de Bernstein, Pinar e Grumet. E mais

recentemente, a pedagogia crítica recebeu novos influxos vindos dos

estudos de Michael Apple, Peter McLaren, Henry Giroux e outros (NEIRA

E NUNES, 2009).

Os estudos mais contemporâneos da teoria crítica ultrapassam o

viés da dominação de classe e incorporam aspectos étnicos, culturais e

de gênero.

A preocupação central da teorização crítica é a relação entre a

forma de organização econômica da sociedade capitalista e o seu reflexo

na educação. A partir dessa análise, surgiram conceitos estruturantes que

reúnem os principais contributos da reflexão crítica: ideologia, reprodução

cultural, hegemonia, resistência, esfera pública, controle, poder, códigos

(NEIRA E NUNES, 2009, p. 108).

As teorias críticas da educação demonstraram que o conhecimento

é uma construção histórica, oriundo de um embate entre grupos sociais

que lutam pra legitimar seus valores. Assim, não existe conhecimento

neutro, objetivo e independente da cultura e de um contexto de produção.

O conhecimento é produto de concessões e acordos entre os indivíduos

que vivem de acordo com relações sociais marcadas pelo poder. Em

consequência, os teóricos críticos entendem que no currículo estão

selecionados conhecimentos que refletem os interesses da parcela

dominante da sociedade que favorece a reprodução social. Porém, a

teoria crítica compreende que apesar do sistema de ensino estar

configurado para reprodução e manutenção da hegemonia capitalista,

“a escola é também um espaço/tempo contra-hegemônico que permite a desconstrução da visão de mundo capitalista e a posterior (re)construção de uma sociedade igualitária e verdadeira humana.” (NEIRA E NUNES, 2009, p. 104)

Os educadores, nas teorias críticas, devem tratar o conhecimento

de modo a fazer com que os estudantes possam compreender a dinâmica

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histórica, cultural e social inerente à produção de conhecimento. Nesse

sentido, por meio da conscientização desse processo, os discentes serão

emancipados e poderão contribuir na transformação das injustiças sociais

verificadas na sociedade (NEIRA E NUNES, 2009).

No campo da Educação Física, autores como Guiraldelli Júnior

(1988), Bracht (1992) e Soares e colaboradores (1992), embasados pelas

teorias educacionais críticas, salientaram o currículo como área de poder.

Para eles, os conteúdos tratados pelos currículos tradicionais trazem as

marcas das relações sociais nas quais foram elaborados. Ao proporem

aos alunos e alunas práticas de aperfeiçoamento dos gestos técnicos

esportivos, exercícios que visam à promoção da aptidão física, a vivência

de jogos deslocados dos seus contextos, a organização da aula a partir

de uma sequência pedagógica, as pedagogias tradicionais atuam em

conformidade com a estrutura de classes presentes na sociedade

capitalista. Favorecendo a reprodução da desigualdade social na escola

(NEIRA apud MOREIRA, 2009).

Diante dessa constatação, para além de apresentarem novos

conteúdos ao componente, os teóricos críticos da educação física

direcionaram as suas propostas no sentido perscrutarem o que ensinam

os currículos desenvolvimentista, psicomotor e da saúde, com o fim de

conhecer a quem pertence esse conhecimento, quais sujeitos são

legitimados e quais são negados (NEIRA apud MOREIRA, 2009).

3.1.1. Currículos Críticos da Educação Física

Os currículos apresentados anteriormente não se dispunham a

tocar nas questões relativas ao papel da educação e da escola, numa

perspectiva crítica do papel da educação na sociedade capitalista como

categoria central. Dessa forma, esses currículos não estavam vinculados

a uma teoria crítica da educação (BRACHT, 1999).

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No Brasil, a pedagogia crítica foi discutida em obras de educadores

como Dermeval Saviani, José Carlos Libâneo e Guiomar Namo de Mello,

que trataram da pedagogia crítico-social dos conteúdos; e também por

Paulo Freire, que apresentou a pedagogia da educação popular.

(MOREIRA apud NEIRA E NUNES, 2009). É importante ressaltar que o

livro Metodologia do Ensino da Educação Física (SOARES et al., 1992),

fundamentou-se na pedagogia crítico-social e teve forte influência na área

da Educação Física (NEIRA E NUNES, 2009). Nos próximos itens, serão

apresentadas propostas curriculares derivadas das discussões da

pedagogia crítica brasileira.

3.1.1.1. Crítico-Superadora

Algumas obras literárias escritas por estudiosos da educação física

escolar, como: Medina (1983) e Castellani Filho (1988), denunciavam o

reducionismo do viés biológico marcado na tendência desenvolvimentista

e do viés psicológico destacado nas abordagens psicomotoras,

ressaltando a necessidade de considerar as dimensões histórica, política

e social nas aulas e caracterizando o início de um movimento intelectual

da área em torno da ideias de Karl Marx.

Talvez o livro Metodologia do Ensino de Educação Física, escrito

por um coletivo de autores em 1992, tenha organizado os entendimentos

desse grupo de estudiosos de inspiração marxista, estabelecendo a partir

dali uma nova proposta curricular: a crítico-superadora. Nessa obra, a

educação física é apresentada como matéria escolar que tratará das

diversas expressões da cultura corporal, quais sejam: jogos, ginásticas,

lutas, acrobacias, mímicas, esportes e outros.

No currículo crítico-superador, a dimensão histórica tem uma

importância no sentido de contribuir para a construção da visão do

conhecimento como algo dinâmico, transformador e passível de

mudanças. As expressões da cultura corporal – conteúdos das aulas –

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são mostradas como construções representativas da realidade criadas

pela humanidade ao longo da história, que devem ser vivenciadas e

refletidas pelas alunas e alunos (DAOLIO, 1997, p. 38 e 39).

Ao valorizar a contextualização e a história das expressões da

cultura corporal, a intenção dessa proposta objetiva ampliar a percepção

do aluno no sentido de compreender que as produções das comunidades

humanas refletem uma determinada etapa e que sofrem mudanças no

decorrer do tempo.

Para a escolha das temáticas da cultura corporal deve-se

considerar a relevância social do conteúdo. Não é recomendada a divisão

do trabalho em fases, dependente de pré-requisitos, pois entende-se que

se pode trabalhar concomitantemente as mesmas temáticas em todas as

séries escolares, aprofundando-as ao longo das séries (DARIDO, 2003, p.

43)

A crítica feita à proposta curricular crítico-superadora refere-se ao

aspecto de ideologização dado à educação física escolar. Em 1989, a

eleição para escolha da direção do Colégio Brasileiro de Ciências do

Esporte (CBCE) e disputada entre um grupo reunido em torno das ideias

marxistas e outro grupo que congregava pessoas de matrizes teóricas

diferentes, mas que concordavam que a educação física brasileira deveria

dar menos ênfase nas questões político-partidárias e se dedicar a tratar

das questões específicas da área. Tal fato ilustra bem as divergências

que pairavam sobre esse currículo.

3.1.1.2. Crítico-Emancipatória

A proposta curricular crítico-emancipatória foi elaborada por Elenor

Kunz e foi apresentada nas suas obras: Educação física: ensino &

mudanças, em 1991; e Transformação didático-pedagógica do esporte,

em 1994.

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Segundo Daólio (1997, p. 25), Kunz contrapõe-se à visão

tradicional da área, que se ancorava nas ciências naturais e ocorria

através de um ensino técnico. Para ele, essa forma de trabalhar a

educação física propiciava a reprodução das desigualdades sociais

presentes no país. Em contrapartida, propunha um olhar que

considerasse a educação física parte de um sistema maior, que

abrangesse os aspectos sócio educacional, socioeconômico e político.

“O ensino na concepção crítico-emancipatória deve ser um ensino de libertação de falsas ilusões, de falsos interesses e desejos, criados e construídos nos alunos pela visão de mundo que apresentam a partir de “conhecimentos” colocados à disposição pelo contexto sociocultural onde vivem” (KUNZ, 2001b, p. 121 apud TAFFAREL e MORSCHBACHER, 2013, p. 55).

A construção teórica de Kunz teve forte influência da pedagogia de

Paulo Freire. Outra forte influência é oriunda, em parte, das análises

fenomenológicas do movimento, tratadas por estudiosos holandeses

como Gordjin e Tamboer, que se pautavam em Merleau-Ponty; e também,

em parte, de Trebels, seu orientador do doutorado em Hannover, na

Alemanha (BRACHT, 1999).

No currículo crítico-emancipatório, o movimento humano

representa um diálogo entre o ser humano e o mundo, tendo em vista que

é por meio do movimento que o ser humano percebe, sente, interage com

os outros, atua na sociedade. Nessa concepção dialógica o “se

movimentar” do homem é constituído de significado, uma vez que reflete

a intencionalidade do sujeito (DAÓLIO, 1997, p. 25).

A linguagem tem um papel relevante nas aulas. É através dela que

os educandos manifestam seus entendimentos do mundo social, podendo

participar das tomadas de decisões, das escolhas de interesses, e agir de

acordo com as situações e condições do grupo em que está inserido e do

trabalho no esforço de conhecer, desenvolver e apropriar-se de cultura. A

didática aplicada pelo professor inicia-se com o confronto do aluno com a

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realidade de ensino, estratégia denominada transcendência de limites.

Que se divide em três fases: a primeira visa à manipulação dos jogos e

movimentos, a fim de descobrir e conhecer as formas e meios pra uma

participação bem sucedida naquelas atividades. A segunda requer o uso

da linguagem ou representação, pra que seja exposto o que foi vivenciado

e aprendido. E por fim, a terceira fase intenciona fazer com que as

crianças questionem suas descobertas e aprendizagens, buscando

compreender o significado cultural da aprendizagem (TAFFAREL E

MORSCHBACHER, 2013, p. 49).

Kunz trata de identidade social e identidade individual, dizendo que

não se pode enfatizar mais um aspecto do que outro, como ocorre na

visão tradicional que centraliza no desenvolvimento da identidade

individual qualificando individualmente o/a estudante pra atender as

demandas sociais. Deve haver o equilíbrio entre a identidade individual e

social, buscando concomitantemente uma conduta significativa em termos

pessoais e consequentes em termos sociais. (DAÓLIO, 1997, p. 26).

3.2. Teorias Pós Críticas

O contexto histórico em que se deu o surgimento das teorias pós-

críticas, envolveu: 1- A 2ª Guerra Mundial que trouxe mudanças nos

modos de produção, alterou o quadro de configuração política e

econômica, e afetou as relações socioculturais mundiais. O que tem

causado a ocorrência de grandes mudanças geográficas de povos pelo

planeta, comumente por causa de guerras civis, fome, desemprego,

perseguições políticas, miséria e problemas climáticos. Uma das

consequências desse processo é o desmantelamento das colônias

europeias, que mesmo depois de tornarem-se independentes, devido as

marcas de dominação – cultural e política – deixadas pela colonização,

continuam predominando os interesses e controles grandes potências

europeias e encontram-se mergulhadas na pobreza e em conflitos

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étnicos, culturais e religiosos. 2- O fim da Guerra Fria, que acarretou o

declínio do comunismo, que se colocava como um modelo de Estado em

contraposição ao modelo capitalista. Com isso, os países que

compunham a antiga União Soviética foram vistos pelas nações ricas

lideradas pelos Estados Unidos, como potenciais participantes da nova

ordem mundial, porém sem considerar os fatores internos inerentes ao

desenvolvimento e controle das muitas etnias que formavam o bloco

soviético. 3- A globalização, que de acordo com Hall (1997), é um

processo tributado ao estabelecimento de empresas multinacionais por

diversos países, detentoras de grande capital e que por isso influenciam

nas economias nacionais, que organizam novas relações de produção,

fomentando o enfraquecimento dos Estados-Nações e minando a

capacidade dos países tradicionais e mais antigos, assim como das

populações emergentes, impactando nos seus modos de vida que estão

ligados a sua forma de ser ou controlar o seu próprio desenvolvimento.

Nesse jogo, as corporações transnacionais apresentam-se diante dos que

detém maneiras diferenciadas de viver daquelas valorizadas pelos

interesses das corporações, com enorme cabedal econômico que é um

fator determinante pra que ocorra o domínio político e cultural (NEIRA E

NUNES, 2009, p. 142).

Segundo Steinberg e Kincheloe (2001), o impacto da revolução

tecnológica da comunicação na produção, circulação e troca da cultura

pelos continentes do mundo também contribuiu para a transformação da

sociedade. Crianças, adultos e idosos, são expostos a uma intensa gama

de informações oriundas de comunidades virtuais, mídias diversas e do

acesso irrestrito aos meios comunicação, que produzem uma vertigem

social devido a mediação da realidade através da indústria cultural. Esse

processo, chamado de hiper-realidade, acarreta uma diminuição da

capacidade das pessoas encontrarem soluções para as dificuldades

cotidianas, de gerarem paixões pelos compromissos ou terem fé no

entendimento das coisas do mundo (NEIRA E NUNES, 2009, p. 141).

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As teorias pós-críticas se referem às discussões mais

contemporâneas da educação. Englobam em suas análises as temáticas

já destacadas pelas teorias críticas, quais sejam: ideologia, poder,

reprodução, classe e capitalismo; e acrescentam novos marcadores

oriundos das investigações realizadas em diversas áreas como o Pós-

modernismo, Pós-colonialismo, Pós-estruturalismo, Estudos Culturais,

Nova Sociologia da Educação, Estudos Feministas, Multiculturalismo.

Essas novas categorias de estudo ampliaram a noção de currículo,

trazendo pra pauta curricular o debate de outros elementos: identidade,

diferença, subjetividade, saber-poder, etnia e gênero (NEIRA apud

MOREIRA, 2009).

Embora a teorização pós-crítica se nutra dos legados deixados

pela teoria crítica, no que se refere à visão de que o currículo contribui

para a reprodução das condições de classe presentes na sociedade,

privilegiando no interior da escola a cultura partilhada pelas classes com

maior poder econômico, ela vai ampliar a análise sobre o poder. Para a

teoria pós-crítica o poder está além das diferenças de classes. O poder

alcança outras instâncias de relações como as de gênero, etnia, sexual,

geração, etc. (NEIRA E NUNES, 2009, p. 106).

Quanto à noção de emancipação do sujeito, defendida na

pedagogia crítica, que ocorreria através da conscientização do processo

de dominação das classes sociais detentoras do controle da propriedade

dos recursos materiais sobre aqueles que possuem somente a sua força

de trabalho, com a ampliação do cenário das análises para melhor

entender as relações entre poder e identidade social que as teorias pós-

críticas propiciaram, a visão de consciência centrada e coerente foi

questionada e rejeitada. Para as teorias pós-críticas não é possível um

processo de libertação e conscientização, tendo em vista que as

identidades são sociais (NEIRA E NUNES, 2009, p. 106). “Não existe uma

realidade determinada, fixa, acabada, em que o papel da ideologia é

esconder, disfarçar as marcas das relações sociais que a produziu.”

(NEIRA E NUNES, 2009, p. 107)

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Numa visão pós-crítica, cabe ao currículo possibilitar a discussão

política e social na escola, buscando construir coletivamente

entendimentos do que significa uma boa sociedade e quais as diferentes

de formas de se chegar a ela (NEIRA E NUNES, 2009, p. 107).

A seguir serão apresentados os campos do pós-modernismo, o

pós-estruturalismo, os estudos culturais e o multiculturalismo, os quais,

entre outros, compõem as teorias pós-críticas que dão suporte ao

currículo cultural.

3.2.1. Estudos Culturais

Esse referencial teórico surgiu logo após a 2ª Guerra Mundial, na

Inglaterra, no movimento marxista denominado Nova Esquerda.

Intelectuais britânicos, oriundos das classes populares, passaram a

criticar o tratamento dado pelos integrantes da alta cultura às culturas de

massa ou popular, que as classificavam como baixa cultura. As críticas

empreendidas procuravam revelar a desqualificação, o rebaixamento, a

irrelevância com que eram marcadas as produções culturais populares

pelos autodenominados representantes do que há de melhor na cultura

da humanidade.

“Em outras palavras, trata-se de uma reação à tendência elitista da concepção de cultura. Enfaticamente, seus representantes defendem que no seio da classe popular não há somente mau-gosto, passividade, submissão e assimilação, mas também resistência e produção.” (NEIRA E NUNES, 2011, p.673).

Sendo assim, os Estudos Culturais (EC) tomaram partido dos

grupos desprivilegiados que não tinham a sua leitura de mundo

reconhecida e validada, discordando da escala hierárquica dada à cultura:

erudita e popular, alta e baixa, burguesa e operária. Ser culto, ter cultura

não estava mais restrito aos grupos ditos detentores de uma tradição

literária, artística, estética superior.

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“No momento em que os Estudos Culturais prestam atenção a formas de expressão culturais não-tradicionais se descentra a legitimidade cultural. Em consequência, a cultura popular alcança legitimidade, transformando-se num lugar de atividade crítica e de intervenção.” (ESCOSTEGUY)

O termo cultura, na visão dos EC, passou a compor um significado

mais amplo, abrangendo os domínios do popular. Este termo deixou de

ser apontado como algo desimportante, pequeno e desvalorizado,

passando a ser referenciado desde tradição, folclore e práticas da maioria

até minimalista, despojado, cult, etc. Dessa forma, os EC defendem as

culturas, reconhecendo e valorizando as produções de quaisquer grupos,

tais como a cultura: infantil, negra, escolar, étnica, gay, entre outras.

Como destaca Neira e Nunes (2011, p.674): “A cultura perdeu sua

condição maiúscula e singular e ganhou a pluralidade das culturas.”

Os Estudos Culturais debruçam-se principalmente em buscar

compreender o comportamento e as ideias compartilhadas pelas pessoas

que compõem a sociedade, por meio das suas produções culturais e de

seus diferentes textos e práticas. Diante da ofensiva de homogeneização

da cultura oriunda dos grupos economicamente mais privilegiados e da

imensa difusão dos meios de comunicação de massa, os EC destacam a

face política da cultura e posicionam-se em favor de valores e construção

de significados mais democráticos (NEIRA E NUNES, 2011).

3.2.2. Pós-modernidade

Mistura, probabilidades, hipóteses, multiplicidade de significados,

variadas formas de entendimento são características presentes na pós-

modernidade.

O pós-modernismo é um movimento intelectual que questiona os

princípios que sustentam a Modernidade. Ideias valorizadas pela

modernidade, como: razão, ciência, progresso, utopia redentora, unidade,

originalidade, fundamento, essência, universal. Este movimento

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intelectual, de pensar e questionar o que estava posto pela modernidade,

inaugurou uma nova época histórica chamada de Pós-Modernidade.

Lyotard foi um dos mais conhecidos pensadores que trataram da temática

da pós-modernidade. Ele dizia que a pós-modernidade é algo bem

simples, é a constatação de que a ideia de verdade construída pelos

pensadores modernos faliu. Que o que tínhamos como verdade, hoje é

apenas uma hipótese, não é uma certeza. (Silva, J., 2009). Ou seja, essa

forma determinada e absoluta de falar das coisas do mundo, da vida e do

homem, trazida pela modernidade não é um artigo que a pós-

modernidade adquire e leva pra casa acreditando que na posse desse

pacote alcançará o alvo estabelecido de vida, de homem e de mundo. A

leitura feita pela ciência das coisas do mundo, da vida e do homem, não

são verdades acima de qualquer suspeita para a pós-modernidade. São

apenas mais uma hipótese, uma probabilidade, uma possível explicação.

Diante das certezas, a pós-modernidade desconfia e valoriza a dúvida. “A

multiplicidade, pluralidade, imprevisibilidade e incerteza são

características marcantes do momento pós-moderno contemporâneo e

devem ser consideradas na produção dos conhecimentos científicos.”

(NEIRA, 2011, p. 64).

A pós-modernidade recorre a palavras como mistura,

probabilidades, hipóteses, pois caminha na trilha da multiplicidade de

significados, das variadas formas de entendimento Essas características

estão presentes em vários campos como: político, estético,

epistemológico, intelectual (NEIRA E NUNES, 2009, p. 156).

“Diferentemente da pesquisa positivista, a subjetividade e o posicionamento político não são descartados; pelo contrário, são reforçados. Para a construção de conhecimentos a partir de múltiplas vozes, é preciso saber qual a origem das explicações fornecidas e quais experiências culturais e sociais influenciaram os olhares sobre determinado fenômeno. Ou seja, é preciso ouvir diversas explicações sobre o objeto estudado para que o pesquisador possa percorrer inúmeros caminhos, aproximar-se e, talvez, chegar a múltiplas interpretações. Repudia-se o posicionamento autoritário de aceitar uma única explicação impregnada pelos valores e preconceitos do investigador, quando, politicamente

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falando, se apresenta como portador dos instrumentos adequados e absolutamente neutros.” (NEIRA, 2011, p. 64).

Em face dos golpes de desconfiança desferidos pela pós-

modernidade às certezas da razão, os Estudos Culturais são contrários à

noção da existência de verdades absolutas.

3.2.3. Multiculturalismo

Na perspectiva da análise de Vera Candau (2008), a relação entre

educação e cultura é intrínseca. Não é possível desvincular a educação

das questões culturais da sociedade. Conceber um trabalho pedagógico

“neutro”, “desculturalizado”, distanciado do contexto cultural em que está

imerso é estar fora de sintonia com os diversos grupos sociais presentes

no espaço escolar.

Muitos autores denunciam o caráter homogeneizador da cultura

escolar, onde os conhecimentos, os conteúdos considerados tradicionais,

derivados da classe dominantes são legitimados como verdades

universais a serem transmitidas a todos os alunos, independente das

leituras de mundo trazidas pelos alunos de heranças culturais distintas

(CANDAU, 2008).

O multiculturalismo na educação busca dar respostas, no âmbito

teórico, prático e político, ao pluralismo cultural presente nas escolas,

compromissando-se com os grupos minoritários, que ao longo da história

tiveram suas vozes silenciadas, lutando até os dias atuais pelo

reconhecimento de seus valores (MOREIRA E CANDAU, 2008, p. 07).

“Por multiculturalismo podemos entender as estratégias e políticas assumidas para abordar e gerenciar os problemas ocasionados pela diversidade das sociedades multiculturais.” (NEIRA, 2008, p. 81)

Marcados pela diferença de religião, costumes, classe social,

gênero, etnia, estes grupos que estiveram à margem da história, são

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vistos pelo multiculturalismo de forma nem superior e muito menos inferior

aos grupos privilegiados, e sim em pé de igualdade.

3.2.4. Pós-Estruturalismo

O pós-estruralismo é um movimento que começou na década de

60, na filosofia e se estendeu para outros campos temáticos, como:

literatura, política, arte, críticas culturais, história e sociologia. Seus

principais pensadores são Derrida, Deleuze, Lyotard, Foucault e Kristeva

(WILLIANS, 2006, p. 13).

Esse movimento se propõe a tratar, segundo Veiga-Neto (1995), da

linguagem e do processo de significação. Apresenta-se como

continuidade e concomitantemente, transformação e superação do

estruturalismo. Aponta as limitações e problemas presentes nas análises

estruturalistas da linguagem, quando esta explicita a complexidade pela

qual o ser humano lê e interpreta a realidade (NEIRA E NUNES, 2009).

Para os estruturalistas, a aplicação do conceito de estrutura, para

além dos fenômenos linguísticos, é uma possibilidade de estudo rigorosa

e científica do mundo real. O estruturalismo é um método de análise de

relações de significação por meio de regras e princípios que constituem

qualquer estrutura ou sistema.

O estruturalismo explica que é por meio das relações entre os

elementos individuais de um fenômeno ou objeto, que surge a estrutura,

que de forma subjacente mantém os elementos individuais em seus

lugares, fazendo com que o conjunto se sustente (NEIRA E NUNES,

2008).

O estruturalismo tem início com os estudos linguísticos de

Saussure, que ressaltavam as regras de estruturação da linguagem como

um sistema de significação.

A linguagem, ou seja, os diversos sistemas simbólicos nos quais

estão inseridos os indivíduos passa ter um papel central na construção do

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conhecimento para várias áreas do saber e também para algumas

correntes filosóficas.

Veiga-Neto (1995), observa que o pós-estruturalismo amplifica a

centralidade que a linguagem tem no estruturalismo, informa que isso é

verificado por meio da preocupação de Foucault com a noção de

“discurso”, e na de Derrida, com a noção de “texto” (NEIRA E NUNES,

2008).

Para o pós-estruturalismo, o processo de atribuição de sentido aos

signos continua central, porém, ao contrário da suposta fixidez do

significado trazida pelo estruturalismo, no pós-estruturalismo o significado

torna-se fluido, indeterminado e incerto.

O pós-estruturalismo avança na noção de linguagem apresentada

pelo estruturalismo, fundamentando-se no conceito de “poder” Michel

Foucault e no de “diferença” de Jacques Derrida, marcando assim a

chamada “virada linguística”.

A virada linguística recebeu o reforço das mudanças sociais,

gerando possibilidades de novas formas de linguagens, com regras

diferentes e diversas, outras narrativas e outras formas de interpretar a

realidade.

“A virada linguística inviabilizou a existência de palavras certas e erradas em si, pois, com base nelas emergem a pluralidade de métodos e regras que constituem os discursos. Entende-se que a palavra correta é aquela que é aceita na comunidade linguística que a emprega, pois é isso que torna a comunicação possível” (NEIRA E NUNES, 2009, p. 175).

Desse modo, a linguagem que era vista pelo estruturalismo como

algo neutro, colado ao signo, como se existisse um elo natural entre a

dimensão das coisas e a das palavras, no pós-estruturalismo a linguagem

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passa a ser apenas uma possibilidade de interpretação, que reflete o

interior dos sujeitos, seus pensamentos e sentimentos.

4. CURRÍCULO CULTURAL DA EDUCAÇÃO

Neira e Nunes (2011) explicam que o projeto da Modernidade

pretendia transmitir, por meio da escolarização, os conhecimentos

considerados universais a todas as pessoas de quaisquer grupos sociais.

Com essa visão, através da democratização do acesso à escola, foi

propiciada a entrada de diversos grupos sociais que munidos de suas

vozes culturais, contrastaram com a cultura escolar que refletia a cultura

dominante. Em decorrência, emergiu-se a problemática da diversidade

cultural do público escolar. De acordo com Stoer e Cortesão (1999),

citados por Neira (2011, p. 21): “Públicos antes não escolarizados, de

distintas origens sociais e culturais, começam progressivamente a

constituir-se como uma parcela importante do corpo discente”.

Silva (2000a) constata que a ampliação da heterogeneidade da

população escolar desencadeou um problema curricular concretizado no

constante enfrentamento com o outro. ““O outro é o outro gênero, o outro

é a cor diferente, o outro é a outra sexualidade, o outro é a outra raça, o

outro é a outra nacionalidade, o outro é o corpo diferente” (p. 97). Enfim, o

outro, agora, está ao lado.”” (NEIRA E NUNES, 2011, p. 21-22)

Atender as demandas desse contexto multicultural requer ações

que vão muito além do que a possibilidade de estar no mesmo espaço

educativo. As ações pedagógicas precisam validar a presença da

diversidade cultural, trabalhando o reconhecimento de tais culturas e

viabilizando ao longo do percurso escolar, o estudo dos conteúdos ligados

aos grupos que estavam marginais ao processo de escolarização.

“...o princípio da igualdade de oportunidades veiculado em termos não só de acesso à educação escolar mas também de sucesso tornou evidente que já não basta a

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matrícula escolar de crianças, jovens e adultos provenientes de grupos sociais, culturais e econômicos diversos, é necessário intervir de modo a democratizar as condições de sucesso.” (NEIRA E NUNES, 2011, p. 22)

A escola, sendo um espaço público, é um espaço de todos,

independente de raça, credo, gênero, sexualidade, classe social, etc..

Assim, faz-se necessário aos profissionais que nela atuam, o desafio de

trabalhar a diversidade presente no conjunto de seus alunos, buscando

proporcionar a participação de todos. Tratar igualmente as diferenças, no

sentido de não prevalecer nenhum posicionamento de superioridade ou

inferioridade entre os grupos sociais. O diálogo se apresenta como

instrumento primordial nesse desafio.

“O “arco-íris de culturas” em nossas escolas faz com que o trabalho docente seja mais complexo, mais difícil mesmo. Demanda considerar como se faz viável despertar o interesse de alunos/as tão diferentes, atender às especificidades de distintos grupos, problematizar situações de poder que justificam situações de opressão, assim como facilitar a aprendizagem de todos/as os/as estudantes. Ao mesmo tempo, a multiplicidade de manifestações culturais e de identidades torna a sala de aula rica, plural, estimulante, desafiante. ”” (STOER E CORTESÃO, 1999, apud MOREIRA E CANDAU, 2008, p. 46)

Pelo diálogo com o outro, será possível conhecê-lo,superar

estereótipos, compreender as ações que levaram à construção dessas

representações deformadas. Apoiado em Garcia (2001), Neira (2011, p.

57) salienta que: “Somente o diálogo cultural contribuirá para a

construção do autoconceito positivo e do respeito ao outro, elementos

indispensáveis a uma relação democrática.”

Na perspectiva cultural, o currículo é visto como território de

construção de identidades e representações. A seleção de conteúdos,

metodologia e atividades que comporá o currículo possui uma

intencionalidade, um projeto almejado, um alvo a ser atingido: a formação

de certo tipo de sujeito pra formar certo tipo de sociedade. Assim, não dá

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pra caracterizar o currículo como uma construção neutra, puramente

técnica, que se sobrepõe às lutas ideológicas presentes na sociedade.

Pelo contrário, ele está mergulhado nessa luta e reflete constantemente o

quadro desenvolvido nessas batalhas. Silva (apud NEIRA E NUNES,

2011, p.) enfatiza que:

“O acesso a determinados conhecimentos e não outros,

fazendo de uso de certas atividades e não outras, posiciona o estudante de uma determinada maneira diante das “coisas” do mundo, o que influencia fortemente a construção das suas representações. Aceito o fato de que o currículo forja identidades conforme o projeto de sujeito almejado, ganha relevância toda investigação que evidencie os pressupostos que sustentam a sua elaboração e seus mecanismos de funcionamento.”

Ao organizar as práticas pedagógicas no sentido da radicalidade da

democracia, considerando as diferenças culturais que se apresentam no

grupo escolar, assumindo que a escola é um espaço público e tem como

função partilhar o conhecimento a partir das diversas visões que

compõem o cenário de uma sociedade culturamente plural, será possível

realizar um convívio entre as diferenças com mais justiça social.

4.1. Currículo Cultural da Educação Física

Segundo Neira e Nunes, compreender o diferencial da educação

física na escola, ou seja, o que a torna relevante como componente

curricular, é fundamental para discutir sobre a transformação da sua

prática nas escolas.

A própria origem da educação física vinculada às instituições

militares, que valorizavam ideias de obediência, hierarquia, progresso,

que se somaram com as ideias preconizadas pelo Higienismo sobre os

corpos, tais como: sadios, dispostos, fortes, que foram reforçadas pela

perspectiva da Eugenia, que entendia que o trabalho no aperfeiçoamento

dos corpos dos brasileiros traria efeitos positivos na formação de

gerações mais robustas e saudáveis; e que encontraram na Ginástica e

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no Esporte uma aplicação dos seus valores, pautou uma prática de

educação física, que se expressava numa “educação do corpo” restrita a

um caráter funcionalista. Além disso, Neira e Nunes, apoiados em

Castellani Filho (1988), informam que a educação física possuía uma

informalidade no espaço escolar, onde era tida mais como uma atividade

do que um componente curricular. Essa visão tem se sustentado ao longo

do tempo, mesmo com a aprovação da LDB 9394/96, que tornou

obrigatória a educação física no currículo escolar, pois boa parte do

professorado entende que a educação física deve tratar da educação do

corpo, aprendizado dos esportes, promoção da saúde, recreação e lazer.

Neira e Nunes citam trabalhos de vários estudiosos da área como:

Daólio (1995), Celante (2000), Devide (1999) e Lovisolo (1995), que

procuraram entender a visão da especificidade da educação física na

escola na ótica dos professores, dos alunos e pais e mães. Alguns

aspectos destacados nesses estudos são: a dificuldade das professoras e

professores em justificar o conhecimento específico da educação física

escolar, que é também apresentada pelos discentes e pela família, que

não conseguem identificar o que é ensinado/aprendido na disciplina e

imputam pequena importância ao componente; e o reconhecimento da

educação física como uma tradição construída culturalmente e

reproduzida em diversos ambientes sociais (clubes, academia,

empresas), bem como na escola. Essas informações denotam que o

conhecimento específico do componente curricular aparenta ser oriundo

do senso comum, o que não dispensa a atuação do professor portador de

um certificado de Licenciatura na área, tendo em vista que a sociedade

entende que cabe a ele o papel de trabalhar esse campo no espaço

educativo.

Como cada pessoa tem uma representação sobre a educação

física, isto é, há uma pulverização da sua função já que são inúmeras as

visões sobre a área, não se coloca em discussão a eficácia da disciplina

relativa à sua contribuição no processo educativo. Sendo assim, não são

tratados criticamente os métodos, os papéis e os objetivos presentes nas

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abordagens pedagógicas (ginástica, desenvolvimentista, globalizante,

saudável) tomadas pelos docentes, porque esses elementos são aceitos

– inconscientemente – e encontram ressonância no imaginário desta

prática social chamada Educação Física. Em contrapartida, quando são

trabalhadas visões progressistas do componente, que divergem dos

currículos mais conhecidos, num primeiro momento há uma dificuldade na

sua legitimação por parte dos atores envolvidos no processo.

Neira e Nunes propõem outra maneira de pensar a área na prática

escolar, ou seja, uma mudança de paradigma da educação física na

escola. Explicam que não se trata de apenas substituir um modelo por

outro e marcam posição em favor de uma nova maneira de conceber o

componente no espaço educativo. Salientam que a educação física

escolar é a disciplina responsável por transmitir e reconstruir as

manifestações corporais numa visão que parte da sua historicidade,

abrangendo elementos filosóficos, religiosos, políticos, sociais e

pedagógicos, que se formaram ao longo do tempo, pra que possam ser

superados, configurando uma perspectiva cultural sobre a linguagem

corporal, ou seja, a cultura corporal.

“À cultura corporal são atribuídas as diferentes manifestações do esporte, do jogo, da ginástica, da dança e da luta, cada uma dessas manifestações terá uma identidade cultural, sentido e significado diferentes na cultura na qual ocorrem” (NEIRA E NUNES, 2008)

Apoiados em Betti (1992), apresentam a cultura corporal como uma

parcela da cultura mais ampla e que envolve as conquistas materiais e

simbólicas específicas de uma sociedade.

Destacam a contribuição da obra de Soares et al (1992) para a

compreensão da prática da educação física escolar na perspectiva

cultural, porque concordam com a proposta de tematizar as

manifestações corporais para se fazer a necessária reflexão sobre a

cultura corporal e consideram fundamental a visão de historicidade trazida

pelos autores, que proporcionam aos estudantes um entendimento de que

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há uma dinâmica nas relações sociais, de que ocorrem mudanças,

transformações, construções sobre a cultura na sociedade.

4.2. Princípios do Currículo Cultural

Com o reconhecimento da existência da pluralidade cultural na

sociedade, a educação física escolar que assenta a sua atuação no

currículo cultural, trará para a escola uma gama diversificada de

manifestações corporais, as quais representam os diferentes grupos

sociais que ali estão.

Porém, a escolha das manifestações corporais a serem estudadas

não seguirá ao sabor das preferências da professora/professor, nem será

feita de acordo com os gostos pessoais dos alunos, tampouco se dará de

forma espontaneísta. A eleição das manifestações corporais e as

temáticas a serem abordadas nas aulas de educação física, serão regidas

por princípios fundamentados nas teorias pós-críticas, como segue

(NEIRA apud MOREIRA, 2009).

4.2.1. Justiça Curricular

Se a intenção é contemplar os diversos grupos culturais presentes

na sociedade, é importante atentar para a distribuição dos saberes da

cultura corporal a serem estudados. Não se deve privilegiar

manifestações corporais que representam somente um grupo específico.

Por exemplo, foi proposta a tematização do futebol. Findado o trabalho de

ressignificação, aprofundamento e ampliação dessa temática, passa-se à

escolha de outra manifestação da cultura física, advinda da mesma

prática corporal esporte: o basquete. Nesse encaminhamento, não está

sendo feita a justiça curricular, está ocorrendo a primazia de um conteúdo

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em detrimento dos demais, como: danças, lutas, brincadeiras, ginásticas

(NEIRA apud MOREIRA, 2009).

“No caso das ginásticas, aconselha-se uma adequada distribuição entre atividades que solicitam valências físicas como força, flexibilidade e resistência. No tocante aos esportes, equilibrar a vivência daqueles praticados com as mãos e com os pés ou entre os mais próximos e mais distantes dos alunos. No estudo das danças, as atividades de ensino devem tematizar as urbanas e as rurais, as tradicionais e contemporâneas, as populares e da elite e assim por diante.” (NEIRA APUD MOREIRA, 2009, p.77)

Como mencionado, tematizar não é algo a ser feito de forma

descolada e descompromissada de critérios. Pelo contrário, requer uma

atenção cuidadosa e permanente, pois o que se busca nesse processo é

a convivência democrática entre os diversos grupos culturais que

compõem a sociedade. Pra isso ocorrer, é preciso ofertar aos alunos a

heterogeneidade social. (NEIRA apud MOREIRA, 2009).

4.2.2. Evitar o daltonismo cultural

Quando se busca, nas vivências das temáticas corporais em

estudo, através de procedimentos que privilegiam um resultado a ser

alcançado por todos, desconsiderando o patrimônio cultural de chegada

de cada criança, primando por comportamentos idênticos, enaltecendo

assim, a homogeneização ou a uniformização da diversidade cultural

apresentada pelos alunos, promove-se o reforço de certas identidades

que já possuíam na sua bagagem as experiências pautadas na aula e a

diminuição das outras identidades destituídas dessa bagagem. Dessa

forma, estas crianças ficam marcadas negativamente, já que tem

dificuldades em atingir os comportamentos solicitados por práticas

corporais de que não dispõem no seu repertório cultural (NEIRA apud

MOREIRA, 2009).

“Para evitar o daltonismo cultural, o professor poderá

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após uma vivência corporal em íntima consonância com as leituras que os alunos fizeram da manifestação focalizada, promover um debate, visando reconhecer as possíveis diferenças de interpretação dos alunos, estimular a verbalização dos variados pontos de vista, ouvir e discutir os posicionamentos emitidos, apresentar sugestões, oferecer novos conhecimentos oriundos de pesquisas em diversas fontes de informação e recriar a luta, dança, ginástica, esporte ou brincadeira abordadas, com a intenção de posicionar os alunos na condição de sujeitos-autores de produtos da cultura corporal.” (NEIRA apud MOREIRA, 2009, p.78)

Daltonismo refere-se a um problema de visão, que não consegue

diferenciar as cores. O professor deve procurar atuar de maneira a

contemplar as cores, as vozes, as bagagens de seus discentes,

considerando suas diferenças e propiciando a apropriação da

manifestação corporal em estudo, adequando às características do grupo,

às limitações de cada aluno/a. Seguir na esteira do conhecimento do

objeto de estudo, da forma que é na cultura paralela à escola, porém não

restringir à adaptação àquele formato. Proporcionar a participação dos

escolares com as ferramentas que dispõem, modificando com eles o que

entenderem necessário, ampliando os conhecimentos iniciais e

produzindo novos artefatos culturais (NEIRA apud MOREIRA, 2009).

4.2.3. Ancoragem social dos conteúdos

Grant e Wieczorek (2000) citado por Neira (apud Moreira, 2009),

recomendam uma séria análise sócio-histórica e política das

manifestações corporais estudadas pelos alunos. O que quer dizer que é

fundamental conhecer como ocorreu a construção de dada prática

corporal, fazendo uma leitura crítica relacionada ao seu contexto social de

produção e reprodução.

“A condução de atividades de ensino pautadas na ancoragem social, ao tratar respeitosamente todos os discursos possíveis, potencializará o diálogo entre o senso comum, a cultura acadêmica e dos conhecimentos transmitidos de todas as maneiras. Ajudará os alunos a

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desvendar os discursos embutidos nas práticas corporais que legitimam determinadas experiências e desqualificam outras. Permitirá superar a alienação provocada pela veiculação de informações distorcidas ou fantasiosas, reconhecer e adquirir uma nova visão sobre os saberes corporais disponíveis, seja eles socialmente valorizados ou marginalizados.” (NEIRA APUD MOREIRA, 2009, p.79).

Desvelar os discursos subjacentes às manifestações corporais,

levando em conta a variedade de fonte de informações: experiências

pessoais, livros, revistas, histórias, entrevistas, etc.., trará aos educandos

oportunidades de múltiplos olhares sobre o objeto de estudo e a

percepção de que as características apontadas como inerentes àquela

prática corporal são construções sociais, são produções que se

legitimaram por força de luta de certos grupos, mas que não são verdades

absolutas (NEIRA apud MOREIRA, 2009).

Ao considerar os princípios curriculares citados, evidencia-se a

intenção de trazer aos discentes uma experiência escolar democrática e

menos desigual. Favorecendo uma leitura de mundo crítica, reveladora e

não reprodutora. Entendendo o papel da educação como direito de todas

as identidades presentes no espaço escolar, no sentido de reconhecer e

valorizar – na mesma medida – as vozes de todos os grupos culturais que

formam a sociedade. Mostrando aos alunos que eles não são sujeitos

determinados, e sim sujeitos de possibilidades. Paulo Freire retrata bem

essa ideia ao dizer:

“”Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu “destino” não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade.”(FREIRE, 2009, p. 53).

Assim, ao abranger os princípios curriculares: justiça curricular, o

não daltonismo social e a ancoragem social dos conteúdos, aponta-se na

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direção da possibilidade de intervenção, de transformação, de mudança,

de modificação do que está posto.

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5. O CURRÍCULO CULTURAL EM AÇÃO NA EDUCAÇÃO FÍSICA

5.1. Tematização

Para tratar de forma mais profunda e ampla o conhecimento

dessas manifestações corporais e a sua situação na realidade, elas são

abordadas por meio da tematização, o que significa que os estudantes

são desafiados pelo objeto a ser conhecido, desenvolvendo a capacidade

crítica das/os alunas/os enquanto sujeitos do conhecimento (NEIRA apud

MOREIRA 2009).

“Encontra-se um excelente exemplo deste movimento de pensamento dialético na análise de uma situação concreta, existencial, “codificada”. Sua “descodificação” exige que passe do abstrato ao concreto; ou melhor, da parte ao todo, para voltar depois às partes; isto implica que o sujeito se reconheça no objeto como uma situação na qual se encontra com outras pessoas. Se a descodificação for bem feita, este movimento de fluxo e refluxo, do abstrato ao concreto, que se produz na análise de uma situação codificada, conduz a substituir a abstração pela percepção crítica do concreto, que deixou já de ser uma realidade densa impenetrável. ”(Freire, 1979, p. 17)

O conhecimento é construído com os discentes, que são chamados

a participar do desvelamento daquele objeto de estudo com condições de

participação, manifestas no processo de escolha da manifestação

corporal a ser tematizada.

Alguns aspectos são elementares pra iniciar o trabalho de

Educação Física na perspectiva cultural: a integração dos objetivos da

instituição escolar com os do componente; a preocupação com a

bagagem cultural trazida pelos/as alunos/as, reconhecendo o seu valor

por meio da tematização que a contemple; a abordagem frontal da

temática a ser estudada, ou seja, a temática não é diluída em partes pra

melhor ser compreendida; o entendimento de que não há conhecimento

mais fácil ou mais adequado para Educação Infantil ou mais complexo

para o Ensino Médio (NEIRA apud MOREIRA 2009).

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5.2. Mapeamento

Assim, partindo do mapeamento que consiste na pesquisa dos

textos corporais refletidos na comunidade onde está inserida a escola, o/a

professor/a define a temática a ser estudada.

O processo de mapeamento envolve a observação das práticas

corporais que ocorrem no entorno da escola ou num universo cultural

maior, o conhecimento da cultura corporal vivenciada pelos discentes,

desencadeando mesmo num trabalho etnográfico, que é a busca de

dados com o fim de selecionar as manifestações corporais a serem

estudadas pelos estudantes.

Para auxiliar na composição das informações, a/o professora/o

poderá usar instrumentos como: diálogo com as turmas, funcionários e

professores, tanto nos momentos formais quanto informais;

questionários, desenhos, narrativas dos/as alunos/as; reuniões com os

familiares ou responsáveis, nas quais, além da colaboração na coleta de

dados, poderão ser identificados informantes preciosos para apoiar as

atividades de ensino através de entrevistas, palestras.

O mapeamento envolve também o espaço escolar. É importante

conhecer a estrutura física e o funcionamento administrativo da escola a

fim de poder aproveitar da melhor maneira possível o que ela oferece. Por

exemplo, se ela possui auditório, sala de multimídia, sala de leitura, e qual

a rotina estabelecida pela administração para uso desses ambientes;

quais são os trâmites para realizar saídas de estudos com a turma dentro

da jornada escolar ou fora do horário de aula; o funcionamento da entrada

de visitantes que venham colaborar nos estudos das temáticas; prazos

para reprodução e entrega de materiais gráficos. Informações que

facilitarão o trabalho da/o professora/o e prevenirão imprevistos que

podem prejudicar as atividades de ensino previamente elaboradas

(NEIRA apud MOREIRA 2009).

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5.3. Atividades de ensino

Os conteúdos da prática corporal em estudo serão deflagrados por

meio das problematizações apresentadas pelas atividades de ensino, que

tornarão a apreensão da temática mais aprofundada, considerando nesse

processo o interesse e questionamento do grupo pelo objeto estudado.

Essa experiência de estudo permitirá a elaboração de uma síntese

individual e coletiva.

“A educação problematizadora está fundamentada sobre a criatividade e estimula uma ação e uma reflexão verdadeiras sobre a realidade, respondendo assim à vocação dos homens que não são seres autênticos senão quando se comprometem na procura e na transformação criadoras.” (FREIRE, 1979, p. 42)

Nessa dinâmica de ensino, cabe à professora atentar pras relações

presentes na trajetória e organização da manifestação corporal em tema,

enfatizando as perguntas que iluminarão os procedimentos – da referida

manifestação – tidos como naturais e determinados, trazendo à tona as

construções sociais e culturais permeadas das relações desiguais de

poder que marcaram as posições de gênero, etnia, faixa etária, história,

consumo, região geográfica, entre outras que surgirem no decorrer do

estudo, a fim de propiciar aos discentes condições de entendimento de

qual identidade está sendo destacada e qual está sendo desprestigiada.

No currículo cultural é importante o diálogo e a leitura gestual

implícita nas manifestações corporais. Seguindo essa compreensão, são

promovidas a interação coletiva, a reorganização e a discussão de trazer

a aula as diferentes maneiras de vivência de uma prática corporal,

sempre acompanhadas da devida interpretação. Assim são expressas as

diversas vozes que compõem o repertório coletivo da linguagem corporal.

Para que o trabalho na perspectiva cultural ocorra com maior

sucesso, é preciso que o professor, anteriormente, realize uma

investigação sobre as características mais relevantes da prática corporal

em estudo e faça um planejamento adequado das atividades de ensino e

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os espaços a serem usados, bem como dialogue com o estudantes sobre

o plano de trabalho, oportunizando que os mesmos possam dar

sugestões acerca das atividades de ensino (NEIRA apud MOREIRA

2009).

5.4. Leitura

A leitura da manifestação corporal eleita deve partir da sua

ocorrência no cotidiano social. Verificar onde a manifestação corporal

estudada acontece, quem pratica, quais as características que a

compõem, como ela está posicionada socialmente, se é divulgada ou não

pela mídia, enfim, abarcar uma série de componentes que configuram o

objeto de estudo, fazendo como diz Paulo Freire “uma leitura de mundo”

da referida manifestação.

É fundamental na execução da leitura da prática corporal

tematizada, a ação didática que visa ler e interpretar os códigos

transmitidos, trazendo questões que permitam romper com a reprodução

das desigualdades no currículo e na sociedade.

“A pedagogia pós-crítica questiona as narrativas que vinculam a bolinha de gude das crianças pobres, o tênis das elites, o black das periferias urbanas, o forró dos nordestinos, o judô dos disciplinados e o vale-tudo dos pit boys e que contribuem para perpetuar a assimetria no currículo e na sociedade.” (NEIRA APUD MOREIRA, 2009, p. 84)

A leitura direcionará os/as alunos/as a compreenderem a

manifestação corporal para além da ótica superficial e restritiva.

Auxiliando na elaboração de um olhar mais crítico, pois ao efetuarem a

análise da prática corporal no seu cotidiano e buscarem conhecimentos

de outras áreas, poderão dimensionar a complexidade das relações

sociais e significados presentes no objeto de estudo (NEIRA apud

MOREIRA 2009).

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5.5. Vivência

A vivência corporal possibilitará às/aos alunas/os o entendimento

do movimento de transformação que estão sujeitas as manifestações

corporais. No percurso de experimentação da prática corporal saindo do

âmbito social para o escolar, serão verificadas as diferenças existentes

nessas realidades, como: nº de alunos, espaço, tempo, recursos

materiais, condicionantes a serem consideradas pelo grupo na elaboração

de novas formas de brincar, jogar, dançar, etc.. Cabe ao/a professor/a

estimular as crianças na reconstrução coletiva do objeto em tela,

abrangendo nessa tarefa as singularidades da turma e da escola,

tornando mais clara a plasticidade da cultura.

A participação na vivência não se restringe a execução da

manifestação corporal, envolve também ação de leitura e interpretação da

gestualidade. É importante a variação de papéis na vivência, em que ora

alguns executam e ora outros fazem a leem e interpretam.

Desse modo, a vivência corporal refere-se à experimentação, à

leitura e interpretação da prática corporal em discussão (NEIRA apud

MOREIRA 2009).

5.6. Ressignificação

Ressignificar é, partindo da sua própria cultura, atribuir novos

sentidos a um artefato produzido em um contexto diverso.

A/O professora/o deve incentivar o grupo discente a experimentar

novas maneiras de realizar a prática corporal tematizada, verificando a

efetividade das suas produções. Esse processo levará os estudantes a

perceberem-se como sujeitos históricos e produtores de cultura, assim

como acontece com a cultura paralela à escola.

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“O yoga atualmente praticado nas academias e centros brasileiros é fruto da ressignificação da prática indiana. A feijoada, a calça de brim, a cantiga de roda, a tatuagem, a gravata, a continência militar, a maioria das palavras de uma língua contemporânea, as festividades, entre tantos outros artefatos, são, na atualidade, produtos culturais ressignificados” (NEIRA APUD MOREIRA, 2009, p. 85).

A ressignificação dos produtos culturais pode ser uma forma de

garantia de permanência no decorrer do tempo quando, diante das

mudanças das condicionantes sociais, seus representantes recriam o

produto original e o readequam, ou pode ser quando um grupo, por

razões diversas, se apropria de um artefato pertencente a outro grupo.

Nessa dinâmica, os significados ou a essência do produto são passíveis

de ficarem sem o seu caráter primário e assumir novas constituições

(NEIRA apud MOREIRA 2009).

5.7. Aprofundamento e Ampliação

O aprofundamento do conhecimento está relacionado a uma leitura

mais acurada da temática corporal em foco. Por meio das diferentes

atividades de ensino propostas, são criadas condições de desvelamento

de aspectos encobertos do que inicialmente não foi passível de

apreensão.

A ampliação do conhecimento caracteriza-se pelo acesso a uma

variedade de discursos e fontes de informações, que enriquecerão o

estudo da manifestação corporal, o qual será engendrado por uma

diversidade de pontos de vistas.

No primeiro contato com a prática corporal escolhida, os discentes

fazem uma leitura e vivência de acordo com a visão que tem do objeto de

estudo no âmbito social. Nesse momento, as interpretações que farão:

sensoriais, técnicas, morais, estéticas, podem ser denominadas de

primeiro nível.

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As interpretações de segundo e terceiro níveis serão

consequências de análises mais complexas, feitas a partir das atividades

de aprofundamento e ampliação que vão auxiliando os educandos a

realizarem leituras políticas, sociológicas, históricas, filosóficas.

As atividades de ampliação nutrem o processo de aprofundamento,

que por sua vez é o momento da organização das informações obtidas na

ampliação, que se dá com:

“A elaboração de uma rede de conhecimentos acerca da temática, procedimento fundamental para a superação da visão sincrética inicial e construção de uma reflexão crítica, se dá mediante a ampliação das fontes, ou seja, com a leitura de textos argumentativos, comparação entre variados pontos de vistas dos próprios estudantes, do educador e de outros membros da comunidade, análises de notícias ou ações de marketing, realização de debates, mesas redondas com convidados, reprodução de programas televisivos específicos, documentários, etc..” (NEIRA APUD MOREIRA, 2009, p. 87).

Ao lidarem com essa gama de discursos sobre a temática em

pauta, os alunos tem seus entendimentos confrontados, desestabilizados,

fazendo com que seja necessário reelaborarem seus conhecimentos

iniciais pra que comportem agora elementos que estavam ocultos. Nesse

sentido, Neira (apud Moreira, 2009, p. 88) afirma que “não basta ler o que

está nas linhas, é preciso ler, também, o que está nas entrelinhas e por

trás das linhas”.

Para um melhor aproveitamento das atividades de ampliação, é

importante efetuar uma preparação coletiva que direcione o olhar dos

estudantes pra que possam extrair os dados de interesse no estudo da

manifestação corporal tematizada. Por exemplo, ao entrevistarem um

praticante da prática corporal em tela, é necessário que já venham para o

evento com um rol de perguntas que visem esclarecer as problemáticas

surgidas anteriormente. Essa recomendação referente à elaboração de

roteiro de observações é válida pra visitas aos locais de prática do objeto

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estudado, nas assistências de vídeos (filmes, documentários, etc.), pras

pesquisas feitas na internet, entre outras atividades.

Neira e Nunes (2008), em contraposição à progressão linear,

propõem uma progressão em espiral, na qual a temática eleita será

analisada independente da faixa de ensino dos alunos, mediante os

interesses, as condições e conhecimentos disponíveis tanto do professor

quanto dos estudantes. Nessa concepção de ensino, não se pretende

esgotar o estudo de determinada prática corporal, pois que:

“O mesmo tema poderá regressar em outro período letivo a partir de uma nova ótica ou, se mobilizado por um fato social novo ou uma curiosidade específica, voltará ao debate e suscitará novos conteúdos de aprendizagem.” (NEIRA APUD MOREIRA, 2009, p. 89).

Assim, o currículo se mostra aberto a novas temáticas sobre uma

manifestação corporal já vista. Partindo de outras condicionantes sociais,

de outro patamar de conhecimentos, de outro prisma, novos

conhecimentos serão gerados (NEIRA apud MOREIRA 2009).

5.8. Processo de avaliação

O mapeamento que fundamentou a eleição da manifestação

corporal para estudo é um registro da compreensão inicial detida pelos

alunos. Essa etapa consiste numa avaliação diagnóstica.

No decorrer do processo pedagógico, a partir das impressões

expressadas na leitura e vivência da prática corporal em tela, novas

interpretações serão feitas a respeito do objeto em tela. O professor, com

esses subsídios, organizará com as crianças as atividades de ensino pra

seja desencadeado o processo de ampliação e aprofundamento. Ao longo

desse percurso, deverá fazer uso de uma avaliação reguladora pra

verificar se as atividades de ensino propiciadas estão suscitando

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oportunidades de aprendizagens, se serão necessárias mudanças na

prática pedagógica, bem como extrair os próximos encaminhamentos.

Todas essas etapas que compõem o andamento do trabalho educativo,

devem ser registradas pra posteriores análises avaliativas.

Ao término do trajeto de estudo, para avaliação final, recomenda-se

a elaboração de um produto final que consistirá numa atividade avaliativa

(apresentação, registro mais acurado, coreografia, exposição, entre

outras), que fornecerá ao professor subsídios para:

“... descobrir, em que medida, os procedimentos didáticos realizados naquele período letivo contribuíram para ampliar o repertório dos conhecimentos do grupo, bem como a superação dos preconceitos e concepções identitárias inicialmente reveladas” (NEIRA APUD MOREIRA, 2009, p. 90).

Na concepção de ensino apresentada, tanto o percurso do

professor quanto o dos educandos são avaliados. Ao professor é

aconselhado o uso de um “diário de campo” que será um importante

instrumento de para constar as impressões e leituras pessoais. Esse

material possibilitará uma reflexão crítica sobre o próprio processo de

formação (NEIRA apud MOREIRA 2009).

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A perspectiva cultural da Educação Física confere uma prática

pedagógica ao componente muito diferente daquela até então realizada,

comumente, pelos professores de educação física escolar, na qual as

atividades de ensino consistiam – em grande medida – na prática, na

vivência dos conteúdos da área, abstendo-se de incorporar aos estudos o

trajeto sócio-histórico das atividades ensinadas. Nessa visão de educação

física, em que a aula é prioritariamente a execução de movimentos

corporais, o uso de outras linguagens/textos (vídeos, pinturas, músicas,

entrevistas, debates, visitas, pesquisas na internet, fotos, etc.) que

também contam sobre determinado esporte, dança, brincadeira, jogo, luta

e que são tão importantes para a compreensão do objeto em foco,

raramente era ofertado aos estudantes.

“Rompendo com a tradição tecnicista que atribuía às aulas de Educação Física uma característica exclusivamente prática, Neira e Nunes (2007) explicitam que a ação pedagógica, pautada no currículo cultural, amplia o leque de atividades de ensino baseadas não somente em vivências, como também, na análise e discussão dos diversos saberes e sentimentos relacionados às práticas corporais que se configuram como patrimônio cultural dos grupos que compõem a sociedade mais ampla (NEIRA APUD MOREIRA, 2009, p. 75)”.

Privilegiava-se, basicamente, o aperfeiçoamento técnico de

movimentos esportivos ou a aquisição de habilidades motoras para

atender as demandas cotidianas, ou o uso de jogos para desenvolvimento

de atitudes para melhoria da sociabilidade, entre outras propostas, que

descendiam das pedagogias tradicional e tecnicista. Além disso, quase

sempre eram oferecidas as mesmas atividades, como por exemplo, no

conteúdo esporte, que modalidades como vôlei, basquete, futebol,

repetiam-se ano após ano, caracterizando-os como conhecimentos

necessários para os discentes, e que por isso não eram passíveis de

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questionamentos da motivação de estudá-los, ou seja, estavam

naturalizados no espaço escolar. Desse modo, o alerta emitido pelas

teorias críticas da educação sobre os conhecimentos selecionados para

compor o currículo, que eram distinguidos como oriundos de “fontes

imparciais ou valores supostamente consensuais na sociedade” (NEIRA E

NUNES, 2009, p. 111), propiciou superar a denominação de neutralidade

ensejada pela pedagogia tradicional e tecnicista.

“A teoria educacional crítica afirma que o currículo é um projeto cultural que proporciona aos alunos a aprendizagem de conteúdos peculiarmente selecionados e organizados, mediante determinadas condições políticas e condicionados por uma realidade mais ampla (SACRISTÁN, 2000 apud NEIRA E NUNES, 2009, p. 111).

Por meio do olhar mais atento das teorias críticas, foi possível

enxergar que esse conhecimento dado como universal e apresentado

como neutro, ou seja, isento de pretensões, projetos, metas, continha sim

Nome, RG e CPF. Possuía uma identidade e intencionalidade. A partir

dessa revelação, passou-se questionar a titulação dada à escola como

meio de ascensão e equidade social, tendo em vista que a cultura escolar

reproduzia os valores de grupos economicamente melhores posicionados

na sociedade e mantinha os grupos desfavorecidos dessa condição a

seguirem com suas concepções de vida marginalizadas e inferiorizadas.

Com o surgimento das teorias pós-críticas da educação, foi

ampliada a noção sobre as relações de poder para além das diferenças

econômicas entre as classes sociais e incorporadas nas análises outros

marcadores sociais, tais como: gênero, identidade, sexualidade, geração,

etnia, oriundos de estudos mais contemporâneos: multiculturalismo,

estudos culturais, pós-modernismo, pós-estruturalismo, pós-colonialismo,

estudos feministas, entre outros. Foi também contestada a visão de uma

essência do sujeito, que seria alcançada através de um processo de

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emancipação. Para a teorização pós-crítica, as identidades não são fixas

e acabadas, por que são oriundas das relações sociais.

O currículo cultural da Educação Física, ao considerar as práticas

corporais como produtos culturais, através dos quais são veiculados os

saberes, os valores de um grupo social, que é formado por indivíduos

situados num determinado momento histórico, e que por sua vez, por

serem seres humanos possuem as capacidades humanas de criar,

comparar, avaliar, criticar, interpretar, escolher, intervir, transformar,

enfim, atuar sobre o mundo, destacou o aluno e a aluna da condição de

meros recipientes de conhecimentos ditos irrefutáveis, dando-lhes a

estatura de sujeitos históricos, admitidos para a construção e

transformação do conhecimento, assim como tantos outros entes da

humanidade produziram e transformaram seus saberes nas diversas

épocas da história.

“(...) a materialidade corpórea foi historicamente construída e, portanto, existe uma cultura corporal, resultado de conhecimentos socialmente produzidos e historicamente acumulados pela humanidade que necessitam ser retraçados e transmitidos para os alunos na escola.” (SOARES ET AL., 1992, p.39 APUD NEIRA E NUNES, 2008).

Sendo a escola uma instituição pública, que deve acolher a todos

indistintamente, faz-se necessário extrapolar a concordância de que todas

as crianças devem frequentar o espaço educativo. Avançando para o

reconhecimento do direito de cada indivíduo, de cada grupo proferir sua

voz, sendo esta tão digna de respeito quanto as tradicionais vozes que

estiveram, ao longo do tempo, na dominância do campo social e, por

conseguinte tiveram seus valores legitimados no âmbito escolar. Nesse

sentido, não cabe mais trabalhar de uma forma monocultural, visando à

adequação das pessoas representantes de culturas diferentes da tida

como correta, verdadeira e única.

A educação exerce um papel político. É inerente ao exercício

pedagógico um direcionamento, um posicionamento. A escola é o lugar

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legitimado pela sociedade pra que ocorra o processo educativo. Nesse

local, passa a grande maioria dos indivíduos que comporão o âmbito

social. Através do currículo, que se refere a todas as práticas sociais

inerentes ao espaço escolar, crianças, jovens e adultos são atravessados

e por ele, de uma forma ou de outra, marcados.

Assim, se almejamos uma sociedade democrática, menos desigual

e com melhor distribuição dos recursos tanto materiais quanto simbólicos,

será preciso refletir no currículo as condições que contribuirão pra que

cada criança, cada jovem, cada adulto, cada idoso possa experienciar

valores democráticos no convívio com a multiplicidade de culturas, na

hibridização dos conhecimentos, no conflito com as diferenças sociais,

percebendo assim que o ser humano possui a capacidade de construir e

transformar a sua realidade.

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