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FACULDADE DE SÃO BENTO BACHARELADO EM FILOSOFIA JOSÉ ROSSI NETO A TEORIA POLÍTICA DE ERIC VOEGELIN E A CRÍTICA AO JOAQUIMISMO SÃO PAULO 2018

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FACULDADE DE SÃO BENTO

BACHARELADO EM FILOSOFIA

JOSÉ ROSSI NETO

A TEORIA POLÍTICA DE ERIC VOEGELIN E A CRÍTICA AO

JOAQUIMISMO

SÃO PAULO

2018

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FACULDADE DE SÃO BENTO

BACHARELADO EM FILOSOFIA

JOSÉ ROSSI NETO

A TEORIA POLÍTICA DE ERIC VOEGELIN E A CRÍTICA AO

JOAQUIMISMO

Monografia apresentada no Curso de Filosofia

da Faculdade de São Bento de São Paulo como

exigência para obtenção do título de Bacharel

em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Monticelli

SÃO PAULO

2018

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FACULDADE DE SÃO BENTO

JOSÉ ROSSI NETO

A TEORIA POLÍTICA DE ERIC VOEGELIN E A CRÍTICA AO

JOAQUIMISMO

Monografia apresentada à Faculdade de São

Bento, como parte dos requisitos para obtenção

do título de Bacharel em Filosofia.

Aprovado com média: 10

São Paulo, 21 de dezembro de 2018.

Banca examinadora:

Prof. Dr. Pedro Monticelli (orientador)

Profa. Dra. Elaine Camunha

Profa. Dra. Maria Alejandra Caporale Madi

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À minha mãe, Eliza, que sempre acreditou

e confiou muito em mim.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, a quem sempre recorro em todos os momentos da vida, buscando a verdadeira

paz.

À minha mãe e à toda a minha família, amigos e colegas, que me acompanharam no

decorrer de toda essa caminhada e que de algum modo colaboraram para que eu chegasse até

aqui.

À Faculdade de São Bento: direção, coordenação e funcionários; que sempre, com muito

profissionalismo e solicitude, tornaram possível a minha graduação com máximo grau de

aproveitamento do curso.

Ao corpo docente da Faculdade, e, particularmente, ao Prof. Pedro Monticelli, meu

orientador neste trabalho, pelo exemplo de caráter e mestre.

A Dom Camilo, prior do Mosteiro de São Bento, pela confiança e, principalmente, pela

amizade.

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RESUMO

Propor um resgate à maneira correta de fazer ciência, a partir de como os clássicos,

Platão e Aristóteles, elaboravam uma teoria, é o que propõe Eric Voegelin, ao escrever A Nova

Ciência da Política. Sua avaliação para com a sociedade moderna e contemporânea se dá numa

análise a partir de elementos extraídos da realidade de uma sociedade que busca se auto

interpretar como um pequeno mundo, passando pelo problema central da representação e das

dificuldades que a era moderna encontra ao conceber sistemas filosóficos, ainda que muitas

vezes bem coesos, que não dão conta de explicar ou de se aplicar à realidade. Um caminho pela

Idade Média é traçado, e as complicações são apresentadas quando abordado o conflito de

verdades e as influências que o gnosticismo teve – e ainda tem – na construção de visões de

mundo tão variadas e quase sempre com uma percepção distorcida da realidade. Das teses

gnósticas em questão se destaca o joaquimismo, que se trata de uma doutrina escatológica

imanentista desenvolvida pelo abade Joaquim de Fiore que, por seus princípios, influenciou

enormemente grandes nomes da filosofia, legando consequências práticas perceptíveis até os

dias de hoje.

Palavras-chave: teoria, política, sociedade, Voegelin, gnosticismo, joaquimismo.

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ABSTRACT

In The New Science of Politics, Eric Voegelin proposes a rediscovery of the proper ways

of politics, based on Plato’s and Aristotle’s political theory. Voegelin analyses and evaluates

modern and contemporary society using the concepts of cosmion (little world) and

representation. He also describes the difficulties faced by the Modern Age in the conception of

philosophical systems. Even when coherent, those systems do not work well when used to

explain reality or to direct action. Voegelin studies the conflict of truths and Gnosticism’s

influence in the Middle Ages’ and in today’s varied and distorted worldviews. He draws

attention specially to Joachimism, an immanentist-eschatological doctrine developed by the

abbot Joachim de Fiori. Voegelin points out that Joachimist principles greatly influenced some

of philosophy’s most important authors, producing many practical effects to this very day.

Keywords: theory, politics, society, Voegelin, gnosticism, joachimism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8

CAPÍTULO 1: A TEORIA POLÍTICA.................................................................................12

1.1. O RESGATE DA CIÊNCIA...........................................................................................12

1.2. O MÉTODO CIENTÍFICO.............................................................................................14

1.3. REPRESENTAÇÃO.......................................................................................................16

1.4. O CONFLITO DE VERDADES: A INFLUÊNCIA DO CRISTIANISMO

COMO DIFERENCIAÇÃO MÁXIMA.........................................................................20

CAPÍTULO 2: A CRÍTICA AO GNOSTICISMO...............................................................23

2.1. DESDIVINIZAÇÃO E REDIVINIZAÇÃO DA SOCIEDADE.....................................23

2.2. CIDADE DE DEUS E A REJEIÇÃO DA CRENÇA LITERAL NO MILÊNIO.............24

2.3. O CONCEITO AGOSTINIANO DE IGREJA................................................................26

2.4. JOAQUIM DE FIORE.....................................................................................................28

2.5. A IMANENTIZAÇÃO E O EIDOS DA HISTÓRIA:

O GNOSTICISMO COMO NATUREZA DA MODERNIDADE..................................30

CAPÍTULO 3: O JOAQUIMISMO.......................................................................................41

3.1. JOAQUIM DE FIORE E O PRINCÍPIO GNÓSTICO....................................................41

3.2. DOUTRINA, TESE E HERMENÊUTICA JOAQUIMISTA..........................................42

3.3. INFLUÊNCIA NA ERA MODERNA E SUAS

CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS E FILOSÓFICAS.......................................................49

CONCLUSÃO.........................................................................................................................56

BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................58

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho traz algumas reflexões e pretensões do filósofo, historiador e

cientista político alemão Eric Voegelin, num momento em que o desenvolvimento de sua

filosofia se encontrava como que num meio termo. A Nova Ciência da Política é uma obra

divisora de águas no pensamento voegeliano, pois é a partir dela que seu pensamento vai

tomando corpo, a ponto de praticamente se tornar um sistema filosófico, que diferentemente do

que se viu no apogeu da modernidade, não pretende criar ilusões ou utopias, mas pelo contrário,

deseja “purificar” o pensamento moderno que, na visão dele, tanto se contaminou com

elementos que acabaram por deturpar a realidade.

Sua obra é chamada “Nova” não no sentido de algo inédito, mas reeditado, digamos

assim, pois, a maneira com que se passou a fazer ciência na era moderna, segundo o entender

de Voegelin, não é a maneira correta, pois o fazem a partir de uma separação dos princípios da

filosofia e da política, algo que para ele não faz muito sentido quando se pensa na ciência que

foi fundada pelos clássicos. Por isso mesmo é que o autor buscará retomar a maneira com que

Platão e Aristóteles faziam ciência, aplicando o método de ambos os filósofos dentro de um

contexto atual de humanidade e sociedade.

E exatamente o problema do método é um dos mais latentes na modernidade, pois o que

se vê é uma inversão de termos e significados, más recepções e, consequentemente, más

compreensões de conceitos fundamentais para a elaboração de uma ciência, sendo esta não mais

aquela forma proposta pela maneira platônico-aristotélica. A ciência deve trazer respostas sobre

a realidade, e, portanto, partir dela, e não o contrário, como pretendeu muitos pensadores ao

“criarem realidades” a partir de suas convicções e elaborações, muitas vezes, tão bem

desenvolvidas, de grandes sistemas que tentaram dar conta de responder a todos os

questionamentos do homem.

Assim, Voegelin propõe este resgate à forma clássica de se teorizar, ou seja, fazer

ciência a partir de uma teoria, considerada no sentido clássico, que se trata, evidentemente, de

fazê-la sem a intenção de um retorno ao platonismo ou ao aristotelismo, mas utilizando-se dos

ensinamentos e do método dos grandes filósofos que buscavam, nos princípios, as origens das

causas, e, por conseguinte, procuravam compreender a maneira de atuação de uma sociedade a

partir do seu ethos, de sua maneira de operar na história.

Nessa empreitada, alguns problemas serão identificados como sendo característicos e

próprios de tal busca, entre eles, a já citada separação dos princípios da filosofia e da política e

também o da representação, que nosso autor considerará como sendo o mais central deles, pois

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entende-se que há um reducionismo no significado de tal conceito tão importante para a teoria

política. O que se vê é que se passou a considerar o problema da representação como se este

dissesse respeito apenas às instituições representativas, às formas de escolher um representante

que estará à frente de um povo para governá-lo. Um erro, vai dizer Voegelin, pois o problema

da representação se torna muito mais agudo e necessário de aprofundamento, quando se percebe

a maneira como a própria sociedade se autopercebe, por exemplo, como um pequeno mundo,

um cosmion, utilizando-nos da palavra do próprio autor. E, a partir do momento em que se tem

uma autointerpretação dada de tal maneira, considerar apenas os aspectos representativos

referentes a algum tipo de sufrágio eleitoral, não dá conta de explicar a dinâmica do pensamento

de uma sociedade formada por diferentes povos, que busca entender o seu lugar no espaço, no

mundo, na história. A representação, portanto, será apresentada no presente trabalho a partir da

visão voegeliana da interpretação que a sociedade faz de si mesma, com todas as suas

influências e características próprias, considerando suas aspirações e sua participação na

história. Será abordada também no seu caráter transcendental, que tanta relevância teve quando

se analisam mais cuidadosamente os contextos históricos desde as lutas imperiais, passando

pelos primórdios do cristianismo, pela modernidade e chegando até os dias atuais. Tal problema

é discutido também a partir dos escritos de Santo Agostinho, que é muito citado por nosso autor

como um dos grandes influenciadores do pensamento ocidental, considerando-o a partir da sua

visão de Igreja e de outros aspectos fundamentais de sua filosofia, que serviram para a formação

da doutrina Católica dentro de um contexto de sociedade extremamente paganizada, descrente

e receosa com relação ao seu futuro.

Um outro ponto fundamental da obra de Voegelin e em que ele concentra boa parte de

sua crítica é o gnosticismo. Nosso autor traça um panorama desde as influências deste no início

do cristianismo, suas possibilidades e desdobramentos no decorrer dos séculos. A gnose,

palavra que tem origem grega e significa conhecimento, é o centro do pensamento gnóstico (e

por isso leva este nome), e sua “doutrina” sempre aparece como uma alternativa para explicar

aquilo que os homens não conseguem entender – pelas mais variadas razões: falta de fé, dúvidas

permanentes que estão presentes no coração dos homens, desejo de saber o futuro e até mesmo

o sentido da vida e da história – de alguma maneira que pretende convencê-los. O pensamento

moderno está recheado de filosofias, seitas, doutrinas gnósticas. A própria questão da distorção

da realidade se dá, em muitos casos, a partir de uma visão gnóstica que se tem do mundo; pois

como tal visão pressupõe que é possível o conhecimento de todas as coisas, inclusive do que é

divino, e mais, da própria Divindade, a partir de disposições concentradas no sujeito racional,

o que se tem são perspectivas de existência e mundo que nem sempre correspondem com a

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realidade da história humana. Foram pensamentos fundados em princípios deste tipo que

levaram ao aparecimento de muitas “teorias” filosóficas que, ao aplicarem-se na vida prática da

sociedade, não foram capazes de satisfazer os anseios de seus adeptos e, muitas vezes, levaram-

nos à própria destruição. Algo muito marcante na obra voegeliana e que procuramos transmitir

foi exatamente a questão acerca da consideração que o autor faz a respeito da modernidade,

quando atribui à essência desta, justamente o gnosticismo.

E seus desdobramentos foram muitos, seus princípios também são muitos, aliás, tudo o

que diz respeito ao pensamento gnóstico sempre vem em altas doses. Se por um lado houve um

homem como Santo Agostinho, que foi capaz de “colocar a casa em ordem” com sua doutrina,

num momento de conflito e muitas confusões na sociedade, por outro lado, a raiz do

pensamento gnóstico continuou presente na história do mundo, por motivos que abordamos no

decorrer do presente trabalho e que deixarão mais claro o entendimento acerca dos porquês de

tal ensejo não se encerrar completamente. De qualquer forma, Voegelin faz referência muito

particular a uma figura que foi fundamental para que tal pensamento se expandisse e ajudasse

a promover de maneira tão frutuosa os princípios de uma doutrina já há tempos combatida e

refutada como era o gnosticismo. Trata-se de Joaquim de Fiore, abade cisterciense do século

XII, que elaborou um sistema de interpretação das Escrituras totalmente novo para sua época e

que acabou por ganhar muitos seguidores.

O terceiro capítulo do presente trabalho dedicamos, mais especificamente, à

explicitação da doutrina joaquimista e das consequências filosóficas e práticas causadas por ela

e que puderam ser percebidas no mundo ocidental. Voegelin é um crítico da doutrina de

Joaquim e por isso o título desta empresa faz menção a esta característica do pensamento

voegeliano, pois procuramos apresentar, ainda que de maneira sucinta, a tese do abade e os

problemas decorrentes de seu pensamento, a partir do momento em que seus princípios passam

a ser apresentados como solução teórica àqueles que buscam entendimento acerca de seu fim

último. A tese de Joaquim foi muito responsável por influenciar nomes intelectualmente muito

reconhecidos da era moderna, não exatamente por sua doutrina em sentido estrito, mas pelos

princípios apresentados por ela, que foram sendo adaptados de acordo com o objetivo de cada

pensador, sendo o principal e mais fácil de ser reconhecido, a divisão do mundo em três eras

(ou estados) fundamentado pela concepção trinitária do Deus crido e ensinado pela Igreja

Católica. Tal princípio de tripartição levou muitos pensadores a desenvolverem suas utopias,

ideologias, sistemas filosóficos, inspirados num mundo partido à maneira joaquimista. Tal

situação apresentamos no mesmo capítulo, abordando também outras questões referentes não

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só a este princípio, mas a outros, que levaram a sociedade a mudar sua maneira, não somente

de autointerpretar-se, mas de viver.

O que se propôs com este trabalho, portanto, foi levantar questões que diretamente

afetam a vida prática da sociedade e, consequentemente, também a vida teórica, ou vice-versa,

pois quando se deseja fazer teoria ao modo clássico, não há como haver separação da prática,

assim como também não há como separar os princípios da política e da filosofia. O

entendimento acerca da situação da sociedade atual e o que a levou a ser como é, pensar como

pensa e agir como age é o que mais motivou a elaboração deste a partir da visão filosófica

voegeliana de ciência e história.

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CAPÍTULO 1: A TEORIA POLÍTICA

1.1 O RESGATE DA CIÊNCIA

Ao título de sua obra A nova ciência da política não se deve esperar de fato uma nova

ciência da política, mas sim, uma renovação na maneira de investigar a política cientificamente.

Isto porque, para o autor, o que houve no decorrer da história foi uma perversão na utilização e

compreensão dos termos.

O que ele defende é que a teoria política, uma vez penetrando no terreno dos princípios,

“deve ser, ao mesmo tempo, uma teoria da história”1, ou seja, ele quer resgatar o estudo da

ciência política compreendendo os dois princípios, o da política e o da filosofia, de maneira

indissolúvel, assim como era quando da fundação da ciência por Platão.

Segundo o autor, há duas concepções possíveis, quando se fala em ciência política: uma

é a concepção estreita de ciência política, que a caracteriza como descrição das instituições

existentes e que faz uma apologia dos seus princípios, havendo neste caso, uma degradação da

ciência política a um mero instrumento de poder e a outra, uma concepção mais ampliada da

ciência política, que vai até os limites de sua grandeza, que vai tratar da ciência da existência

humana na sociedade, na história e na ciência dos princípios da ordem em geral. Para Voegelin,

aquele primeiro tipo de análise ocorre em momentos de maior estabilidade social, enquanto que

esta, tipicamente ocorre nas grandes épocas de natureza revolucionária, que é quando se dão os

maiores questionamentos da sociedade acerca dos problemas fundamentais de sua existência

política. Exemplos dessas grandes épocas podem ser a crise helênica, marcada pela fundação

da ciência política de Platão e Aristóteles, a crise de Roma e do Cristianismo, marcada pela

Cidade de Deus de Santo Agostinho e a primeira grande crise ocidental que foi marcada pela

filosofia de Hegel sobre a lei e a história.

Diz Voegelin que: “a restauração da ciência política deve ser entendida como uma volta

à consciência dos princípios, mas não necessariamente o retorno ao conteúdo específico de uma

tentativa anterior”2, que significa dizer que retomar os princípios não significa repetir as ações

concretas de um tempo passado; porque o curso da história é dinâmico e de uma época para

1 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 17. 2 Op. Cit. p. 18.

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outra, mudanças consideráveis são percebidas, o que não tornaria possível, por exemplo, hoje

em dia, querer conferir um retorno ao platonismo ou ao augustinismo ou ao hegelianismo. O

que compete ao teórico que hoje busca resgatar a ciência política de outrora é justamente

analisar os princípios que levaram tais pensadores, em momentos de crise e dificuldades com

relação à existência histórica de suas sociedades, a formular seus pensamentos e questionar suas

experiências de vida até então. Não é, portanto, no sentido estrito de ciência teórica que a ciência

política deve ter sua dignidade resgatada, mas sim os seus princípios é que “devem ser

retomados através de um trabalho de teorização que tenha origem na situação histórica concreta

do seu próprio tempo e leve em conta a amplitude global do conhecimento empírico desse

tempo”3. Em outras palavras, podemos dizer que “restaurar a ciência política é focar a análise

no que a sociedade possui de substancial, ou seja, nas experiências que geram a sociedade aberta

e nas experiências que a enclausuram”4.

Trazendo para sua época, o autor, de maneira muito prática, explica qual a necessidade

da restauração dos princípios da ciência política e o porquê de sua aplicação:

“A restauração dos princípios da ciência política implica que esse trabalho é

necessário porque a consciência dos princípios foi perdida. O movimento no rumo da

nova teorização deve ser compreendido, com efeito, como uma recuperação a partir

da destruição da ciência que caracterizou a época positivista, na segunda metade do

século XIX”5.

Tal destruição caracteriza-se por duas premissas fundamentais: a primeira pelo vigoroso

desenvolvimento que se deu às ciências naturais, quando acreditou-se que em tais ciências –

que foram chamadas “ciências matematizantes” – haveria algum tipo de virtude inerente, que

poderia fazê-la servir como método para qualquer outra ciência. E a segunda premissa, é que

se cristalizou um pensamento que defendia que esses métodos das ciências naturais constituíam

um critério para a pertinência teórica em geral, ou seja, todos os estudos da realidade, para que

fossem considerados científicos, deveriam seguir somente esses métodos. Chegou-se até ao

ponto de se defender que, em algo em que a aplicação desses métodos não fosse possível para

obter respostas, tais estudos não deveriam nem ter suas questões formuladas, pois num caráter

mais extremo, poderia até se considerar seus objetos como inexistentes. E aí está um ponto

fundamental na necessidade de retorno aos princípios, pois ao invés de estabelecer os métodos

3 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 18. 4 HENRIQUES, A Filosofia Civil de Eric Voegelin, p. 72. 5 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 18-19.

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teóricos de acordo com eles, passou-se a considerar primeiramente o método para depois

aplicar-lhe os princípios, caracterizando justamente a perda da consciência dos princípios da

qual o autor falou, subordinando a pertinência teórica ao método, gerando uma perversão no

significado da ciência.

Voegelin define a ciência como “a busca da verdade com respeito aos vários domínios

da existência”6.

“Objetos diferentes requerem métodos diferentes. (...) se não se medir a adequação de

um método pela sua utilidade com relação ao propósito da ciência; se, ao contrário, se

fizer do uso de um método o critério da ciência, então estará perdido o significado da

ciência como um relato verdadeiro da estrutura da realidade”7

É conclusivo, portanto, segundo Voegelin, que é o método que deve se adequar ao

princípio e não o contrário, pois senão a “perversão ocorrerá qualquer que seja o método

escolhido como modelo”8. Este resgate da consciência dos princípios pelo resgate da forma

correta de se fazer ciência é o que vai permitir ao autor tratar do problema que ele considera

central na ciência política: a representação. O próprio título da obra já é uma referência ao que

deseja o autor:

“O termo ciência denota a clássica epistêmê theoretik, aqui sugerida como “descrição

verdadeira da estrutura da realidade”. Nova indica a renovação do realismo noético9.

Política refere-se à concepção de sociedade como parte da comunidade de ser. (...)

Trata-se de uma filosofia que restabelece a ligação entre a erupção da verdade na

consciência e a representação como processo de articulação social”10

.

1.2 O MÉTODO CIENTÍFICO

A natureza da ciência política, segundo Voegelin, é a ciência do homem em sua

existência histórica. E o homem não espera que a ciência explique sua própria vida, por isso

6 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 19. 7 Op. Cit. p. 19. 8 Op. Cit. p. 20. 9 Segundo Henriques: trata-se de uma “filosofia da consciência profundamente inovadora, tanto em

relação à análise clássica da experiência noética de constituição da realidade, como, relativamente às deficiências

da análise moderna, centrada na experiência dos objetos do mundo exterior”. P. 113 e 114 de “A filosofia civil de

Eric Voegelin”. 10 HENRIQUES, A Filosofia Civil de Eric Voegelin, p.71.

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encarrega-se de autointerpretar a sua própria existência tanto de maneira exterior quanto

interior, pois é de dentro da própria sociedade que surgem diversos significados que

correspondem ao modo e à condição de sua autorrealização. A sociedade humana “é em seu

todo um pequeno mundo”11.

Considerando essa autointerpretação por meio dos próprios membros desse pequeno

mundo que é a sociedade, o autor, em sua investigação, utiliza-se do mesmo método que

Aristóteles utilizou, quando escreveu suas obras Ética e Política, ou seja, não considera a

ciência política como uma tábula rasa a ser escrita a partir do zero, mas sim, a faz partindo da

variedade de símbolos estabelecidos na realidade social justamente elaborados por essa

autointerpretação que a sociedade faz de si mesma, que como fez Aristóteles, partiu do que era

considerado comum entre os membros daquela sociedade.

“(...) toda sociedade humana compreende a si mesma através de uma variedade de

símbolos, (...) tal auto compreensão precede historicamente de alguns milênios o

surgimento da ciência política, do episteme politike, no sentido aristotélico. A ciência

política (...) começa a partir do rico conjunto de auto interpretações da sociedade e

prossegue através do esclarecimento crítico dos símbolos sociais preexistentes”.12

Tal esclarecimento crítico deve vir através de uma teoria bem formulada. Assim, indica-

se que não se deve partir de meras opiniões arbitrárias ou de princípios construídos, mas sim,

de dados recolhidos no próprio meio em que se vive: “este estatuto (...) obriga a que o intérprete

tenha de começar por acolher os símbolos sem nada acrescentar de pessoal”13.

A identificação do tipo de símbolo deve ser feita muito cuidadosamente, senão pode

colocar em risco toda a apuração teórica, uma vez que a simbologia da linguagem da ciência

política não é a mesma da simbologia da linguagem, mas aquela possui novos símbolos que se

desenvolvem a partir desta, para que seja possível a explicação crítica adequada dos símbolos

que fazem parte da realidade. Um exemplo dado pelo autor é o seguinte: “se, por exemplo, o

teórico descrever a ideia marxista do reino da liberdade, a ser estabelecida pela revolução

comunista, como a hipóstase imanentista de um símbolo escatológico cristão, o “reino da

liberdade” é parte da realidade”14, com isso, ele quer dizer que o símbolo de linguagem “reino

da liberdade” está adequado à realidade, mas a sua explicação teórica e, portanto, o uso dos

11 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 33. 12 Op. Cit. p. 33. 13 HENRIQUES, A filosofia civil de Eric Voegelin, p. 144. 14 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 34.

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termos “hipóstase”, “imanentista” e “escatológico” se dá por outro tipo de símbolo, que são os

símbolos da linguagem da ciência política. Um tipo de simbologia, o da linguagem, diz respeito

ao real, enquanto que o outro tipo, o da linguagem da ciência política, diz respeito à teoria da

ciência política, que procura explicar de maneira crítica os símbolos da linguagem que dizem

respeito ao real. E a compreensão de tal diferença simbólica é necessária para evitar confusões,

como as que aconteceram na ciência política moderna, que levou-a a corroer-se profundamente.

“Esta complicada situação é uma inevitável fonte de confusões, entre as quais a ilusão

de que os símbolos usados na realidade política são conceitos teóricos (...) Os

conceitos teóricos e os símbolos que formam parte da realidade devem ser

cuidadosamente distinguidos; na transição da realidade à teoria”15

.

Sendo, portanto, a tarefa de Voegelin encontrar uma ordem da história que fosse

inteligível teoreticamente a partir de uma organização de suas evidências, ele a faz “através do

prisma da representação considerada como um simbolismo complexo”16.

1.3 REPRESENTAÇÃO

Em seu sentido mais elementar, pode-se considerar o aspecto exterior deste pequeno

mundo que é a sociedade política. Tal aspecto é constituído de uma existência tangível dos

significados interiores “em seres humanos dotados de corpos e que participam fisicamente da

exterioridade orgânica e inorgânica do mundo”17 assinalando a parte exterior da existência da

sociedade política como parte de sua estrutura ontológica. Para a mente moderna convencional

“a representação significa primariamente representação institucional de acordo com uma

constituição, ou com o que poderia ser chamado representação política”18, o que se trata de um

engano segundo Voegelin, que considera tal sentido como elementar e não primário, pois,

considerando de tal maneira a representação, não se chega ao âmago de sua significação. Este

sentido, considerado pelo autor como elementar, é insuficiente para a investigação do sentido

da representação enquanto existência, pois sua relação direta apenas com a realidade externa da

sociedade não interfere em sua autointerpretação interna.

15 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 34-35. 16 SANDOZ. A Revolução Voegeliana. Uma introdução biográfica, p. 147. 17 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 35. 18 FEDERICI, Eric Voegelin, A Restauração da Ordem, p. 86.

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A representação enquanto existência está ligada à maneira com que uma sociedade passa

a atuar na história e não somente com a mera descrição de suas instituições representativas. É

a presença na história que caracteriza a existência de uma sociedade política. E sobre a maneira

de atuação destas, examina-se que “devem ter uma estrutura interna que possibilite alguns dos

seus membros – o governante, o príncipe, (...) de acordo com a terminologia da época – obter

obediência natural às suas ordens e essas ordens devem servir as necessidades existenciais da

sociedade”19. Mas essa atuação não se dá de maneira estática; as sociedades são crescentes e

dinâmicas e no decorrer do curso histórico, seres humanos vão se incorporando às sociedades

através de um fenômeno que o autor chama de “articulação política”, cujo movimento é o que

possibilita haver seres humanos que atuem em nome dessas sociedades. É a articulação política

que faz com que uma norma emitida por um governante adquira um caráter geral, no sentido

de uma obrigação; e somente quando isto acontece, é que se percebe que uma pessoa é

representante de uma sociedade, quando seus atos são vistos desta maneira.

“A articulação é, pois, a condição da representação. Para chegar a existir, a sociedade

deve articular-se. A fim de produzir um representante que aja por ela. (...) Por trás do

símbolo “articulação” esconde-se nada menos que o processo histórico através do qual

as sociedades políticas, as nações e os impérios ascendem e caem, assim como as

evoluções e revoluções que ocorrem entre os dois pontos extremos”20

A conclusão a que o autor chega é que “a sociedade política começa a existir quando se

articula e produz um representante”21. Tomando o sentido de “representação” apenas no caráter

existencial e desconsiderando a sua forma elementar, é possível identificar que o problema da

articulação social é o principal problema existencial, pois se trata da origem da existência de

uma sociedade política, da qual a condição de existência de uma chamada sociedade

representativa se desenvolve pela “articulação do indivíduo como unidade representável”22.

“Não apenas procedimentos, mas a substância de representação está em debate. A

matéria da substância levanta a questão existencial de simplesmente o que está sendo

representado? O povo? A revolução permanente do proletariado? Tais respostas

breves apontam para o fato de que as sociedades organizadas para ação como unidades

19 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 39. Por “necessidades existenciais” para facilitar o

entendimento, pode se considerar a segurança e a aplicação da justiça, por exemplo. 20 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 41. 21 Op. Cit. p. 46. 22 Op. Cit. p. 46.

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de poder não existem como fenômenos fixos da natureza, mas emergem na história

mediante um processo complexo de articulação política e social, sendo o resultado

rudimentar disso a constituição do poder governante da sociedade”23

.

É perceptível que se note o impacto que isto tem na vida prática de uma sociedade e

quanto o caráter existencial da representação pode afetar o dia a dia desta e de um governo. A

este respeito, um dos comentadores da obra voegeliana faz um escólio muito pertinente:

“O problema da sobrevivência física está ligado ao problema da representação

existencial. Se os governantes políticos e os representantes desprezam o problema da

representação existencial, cria-se um vácuo de significado, que dá oportunidade aos

líderes que estão preparados para dar tal representação. Em outras palavras, dirigir a

atenção da sociedade exclusivamente para o próprio interesse e para as preocupações

pragmáticas de sobrevivência não elimina o problema da representação existencial.

Ao contrário, torna mais provável que indivíduos de mentes intemperantes se

transformem nos representantes existenciais”24

.

Isto explica também o que Voegelin quer dizer sobre dois erros que não são raros de

acontecer; que é quando se vincula o símbolo “representação” a um “tipo especial de

articulação”25 e quando o representante não cumpre sua tarefa existencial e, portanto, não pode

ser salvo pela legalidade constitucional de sua posição. Por isso que não é possível considerar

o funcionamento das instituições representativas, se não houver condições existenciais

necessárias ao seu funcionamento, pois não havendo tais condições, essas, de nada adiantam.

A consequência disso é uma sociedade levada a um obscurecimento da realidade, podendo

chegar até a desintegrar-se.

“As estranhas políticas das potências democráticas ocidentais (...) são, antes,

sintomáticas de uma resistência geral a encarar a realidade, fortemente enraizada nos

sentimentos e opiniões das grandes massas das nossas sociedades ocidentais

contemporâneas. É apenas porque elas constituem sintomas de um fenômeno de

massas que se justifica falar de uma crise da civilização ocidental”26

.

23 SANDOZ, A Revolução Voegeliana. Uma introdução biográfica, p. 155 – 156. 24 FEDERICI, Eric Voegelin, A Restauração da Ordem, p. 87. 25 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 46. 26 Op. Cit. p. 46-47.

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Este problema que as sociedades têm de dificuldade de confrontação com a realidade

está presente também no problema da representação e por isso, esta é considerada por Voegelin

em seu caráter de verdade, simbólica e teórica, além do caráter existencial.

As sociedades, enquanto cosmion, ou, pequenos mundos, em sua personalidade

autointerpretativa, se autointerpretam também como sendo representantes de uma verdade que

transcende sua realidade exterior. Isto se nota muito claramente nos chamados impérios

cosmológicos. Tais impérios defendiam sua soberania terrena fundados numa crença ao

transcendente, ao divino, que avalizava, digamos assim, sua atuação histórica, pois tudo faziam

em nome de um superior universal. Isto gerava um caráter de autoridade praticamente

impossível de ser questionado até o surgimento das verdades teóricas. Estas se mostram capazes

de desafiar aquelas verdades, inicialmente pelo simples fato de enunciar questionamentos

acerca dessa representação cósmica por parte de um império, que, até certo ponto, eram como

ditas, inquestionáveis. E, segundo Voegelin, isto soa até como uma descoberta.

Ele chama atenção a um fato histórico interessante: o momento em que essa descoberta

acontece; pois trata-se de um ponto da história em que há uma irrupção de teorias

“questionantes” das verdades imperiais de maneira simultânea em várias partes do mundo: na

China, com Confúcio e Lao-Tsé, na Índia na idade de Buda, na Pérsia, ao zoroastrismo, em

Israel, aos profetas, na Grécia, aos filósofos e à tragédia. Porém, é no que resultou essa irrupção

ao ocidente que Voegelin quer destacar, pois este movimento “culminou no estabelecimento da

filosofia, no sentido grego do conceito, e da teoria política em particular”27.

É o princípio antropológico platônico que acrescenta um novo elemento na questão

representativa da sociedade, que antes cria somente numa representação cósmica e passa a

considerar que a representação política deve ser também uma representação em escala ampliada

do próprio homem – em todos os seus aspectos – que a compõe; portanto, além de considerada

como um cosmion ordenado, a sociedade trata-se também de um macroanthropos. Esse

princípio passa a ser o centro dinâmico da nova teoria.

“Uma teoria não é apenas a emissão de uma opinião qualquer a respeito da existência

humana em sociedade; é uma tentativa de formular o sentido da existência, explicando

o conteúdo de um gênero definido de experiências. Os argumentos usados não são

arbitrários, e sim derivam de sua validade do conjunto de experiências ao qual a teoria

deve permanentemente referir-se para possibilitar o controle empírico”28

.

27 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 54. 28 Op. Cit. p. 56.

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E o princípio antropológico platônico atribui ao homem um sentido de representante da

verdade divina que antes era atribuído apenas ao império como um todo. Mas não a qualquer

homem, mas ao filósofo, aquele que tem sua alma orientada para o amor ao saber, e assim,

possui a alma bem-ordenada. O que em Aristóteles se concebe como o que viria a ser

considerado o homem teórico, sendo aquele que foi capaz de “desenvolver em grau máximo as

potencialidades da natureza humana, que formou seu caráter na realização das virtudes

intelectuais e éticas”29 e que, portanto, saberia ativar as experiências correspondentes à sua

teoria, sendo capaz de opor sua autoridade à autoridade da sociedade.

A descoberta da nova verdade diz respeito à descoberta da psique como “o novo centro

do homem (...) que se percebe aberto à realidade transcendental”30.

“Ao concentrar-se nos filósofos, Voegelin mostra como a ascensão da filosofia

clássica por causa da experiência noética de pensadores helênicos criou uma nova

interpretação de realidade em termos de alma bem-ordenada. (...) Por esta

interpretação, a verdadeira ordem da sociedade depende da verdadeira ordem do

homem, a verdadeira ordem do homem, depende da constituição da alma, sua ordem

e desordem, vêm à luz através das experiências simbolizadas no curso de uma busca

amorosa sensível do homem pela realidade pela Sabedoria divina”31

.

A medida no princípio platônico passa a ser Deus e não mais o homem, pois o homem

está submetido à sabedoria divina e por isso da autoridade de sua verdade diante da sociedade.

1.4 O CONFLITO DE VERDADES: A INFLUÊNCIA DO CRISTIANISMO COMO

DIFERENCIAÇÃO MÁXIMA

O conceito de representação existencial teve que ser suplantado pelo conceito de

representação transcendental. O desenvolvimento da teoria como uma verdade do homem em

oposição à verdade representada pela sociedade surgiu como uma dificuldade, e o surgimento

do Cristianismo ampliou ainda mais esse campo de verdades conflitantes, porque, além da

verdade chamada “cosmológica”, que se tratava da verdade que os antigos impérios

representavam, da verdade “antropológica” que compreendia toda a dimensão da psique como

29 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 56. 30 Op. Cit. p. 58. 31 SANDOZ, A Revolução Voegeliana. Uma introdução biográfica, p. 160.

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o centro da transcendência, o Cristianismo fez surgir um tipo de verdade que se chamou

“soteriológica”, que compreende a questão do fim último do homem, emergida justamente da

ampliação do complexo de experiências platônico-aristotélicas, quando do pensamento

platônico da alma estar direcionada ao transcendente, buscando a sabedoria divina e da

concepção aristotélica da philia politike32, do “acordo espiritual entre os homens” que “só pode

concretizar-se se esses homens viverem em harmonia com o nous, ou seja, a parte mais divina

que existe neles próprios”33.

O Cristianismo tem como algo que o diferencia algo que não se encaixa nesse tipo de

experiência, que é a “inclinação de Deus em sua Graça na direção da alma”34, porque na dita

experiência platônica, há sempre uma busca que não cabe ser retribuída e, em Aristóteles, a

philia entre os homens e Deus é impossível, porque tal amizade só é viável entre iguais.

Portanto:

“A experiência da mutualidade na relação com Deus, da amicitia no sentido tomista,

da graça que impõe uma forma sobrenatural à natureza do homem, constitui a

diferença específica da verdade cristã. (...) A autoridade crítica sobre a antiga verdade

da sociedade que a alma obtivera através da sua abertura e da sua orientação rumo à

medida invisível foi assim confirmada pela revelação da própria medida”.35

A esta maneira de tratar a experiência dos filósofos, esconde-se a premissa que diz que

“a substância da história consiste nas experiências pelas quais o homem alcança a compreensão

de sua humanidade e, simultaneamente, de seus limites”36 que vai fundamentar as teorias acerca

da existência humana em sociedade, pois esta, segundo Voegelin, deve ter por base “o campo

das experiências que passaram por um processo de diferenciação”37, e a diferenciação máxima

foi alcançada com a filosofia grega e o Cristianismo, que dotaram o homem “com uma estatura

que o capacita a desempenhar com eficácia histórica o papel de contemplador racional e senhor

pragmático de uma natureza que perdeu seus terrores demoníacos”38, colocando limites à

grandeza humana, ao concentrar o demonismo exatamente na autossuficiência do homem que

se considera independente da Graça de Deus.

32 Amizade política 33 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 65-66. 34 Op. Cit. p. 66. 35 Op. Cit. p. 66. 36 Op. Cit. p. 66. 37 Op. Cit. p. 67. 38 Op. Cit. p. 66.

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“Essas formulações centrais oferecem o fundamento de tudo o que se segue na ciência

política de Voegelin. (...) No presente contexto, a substância revolucionária do

cristianismo consistia em “sua categórica e radical desdivinização do mundo”. Isso

não apenas significou o fim do paganismo, significou que o destino espiritual do

homem já não podia de maneira nenhuma ser representado na terra pela esfera de

poder da sociedade política (como fora na polis paradigmática dos filósofos) mas

podia apenas ser representada pela Igreja”.39

39 SANDOZ, A Revolução Voegeliana. Uma introdução biográfica, p. 162 – 163.

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CAPÍTULO 2: A CRÍTICA AO GNOSTICISMO

2.1 DESDIVINIZAÇÃO E REDIVINIZAÇÃO DA SOCIEDADE

A desdivinização da esfera temporal do poder foi a consequência fatal da vitória do

Cristianismo no conflito de verdades que se desenvolveu de forma aguda no Império Romano.

Por “desdivinização” entende-se a derrocada de uma crença politeísta, que entendia ser seu

poder temporal uma representação direta dos deuses e, por isso, a sociedade era divina, pois

quem detinha o poder sobre ela, era divino. Tal crença foi superada pela verdade soteriológica

cristã, “mediante a experiência do destino do homem, pela Graça de Deus que transcende o

mundo, rumo à vida eterna numa visão beatífica”40.

A partir da observação que faz das características dos movimentos políticos modernos,

o autor acredita que os problemas modernos da representação teriam algo a ver com uma

pretensa “redivinização” do homem e da sociedade, não no sentido de se buscar o resgate de

crenças de uma cultura politeísta de outrora, mas sim, de uma redivinização com raízes no

próprio cristianismo. E por isso, considerar como pagãos os movimentos políticos atuais, é

bastante comum, porém incorreto, porque as bases desses movimentos se dão por elementos do

cristianismo que foram abolidos pela Igreja como heréticos.

“A caracterização dos movimentos políticos de nossos dias como pagãos, a qual goza

de certa popularidade, é enganosa, pois sacrifica a natureza historicamente singular

dos movimentos modernos em favor de uma semelhança superficial. A redivinização

moderna, ao contrário, tem suas raízes no próprio Cristianismo”.41

Este fundamento cristão que a redivinização moderna da sociedade possui, segundo o

autor, passa pelo fato de, na modernidade, utilizarem-se de símbolos cristãos para atribuir uma

nova noção de divindade temporal. E isto porque, dentro do próprio cristianismo, em seu início,

surgiu uma tensão partindo da experiência das primeiras comunidades que oscilavam entre a

expectativa escatológica da Parusia – da qual acreditava-se que se traria o Reino de Deus – e a

compreensão da Igreja como apocalipse de Cristo na história42.

40 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 85. 41 Op. Cit. p. 85. 42 Op. Cit. p. 85

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“Foi o Cristianismo que introduziu a crença de que a história humana é um processo

teleológico. A palavra grega telos significa “fim”, que significa tanto conclusão de um

processo quanto a meta ou objetivo a que esse processo pode servir. Ao pensar a

história em termos teleológicos, os cristãos acreditavam que ela tinha um fim em

ambos os sentidos: a história tinha um objetivo predeterminado, e quando ele fosse

alcançado, ela chegaria ao fim”.43

A Parusia de fato, não aconteceu, o que fez gerar um desenvolvimento de crença muito

mais direcionado à segunda opção, a uma escatologia da perfeição para além da história, ou,

trans-histórica e sobrenatural. Esta informação é muito importante para a compreensão dos

desdobramentos pelos quais passou a sociedade ocidental em sua formação e naturalmente para

os problemas que viria a ter por conta de tais incrementações, inclusive a própria crise de ordem

da qual a obra de Voegelin, num geral, procura uma restauração, pois questões como essas

dizem respeito exatamente à consciência existencial de uma sociedade que, na sua busca por

compreender-se, é capaz até de não aceitar sua própria realidade e buscar adaptações e

definições em situações que tal empreendimento não lhes cabe.

“As questões tocam um problema crucial inerente à análise da consciência existencial,

a tentação inerente que é o fardo de todo inquiridor, a tentação de deformar o Além e

sua Parusia formativa (...) mediante a transformação do Além numa coisa e sua

Parusia na imposição de uma forma definida à realidade”.44

A redivinização do homem e da sociedade não deixa de ser essa tentativa de deformar

o Além, transformando-o em outra coisa, mais manifesta talvez, de maneira a alcançar uma

maior satisfação ao que diz respeito à sua curiosidade e às suas incertezas acerca de sua

existência, desembocando nos problemas referentes à questão da representação.

CIDADE DE DEUS E A REJEIÇÃO DA CRENÇA LITERAL NO MILÊNIO

Mas, apesar de prevalecer o desenvolvimento da escatologia da perfeição para além da

história, muitos cristãos não deixavam de acreditar numa iminente “vinda do reino”, pois o

sofrimento causado pelas perseguições aos primeiros cristãos alimentava nestes uma fé de que

aquela situação teria fim justamente com essa vinda concreta e recompensadora. Isso se

43 GRAY, Missa Negra, p.16. 44 VOEGELIN, Ordem e História Vol. V: Em Busca da Ordem, p. 55

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potencializou, quando da inclusão – e interpretação – do livro do Apocalipse de São João às

Escrituras Sagradas, mais especificamente o capítulo vinte, que poderia ser entendido como “o

anúncio revolucionário do milênio em que Cristo reinaria com seus santos nesta terra”45 somada

a uma vasta literatura apocalíptica judaica, concebendo uma tentativa de conciliação entre o

milênio e a ideia de Igreja.

“Os milenaristas cristãos acreditam que Jesus voltará à Terra e nela estará à frente de

um novo reino por mil anos – os milenaristas abraçam uma visão apocalíptica da

história. Na linguagem comum, “apocalíptico” denota um acontecimento catastrófico,

mas em termos bíblicos a expressão deriva da palavra grega que designa

desvendamento – um apocalipse é uma revelação na qual mistérios escritos no céu são

revelados no fim dos tempos, e para os Eleitos isto não significa catástrofe, mas

salvação”.46

Ocorre que, se a ideia de Igreja fosse conciliada com o milênio, esta não passaria de

uma “comunidade efêmera de homens à espera do grande acontecimento”47, ou seja, nada

haveria de revelador e muito menos de salvífico em sua constituição, pois “passaria” pela

história temporal apenas como uma associação de pessoas que esperavam por algo.

Neste contexto, predominante de toda uma época onde não havia uma doutrina cristã

plenamente estabelecida, Santo Agostinho, provido de bastante coragem, busca empreender

uma solução teórica acerca da crença no milênio. Na Cidade de Deus, obra que viria a ser uma

de suas principais, o Hiponense “propôs que o fim dos tempos fosse entendido em termos

espirituais”48 e “rejeitou incisivamente a crença literal no milênio como ‘fábulas ridículas’,

declarando que o reino dos mil anos era o reinado de Cristo em sua Igreja na época presente,

que duraria até o juízo final e o advento do reino eterno no além”49, elaborando, portanto, um

conceito de Igreja que permaneceria válido até o fim da Idade Média50.

“Ao desliteralizar a esperança no Fim, Agostinho preservava a escatologia ao mesmo

tempo que reduzia seus riscos. O reino de Deus existia numa esfera fora do tempo, e

45 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 86. 46 GRAY, Missa Negra, p. 15. 47 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 86. 48 GRAY, Missa Negra, p. 21. 49 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 86. 50 Op. Cit. p. 86.

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a transformação interior por ele simbolizada podia efetivar-se em qualquer ponto da

história”.51

A Cidade de Deus é uma obra que foi escrita num momento em que Agostinho – como

ele mesmo diz – era tomado de zelo pela casa do Senhor, quando da queda do Império e do

saque de Roma pelos pagãos, que atribuíam aos cristãos o fim de sua religião. Com isso, ele

procurava dar respostas aos cristãos que estavam desolados e incapazes de compreender aquilo

que estava acontecendo, ao mesmo tempo que se confrontava com os pagãos cheios de ódio ao

Cristianismo.

“Por mil voltas e rodeios, Agostinho prossegue na realização de sua obra, de que não

é inexato dizer-se que é uma apologética, mas que o empenha em mais de uma

discussão em que a filosofia como tal é julgada segundo um ponto de vista cristão.

Tal é, precisamente, o caso da noção de cidade. Não a discute nem como filósofo

indiferente ao cristianismo, nem como cristão indiferente à filosofia, mas como cristão

que julga a filosofia e, se é preciso, lhe reforma as noções à luz da fé”.52

Santo Agostinho foi um dos grandes contribuidores para a elaboração da doutrina cristã.

Ele não desconsiderava totalmente o que criam os pagãos, mas buscava extrair o que de valores

autênticos havia em suas crenças, aquilo que de fato se revelava como sendo parte da Verdade,

reformando, quando necessário, suas noções à luz da fé. A cultura clássica é muito presente na

obra agostiniana; este a critica, mas também a valoriza, aprecia-a e louva-a. A aceitação e a

conservação das leis, das instituições e a cultura dos povos a que se dirige sua obra é um

princípio fundamental da Cidade de Deus, que possui apenas como exceção, o não impedimento

do culto ao verdadeiro Deus. Sua obra se dota de uma originalidade cristã amparada na

indiscutível autoridade da Escritura, na firmeza da fé e na confiança na razão.

O CONCEITO AGOSTINIANO DE IGREJA

A rejeição à crença literal no milênio para Agostinho está relacionada diretamente com

o conceito de Igreja que ele estabelece, abandonando e considerando “ridícula” a esperança

revolucionária de “uma Segunda Vinda, que transfiguraria a estrutura da história na terra”53.

51 GRAY, Missa Negra, p. 22. 52 GILSON, A Metamorfose da Cidade de Deus, p. 43. 53 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 86

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“O Verbo se tornara matéria em Cristo; a graça da redenção fora concedida ao homem;

não haveria qualquer divinização da sociedade além da presença espiritual de Cristo

em Sua Igreja. O milenismo judaico foi excluído juntamente com o politeísmo, assim

como o monoteísmo judaico fora excluído lado a lado com o monoteísmo metafísico

pagão”.54

Há, portanto, uma ruptura do cristianismo com o judaísmo e suas concepções milenistas

na mesma proporção em que se rompia com a tradição pagã. A divinização da sociedade da

qual o autor fala seria somente aquilo a que se refere aos membros da Igreja de Cristo unidos

espiritualmente, que “deixava a Igreja como a organização espiritual universal dos santos e

pecadores que professavam a fé em Cristo”55, que representava a eternidade da Cidade de Deus

na história, enquanto que, paralelamente, “fazia da organização de poder da sociedade uma

representação temporal do homem, no sentido específico de uma representação daquela parte

da natureza humana que desaparecerá com a transfiguração do tempo em eternidade”56.

Há uma sociedade cristã, unificada, que se articula nas ordens espiritual e temporal:

“Não existe e não pode existir senão uma única cidade digna deste nome (sociedade),

aquela que observa a verdadeira justiça, em suma, cujo chefe é Cristo. Deve haver ao

menos uma segunda, que é constituída por todos os homens que não têm Cristo por

chefe; mas esta não é senão resíduo da primeira, e não é senão por sua causa que

existe. (...) Toda sociedade digna deste nome ou é a Cidade de Deus ou se define por

sua relação a ela”.57

O nexo social entre as duas cidades, que pretende o santo, além de fundamentar-se no

conceito de justiça, vale-se também inicialmente do conceito de “povo” de Cícero, que dizia

que “um povo (...) é uma multidão reunida pelo reconhecimento do direito e pela comunidade

de interesses”58, definição não separada do conceito de justiça, pois o que se submete ao direito

submete-se também à justiça – ou pelo menos deveria submeter-se, pois “onde não há jus, como

haveria justitia?59.

54 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 86 55 Op. Cit. p. 86 56 Op. Cit. p. 86 57 GILSON, A Metamorfose da Cidade de Deus, p. 46 58 Op. Cit. p. 47 59 Op. Cit. p. 47

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“Após ter mais uma vez recordado que, se a definição ciceroniana é verdadeira, não

poderia haver povo onde não houvesse justiça, Agostinho propõe então esta definição

bem diferente: ‘Um povo e um grupo de seres racionais, unidos entre si pelo fato de

amarem as mesmas coisas’. Não é difícil ver em que sociedade pensa em primeiro

lugar Agostinho, quando procura definir todas. Se se trata de saber que associação de

seres racionais se fundou, antes de tudo, sobre o amor comum da mesma coisa, em

que outra se pensaria senão na ecclesia de Cristo? Seguramente, a Igreja foi

estabelecida sobre a autoridade divina que legitima seu magistério, mas a fé sobre a

qual é fundada não separa um só instante da caridade que lhe serve de liame”.60

Deste modo pensa-se a Igreja, esse povo, de acordo com a definição de Agostinho, a

ruptura com o judaísmo e a desconsideração total do paganismo, pois é a caridade comum que

deve unir o povo como que formando uma nova família dos filhos adotivos do Pai em Jesus

Cristo, onde se dizia “aí não haverá mais grego nem judeu, nem bárbaro nem cita, nem escravo

nem livre, mas somente Cristo, que será tudo em todos”61. O santo transformou a era pós-

Ressurreição em um período de espera.

E foi com este conceito de Igreja que a sociedade cristã ocidental se desenvolveu por

séculos, com uma visão amplamente aceita por parte dos cristãos, tamanhas foram a influência

e aceitação de santo Agostinho e sua Cidade de Deus. Essa sociedade se articulou em ordens

temporais e espirituais, possuindo o Papa e o Imperador “como representantes supremos tanto

no sentido existencial quanto transcendental”62; pois se o Papa está à frente da Igreja e esta é a

representante do destino espiritual do homem, é, portanto, o representante da verdade

transcendente. E o Imperador, estando à frente do Império Romano, e este fazendo-se paralelo

à Igreja como representação da temporalidade humana, fazia-se representante de toda uma era

de homens temporais, pois vivia-se numa concepção de que o fim de Roma seria o fim do

mundo – no sentido escatológico – concepção que perdurou durante séculos na base das ideias,

mas que acabou se perdendo em seus sentimentos e instituições.

JOAQUIM DE FIORE

Este conceito agostiniano de Igreja permaneceu válido até o fim da Idade Média63

originando e consagrando até então, todo um complexo sistema de símbolos que se consolidou

60 GILSON, A Metamorfose da Cidade de Deus, p. 48-49. 61 Cl 3, 11. 62 VOEGELIN, a Nova Ciência da Política, p. 87. 63 Op. Cit. p. 86.

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na história como símbolos genuinamente cristãos. E, a partir dessa sociedade repleta de tal

simbologia, é que os problemas especificamente modernos da representação aparecem, dado

pela revivescência da escatologia do reino, que havia sido, digamos, findada com a doutrina

estabelecida por Santo Agostinho na Cidade de Deus.

A redivinização da sociedade não começa na modernidade, mas muito antes. Nela, a

redivinização pode ser considerada como uma especificidade. Esse desejo de redivinização

anterior à modernidade, portanto, faz surgir um novo tipo de simbolismo, próprio e

característico dos adeptos de tal pensamento que tem como base símbolos cristãos. O que se vê

é que toda uma simbologia construída por cristãos ao longo dos séculos foi arbitrariamente

tomada para servir de fundamento para uma escatologia imanentista que é contrária ao que

prega o cristianismo. E apenas relembramos, que é por isso que a redivinização da sociedade

não deve ser considerada como uma volta ao paganismo, pois a simbologia utilizada é a

simbologia cristã que se estabeleceu ao longo da história.

O primeiro expoente assumidamente favorável à tese de uma escatologia imanentista é

Joaquim de Fiore, que surge no século XII, apresentando e defendendo uma obra literária em

que constrói toda uma argumentação acerca dessa visão escatológica da história amparada pela

simbologia cristã.

“No século XII, Joaquim de Fiore (1132-1202) inverteu a teologia agostiniana.

Julgando-se conhecedor de um significado esotérico das escrituras, Joaquim – um

abade cisterciense que viajara à Terra Santa, onde teve uma espécie de revelação

espiritual – transformou a doutrina cristã da Trindade numa filosofia da história em

que a humanidade ascendia através de três estágios. Partindo da Era do Pai e passando

pela Era do Filho, ela chegaria à Era do Espírito – uma época de fraternidade universal

que prosseguiria até o Juízo Final. ”64

Ele “criou uma construção especulativa da história que se tornaria paradigmática entre

os ideólogos modernos”65, e o fato de se tratar de um monge, religioso e que exercia sua missão

como abade de um mosteiro beneditino aumentava a credibilidade de Joaquim. Essa inversão

da teologia agostiniana vai desencadear toda uma nova interpretação da história e da escatologia

final em grande parte daqueles menos convencidos pela teologia cristã dominante, que não

aceitavam “o derrotismo agostiniano com relação à esfera mundana da existência”66. Ao aplicar

64 GRAY, Missa Negra, p. 22. 65 MCALLISTER, Revolta Contra a Modernidade, p. 180. 66 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 92.

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o símbolo da Trindade no curso da história, Joaquim de Fiore rompe com a sociedade cristã,

pois utiliza-se de um dos principais símbolos do cristianismo, que remete todo à transcendência

e ao mistério de Deus, empregando-o como uma alternativa para o curso imanente da história,

onde tudo não passaria de uma elevação espiritual destinada a alguns escolhidos, que ao passar

pelo curso das três Eras, alcançariam a perfeição divina e inteligível de seus espíritos.

“Joaquim inspirou movimentos milenaristas no sul da Europa. Na Alemanha,

contribuiu para o surgimento de um culto messiânico em torno do imperador

Frederico II, que, depois de conquistar a cidade numa cruzada, coroou-se rei de

Jerusalém e foi denunciado pelo papa Gregório IX como o Anticristo.

A divisão da história humana em três eras teve um profundo impacto no pensamento

secular. ”67

Quando se fala em movimentos milenaristas, se refere aos movimentos que acreditavam

em ciclos históricos de mil anos, como o que defende o próprio Joaquim. Este impacto ainda

pode ser notado até os dias de hoje, e falaremos mais sobre isso no próximo capítulo deste

trabalho.

A IMANENTIZAÇÃO E O EIDOS DA HISTÓRIA, O GNOSTICISMO COMO

NATUREZA DA MODERNIDADE

O empreendimento de Joaquim de Fiore fez germinar uma ideia de realização humana

imanente de modo bastante radical, que foi se desenvolvendo com o passar do tempo. O que

Joaquim defendia não era uma imanência total, mas que uma nova era “traria maior realização

dentro da história, mas isso não seria devido a uma erupção imanente, e sim viria através de

uma nova irrupção do espírito”68. Comparando a tese joaquimista com o que dizia a doutrina

agostiniana, percebe-se que, enquanto Agostinho fazia uma explícita distinção entre as

ascensões e quedas dos impérios na história profana, que levou à vinda de Cristo e

estabelecimento de Sua Igreja e a incorporação da história sagrada a uma história

transcendental, Joaquim acaba por prover o curso imanente da história de algo que não havia

na doutrina do santo, utilizando-se da simbologia que se tinha à disposição e especulando sobre

um pretenso significado da história, suscitando um problema teórico acerca de uma possível

67 GRAY, Missa Negra, p. 22. 68 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 92.

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consideração de um eidos da história, aventado somente a partir de uma tentativa de imanentizar

a realização transcendental cristã:

“Contudo, tal hipótese imanentista do eschaton é uma falácia teórica. As coisas não

são coisas, nem possuem essência, em virtude de uma declaração arbitrária. O curso

da história como um todo não é objeto da experiência; a história não possui um eidos,

e isso porque seu curso se estende ao futuro desconhecido. Assim, o significado da

história é uma ilusão; e esse eidos ilusório é criado ao se tratar um símbolo de fé como

se fosse uma proposição relativa a um objeto da experiência imanente. ”69

A falácia, portanto, se caracteriza ao tentar atribuir uma essência a algo que não pode

possuir uma. A história é um movimento de fatos, acontecimentos, sem os quais não haveria

como ser contada. O seu futuro desconhecido e determinado por tantos fatores não permite que

se a conheça por ela mesma. E não é a aplicação de uma simbologia já estabelecida a partir de

outros significados que será capaz de dar sentido a algo que não o tem. Essa tentativa de se

obter um eidos da história é que vai capitanear a imanentização do destino sobrenatural do

homem para o cristianismo.

Entra-se aqui no ponto principal da obra do autor, a questão do gnosticismo como

natureza da modernidade, pois todas as teses imanentistas formuladas por quem quer que seja,

derivará de algum fundamento gnóstico. A análise se sujeitará ao nível dos princípios, pois

sugere a questão a respeito do tipo de homem que se deixa enganar por esse tipo de problema,

o qual, quando analisado, não se sustenta como verdade e assume-se como uma falácia. Essa

questão a respeito dos que aceitam tal construção argumentativa caracteriza a modernidade – e

por que não também a contemporaneidade? – acerca do que diz Voegelin, ao referir-se que “no

estado moderno de alienação, o empreendimento da autossalvação domina a preocupação com

história e significado”70, presumindo-se que durante sete séculos de história intelectual, não se

tratou apenas de desonestidade ou ignorância, mas que “alguma força agia na alma desses

homens, impedindo-os de ver a falácia”71.

Muito mais do que analisar profundamente a falácia, cabe uma verificação a respeito do

que tais pensadores durante tantos séculos obtiveram com a construção falaciosa de uma

imanentização. Cabe percebermos as consequências do imanentismo cristão enquanto

“princípio construído”.

69 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 92. 70 VOEGELIN, Ordem e História Vol. IV: A Era Ecumênica, p. 327. 71 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 93.

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O que é de extrema relevância é que estes pensadores, apesar de construírem

arbitrariamente seus princípios, conseguiram o que queriam: atribuir um significado para a

história e, com isso, obter a certeza do lugar que ocupam nela. Algo que pode ser dito com

bastante segurança é que sempre houve – e provavelmente sempre haverá – uma necessidade

de certezas por parte dos homens, pois são elas as responsáveis por vencer as ansiedades

humanas. Diante disso, a questão que Voegelin coloca é a seguinte: “que incerteza específica

era tão perturbadora que se fazia mister superá-la mediante o recurso duvidoso à imanentização

falaciosa? ”72. A pergunta é importante porque busca compreender qual é o ponto fundamental

que desencadeava uma tentativa tão incessante de se obter alguma resposta que fosse, de certa

forma, definitiva com relação aos anseios do saber humano acerca de sua existência e de seu

fim. E considerando que a cultura ocidental da época era marcadamente cristã e se desenvolveu

baseando-se nos fundamentos dessa doutrina, através de uma observação cuidadosa, percebe-

se algo muito interessante que o autor traz para a discussão: que “a incerteza é a própria essência

do Cristianismo”73.

“A sensação de segurança num “mundo repleto de deuses” desaparece com os

próprios deuses; quando o mundo é desdivinizado, as comunicações com os deuses

que transcendem o mundo ficam reduzidas ao tênue vínculo da fé, no sentido dado em

Hebreus 11, 1, como a substância daquilo que se espera e a demonstração do que não

se vê”.74

Expressa-se assim que toda uma sociedade vivia no limiar da certeza da fé com a

incerteza que a própria fé gerava. E aos menos crentes, construções – ainda que falaciosas –

que trouxessem respostas a essas incertezas acabavam sendo bem aceitas, pois

“ontologicamente, a substância das coisas desejadas só pode ser encontrada na própria fé; e,

epistemologicamente, a única prova das coisas invisíveis está também na própria fé” sendo,

portanto, que “o vínculo é verdadeiramente tênue, e pode ser rompido com facilidade.”75 Pelo

que se estabelecia na doutrina cristã, havia – e ainda há – por parte de muitos um sentimento

derrotista da fé em Cristo, pois no estado de vida em que se encontram, os homens desejam

experiências sensíveis, possessivas, palpáveis, de conquistas, que não é bem o que prega o

cristianismo.

72 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 94. 73 Op. Cit. p. 94. 74 Op. Cit. p. 94 75 Op. Cit. p. 94 – há uma nota de rodapé no texto em que o autor explica que suas reflexões acerca da

incerteza da fé devem ser entendidas como uma psicologia da experiência.

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“A presença intensamente experimentada do Além atrai intensa atenção para o

problema do Princípio. Quando o deus outrora desconhecido do Além se revela como

a meta do movimento escatológico na alma, a existência do cosmos converte-se num

mistério cada vez mais perturbador. ”76

E considerando o fato de que o cristianismo avançava em êxitos temporais, e com isso

crescia o número de seus adeptos, o risco de se instaurar uma crise de fé em grandes proporções

também aumentava, pois nem todos os que por vontade própria ou por pressão aderiam à fé

cristã, tinham firmeza e maturidade espiritual para suportar as incertezas propostas pelo

cristianismo, ou, como diz o autor, não possuíam “a força espiritual exigida para a heroica

aventura da alma que é o cristianismo”77.

“Se o problema da perda da fé no sentido cristão ocorre como um fenômeno de massa,

as consequências dependerão do conteúdo do meio civilizacional em que estejam

caindo os agnósticos. (...) A queda só podia ser evitada por alternativas experienciais,

suficientemente próximas à experiência da fé para que apenas um olhar muito

penetrante pudesse distinguir a diferença, mas dela afastadas o bastante para aliviar a

incerteza da fé em senso estrito. Tais experiências alternativas estavam disponíveis na

gnose que acompanha o Cristianismo desde suas mais remotas origens. ”78

Portanto, acaba sendo na gnose a “fonte” de certezas que os homens tanto almejam

alcançar, constituindo quase como que uma cultura religiosa viva, que por sua vez originou o

termo gnosticismo para aqueles que a ela recorrem:

“A palavra gnosticismo vem do grego gnosis, que significa “conhecimento”, e no

mundo turbulento do cristianismo primitivo, quando praticamente todos os aspectos

da crença cristã eram intensamente contestados, os gnósticos representavam a crença

que a salvação está ao alcance daqueles – talvez apenas uns poucos – que detêm um

tipo de percepção espiritual esotérica, e não consiste na mortalidade física neste

mundo, mas na libertação em relação ao corpo humano e ao mundo material. ” 79

76 VOEGELIN, Ordem e História Vol. IV: A Era Ecumênica, p. 72. 77 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 94. 78 Op. Cit. p. 94-95. 79 GRAY, Missa Negra, p. 25.

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A fé, ou a cognição da fé, dá aos homens uma capacidade de conhecimento da

transcendência; mas o que deseja o gnosticismo é ir além do conhecimento proporcionado pela

fé, nessa tentativa de imanentização do significado da existência.

“O núcleo essencial (de um sistema gnóstico) é o empreendimento de fazer retornar o

pneuma no ser humano de seu estado de alienação no cosmos ao pneuma divino do

Além por intermédio de ação baseada no conhecimento. Ademais, o deus do Além a

quem o especulador gnóstico quer retornar tem que ser idêntico não ao deus-criador,

mas ao deus da tensão criativa “antes que o cosmos existisse”. ”80

A incerteza da fé faz com que os homens queiram ter controle sobre Deus, seja a partir

de uma gnose intelectual ou emocional. E a gnose é intelectual quando se aprofunda a especular

os mistérios da criação e da existência; e emocional quando pretende uma presença da

substância divina na alma humana.

“Pode ser ainda principalmente volitiva, tomando a forma de uma redenção ativista

do homem e da sociedade, tal como representada por ativistas revolucionários como

Comte, Marx ou Hitler. Essas experiências gnósticas, em toda sua variedade,

constituem o núcleo da redivinização da sociedade, pois os homens que recorrem a

essas experiências divinizam-se ao substituir a fé, no sentido cristão, por formas mais

concretas de participação na essência divina”81

.

Esta consideração acerca do núcleo da redivinização da sociedade torna o entendimento

desta mais claro em seu apreço, como sendo um problema específico na modernidade.

Identifica-se com isso, o que pretende, por exemplo, Hegel, em sua Fenomenologia do Espírito,

ao aplicar a dialética como método filosófico, utilizando-se do princípio básico desta que é o

absoluto, que a história é um permanente devir que se move para o encontro daquele que reúne

todas as coisas e, sendo assim, possíveis a desconsideração e inexistência de qualquer

objetividade, pois tudo que há, é parte de um grande espírito universal que se revelará, quando

a história chegar ao seu final. Algo que, de certa maneira, é presente em todo o contexto do

Idealismo Alemão: em Fichte, que empreendia uma tentativa de se chegar ao conhecimento

pleno de Deus, resgatando-o aos homens dessa posição incômoda de um desconhecido, e mais,

de um incognoscível, o numeno no sentido kantiano, como algo que não se mostra

80 VOEGELIN, Ordem e História Vol. IV: A Era Ecumênica, p. 74 – por pneuma entende-se espírito. 81 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 95.

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sensivelmente; em Schelling, que influenciado pelos românticos, propunha uma filosofia de

retorno ao absoluto, concebendo este como um princípio interior cósmico de uma natureza ideal

de pura potencialidade; para passar desse estado potencial para um estado de efetividade, realiza

um processo que ele chama de autocognição, ou seja, um criar de si próprio e que no homem

se daria por uma experiência estética profunda, através de um abandonar-se contemplativo

diante da natureza, pois o que ele defendia é que Deus é o absoluto realizado na natureza e,

portanto, trata-se de um Deus acessível ao mundo e não mais um algo que permanece oculto.

Uma tentativa de dissolução da objetividade é uma característica fundamental do

idealismo alemão, que pretende encontrar um ponto de identidade entre sujeito e objeto,

ocasionando que se caia num tipo de psicologismo82 que, no fim das contas, é influenciado por

algum tipo de pensamento gnóstico83. Husserl, o fundador da fenomenologia, vai procurar

justamente recuperar a noção de objetividade que havia sido tão deturpada. Sua principal obra,

as “Investigações Lógicas”, possui tanta influência no contexto contemporâneo, que seu

pensamento é presente em todas as correntes filosóficas do século XX, inclusive na do próprio

Voegelin, como se percebe em “A Era Ecumênica”, na qual se destaca essa distorção da

realidade causada pelo gnosticismo, considerando-o como uma espécie de desequilíbrio da

realidade, e consequentemente, causador da desordem social:

“A autoridade divina dos símbolos mais antigos é prejudicada quando as sociedades,

cuja realidade de ordem expressam, perdem sua independência política. Daí as vidas

espiritual e intelectual dos povos expostos aos eventos se encontrarem em perigo de

se separar da realidade da existência socialmente ordenada. A sociedade e o cosmos

do qual a sociedade constitui uma parte tendem a ser experimentados como uma esfera

de desordem, de modo que a esfera de ordem na realidade restringe-se à existência

pessoal em tensão rumo ao divino Além”.84

Tal construção faz do gnosticismo uma armadilha, ou, utilizando a expressão do próprio

autor, um “beco sem saída” pelo seguinte motivo:

“O espiritualismo mágico proporciona aos seus viciados um senso de superioridade

sobre a realidade que não está de acordo. (...), Todavia, é um beco sem saída na medida

82 Erro filosófico que tenta reduzir conteúdos que não são psíquicos a conteúdos psíquicos. 83 “O gnóstico mutila a relação entre princípio e o além, sem se aperceber que está a destruir o mistério

da realidade” – Mendo Castro Henriques, A filosofia civil de Eric Voegelin, p. 136. 84 VOEGELIN, Ordem e História Vol. IV: A Era Ecumênica, p. 75.

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em que rejeita a vida do espírito e da razão nas condições do cosmos no qual a

realidade torna-se lúcida em consciência espiritual e noética”.85

E mesmo se tratando de um beco sem saída, algo ainda acaba por “sair”: teorias – não

no sentido platônico-aristotélico de teoria – dos mais variados tipos que propõem soluções e

esclarecimentos para as dúvidas mais agudas do homem, que no geral, dizem respeito não só a

sua existência, mas ao sentido que se atribui a ela. O imanentismo, portanto, acaba sendo o

“grande” fundamento para estes “teóricos” que desejam estabelecer o eidos da história.

E o que toda essa variedade de “teorias” ou experiências gnósticas propostas por tantos

pensadores deseja – cada uma a seu modo – é o convencimento aos seus adeptos de que estão

participando concretamente da essência divina, um tipo de “garantia” que a fé cristã, por

exemplo, não é capaz de dar.

“É essencial a nítida compreensão de que essas experiências constituem o núcleo ativo

da escatologia imanentista, pois de outro modo se tolda a lógica interna do

desenvolvimento político ocidental a partir do imanentismo medieval até chegar ao

marxismo, passando pelo humanismo, iluminismo, progressivismo, liberalismo e

positivismo”.86

Muitas das seitas ou filosofias gnósticas acabam sendo consideradas e implantadas por

seus pensadores como verdadeiras religiões, que pretendem – ou pretenderam, de acordo com

o momento histórico – se apresentar como alternativa concreta de salvação do homem. Por isso

o grande interesse em utilizar-se da simbologia cristã e da aceitação dos princípios

escatológicos joaquimistas, seguindo um modelo de religião apocalíptica que facilmente acaba

por se tornar uma utopia87, uma ideia de sociedade perfeita, que em grande parte da história

sempre foi presente em muitas culturas. Problema é que, diante dessa ideia de sociedade

perfeita, acabou-se por incorporar a ela, por parte de alguns, a ideia de revolução como meio

para atingir a meta deste lugar perfeito, uma situação que, quando aplicada, utiliza-se dessa

deturpação da realidade para poder justificar as ações empreendidas pelos ideólogos, pois “uma

das características centrais de todas as utopias é o sonho de uma harmonia final. (...) A busca

de uma condição de harmonia define o pensamento utópico, revelando seu essencial

85 VOEGELIN, Ordem e História Vol. IV: A Era Ecumênica, p. 81-82. 86 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 95. 87 Utopia é uma obra escrita por Thomas More publicada no ano de 1515. O termo foi criado por ele e

significa “um bom lugar” e “lugar nenhum” ao mesmo tempo.

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desligamento da realidade”88. Diz-se de um “desligamento da realidade” porque não é possível

pensar uma sociedade universal completamente livre de qualquer conflito, uma vez que a

própria ideia de uma sociedade universal já não se sustenta e ainda mais se concebida sem

qualquer tipo de conflito. Tal ilusão torna a situação agradável de ser pensada, e o sentimento

alimentado de que isso seria possível é o que muitas vezes faz cultivar uma necessidade de se

tentar a qualquer preço atingir esse objetivo.

Reconhecer um projeto utópico pode não parecer uma tarefa tão fácil de início, mas há

características que demarcam bem o caráter de uma utopia.

“Um projeto é utópico se não se verificam circunstâncias nas quais possa ser realizado.

Todos os sonhos de uma sociedade para sempre livre de poder e coação são utópicos

na medida em que jamais poderão concretizar-se, pois desmoronam frente às

persistentes contradições das necessidades humanas. (...) Bastava um pouco de

percepção da natureza humana e da história para saber antecipadamente que essas

experiências levariam a uma conhecida mistura de crime e farsa”.89

Elaborações utópicas no decorrer da história acerca de uma harmonia mundial através

deste ou daquele método não são construídas por ignorância, erro ou desinformação dos

pensadores que as elaboram, mas sim “por consequência de uma forma de pensar desvinculada

de todo senso de realidade”90. Portanto, tanto a ignorância, o erro, a desinformação, a incerteza

da fé e ao mesmo tempo o desejo de se ter controle sobre Deus e sobre o próprio sentido de

existência, é o que parece desencadear um tipo de perda do senso de realidade, que se esvai

com toda e qualquer objetividade, ocasionando um tipo de crise social, fazendo uma sociedade

ser capaz de prosperar em certos aspectos e declinar em outros.

“O projeto moderno de criar um novo mundo e um novo “homem” depende (ao

mesmo tempo que facilita) de uma crença no poder redentor do conhecimento

humano. À medida que Deus ficou mais distante e as tradições passaram a ser

encaradas como superstições (...) o conhecimento tornou-se o único guia aceitável

para a ação humana. Quando Deus se retirou, as ciências empíricas se expandiram”91

.

88 GRAY, Missa Negra, p. 33. 89 Op. Cit. p. 38. 90 Op. Cit. p. 38. 91 MCALLISTER, Revolta Contra a Modernidade, p. 203.

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A prosperidade e declínio da sociedade moderna, de maneira bem específica, se dão

com essa expansão das ciências empíricas advinda do princípio gnóstico que faz do

conhecimento o redentor do homem. Isso é dado de maneira tão característica na modernidade,

porque “os modernos são dados a soluções finais, a modernidade é como que uma tentativa de

responder aos problemas e resolver tensões outrora consideradas permanentes ou insolúveis”92.

E a essa ânsia de resolução de problemas e tensões, a ideia de revolução, de mudança total, de

alternância completa de comportamentos e costumes se torna atrativa, ainda mais se promovida

por alguém que saiba reconhecer nas debilidades humanas uma demanda por novos ideais e que

seja capaz de manipular as massas com propostas estimulantes de igualdade, liberdade e

fraternidade – por exemplo – para assim construírem um mundo justo para todos.

Quando o ardor revolucionário consegue tomar os membros de uma sociedade, estes

tornam-se como que cegos diante das tantas mazelas que uma revolução pode causar. Examine-

se o que ocorreu, por exemplo, na Revolução Francesa, “quando criaram o seu famoso slogan

Liberté, Égalité, Fraternité, eles estavam em um estado de exaltação utópica que os impedia de

detectar nele quaisquer falhas”93.

O que se nota em estudos feitos por autores como Voegelin, é que na realidade, o ser

humano não é naturalmente revolucionário, mas sim, conservador, pois há “em todos os homens

e em todas as mulheres algum impulso para conservar aquilo que lhes é seguro e familiar”94

que garante um estado prévio de concórdia e paz possível a uma sociedade. Os defensores do

pensamento revolucionário, por algumas razões que já foram elencadas, se apresentam como

aqueles que desejam romper com esse estado, “vendendo” suas ideias utópicas para atrair

adeptos. Quando conseguem algum êxito em seu empreendimento, geram consequências

terríveis, como crises sociais fundamentadas no vazio de um povo que se vê “desorganizado,

sem propósitos e incompleto”95, que só consegue se restabelecer lentamente após muito

derramamento de sangue.

O movimento gnóstico está ligado e pode ser considerado até como fundamento da

questão que leva à deturpação da realidade através de uma desassociação da noção objetiva das

coisas, que vai caracterizar e desembocar em alguma ideia utópica, de natureza imanentista e

crença quiliasta com propósitos escatológicos, que não necessariamente, mas muito

provavelmente, deverá ter em seu escopo algum tipo de incorporação ideal revolucionária para

92 MCALLISTER, Revolta Contra a Modernidade, p. 172. 93 SCRUTON, As Vantagens do Pessimismo – e o perigo da falsa esperança, p. 139 94 SCRUTON, O que é Conservadorismo, p. 51. 95 Op. Cit. p. 54.

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fins de atingir seus objetivos. Há, portanto, como que um eixo que liga as variações do

gnosticismo, desde o medieval até o contemporâneo, que foi e ainda permanece em

transformação gradual. Voegelin acaba por reconhecer então “a essência da modernidade como

o crescimento do gnosticismo”96.

“A especulação gnóstica venceu a incerteza da fé recuando da transcendência e

dotando o homem e seu raio de ação intramundano com o significado da realização

escatológica. Na medida em que essa imanentização avançou experienciavelmente, a

atividade civilizacional transformou-se num trabalho místico de autossalvação. A

força espiritual da alma, que no Cristianismo se devotava à santificação da vida, podia

agora ser orientada rumo à criação do paraíso terrestre, criação essa que era mais

atraente, mais tangível e, acima de tudo, mais fácil”.97

Esse paraíso terrestre é a promessa dos projetos utópicos derivados do gnosticismo.

Quando ele diz que essa imanentização avançou experienciavelmente, significa que mais

pessoas foram sendo atraídas por essas seitas, que de algum modo prometiam que a salvação se

daria neste mundo. Defendiam que um paraíso terrestre era possível, e que, para isso,

dependiam do trabalho daqueles que eram chamados a tal empreitada. A atividade

civilizacional, portanto, já não é mais considerada como uma atitude necessária apenas para a

sobrevivência, mas sim, para a construção utópica do paraíso, dotando o trabalho de uma

mística que tem por intenção daquele que o realiza, a autossalvação. Evidentemente que cada

seita e cada filosofia propõe um tipo de argumento, mas o conceito gnóstico da importação do

transcendental para o real está implícito em todas elas. Daí a comparação com o cristianismo,

ao passo que este, através de um esforço espiritual, busca santificar a vida rumo ao paraíso

transcendente, utilizando-se da Graça e da mediação da Igreja, enquanto que a realização

escatológica gnóstica propõe que o homem se salva neste mundo, sem necessidade da Graça e

de qualquer intermediação.

Este milagre autossalvífico gnóstico manifesta-se de várias formas.

“Através da conquista literária e artística, que assegurava a imortalidade da fama aos

intelectuais humanistas; através da disciplina e do êxito econômico, que garantiam a

salvação ao santo puritano; através das contribuições civilizacionais dos liberais e

96 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 97. 97 Op. Cit. p. 98.

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progressistas; e, finalmente, através da ação revolucionária que estabelecerá o milênio

comunista ou de outro tipo gnóstico”.98

A atividade civilizacional como meio de salvação acabou por gerar uma força de

trabalho estupenda no progresso da civilização, mas também foi uma das causas de seu declínio.

Seu progresso se deu no campo das ciências, da tecnologia, dos padrões de vida e de conforto,

mas declinou no campo moral e principalmente espiritual, pois foi justamente a morte do

homem espiritual em vista da salvação através da ação imanente que proporcionou o êxito da

civilização gnóstica. Isso tudo acabou por ocasionar uma desordem que levou a modernidade à

crise, pois se chegou num ponto em que o homem ocidental moderno já não sabe mais o que

quer; sua confusão é tanta que ele não é mais capaz de acreditar no que é bom ou ruim ou no

que é certo ou errado.

Como facilitador da crise admite-se a condição do conhecimento humano, que é frágil

e “provou ser o calcanhar de Aquiles do projeto moderno”99. A dimensão espiritual é

imprescindível para uma sociedade que deseja permanecer organizada, pois “a vida do espírito

é a fonte da ordem no homem e na sociedade, o próprio êxito da civilização gnóstica é a causa

de seu declínio”100. Admite-se, portanto, que a negligência do homem espiritual faz o ser

humano se tornar vazio de sentido e de organização, manifestando-se como necessária uma

restauração da ordem para um restabelecimento do equilíbrio da sociedade, que ao mesmo

tempo em que prospera de um lado, decai em outro.

98 Op. Cit. p. 98. 99 MCALLISTER, Revolta Contra a Modernidade, p. 205. 100 VOEGELIN, A nova ciência da política, p. 99.

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CAPÍTULO 3: O JOAQUIMISMO

3.1 JOAQUIM DE FIORE E O PRINCÍPIO GNÓSTICO

De todo o gnosticismo que o autor apresenta como sendo a natureza da modernidade,

uma tese se destaca: a escatologia imanentista e o milenarismo de Joaquim de Fiore.

Joaquim nasceu em Celino, na Calábria, por volta do ano de 1132 e foi ordenado

sacerdote aos trinta e cinco anos de idade, quando entrou primeiramente no mosteiro

cisterciense de Santa Maria de Sambucina, nos arredores de Luzzi (província de Cosenza) e

posteriormente na abadia de Corazzo no ano de 1177, onde se tornou abade naquele mesmo

ano. Por volta de 1182 a 1183 permaneceu por um ano e meio como abade de Casamari, local

onde pôde dedicar-se à redação de suas principais obras. Ao regressar à Fiore, deu vida à uma

nova comunidade monástica, porém, suas Constituições foram perdidas e hoje não são

encontradas.

Suas obras mais conhecidas e que indicam ser as maiores influências de sua época e da

modernidade são a Introdução ao Apocalipse, O Saltério de Dez Cordas e a Concórdia ao Novo

e Velho Testamentos, que trazem o cerne de sua doutrina acerca da interpretação das escrituras

bíblicas e da história.

O que caracteriza a aceitação dos escritos de Joaquim e leva grande parte das pessoas a

aderirem às suas ideias é aquilo que no capítulo anterior já foi exposto: a necessidade que o ser

humano tem de buscar explicações palpáveis e definitivas para tudo o que diz respeito ao

sentido e fim de suas vidas. O que Joaquim faz, nada mais é do que retomar algo que já havia

sido superado – se não na consciência humana, mas pelo menos acerca da doutrina Cristã – a

partir dos escritos de Santo Agostinho, e que traz à tona novamente uma discussão e um

pretenso entendimento a respeito da escatologia, porque tem em sua raiz um gérmen gnóstico

que nunca desapareceu.

“O movimento gnóstico remonta a Simão Mago, cuja história nos foi transmitida pelos

Atos dos Apóstolos. Desenvolveu-se no século II, mas, longe de desaparecer ante a

refutação de seus erros por Irineu, Tertuliano, Clemente de Alexandria e outros, ficou

sendo uma vegetação religiosa parasitária ao longo da história da Igreja, corroendo a

doutrina Cristã e suscitando outras tantas heresias”.101

101 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 8-9.

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É isso o que diz José Pedro de Galvão e Sousa na apresentação da obra de Voegelin e

não vemos razão para discordar, pois exatamente mesmo após ser refutada, a gnose como

“princípio” nunca abandonou a história da Igreja, e, consequentemente, a história dos homens.

Isso relembra a questão da fragilidade que há no vínculo existente entre o homem e a fé.

A novidade apresentada por Joaquim de Fiore é nova no que diz respeito à interpretação

das escrituras e da história, porém, antiga em questão de princípio e fundamento, pois apenas

reassume a gnose numa outra roupagem.

“Joaquim rompeu com a concepção agostiniana da sociedade Cristã ao aplicar o

símbolo da Trindade ao curso da história. Em sua especulação, a história da

humanidade teve três períodos, correspondentes às três pessoas da Trindade. O

primeiro foi a era do Pai; com o surgimento de Cristo teve início a era do Filho. Mas

esta não será a última, devendo a ela seguir-se a era do Espírito. As três eras foram

caracterizadas como incrementos inteligíveis de realização espiritual”.102

A inteligibilidade da realização espiritual trazida por Joaquim acabou sendo como que

um regador para a semente gnóstica que havia dentro de tanta gente, fazendo florescer – ou

reflorescer – um jardim de gnosticismo que há muito tempo havia sido podado.

3.2 DOUTRINA, TESE E HERMENÊUTICA JOAQUIMISTA

Sua principal tese e que deu sustentação à sua doutrina é a divisão dos períodos

históricos feita a partir de sua interpretação bíblica, mais precisamente do livro do Apocalipse,

que também originou o chamado “milenarismo”, pelo fato de este método de interpretação levar

a um entendimento da história dividida em ciclos de mil anos. E no caso de Joaquim, o que o

diferenciou e fez romper com a tradição agostiniana, não foi somente uma interpretação

alegórica ou simbólica da ciclicidade milenar do tempo histórico, mas sim, uma interpretação

literal do livro da Revelação, da qual ele se vale de alegorias e comparações para conjeturar

cálculos numéricos referentes ao tempo exato de duração de cada período. Por exemplo:

quarenta e duas gerações compõem a segunda era (a era do Filho); pois trinta anos

correspondem à idade que viveu o Senhor Jesus, tendo doze filhos espirituais. E isso porque

doze foi a idade de Davi, quando foi ungido e tornado rei, mais a idade de Ezequiel, quando

aos dezoito começou a profetizar, resultando o número trinta. Esse número, para ele, é

102 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 87.

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correspondente à fé na Trindade e, por isso, segundo ele, ninguém deveria ascender ao

sacerdócio antes dos trinta anos, para que ninguém fosse diferente do sumo sacerdote Jesus

Cristo. Portanto:

“As gerações da Igreja são consideradas em um espaço de trinta anos cada uma delas,

e de acordo com Mateus (Mt 1,1), que divide o primeiro estado em quarenta e duas

gerações, também o segundo estado, sem dúvida, compreenderá a mesma divisão,

tendo um idêntico conjunto de gerações. Idênticos são também os dias em que Elias

se escondeu da face de Acab, e aqueles relativos ao tempo em que a mulher vestida

de sol (Ap 11,6), que designa a Igreja, se manteve escondida da Serpente na solidão

(a saber: mil duzentos e sessenta dias). Substituindo os dias por anos, temos mil

duzentos e sessenta anos”.103

A hermenêutica de Joaquim é a principal novidade, se consideramos os escritos da

época, pois se trata de um tipo de hermenêutica que ele mesmo denomina Concórdia, que não

mais diferencia a compreensão de textos feitas de maneira tipológica ou alegórica (métodos que

eram os comuns da época medieval), mas une as duas e acrescenta a Concórdia, visando à plena

compreensão espiritual. Isso porque, para Joaquim, tanto a tipologia quanto a alegoria, ou os

dois apenas, seriam inconsistentes devido à sua concepção fundamentalmente trinitária

necessária para o entendimento espiritual:

“O sistema hermenêutico joaquimista se ampara na noção de Trindade. De acordo

com o Princípio unitrinitário, Joaquim estrutura seu sistema hermenêutico e sua teoria

da história. Em similitude com a Trindade, ele habilita três modos de compreensão,

que funcionam como se fossem um só: a compreensão alegórica, a tipológica e a por

concórdia. Da mesma forma, a teoria da história se ampara em uma estrutura

ramificada em três estados que, entrelaçados, compõem uma totalidade. (...) Em

sentido amplo, os dois primeiros modos de compreensão, o alegórico e o tipológico,

seguem as regras da proporção por dignidade, e servem para apreender a

multiplicidade disposta na dimensão espaço-temporal da história”.104

A crítica que ele dirige ao método puramente alegórico é que este não sabia mais o quê

e como interpretar e, por isso, tudo acabava sendo interpretado dessa forma, o que causava uma

103 ROSSATTO, MARASCHIN e NASCIMENTO, Evangelho Eterno: a hermenêutica continuada, p. 5. 104 ROSSATTO, Hermenêutica Medieval: A Compreensão Espiritual de Joaquim de Fiore, p. 102-103.

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série de confusões e atribuía uma infinidade de sentido para as coisas, a ponto de não ser capaz

de dizer nada de concreto acerca do que interpretava.

Com relação à tipologia, acredita-se que esta, até então vigente, não mais satisfazia os

anseios de significado que se buscava obter aos tipos e eventos relativos ao período posterior à

Cristo, pois acreditava-se que a tipologia tradicional apenas dizia que os tipos precedentes

ganhavam sentido e significado apenas na relação com Jesus, desconsiderando os tipos futuros

como não sendo importantes. O que a tipologia joaquimista faz é compensar essa “defasagem”

tipológica, buscando dar significado às figuras e eventos históricos após Jesus Cristo, mas

hierarquizando os personagens dentro de sua concepção trinitária das eras da história, ou, dos

três estados do mundo.

Tanto uma quanto a outra se abrem para uma multiplicidade de sentidos e, por isso, ele

traz a novidade hermenêutica do método da concórdia. Ela é a responsável pela unidade plena

que dará o verdadeiro significado àquilo que se busca encontrar nas Sagradas Escrituras e no

sentido da história do homem. E reforçando o que foi dito anteriormente, a concepção

hermenêutica de Joaquim também é trinitária, portanto, na concepção joaquimista, os dois

primeiros métodos dizem respeito às relações intra e extratrinitárias das pessoas divinas, e a

terceira, a concórdia, compreenderá a unidade substancial destas. Diz o professor Noeli Dutra

Rossatto em artigo publicado: “Com a concórdia, Joaquim pretende, portanto, apreender a

unidade na diversidade de significados”105 e principalmente “elevar ao máximo a compreensão

espiritual (spiritualis intellectus) da escritura e da própria história em curso, à medida que reduz

os diferentes significados a um só”106 sem que haja uma hierarquização de significantes por

dignidade ou outro atributo qualquer. Na concórdia, um significante é substituído por outro.

Uma citação literal do livro da Concórdia de Joaquim deixa claro o funcionamento deste seu

método hermenêutico:

“Por concórdia, entendemos mais propriamente a similitude entre iguais proporções

que se estabelecem entre o Novo e o Antigo Testamentos. E digo iguais quanto ao

número, não quanto à dignidade. Assim, um personagem corresponde a outro

personagem, uma ordem à outra ordem e uma guerra a outra guerra; e esta paridade é

tal como se um (personagem) olhasse na face do outro. Assim, por exemplo, são

correspondentes Abraão e Zacarias, Sara e Isabel, Isaac e João Batista, o homem Jesus

e Jacó, os doze Patriarcas e o mesmo número de Apóstolos, e outros tantos similares.

E tudo o que ocorre nestes casos não é alcançado mediante o sentido alegórico, senão

105 ROSSATTO, Hermenêutica Medieval: A Compreensão Espiritual de Joaquim de Fiore, p. 105. 106 Op. Cit. p. 105.

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pela concórdia entre os dois testamentos, pois de ambos resulta uma única

compreensão espiritual”.107

E ainda diz num outro momento que “é necessário, portanto, que o fim de nossa

perfeição esteja posto no terceiro céu; o céu que, como nos ensina a compreensão espiritual,

procede de ambos os testamentos”108.

Compreender a dinâmica interpretativa da história e das escrituras que Joaquim utiliza

torna mais descomplicada a compreensão de sua doutrina; e considerando os fundamentos que

ele emprega para formulá-la, mais detalhadamente procuraremos expô-la.

Joaquim divide a história da humanidade em três estados do mundo, de acordo com a

matriz trinitária; relembrando: a era do Pai (referente ao Antigo Testamento), a era do Filho

(referente ao Novo Testamento) e era do Espírito Santo (a concórdia dos dois Testamentos

originando o Evangelho Eterno). E juntamente à era em questão, há uma correspondência entre

algum tipo de ordem que seria referente aos homens: a era do Pai é correspondente à ordem dos

casados em relação aos antigos patriarcas bíblicos; a era do Filho é correspondente à ordem dos

clérigos em relação aos discípulos de Jesus e a era do Espírito é correspondente à ordem dos

monges, que reunirá aqueles que ele chama de “verdadeiros homens espirituais”.

“A lei exterior, a carne, a letra e a escravidão marcam o primeiro período, próprio ao

Antigo Testamento; o amor, a carne redimida pelo espírito, o verbo encarnado e a

liberdade filial caracterizam o Novo Testamento; e a ausência de lei, de letra e a plena

liberdade indicam o terceiro período espiritual”.109

É possível perceber um caráter ascendente na proposta joaquimista da interpretação da

história. Há algo de progressivo numa primeira era marcada pelo rigor da letra, da lei,

puramente carnal, que passa para uma era em que se observa em detalhe o amor que vem do

espírito e o espírito que, pelo Verbo, passa a dividir uma mesma carne, onde o rigor da lei já é

amenizado pela conduta amorosa que culminará numa terceira era, na qual se poderá observar

a ausência total da lei, pois ela não será mais necessária, considerando o aspecto espiritual

evoluído do homem que, chegado este momento, seria capaz de alcançar a compreensão total

de Deus dada pelo Espírito aos que são capazes de assim o ser.

107 Op. Cit. p. 106. 108 ROSSATO, MARASCHIN e NASCIMENTO, Evangelho Eterno: a hermenêutica continuada, p. 26. 109 Op. Cit. p. 42.

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Uma das consequências que a doutrina joaquimista acaba por considerar, portanto, é o

fim da Igreja como mediadora entre Deus e os homens, pois com o advento da terceira era não

haveria mais a necessidade da mediação sacramental para a recepção da Graça de Deus, uma

vez que aos verdadeiros homens espirituais, o Espírito ter-se-ia revelado por completo. E este

é outro ponto de discórdia e rompimento com a tradição agostiniana, que está ligada diretamente

à questão do milenarismo literal de Joaquim. O que escreveu o santo de Hipona a respeito do

milênio é que os mil anos ditos no livro do Apocalipse devem ser considerados não de maneira

literal, mas de maneira a ser compreendida como um longo período, sem que se saiba a

quantidade de anos precisamente, que precederia a segunda vinda de Cristo na iminência do

juízo final. Sobre a Igreja, Agostinho diz que se trata da organização espiritual universal dos

santos e pecadores que professavam a fé em Cristo, a representante da eternidade da Cidade de

Deus na história110; ou seja, enquanto houver homens neste mundo, a Igreja será a mediadora

entre eles e Deus. Em Joaquim, não há uma verdade transcendente a ser representada, não há

um Deus “fora” do tempo que se diferenciará dos homens por toda a eternidade; o que há é um

Deus que “espera” o tempo dos verdadeiros homens espirituais (viri spiritualis) chegar para

que Ele se revele totalmente nestes homens. E são estes, os possuidores do spiritualis

intellectus, que poderão finalmente conhecer a Deus, o que levará a crer que a era da Igreja (a

era dos clérigos) terá chegado ao fim. Seu papel de “preparar” os homens espirituais acabará,

porque Deus não mais se ocultará a estes homens, não mais precisará de rituais ou de meios

intermediários para que Sua Graça se faça presente. Os homens verdadeiramente espirituais

poderão conhecê-lo sem mediação alguma e se reunirão de forma autônoma, num tipo de nova

ordem monástica, na liberdade do espírito, sem que haja qualquer “instituição de controle” uma

vez que possuirão em si “a verdade das coisas”111.

“Os textos de Joaquim não deixam dúvida a respeito de que a compreensão literal dará

lugar a uma compreensão espiritual; que haverá uma nova vida religiosa totalmente

livre e contemplativa; e que a ordem contemplativa, como uma criança, sucederá à

ordem clerical, fundada por Jesus, tal como Davi foi sucedido por Salomão, e Pedro,

o Príncipe dos Apóstolos, por João Evangelista, e, sobretudo, João Batista por

Jesus”.112

110 Este assunto foi tratado com mais detalhes no capítulo dois deste trabalho. 111 FIORE, Introdução ao Apocalipse, trad. N. D. Rossatto, p. 454. 112 ROSSATO, MARASCHIN e NASCIMENTO, Evangelho Eterno: a hermenêutica continuada, p. 41.

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O Protocolo de 1255 - documento no qual uma comissão de Cardeais, em Agnani,

analisou e condenou a obra Introdução ao Evangelho Eterno do franciscano adepto da doutrina

joaquimista Geraldo de Borgo – destaca este problema, quando demonstra que, de acordo com

os escritos, vê-se que a ordem clerical passará a atuar de modo secundário, quando a nova ordem

monástica se instaurar. Em detalhes, o que Joaquim acredita que acontecerá com a Igreja de

Cristo é que ela não seria destruída imediatamente, mas sim, passaria por algum tipo de

transformação, mas que na tribulação do primeiro Anticristo (que deveria ocorrer entre os anos

1200 e 1260 – que seriam as duas últimas gerações do segundo estado) tudo o que estivesse

relacionado à ordem clerical se consumaria, tornando inútil, portanto, o seguimento ao papado

e à Igreja de Roma. Surgiria então um novo tipo de Igreja, uma Igreja Espiritual, que seria

conduzida pela nova ordem monástica.

“Quando a ordem contemplativa, como uma criança, se manifestar na Igreja de Deus,

justa, sábia e espiritual, poderá então suceder à ordem clerical, fundada pelo Senhor

para propagá-Lo na vida ativa; como Davi que foi sucedido por Salomão, e Pedro, o

Príncipe dos Apóstolos, por João Evangelista, e sobretudo como Cristo, que sucedeu

a João Batista”.113

Sua teoria trinitária foi duramente contestada pelo Protocolo e condenada como heresia

devido à concepção que fazia da Santíssima Trindade, contrária à posição oficial da Igreja.

Joaquim afirmava a unidade trinitária por coletividade, o que, segundo o Concílio Lateranense,

não seria a forma correta de indicar a substância divina. Tal querela se via entre os modelos de

compreensão trinitária monástica e escolástica. Enquanto que a concepção monástica previa

uma unidade trinitária análoga a termos como povo, tribo, multidão, os escolásticos

consideravam a concepção assim feita, inadequada, pois desse jeito não era possível a indicação

de uma unidade substancial separada. Prevaleceu a concepção escolástica.

Outro ponto bastante controverso da doutrina joaquimista da história, já indicado na

correspondência entre as figuras do Antigo e do Novo Testamentos, é o advento de (sempre de

três) líderes espirituais para cada estado do mundo. Assim como já mencionada a relação que

há entre Abraão, Isaac e Jacó no Antigo Testamento, com Zacarias, João Batista e Jesus no

Novo Testamento; haverá também no terceiro estado o surgimento de outros novos três

personagens que corresponderão com seus predecessores das eras anteriores. Joaquim não os

nomeia, mas fundamenta sua teoria a partir das passagens bíblicas do profeta Daniel (Dn 12,7)

113 ROSSATO, MARASCHIN e NASCIMENTO, Evangelho Eterno: a hermenêutica continuada, p. 14.

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que indica um homem vestido de linho andando sobre as águas do rio e os outros dois a partir

de passagens do Apocalipse que aponta a um anjo trazendo o Evangelho Eterno, um anjo que

contém o “selo do Deus vivo” (Ap 7,2) e de um “filho de homem” com a foice afiada (Ap

14,14).

Sobre o Evangelho Eterno, Joaquim contextualiza-o na passagem do Apocalipse 14,6

que diz “Vi, então, outro anjo que voava pelo meio do céu, tendo um evangelho eterno para

anunciar aos habitantes da terra e a toda nação, tribo, língua e povo”. Algumas passagens a

respeito do Evangelho Eterno são destacadas das obras de Joaquim de Fiore mediante a obra

Introdução ao Evangelho Eterno de Geraldo de Borgo, pelo já referido Protocolo de 1255, para

atestar que de fato se tratava verdadeiramente do pensamento propagado pelo abade. Um destes

momentos está expresso na seguinte oportunidade:

“De igual modo, o capítulo 29 diz que o Evangelho Eterno deve ser entendido segundo

a compreensão espiritual, e o Evangelho de Cristo segundo o sentido literal. O

Evangelho Eterno é aquele explicado com as palavras de Jeremias (Jr 31,33), no

capítulo 31 Dabo legem meam. Que o Evangelho de Cristo tem sentido literal, está

comprovado no capítulo 21, letra “f”, onde também consta que o Evangelho do Reino

é chamado de Evangelho do Espírito Santo, e não Evangelho de Cristo (...) O capítulo

28, letra “a”, expressa: ‘A Sagrada Escritura está dividida certamente em três partes,

o Antigo Testamento, o Novo Testamento e o Evangelho Eterno’”.114

O caráter apocalíptico da doutrina joaquimista aborda também a questão do Anticristo,

causador da grande tribulação que levaria a termo a Igreja de Roma. Mas nesse caso, não se

trata apenas de um Anticristo, mas dois. Joaquim de Fiore, em sua concepção interpretativa,

fala de dois Anticristos anunciados segundo as Escrituras.

O primeiro virá ao final do segundo estado e é correspondente à Besta do Apocalipse:

“levantou-se do abismo uma besta, que tinha sete cabeças e dez chifres (...) Esta besta é a

reunião dos infiéis que, de forma bestial, perseguiram os cristãos”115 e na sequência: “depois de

haver referido a primeira besta (...), São João, compelido pela necessidade, mostra o que fará

esta besta no sexto tempo”116. Já o outro Anticristo, que no Apocalipse é chamado Gog, deverá

vir ao final do terceiro estado: “a sexta parte está imputada ao tempo de coleta (...). Nela mostra-

se, com efeito, o juízo da besta: de modo especial, principalmente daqueles homens que

114 ROSSATO, MARASCHIN e NASCIMENTO, Evangelho Eterno: a hermenêutica continuada, p. 7. 115 FIORE, Introdução ao Apocalipse, trad. N. D. Rossatto, p. 468. 116 Op. Cit. p. 469.

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perseguiram a Igreja” e continua “nos últimos dias, portanto, será liberado o diabo que há muito

tempo estava acorrentado e ele seduzirá as nações que estão nos quatro cantos da terra, Gog e

Magog e as colocará contra a Igreja; virá, pois, um fogo do céu e as devorará”117. Joaquim

também consta que não haverá um só juízo, mas dois, valendo-se das cartas paulinas aos

Tessalonicenses, a primeira e a segunda, para corroborar seu pensamento.

O abade também teoriza acerca dos sacramentos, de maneira dúbia, uma vez que

considera que, com o advento do terceiro estado, eles não mais serão necessários aos viri

spiritualis. Fazemos menção a dois: o batismo e a eucaristia.

Sobre o batismo ele interpreta a visão do profeta Daniel como que indicando que o

sacramento do batismo aboliria a culpa de modo apenas parcial, pois com água, seria como se

se limpasse apenas o exterior, mas que o batismo no fogo, dado por aquele que ele acredita ser

o novo Elias – de acordo com a profecia de Malaquias – que ocorrerá em todos os homens

espirituais da terceira era, será totalmente eficaz.

Sobre a eucaristia, ele entende que se trata de uma figura (do segundo estado) e alega

que, uma vez que esta foi responsável por suprimir o sacrifício do cordeiro pascal (figura do

segundo estado), no terceiro estado, sua admiração também será suprimida, pois de alguma

maneira, a eucaristia é uma forma parcial de revelação do espírito que, na terceira era, devorará

a carne de Cristo: “não dizemos que as coisas existentes se devem consumar de modo definitivo,

mas apenas as suas figuras, que foram elaboradas para indicar algo espiritual”118.

3.3 INFLUÊNCIA NA ERA MODERNA E SUAS CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS E

FILOSÓFICAS

Joaquim não considerava o livro da Revelação como um anúncio do fim dos tempos,

mas como uma mensagem de um período de frutificação, pois “as gerações de homens do

Antigo Testamento trouxeram literalidade à história num momento em que as gerações do Novo

Testamento ainda eram futuras (...) e por isso, ainda não eram históricas”119. Sua escatologia

então resultou na criação de uma simbologia que até hoje, como diz Voegelin, “preside a auto

interpretação da sociedade política moderna”120. Sua doutrina, ou melhor, os princípios

117 Op. Cit. p. 471. 118 ROSSATO, MARASCHIN e NASCIMENTO, Evangelho Eterno: a hermenêutica continuada, p. 32. 119 NASCIMENTO, Mística e Milenarismo na Idade Média, p. 85-86. 120 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 87.

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supostos por ela, seguem vivos até os dias atuais, graças às diversas variações interpretativas

que seu pensamento sofreu no decorrer do tempo.

Da simbologia citada por Voegelin, pode-se observar: a concepção da história em três

estados, o milenarismo, o progressismo, o surgimento de líderes para cada um desses estados,

o de um profeta para cada nova era e o símbolo de uma irmandade de pessoas autônomas.

Das consequências práticas mais evidentes acerca da influência de uma pretensa divisão

tríplice da história, o Nazismo, o símbolo nacional-socialista do Terceiro Reino é o mais

impactante: “a profecia milenar de Hitler deriva da especulação de Joaquim, transmitida na

Alemanha através da ala anabatista da Reforma e através do Cristianismo Joanino de Fichte,

Hegel e Schelling”121. A tese gnóstica do Idealismo Alemão122 também possui nítida influência

joaquimista, quando se pensa num absoluto final, num espírito do mundo e num fim da história

dado pela revelação da razão divina (Hegel), numa incorporação do homem à natureza, onde

Deus se revela totalmente (Schelling) ou na dialética que presume a existência humana (Fichte).

Percebe-se também a influência dos princípios joaquimistas na dialética marxista dos três

estágios e no pensamento de Auguste Comte:

“A divisão da história humana em três eras teve um profundo impacto no pensamento

secular. A visão da evolução da liberdade humana em três estágios dialéticos

enunciada por Hegel, a teoria do movimento do comunismo primitivo para o

comunismo global por meio da sociedade de classes exposta por Marx e a visão

positivista da evolução da humanidade de etapas religiosas de desenvolvimento para

etapas metafísicas e científicas, na concepção de Auguste Comte, reproduzem

igualmente o esquema das três partes. A habitual divisão da história em três fases –

antiga, medieval e moderna – faz eco ao esquema joaquimista”.123

O progressismo, que é um constituinte central da modernidade, também pode ser visto

na doutrina joaquimista. Quando se pensa na passagem de um estado para outro, não de maneira

a extinguir o anterior, mas sim de aperfeiçoá-lo e posteriormente substituí-lo, conota-se um

aspecto diacrônico, evolucional, como se a humanidade estivesse sempre em direção à

perfeição, em busca de uma completude. A escatologia de Joaquim propõe este avanço

dirigindo-se a uma evolução espiritual dos escolhidos, enquanto que é exatamente isso que os

pensamentos de Hegel, Marx ou Comte, por exemplo, também sugerem, só que cada um a seu

121 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 88 122 Já citada no capítulo 2 do presente trabalho. 123 GRAY, Missa Negra, p. 22-23.

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modo, respectivamente: o conhecimento pleno da razão divina, o comunismo global como a

solução para todos os conflitos entre humanos e o método científico experimental sendo capaz

de provar tudo. Os imortais, os que seriam “salvos”, seriam aqueles que tivessem seu nome

marcado na vida terrestre por algum grande feito em prol da história da humanidade. Com isso,

o surgimento de personalidades para liderar todas as eras acaba sendo quase que automático,

afinal, alguém precisa conduzir todo esse progresso. O Protocolo de 1255, quando se refere ao

frei Geraldo de Borgo e sua obra, mostra alguns passos dados pelo frei nessa direção, mas que

está para além do que diz exatamente a obra do abade. Segundo o protocolo, Geraldo dá sentido

à interpretação de Joaquim a respeito da profecia apocalíptica daqueles que virão no terceiro

estado, para corresponder aos predecessores do primeiro e do segundo, dizendo que o homem

vestido de linho seria o próprio Joaquim, o anjo com a foice afiada seria São Domingos,

fundador dos Dominicanos e o anjo com o “selo do Deus vivo” seria São Francisco de Assis

(fundador da ordem a que pertencia o frei Geraldo).

Quando Voegelin faz referência à simbologia do líder, reforça que tal arranjo feito pela

ordem franciscana (a partir do que escreveu o frei Geraldo), ao interpretar seu fundador como

o líder daquele tempo, é potencializado pela especulação de Dante acerca do Dux (líder) da

nova era espiritual. E completa dizendo:

“Posteriormente, o símbolo pode ser encontrado nas figuras paracléticas, os homines

spirituales e os homine novi do fim da Idade Média, do Renascimento e da Reforma;

pode ser vislumbrado como componente do Príncipe de Maquiavel; e, no período de

secularização, surgiu nos super-homens de Condorcet, Comte e Marx, até que veio

dominar o panorama contemporâneo através dos líderes paracléticos dos novos

reinos”.124

Sobre o profeta da nova era, trata-se de um tipo de símbolo que, de certa forma, está

ligado ao conjunto anterior dos líderes espirituais, com a diferença de que o profeta é aquele

que anuncia a chegada desses líderes, que através de suas revelações – em sua totalidade, por

meio de especulações gnósticas – validam suas teses como sendo possíveis de serem

humanamente conhecidas e outorgam esse conhecimento a todos: “o próprio Joaquim é o

primeiro exemplar dessa espécie”125.

124 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 88. 125 Op. Cit. p. 88.

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O outro símbolo que Voegelin menciona é o da irmandade de pessoas autônomas, a

qual, na concepção concreta do abade de Fiore, se tratava de uma comunidade de homens que

ele chamou de espirituais, os espiritualmente perfeitos. Mas o que se deu é que tal concepção

foi formulada “como uma questão de princípio”126, abrindo-se assim, infinitas possibilidades

de entendimento para tal formulação:

“Ela (irmandade de pessoas autônomas) pode ser encontrada, em graus diferentes de

pureza, nas seitas medievais e renascentistas, assim como nas igrejas puritanas dos

santos; em sua forma secularizada, tornou-se um componente formidável no credo

democrático contemporâneo; e constitui o núcleo dinâmico do misticismo marxiano

acerca do reino da liberdade e do gradual desaparecimento do estado”.127

Entre tantos aspectos comuns, sobre o que diz Voegelin a respeito do núcleo dinâmico

do misticismo marxiano, a questão da liberdade acaba ficando muito latente no âmbito que

permeia a doutrina joaquimista e os constituintes da modernidade: o progresso, a evolução, as

revelações. Todos estes elementos acabam convergindo para uma mesma direção, que tem

como base a liberdade. Analisemos alguns exemplos: o Evangelho Eterno joaquimista traria a

liberdade para os homens espirituais, pois estes poderiam, enfim, ter a compreensão total do

espírito sem nenhum tipo de mediação ou enigma; para Comte, a era da ciência seria a era em

que o homem se libertaria das imaginações religiosas e metafísicas de outrora, de modo que “a

razão pura estudaria tão-somente os fatos observados, os fatos positivos, que trariam a verdade

em todos os âmbitos”128; para Hegel, o fim da história dado pela revelação total da razão divina

na própria história, libertaria os homens de suas meras verdades parciais, trazendo à tona “a

verdade”; para Marx (seguindo a citação acima), a libertação da classe oprimida se daria

mediante a revolução na qual o estado desapareceria gradualmente e daria lugar a um

comunismo universal, sem a necessidade das lutas de classe.

E, diante deste quadro, gostaríamos de abordar uma questão muito participada

atualmente e que diz respeito à formação das convicções políticas contemporâneas, e de modo

mais preciso, a tentativa que se faz de “casar” o neoliberalismo com o conservadorismo. Tal

situação chega a ser incompatível por uma questão de princípio, pois o neoliberalismo é pautado

exatamente na noção de um tipo de liberdade (muito ligada ao conceito de progresso), que é

126 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 88. 127 Op. Cit. p. 88. 128 CINTRA, Deus e os Cientistas, p. 6.

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semelhante à noção defendida pelo pensamento gnóstico; enquanto que os princípios do

conservadorismo são totalmente opostos aos princípios liberais.

“O neoliberalismo é um conjunto de ideias que afirma restabelecer os valores liberais

em sua forma original, a qual, segundo acreditam os neoliberais, exige um mínimo de

governo e um livre mercado sem peias. Não obstante suas pretensões de racionalidade

científica, o neoliberalismo está enraizado numa interpretação teleológica da história

como um processo de destinação predeterminada, tendo nisto, assim como em outros

aspectos, uma forte afinidade com o marxismo”.129

Nota-se que há um fundo gnóstico de interpretação da história muito próximo do que

vimos até então: a interpretação teleológica da história, ou, a interpretação que remete a um fim

predeterminado da história, com um mínimo de governo, tem aspectos que lembram a doutrina

joaquimista. Não se está dizendo que o liberalismo foi inspirado a partir de Joaquim de Fiore,

mas o que se observa é que não há como separar absolutamente uma coisa da outra e

desconsiderar que há uma influência do pensamento joaquimista, talvez até inconscientemente,

ainda que este tenha se metamorfoseado no desenrolar da história.

E a aliança que hoje se tenta fazer entre liberalismo e conservadorismo não faz o menor

sentido, se os princípios de formulação forem postos corretamente. O que a atitude

conservadora exige primeiramente é a permanência de uma ordem civil; e a união de uma

sociedade se dá justamente “pelo laço civil que gera e sustenta as instituições de governo”130.

Pronto, aí já se tem uma diferença gritante entre ambas as correntes de pensamento político: um

estado mínimo com um mercado totalmente livre de qualquer obstáculo não casa com a ideia

de um vínculo civil sustentador das instituições governamentais. Enquanto os liberais almejam

algo completamente novo, um tipo de liberdade e uma justiça social ideal, os conservadores:

“Incapazes que são de recorrer ao futuro utópico ou a qualquer futuro que, de certo

modo, já não esteja contido no presente e no passado – devem valer-se de concepções

que são diretamente aplicáveis às coisas como são e, ao mesmo tempo, indicadoras de

uma força motivadora no povo. E essa força deve ser tão grande quanto o desejo por

“liberdade” e “justiça social” apresentado por seus rivais”131

129 GRAY, Missa Negra, p. 118. 130 SCRUTON, O Que é Conservadorismo, p. 63. 131 SCRUTON, O Que é Conservadorismo, p. 64.

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Scruton, ao escrever tal comentário, coloca os termos liberdade e justiça social entre

aspas, exatamente porque considera que há diferença na forma do conservadorismo

compreender tais noções. A liberdade e a justiça social do pensamento liberal correspondem a

uma isenção total de autoridade, obediência e tradição, o que, na raiz, faz com que a ideologia

liberal de direita seja muito semelhante à ideologia comunista de esquerda, se analisadas com

profundidade. E estes conceitos, dos quais os liberais querem isenção, são propriamente os

conceitos que regem o pensamento conservador.

“A autoridade, no sentido em que a consideramos, é um grande artefato. Com isso não

quero dizer que a autoridade é intencionalmente construída, mas antes que ela existe

apenas na medida em que a exercitamos, a compreendemos e nos submetemos a ela.

A condição da sociedade pressupõe essa conveniência geral, e os conservadores

procurarão defender todas as práticas e instituições (...) por meio das quais os hábitos

de obediência são adquiridos”.132

Sobre a obediência, Scruton vai dizer que é ela que:

“Define a situação da sociedade e que faz desta algo maior que o “agregado de

indivíduos” que a mente liberal percebe. É característico dos conservadores o

ceticismo em relação a reivindicações feitas em nome do valor do indivíduo, caso elas

entrem em conflito com a obediência necessária à sociedade”.133

E a tradição pode ser considerada como “todo tipo de costume, cerimônia e participação

na vida institucional, em que tudo é feito não mecanicamente, mas por uma razão; e a razão não

está naquilo que ainda acontecerá, mas no que já aconteceu”134.

O pensamento liberal vai sempre procurar defender a noção de liberdade do indivíduo,

seja ela alicerçada no desejo ou na autonomia, porém, em ambos os casos, será incompatível

com o pensamento conservador, que reconhece que tanto em um quanto em outro caso de

liberdade, problemas de insatisfação e incompatibilidade social serão inevitáveis. No caso do

desejo, o ser humano pode ser levado à uma condição de escravidão da pior possível, onde

bastará ser induzido a querer continuar em tal estado. No caso da autonomia, as motivações do

132 SCRUTON, O Que é Conservadorismo, p. 71. 133 Op. Cit. p. 73. 134 Op. Cit. p. 83.

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homem se dão pela operação da razão prática, e, portanto, vão além da mera satisfação dos seus

desejos. Neste caso, há como que uma espécie de conduta movida por um sentido de valor.

Com isto, o que procuramos mostrar, adentrando o contexto político vivido numa

confusão de princípios, é que se é capaz de notar que as influências propriamente gnósticas, das

mais variadas formas de interpretação da doutrina joaquimista, se fazem presentes, ainda que

de maneira involuntária ou desconhecida.

A possibilidade de diversificar uma doutrina em nível de princípios como é a de Joaquim

de Fiore, pode levar a resultados, elucubrações e formulações das mais variadas castas, tendo

uma a ver com a outra ou não. A doutrina joaquimista seria como que uma terra que já recebeu

todo tipo de adubo gnóstico, que poderia e que tem em si todas as propriedades para fazer

germinar qualquer coisa a partir de seus nutrientes; basta plantar qualquer coisa num solo fértil

como este, que árvores e mais árvores brotarão. Uma investigação um pouco mais atenta é

suficiente para identificar em tantos escritos algum elemento da tese originária do abade de

Fiore.

Se, a partir da visão voegeliana, consideramos o gnosticismo como a natureza da

modernidade, podemos considerar que o joaquimismo, que é uma tese gnóstica, seja talvez um

dos modelos preferidos dos autores modernos, pois como visto, ainda que de maneira tão

resumida neste trabalho, mesmo depois de tanto tempo, sua voz ainda ressoa mediante outros

tantos autores.

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CONCLUSÃO

Conhecer melhor o desenvolvimento do pensamento e da sociedade ocidental e de sua

situação atual é o que pretendeu este estudo. Eric Voegelin, como grande cientista, historiador

e um filósofo da história, contribuiu e ainda contribui muito com a vasta quantidade e qualidade

de obras publicadas acerca deste tema, que engloba tantas coisas e momentos e que apresenta

de maneira tão profunda elementos tão fundamentais na procura pelo entendimento da

sociedade e seu desenvolvimento.

Quando se analisam questões como a maneira de se fazer ciência, o retorno à forma

clássica de elaboração de teoria, a questão da representação, as influências ao pensamento

moderno e suas construções, problemas que levaram a sociedade a viver uma realidade

deturpada, o gnosticismo, percebe-se que há um mundo de situações a serem exploradas e que

ainda podem render muita reflexão. Mas o que Voegelin nos fornece é um caminho, que aliás,

se mostra muito seguro, quando se pensa em aprofundar o conhecimento e buscar as causas de

tais questões. Diante de tantas “teorias” modernas que buscam explicar tudo ao homem,

responder aos seus anseios mais profundos de dúvidas e questionamentos, a filosofia voegeliana

propõe uma volta à realidade, uma observação acerca daquilo que de fato corresponde à

verdade, procurando desvelar a realidade obscurecida por tantos conceitos, construções,

filosofias, ideologias, que não necessariamente correspondem a ela. Voegelin percebe a

necessidade de uma reforma, pois a sociedade está a caminhar – e continuará assim, como

pudemos ver ao longo deste trabalho – por estradas de mais incertezas e mais dúvidas causadas

pela sedução de pensadores que prometem a salvação dos homens àqueles que aderirem ao seu

sistema, à sua ideologia.

Isso não significa dizer, até porque não é isso que se está a dizer, que nada se aproveite,

mas o problema se dá justamente, quando se aceita este ou aquele sistema sem investigar

profundamente seus fundamentos. Principalmente se os fundamentos forem construídos e não

dados, como em alguns casos que puderam ser observados ao longo deste estudo. Voegelin quer

mostrar que há um fio condutor, no caso, o gnosticismo, que, no fim das contas, leva à ruína

qualquer modelo que se proponha, quando fundado nestas bases. O gnosticismo não se sustenta.

Os sistemas embasados em tais princípios não foram capazes de dar aquilo que prometeram e,

pelo contrário, se mostraram frágeis, quando analisados em profundidade.

Por isso, a teoria política que Voegelin quer fazer não é “mais uma” entre tantas

“teorias” políticas, mas a teoria feita da maneira correta, partindo da observação do real, sem

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alterações ou deturpações e, principalmente, ilusões. Ele considera os fatos, a história, as

ciências com seus métodos corretamente aplicados, partindo de seus objetos e não o contrário.

A ordem correta das coisas se dá ao aplicar o método ao objeto e não o objeto ao método. A

confusão acerca da realidade objetiva, com elementos psicológicos, problemas que dizem

respeito a conceitos importantes, como por exemplo, o de identidade, acabaram por causar

notáveis transtornos, ao se pensar numa teoria política. Estabelecer que a natureza da

modernidade é o gnosticismo, é uma atitude corajosa e só poderia ser efetuada por alguém com

muita perícia filosófica.

Sua crítica ao gnosticismo joaquimista é algo que também foi considerado, justamente

por se tratar de um tema tão enredado e pertinente ao seu pensamento. Nota-se que sua

relevância se deu por ser um dos sistemas gnósticos que gerou alguns dos princípios mais

influentes na era moderna, abrindo as mais diversas possibilidades interpretativas acerca do

sentido da vida e da realização última do homem. Por isso a importância em explicitar os

principais conceitos da doutrina, da tese e da hermenêutica propostas por Joaquim, para que

ficassem mais evidentes os motivos que levaram tanta gente a se inspirar em suas ideias. Seu

sistema é de fato muito sedutor, tem princípios interessantes e é elucidativo, a ponto de

proporcionar algumas “respostas”. Sua novidade hermenêutica e sua escatologia imanente

foram capazes de despertar interesse aos mais ansiosos e suficientes para manter viva a sua

especulação por muitos séculos vindouros.

Estudar um pensador como Eric Voegelin é um grande desafio, mas ao mesmo tempo,

uma grande oportunidade. Sua seriedade e erudição fazem-no um filósofo diferenciado, ao

abordar temas recorrentes da vida prática com honestidade, pois fundamenta suas teses a partir

de dados, e muita competência, pois torna possível o conhecimento de situações a partir de

pontos de vista que levam a uma verdadeira reflexão acerca da história. Voegelin é de fato um

teórico, no melhor sentido do termo, que deseja retomar elementos aparentemente perdidos na

filosofia, quer resgatar a forma de se fazer ciência, a partir da indissolubilidade de princípios e

sem comprometer a realidade da sociedade com elucubrações futuristas, teleológicas ou

escatológicas que não se sustentam; e deposita sua esperança numa filosofia que não recorra à

gnose como ponto de partida e nem como ponto de chegada, e acaba por ir na contramão de

uma época marcada por numerosas seitas gnósticas e suas ideologias utópicas. Na sua busca

pela ordem, nosso autor apela para a filosofia enquanto “amor ao ser através do amor ao Ser

divino, fonte da ordem”135.

135 VOEGELIN, A Nova Ciência da Política, p. 10.

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