faoro e machado

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    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 355

    UANDO RAYMUNDO FAORO se disps a enfrentar a obra de Machado deAssis em um verdadeiro corpo-a-corpo com aquele universo de perso-nagens e situaes extradas do Brasil imperial, a sua obra-prima,Os donos

    do poder , j estava no s pronta, pois fora editada em1958, como acabava de ser

    inteiramente refundida , como se adverte no prefcio segunda edio, que de 1975 . Machado de A ssis: a pirm ide e o trapzio saiu em1974. Por essa data depreende-seo quanto a intensa leitura machadiana coincidiu com a retomada e o aprofundamentodas suas teses sobre a formao poltica brasileira.

    grande a tentao de cruzar em um s discurso os esquemas de ambos oslivros. Dentro de uma concepo mimtica da obra literria, a fico de Macha-do deveria espelhar a estrutura do Brasil imperial desvendada pelo cientista pol-tico de amplo horizonte que foi Raymundo Faoro. Mas um mnimo de cautelametodolgica exige do leitor de Faoro leitor de Machado (operao duplamentemetalingstica) que separe taticamente as abordagens, comeando por apreen-

    der as linhas-mestras deOs donos do poder para verificar at que ponto se reco-nhecem em Machado de A ssis: a pirmide e o trapzio .O que impressiona, primeira leitura, emOs donos do poder a coerncia

    mantida ao longo de um percurso de quase seis sculos, que vai de D. Joo I, mes-tre de Aviz, a Getlio Vargas. Apesar dessa pletora de dados histricos e atravs deconjunturas polticas dspares, o historiador detecta a permanncia de um podercentralizador, o Estado patrim onial , que serve aos estamentos e deles se serve: pri-meiro os aristocrticos, eclesisticos, forenses e militares; depois, os burocrticos,em geral. Com isso, a instncia poltica, em sentido amplo, isto , ogoverno e osseus prepostos, ganha uma consistncia, uma ubiqidade e uma longevidade querelativizam as classes donas da produo s quais o economicismo sempre atribuiuo domnio e a direo da sociedade.

    A dependncia, que a vulgata marxista sempre apontou, da instncia polticaem relao mquina econmica, e do ideolgico em relao transparente com osinteresses de classe, , em Faoro, em princpio, aceita, mas dialetizada pela depen-dncia inversa, ou seja, pela constatao de que os possuidores da riqueza precisam,estrutural ou conjunturalmente, dos manipuladores do poder oficial. Estes, porseu turno, desfrutam dos excedentes da vida econmica, porque detm o poder detaxar e confiscar, controlando, em nome do Estado, os produtores de bens. Capital

    Raymundo Faoroleitor de Machado de Assis A LFREDO BOSI

    Q

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    e poltica acabam convivendo como um casal que ora se abraa, ora briga, mas nose separa nunca definitivamente.

    Para sustentar a sua tese, Faoro comea pelas vicissitudes do incipiente capi-talismo portugus na baixa Idade Mdia at chegar ao tardio capitalismo brasilei-ro. Mostra o quanto os estamentos e as burocracias coloniais e imperiais, braos doEstado patrimonial, influram no sentido de regular a vida econmica, ora frean-do-a, ora tentando estimul-la, aliciando os homens do dinheiro e atraindo-os parao seu crculo de postos, ttulos e comendas, signos destatus extraordinariamentevalorizados at o fim do Segundo Imprio. O conbio de titulaes honorficas,empregos administrativos e acesso aos recursos pblicos deu ao Imprio sete mar-queses, dez condes,54 viscondes e316 bares, sem contar os desembargadoresconselheiros, os comendadores e os oficiais da Guarda Nacional. Era a corporao

    do poder.Resumindo Max Weber, Faoro glosa-o e cita: Os estamentos governam,as classes negociam. O s estamentos so rgos do Estado, as classes so categoriassociais1.

    O termo de comparao, por fora do contraste, a sociedade poltica norte-americana yankee , com o puritanismo dos seus peregrinos, a ascenso doself mademan e o triunfo de uma burguesia rude que ignoraria os ttulos e os fumosaristocrticos: uma sociedade de competio em que o poder do dinheiro e do lucroaparece legitimado pela tica moderna do trabalho e da produo. O molde weberiano, no caso, evidente:trata-se de avaliar aes sociais norteadas por valores ; e so essesvalores ltimos, introjetados no cotidiano, que condicionam os comportamentos deuma sociedade, no excludos os econmicos. O lado interiorizado dos valores soos motivos que levam os indivduos a agir desta ou daquela maneira2.

    No que toca sociedade brasileira do Segundo Imprio e do incio daRepblica que ser o teatro das personagens machadianas , a tese de Faorocombina oquadro sincrnico (onde se vem estamentos superpostos a classes,burocracias controlando agentes econmicos) e o processo histrico, adiacronia ,com a lenta emergncia de fatores modernizadores, quer no mundo da produ-o empresarial, quer no mundo das condutas e das ideologias progressistas. Asincronia d o mapa esttico; a diacronia, o movimento e as passagens.

    O Segundo Imprio teria vivido, at a dcada de1860, sob a hegemonia deuma poltica altamente conservadora e centralizante. As oligarquias rurais partilhavamna Cmara e no Senado o poder legislativo. Quanto aos postos da administrao,eram repart idos entre os filhos e parentes dos fazendeiros, a magistratura, o exrcito,o clero, em suma, as chamadas influncias, que, por sua vez, viviam dos excedentesda economia exportadora, cerrando fileiras em torno da Coroa.

    A classe econmica dominante (os senhores do acar e do caf e seus co-missrios) e os estamentos da burocracia imperial fizeram, necessariamente, vistasgrossas permanncia do trabalho escravo, resistindo, at o limite do possvel(1850), presso inglesa, que exigia o fim do trfico. O nativismo exacerbado de

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    Alencar combina-se com a aceitao dosta tu s quo escravista. O s grupos hegem-nicos defendiam a prtica do liberismo comercial (conquistado pela abertura dos

    portos em1808) e de uma forma excludente de liberalismo poltico, que se re-produzia mediante o censo eleitoral arredando os pobres da representao juntos assemblias, Cmara e ao Senado. N a adoo do liberalismo elitista a polticaimperial seguia de perto o exemplo francs, cuja lei maior, a Carta da Restauraode 1814, serviu de modelo nossa Constituio, outorgada em1824.

    conhecido o quadro eleitoral do Segundo Imprio. A historiografia recentevem apontando, porm, uma presena significativa devotantes de parcos recursosnas eleies anteriores Lei Saraiva(1881), que excluiu os analfabetos, restringidodrasticamente o acesso s urnas. De todo modo, mesmo admitindo um grauconsidervel de part icipao na primeira etapa do processo, fica de p o fato de

    que os eleitos, deputados e senadores, jamais pertenceram mesma classe dosvotantes pobres. Como ocorria contemporaneamente na Europa, o liberalismopuro e duro era uma prtica que interessava diretamente burguesia, e nadatinha a ver com princpios igualitrios, tidos por anrquicos3. Para repetir, maisuma vez, o bvio:liberalismo, na prim eira metade do sculo X IX , no significou,nem quis signi ficar democracia 4.

    R etrato de Dom Pedro II

    Reproduo

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    U ma sociedade conservadora .. . em mudanaRaymundo Faoro d argumentos e exemplos convincentes para sustentar a

    tese da vigncia de dois liberalismos ao longo do sculo XIX brasileiro. O fato deserem duas vertentes ideolgicas ostentando a mesma denominao liberalismotem sido causa de equvocos renitentes, como a tese das idias liberais estrangeiras,postias, fora de lugar, que antes confunde do que aclara a complexa tramaideolgica do Segundo Imprio5.

    O primeiro liberalismo, uma ideologia de longa durao, tem datas denascimento precisas em termos de sua instaurao na histria do Brasil oitocentista:1808e 1824. Em1808d-se a abertura dos portos pelo prncipe regente D . Joo,com o aconselhamento do smithiano ortodoxo Silva Lisboa (depois, Viscondede Cairu). Instala-se o liberalismo econmico, ou liberismo (que, de resto, j

    convivia em todo o O cidente com a escravido), abrindo-se a produo agrcolaao comrcio internacional com acentuado favorecimento Inglaterra, como severificar pelos tratados assinados em1810. A medida satisfez s exigncias docomrcio britnico e, internamente, aos interesses dos produtores asfixiados peloexclusivo colonial: ser o primeiro passo no caminho da Independncia. De1824 a outorga da Constituio por Pedro I: estabelecem-se as normas da represen-tao poltica, o voto censitrio e o funcionamento dos poderes legislativo e exe-cutivo mediante a combinao de parlamentarismo e monarquia. Trata-se de umesquema bastante prximo da Carta restauradora francesa, que introduzira oPoder Moderador de acordo com uma proposta conciliadora de BenjaminConstant6.

    Como ideologia funcional,o primeiro liberalismo ocupou o seu lugar na so-ciedade emersa do sistema colonial . Na medida em que era estruturalmente pro-prietista, exercia o papel de cimento ideolgico legitimando as prticas econmicase os arranjos polticos dos homens que consolidaram o novo Estado nacional emtorno da dinastia.

    Aps a Independncia, o trabalho escravocontin uou a ser fator constitutivoda economia brasileira; quanto ao liberalismo, passou a ser fator ideolgicoindispensvel montagem do novo Estado-Nao.

    Em 1840, a maioridade de Pedro II foi antecipada no bojo de um movi-

    mento centralizador destinado a encerrar o ciclo turbulento e centrfugo da Re-gncia. A conquista da estabilidade monrquica coincidir com a ascenso docaf no Vale do Paraba que, por sua vez, carece de braos e aumenta considera-velmente os seus plantis de escravos. A propriedade escravista integra-se na or-dem dos direitos adquiridos, que a lgica liberal-proprietista.

    O liberalismo oligrquico s conhecer a primeira crise significativa nosanos de1860 com a irrupo do segundo ou novo liberalismo (JoaquimNabuco), que empunhar as bandeiras da eleio direta, dos limites do Senadovitalcio e do Poder Moderador bem como, paulatinamente, da questo servil.

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    Nessa altura, o proprietismo puro e duro reage coerentemente propostada Lei do Ventre Livre promulgada em1871, mas preparada, sob os auspcios do

    Imperador, desde1866. Os polticos tradicionais, independentemente da suafiliao partidria, rezavam pela cartilha da propriedade privada, que o CdigoCivil napolenico, paradigma ocidental, sacralizara ao manter a escravido, emboraomitisse qualquer referncia instituio que Bonaparte reintroduzira nas Antilhasfrancesas em1802. C e l... as constituies liberais posteriores Revoluoconferiam ao cidado-proprietrio o direito de coagir a liberdade dos pobres,negando-lhe a cidadania, e, no limite, o direito de comprar a liberdade de sereshumanos arrancados s costas da frica. O efeito extremo do liberalismo era adesigualdade total: capital, de um lado; trabalho forado, de outro. I t was freedomto destroy freedom , na expresso lapidar do abolicionista Du Bois.

    A exigncia deindenizao aos senhores de escravos (que os positivistasantiliberais combateriam) foi satisfeita pelos governos ingls, francs e holandsquando se decretou a abolio nas suas respectivas colnias; o que uma provacabal de que o direito de propriedade do homem pelo homem vigorava plena-mente nas metrpoles regidas por monarquias parlamentares liberais. Direito vi-gente na Europa e nas Amricas.

    Essa mesma ideologia excludente por sua prpria formao histrica estava ainda representada entre ns por Arajo Lima, Marqus de Olinda, pilardo Regressismo nos anos finais da Regncia. Era conselheiro de Estado quandoPedro II o consultou, em1867, sobre a convenincia de se discutir a abolio dotrabalho escravo. Ao que o Marqus respondeu drasticamente: O s publicistas ehomens de Estado na Europa no concebem a situao dos pases que tmescravido. Para c no servem suas idias7. Posio que, nestes mesmos anosde 1860, j estava sendo combatida e virtualmente superada pelonovo liberalismo .

    Para o j velho credo liberal-proprietista, o abolicionismo era uma ideologiaextica, postia, fruto do sentimentalismo dos philanthropists ou maquinao deutpicos e subversivos que pretendiam solapar as bases da economia e damonarquia nacional. Comenta Nabuco emO abolicionismo : A resistncia que alavoura ops parte da lei de28 de setembro que criou o direito do escravo deter peclio prprio e o de resgatar-se por meio deste, prova que nem essa migalhade liberdade ela queria deixar cair da sua mesa. Os lavradores de Bananal, porexemplo, representando pelos seus nomes a lavoura de So Paulo e dos limitesda provncia do Rio, diziam em uma petio s Cmaras: Ou existe a propriedadecom suas qualidades essenciais, ou ento no pode decididam ente existir . A alforriaforada, com a srie de medidas que lhe so relativas, a vindita armada sobretodos os tetos, a injria suspensa sobre todas as famlias, o aniquilamento dalavoura, a morte do pas8. Os liberais abolicionistas, como se sabe, pelo teste-munho de Nabuco e de Rui Barbosa, sero chamados de comunistas pelosliberais-conservadores que no toleravam a idia da interveno do Estado noseu direitoconstitucional de usar e abusar da condio de proprietrios9.

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    Tratava-se de um complexo ideolgico que envolvia o Ocidente. O libera-lismo burgus ps-revolucionrio de Napoleo e da Restaurao casara-se, em

    toda a Europa, com uma ntida separao das classes sociais. E fizera um s cor-po com a manuteno do cativeiro no Brasil, no sul dos Estados Unidos e nascolnias francesas, holandesas, espanholas e portuguesas, cujos deputados seopunham s propostas de emancipao junto s respectivas cmaras metropo-litanas. Nada de exclusivamente brasileiro, portanto, nessa fuso de interesses eracionalizao ideolgica.

    O lugar histrico do velho liberalismo excludente estava demarcado: era aideologia adequada aos exploradores e desfrutadores da economia de plantagem.Lugar social amplo, pois nele se aninhavam no s os agentes diretos da redeagro-exportadora (traficantes, fazendeiros, comissrios) como os seus intelectuais

    orgnicos, os burocratas da Corte, do Parlamento, do Frum e das instnciasprovinciais. Para esse bloco histrico, que outra ideologia quadraria melhor doque a defesa incondicional do direito de propriedade?

    Entretanto, a restrio desse direito, considerada postia, do ponto de vis-ta da oligarquia (Para c no servem suas idias), ser tida por justa, civilizadae progressista pelo novo liberalismo, que lutar para realizar no Brasil os ideaisde democracia que a revoluo de1848difundiu por toda a Europa.S em 1848a A ssemblia n acional francesa aboliu a escravido . Se no levarmos em conta adialtica mesma do liberalismo do sculo XIX, isto , os seus momentoscontrastantes, cairemos no equvoco a-histrico de consider-lo deslocado emrelao nossa realidade. A rigor, tanto o velho quanto o novo iderio liberalocuparam os espaos que o movimento mesmo do capitalismo ocidental lhesdestinava.

    Srgio Buarque, atento aos momentos de crise interna, cunhou a expressoLiberais contra liberais para marcar as contradies intrapartidrias que agitarama cena poltica nas dcadas de1870 e 188010. Liberais ainda fechados no seumedo ao radicalismo abolicionistaversus liberais abertos aos ventos progressistasque animariam a campanha da abolio e, paralelamente, a campanha republicana.

    Qual olugar social deste segundo e renovado liberalismo?Faoro situa os novos liberais entre os que no encontravam lugar prprio

    ou futuroso nos grupos que desfrutavam da centralizao monrquica, da altaburocracia e das rendas da escravido. Nos fins do decnio de1860, a crise pol-tica entra a minar os alicerces do Imprio at lev-lo queda vinte anos depois.Faoro entrev uma transformao sistmica a partir de1860-1870: emerge noquadro estamental e hierrquico, comunitariamente seletiva e progressivamentefechada, a sociedade de classes11. o momento em que se ouvir a voz moder-na de Tavares Bastos, de Saldanha Marinho, de Quintino Bocaiva, de JosBonifcio, o Moo, de Castro Alves, de Souza Dantas, de Silveira Martins, deLuis Gama, de Joaquim Nabuco, de Rui Barbosa, de Andr Rebouas, de Josdo Patrocnio. N a esfera do pensamento cientfico e filosfico, a hora da gera-

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    o de1870, com seu bando de idias novas de Slvio Romero, que renova ahistoriografia e a crtica junto a homens da envergadura de Joo Ribeiro,

    Capistrano de Abreu, Jos Verssimo e Araripe Jr.As cidades eram, pelo seu poder de concentrao e difuso ideolgica, osncleos do novo liberalismo: o Rio dos jornais e dos grmios, a So Paulo daAcademia de Direito, Recife, Salvador, Porto Alegre. Quanto ao Nordeste,depauperado pela extino do t rfico e pelas crises intermitentes do comrcio doacar, j no via no escravo o sustento da sua economia; da, o abolicionismono ter encontrado, do Cear Bahia, a resistncia feroz que sofreria nas provnciascafeeiras mais prsperas, fluminense e paulista. O novo liberalismo ser urbano eser nordestino.

    A leitura deOs donos do poder , mais uma vez, iluminadora. No denso

    captulo O R enascim ent o liberal e a R epblica , Faoro mostra como o novoliberalismo se enraizou no descontentamento de grupos inteiros, ativos e pode-rosos, que no tinham lugar nem desempenhavam qualquer misso noordenamento imperial12. Eram filhos da fidalguia nordestina em crise e com asantenas ligadas na economia e na poltica inglesa ou yankee . Eram profissionaisliberais de classe mdia que precisavam competir com os apaniguados da oligar-quia. Eram abolicionistas radicais que j no mais toleravam os golpes protelatriosda Cmara e do Senado. Eram, enfim, militares de formao positivista e idealrepublicano, que se propunham arrancar o pas da fase teocrtico-monarquis-ta na qual, segundo o mestre Comte, ainda estariam encalhadas as caducas di-nastias. E todos navegavam nas guas da mar democrtica que, na leitura deJoaquim Nabuco, definia o esprito do novo liberalismo.

    Sem antecipar reflexes que cabem melhor no estudo de Faoro leitor deMachado, parece-me pertinente perguntar:no ter sido esta a hora ideolgica do

    Machado jovem que militou na imprensa liberal entre 1860 e 1866 , precisamentequando o Partido Liberal comeou a pr-se em brios para enfrentar os dogmasda agremiao que se vangloriava de ser o Partido da Ordem? Mas, se o velholiberalismo compromissado com as oligarquias lhe parecia enganoso e opressor,ento por que o novo liberalismo ou o republicanismo nascente no o empolga-ram a partir dos anos de1870? Por que Machado maduro, pessoalmente simp-tico aos novos liberais, acabou distanciando-se de uns e de outros? Por que noprops, nem escogitou, nem ao menos entreviu o caminho de uma alternativa,uma terceira via? O fato a ser interpretado que Machado de Assis, como cronis-ta (a sua face visvel de homem pblico) no militou em nenhuma das novascorrentes, nem sustentou nostalgicamente as antigas, porque, a certa altura, pas-sou a descrer de toda e qualquer ideologia que pretendesse transformar o barrohumano e a sociedade que nele se fundara. O seu desencanto profundo t-lo-iaimpedido de engajar-se animosamente na luta reformista dos companheiros de juventude e dos que os sucederam. Monarquista e liberal, em senso lato, masentranhadamente ctico, preferiu fixar o lado sombrio ou apenas risvel dos que

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    usavam do velho nome liberal para defender seus direitos propriedade e aoscargos polticos.

    Os novos liberais, que Machado conheceu igualmente de perto, no lheinspiraram personagens nem situaes ficcionais; o que sugere, mais uma vez, ocarter seletivo do olhar que se quer realista.

    O distanciamento de Machado , em sentido lato,moraliste , tico efilosfico, de vontade e de pensamento. E ser esttico, uma vez que a sualinguagem narrativa no se confundir nem com a do naturalismo ferino e diretodos romancistas do ltimo quartel do sculo XIX (Adolfo Caminha, AlusioAzevedo, Ingls e Sousa, Jlio Ribeiro) nem com o expressionismo agnico deRaul Pompia. Ser mordaz, mas diplomtico, boca que morde e sopra.

    Machado de Assis : a pirmide e o trapzioNa perspectiva de Raymundo Faoro, o narrador Machado de Assis representa,

    na esfera dos indivduos , as marchas e contramarchas dos interesses e dos desejosde poder no nvel micro-social: entre homem e mulher, entre irmos, entre amigos,entre famlias. Em outras palavras: a literatura, como mmesis do real, trabalhacom o singular, ao passo que a cincia social constri o tipo que enfeixacaractersticas de uma pluralidade de indivduos. Neste sentido, Machado de A ssis:a pirmide e o trapzio retoma e individualizaOs donos do poder .

    O romance moderno seria a privatizao do gnero pico: esta a conquis-ta terica do pensamento marxista formulada exemplarmente por Lukcs naTeo-ria do R omance . Faoro cita Lukcs uma s vez13: trata-se da passagem em que opensador hngaro critica o realismo do detalhe avulso e valoriza o realismo oposto,que liga os pormenores com o conjunto da composio. Este realismo verdadei-ro, que d sentido aos mnimos gestos das personagens e vai direto ao cerne dodrama as motivaes, os interesses encobertos prende-se ao quadro socialenglobante, onde o jogo dos mesmos interesses toma forma pblica e institucional.Caberia ao romancista moderno configurar a face subjetiva e inter-subjetiva dosconflitos. Por isso, o estudioso da fico no pode ignorar as relaes, ora deafinidade, ora de distanciamento, que o narrador entretm com a trama social.

    Tomando por assente a relao geral e constante entre romance e sociedade,pedra de toque do realismo, Raymundo Faoro traar o mapa da vida poltica eeconmica do Segundo Reinado com os olhos postos em personagens e situaesmachadianas. Um levantamento exaustivo, de que a exposio seguinte tentarcaptar apenas as linhas mestras.

    A construo do livro est representada com nitidez pelas duas figurasgeomtricas do ttulo: a pirmide e o trapzio. As figuras, ora superpostas, oracombinadas, constituem oeixo sin crnico da tese de Faoro. So a forma do quadrosocial, tal como se comps no Segundo Reinado.

    A pirmide desenha a estrutura vertical das classes. A base larga reporta-seaos homens do trabalho braal: os escravos, os forros, os pobres em geral, brancos

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    ou mestios. O vrtice constitudo pela reduzida classe dos proprietrios, osfazendeiros, os seus comissrios e os banqueiros. O comerciante escalona-se na

    parte intermediria da pirmide e gradua-se na proporo dos seus cabedais. Apirmide tem a ver diretamente com a produo e o negcio. Os seus mveissero a acumulao, o lucro ou o consumo alto no vrtice ; a base serprioritariamente o escravo, secundariamente o trabalhador assalariado.

    O trapzio desenha a estrutura horizontal dos estamentos. Superpondo-se economia agro-exportadora, servindo-a, ou dela se servindo, por via dosexcedentes tributrios, estadeiam-se os estratos burocrticos, os magistrados, osfuncionrios imperiais e provinciais, o clero, o exrcito. o universo das hierarquiasassentado em cargos, ttulos, prebendas, patentes; as influncias que formam acorporao do poder e que dependem da Cmara, do Senado vitalcio e dopoder pessoal, o Imperador. Como emOs donos do poder , Machado de A ssis: a

    pirm ide e o trapzio percorre miudamente esse universo onde ostatus a supremaambio, pois traz a reputao, a nomeada, de que tantas personagens tero sedea vida inteira, comeando por Brs Cubas.

    O eixo diacrnico acompanha o curso dos acontecimentos. A sociedadebrasileira do Segundo Imprio foi mudando na direo de um capitalismo tar-dio, mas eficaz, sobretudo a partir dos anos de1860 como efeito parcial daliberao dos capitais propiciada pela cessao do trfico. Essa mudana trariacondutas modernizadoras, fazendo aparecer mais cruamente os mveis econ-micos. A crtica ao regime escravista tem em Tavares Bastos (Cartas do solit rio ,

    A provncia ) um colorido progressista yankee . Progresso econmico e trabalholivre so os pilares da argumentao de Joaquim N abuco nos textos candentes deO abolicionismo . Ambos almejam o progresso e a modernidade, que no poderdeixar de ser capitalista, embora no forosamente democrtica14.

    O eixo sincrnico fixa a estrutura social, a pirmide e o trapzio. O eixodia-crnico remete histria das mudanas, das passagens, das resistncias. Am-bos formam o quadro, os lugares em que Machado vai situar as suas persona-gens, dando a algumas os traos tpicos da sua classe ou do seu estamento, masreservando a out ras o desenho de uma fisionomia prpria, capaz de diferen-lasda mediania e do vulgo, que, sabemo-lo desde Maquiavel, constitui a maioriaabsoluta dos homens.

    Chegamos questo crucial da interpretao do olhar machadiano. Ma-peando o quadro social do Segundo Imprio e acompanhando a passagem deum mundo que custa a retirar-se a outro que fora a sua entrada, teria RaymundoFaoro esgotado o seu trabalho de reconstituio do realismo machadiano? Pararesponder a essa pergunta fundamental, o prprio Faoro vale-se da presena deum terceiro eixo , que no se limita representao de aspectos do sistema social,na sua esttica e na sua dinmica (objeto prioritrio da Sociologia da Literatura),mas supe, no olhar do escritor, na sua perspectiva,um a capacidade de in terpre-tar os comportamentos e as situaes ficcionais.

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    Pelo eixo hermenutico busca-se estabelecer a relao do sujeito da escritacom os seus objetos. O sujeito recorda, o sujeito escolhe, o sujeito imagina, o su-

    jeito exprime, o sujeito medita, o sujeito revela, o sujeito julga, o sujeito constri.Em uma palavra densa de significaes: o sujeitointerpreta o out ro e interpretaa si mesmo, enquanto autoconscincia. Todas essas operaes, esses movimentosda alma realizados pelo narrador, esto penetrados pela sua histria de vida edependem de um complexo cultural e ideolgico que no se confunde, neces-sariamente, com esta ou aquela corrente de pensamento da sua prpria poca.

    Raymundo Faoro no tematiza um enfoque declaradamente hermenutico.H istoriador, socilogo e cientista poltico, a sua tarefa prioritria foi a de encontrar,para cada nicho social, a personagem tpica que ilustrasse a estrutura piramidalou trapezide da vida pblica brasileira. Para perfazer esse desgnio, estudou afico de Machado relacionando os seus polticos, distinguindo deputados esenadores, ministeriveis ou no; passando em revista as figuras da classe pro-prietria, fazendeiros, capitalistas, rentistas, financistas; detendo-se nos compor-tamentos dos agregados, dos funcionrios, dos empregados, dos operrios, dosescravos; analisando as personagens ligadas ao exrcito e ao clero; ponderando ainfluncia da nobreza e do Imperador; enfim, mapeando, vertical e horizontal-mente, a sociedade espelhada nas obras do mais arguto dos nossos observadores.

    A tarefa poderia dar-se por bem cumprida, j que o propsito de reconhecera pirmide das classes e o trapzio dos estamentos fora levado a termo de modoexemplar. No entanto, sem fazer praa de qualquer metodologia hermenutica,Faoro sentiu a falta de uma dimenso que o elenco tipolgico no comporta: acompreenso do nexo escritor-sociedade vista do lado do olhar, e no do puroquadro emprico; vista do lado da reflexo, e no do puro reflexo.

    significativo que, ao fechar a obra, ocorreu-lhe que no lhe bastava aimagem doespelho : o captulo final chama-se O espelho e a lmpada. O espelho j lhe servira ao longo do seu caminho de historiador. Faltava-lhe outro instru-mento de prospeco, uma luz que escolhesse os perfis dos objetos representveis,que iluminasse intensamente um aspecto deixando outros imersos na sombra ouna total escurido. Uma luz que no se cingisse passividade do espelho, masque se movesse em mltiplas e diferentes direes, para fora e para dentro, paracima e para baixo, para frente e para trs, para um lado e para o outro... Uma luzque chegasse muito perto, como faz o olho mope cata do mnimo e do mido;ou mirasse longe, bem longe, como o hipermtrope que s consegue ver claro distncia, divisando o horizonte, o muito alto ou o muito profundo, a seu bel-prazer. Uma luz crua que ofuscasse fazendo o objeto reverberar por todo ocampo visual, ou uma luz tnue que deixasse as pessoas e as coisas mergulhadasna penumbra e diludas na nvoa do olhar embaado que mal distingue oscontornos ocultos por trs de manchas e pontos cegos.

    Essa lmpada identifica-se com os movimentos da conscincia narrativa.No se trata de umego absoluto, posto acima ou fora da Histria, como talvez o

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    constitusse o filsofo idealista. Trata-se de uma conscincia formada por umahistoricidade mais larga, mais densa e mais profunda do que o t empo fixado no

    relgio e no calendrio. A historicidade imanente conscincia do escritor estsaturada de memria cultural, que lhe d modelos de interpretao e de julgamentocapazes de qualificar os estmulos do aqui-e-agora e pensar as situaes que asnotcias de jornal lhe prodigalizam no cotidiano.

    Slvio Romero, tachando o autor deQuincas Borba de mau retratista, eLabieno, defendendo-o como homem de seu tempo, teriam incorrido, segundoFaoro, no mesmo equvoco: o de julgar Machado exclusivamente pelo critrioespecular, como se a operao fotogrfica desse a medida do valor de um ficcio-nista. Este esquema, velho de um sculo, batido e estril, converteria o fatoliterrio ao fato no-literrio, reduzindo-o aos fatores sociais, transpostos estes

    para uma moldura preexistente15

    . Faoro ensina a evitar esse escolho do sociolo-gismo menor: Mas a raiz comum do pensamento no confunde o fato socialcom o fato artstico. O historiador e o romancista, perdidos no territrio de suasperspectivas e perplexidades, armam-se do espelho, para captar e refletir a reali-dade, enquanto a lmpada, que a projeta, brilha com outra intensidade16.

    O objetivismo de base cientfica, esquece o elemento mais caracterstico daapreenso da realidade social: a relevncia cultural do dado. A significao dofenmeno social e histrico no se deriva de leis, nem sequer dos fatos neutra-lizados pela medida, seno que se abre compreenso por meio de valores. Oobjeto que se apresenta ao espectador est predeterminado pela significaoque o valor lhe infunde, transformando-o em objeto cultural17.

    As citaes acima visam a destacar, nos enunciados de Faoro, os termos decompreenso, cultura e valor . Apoiando-se em Max Weber, o nosso leitor deMachado ir insistir na dimenso cultural e axiolgica das escolhas feitas peloshistoriadores e, com maior liberdade, pelos romancistas. A cultura a fonte davalorao, ela d sentido aos episdios lembrados ou inventados pelo narrador.No caso de Machado, o eixo da interpretao dos comportamentos a anlise daspaixes que os motivam, sempre; e esse foi, desde Montaigne a La Rochefoucauld,desde Maquiavel a La Bruyre e a Schopenhauer, o exerccio dileto dos moralistas.

    A relevncia do olhar moralista na obra de Machado j fora apontada porAugusto Meyer, sempre atento aos movimentos prospectivos do bruxo de CosmeVelho. Faoro retoma a intuio daquele extraordinrio crtico-artista, acentuandodidaticamente a diferena entre o moralista moralizador (passe a tautologia) e omoralista analtico:

    Moralista no quer dizer moralizador, pregador de moral ou censor de cos-tumes. O moralismo nada tem com a moral, mas tem muito a ver com oscostumes,mores , isto , com o gnero de vida e a maneira de ser do homemna realidade concreta, que pode serimoral . O s moralistas no so educadores,nem professores de tica. So observadores, analistas, pintores de homens,infinita a sua tarefa. Seu estudo se dedica complicao total da natureza

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    contraditria e da condio banal e concreta do homem, que no se revelaseno quando a tica se retira para deixar o campo livre observao nopreconceituosa do real18.O eixo hermenutico est definido. Compreender o olhar de Machado

    pr-se escuta de toda uma tradio de anlise dos comportamentos humanos,ancorada na percepo do amor prprio onipresente, da vaidade, da precariedadeda conscincia, da preeminncia do interesse e do desejo sobre as exigncias dodever, ou, usando categorias freudianas, do princpio do prazer sobre o princpioda realidade.

    Que este eixo da interpretao possa coexistir com explicaes sociolgicas,eis uma constatao que tem a ver com a prpria coerncia interna de Machadode A ssis: a pirmide e o trapzio . A conscincia de que se trata de abordagens

    distintas, at o extremo da oposio, exprime-se no interttulo O moralismoem conflito com a histria e a sociedade19.Em que consistiria esse conflito de interpretaes?Faoro cr detectar uma tenso entre a viso moral e psicolgica (tal qual o

    escritor a teria construdo modelando as suas experincias pela mo dos moralistas)e o determinismo tipificador com que a sociologia acadmica opera na hora deexplicar as condutas fora e dentro do texto.

    Glosando o romancista, diz o crtico: Um Cromwell ou um Bonapartechegaram ao topo da pirmide, no pela conjuno das foras sociais, mas por viado incndio da ambio de poder.

    Em outras palavras: para Machado, a vontade de poder, na medida em quearde com violncia, seria a origem do percurso dos homens que fizeram aH istria. A afirmao relativiza o puro mecanismo das presses sociais. Nem porisso Machado teria atribudo ao indivduo o poder de autodeterminar-se. Na raizde todos os desejos que animam, h milnios, o ser humano, pulsaria uma foracega, indiferente ao destino dos seres que ela mesma engendrou: essa fora aNatureza, a vontade de viver alegorizada no delrio de Brs Cubas. Nessa ordemde relaes, a sociedade o lugar comum em que as paixes se encontram edesencontram. Paixes que derivam de uma energia difusa que as transcende, asprecede e lhes sobrevive e, ao mesmo tempo, as enforma e habita, pois cadadesejo individual inerente vontade csmica. A afinidade com o pensamentode Schopenhauer salta vista.

    Mas, apesar da remisso ltima Natureza, a construo machadiana daspersonagens no ser naturalista, em senso estrito, pois o mesmo desejo natu-ral enfrenta o desafio das normas sociais. Da, a necessidade da mscara, donegaceio, da hipocrisia e, s vezes, da mentira. Machado o grande analista dasrelaes turvas entre a primeira e a segunda natureza. O moralista constata odisfarce, mas ergue o vu que mal encobre a natureza eternamente selvagem, aVida, senhora dos nossos desejos, fonte ltima de nossa existncia neste mundosublunar.

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    Mas, se for considerado o plano dos costumes, dosmores , como segundanatureza, to imperiosa como a primeira, no dizer do prprio Machado, teremos

    acaso construda a ponte de duas mos entre os instintos e as convenes sociais?Faoro lembra um dos mais agudos pensamentos de Pascal: O costume umasegunda natureza, que destri a primeira. Mas o que a natureza? Por que ocostume no natural? Temo que esta mesma natureza no seja mais do que umprimeiro costume, assim como o costume uma segunda natureza (Penses , n120 da ed. Brunschvicg).

    A luta darwiniana e maquiavlica entre os fortes lees e as espertas raposaster sido transposta para a selva social, onde s os fortes podero dizer tudo o quepensam, at o limite do cinismo, precisando os fracos recalcar os seus sentimentose intenes. Mas, ento, ser justo condenar o que , nos fracos, necessria defesa?

    O moralismo deixar de ser, nessa altura, apenas acre desmistificao domoi hassablepara assumir tons realistas, isto , concessivos, diplomticos. Ao fraco e pobre,afinal, assistiria o direito de despistar o forte e o rico, porque precisa sobreviver. Aambio do pobre deixar de ser reprovvel em razo daquele mesmo direito deascender a posies de que os ricos desfrutam desde o nascimento. Quanto ingratido, posto que negra aos olhos romnticos e idealistas, poder significar oexerccio de uma afirmao pessoal, que o avesso da subservincia a que estavaconstrangido o dependente, o agregado. Os exemplos de Guiomar e Iai Garciaso inequvocos. O moralismo, universalizando os desejos e os interesses do eu(ainda que os considere, na origem, detestveis, por serem vaidade e ambio),ir, no limite, compreender a sede de igualdade que a nova sociedade liberal-individualista desperta no pobre e no dependente. Compreender aqui significaaceitar, conceder, tolerar. Ant igas idias so chamadas para destrinar situaes novas.

    O conflito entre a sociologia e a hermenutica, desenhado por Faoro, poderatenuar-se, desde que ainterpretao assentada sobre a tradio ocidental daanlise moral conceda que as paixes, embora recorrentes, so despertadas porestmulos sociais localizados, variveis atravs dos tempos. Por sua vez, a leiturasociolgica fechada conceder ao hermeneuta o carter humano, transtemporal,das paixes, mola de todos os comportamentos, preexistente e sobrevivente scontingncias que a acionam. Transhistrico, o desejo no ser, porm, a-histrico.O dio visceral entre irmos, que fez Caim matar Abel, Rmulo matar Remo,Esa e Jac brigarem no ventre da me, e Jos ser vendido, volta nas figurasburguesas de Pedro e Paulo, inimigos antes de nascerem,ab ovo , no romancemachadiano. A paixo tem mil formas histricas de manifestar-se e mil ocasiesparticulares. O moralista escavar o desejo na sua dinmica existencial, como ofez durante sculos antes de ceder o seu objeto Psicanlise. E o socilogo seater aos condicionantes mais prximos das tramas interpessoais.

    Retomando a anlise do contoO espelho , Faoro diz que a alma exteriorde Jacobina, a sua farda de alferes, o seu lado inequivocamente social, aparece,na voz do narrador, como o vencedor da alma interior, onde residiria o pri-

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    claro que os instrumentos da velha glria foram potenciados pelas formas mlti-plas da publicidade moderna, esta dona loureira e senhoril. Mas ainda aqui

    dir o moralista que, se mudaram os modos e os tempos, o fim ltimo sempreo mesmo, pois sempre a mesma a motivao do insaciveleu . A modernizaono melhora, mas tampouco piora, as condutas regidas pela vontade de viver epela vontade de poder.

    Se h em Machado lucidez ao representar o estilo patriarcalista, ocasio dearbtrios como toda relao de favor, nem por isso a sua viso da sociedade serconfiante no mundo modernizado do dinheiro fcil, como se depreende de suaspalavras de averso s corridas do Encilhamento. A frase clebre de Guizot, emblemada nova burguesia europia, Enriquecei-vos, parece-lhe nada menos que sinistra21.

    As personagens que vencem na vida e que, de algum modo, espelham a

    sociedade em transio para a hegemonia burguesa, no recebero do olhar donarrador uma aura propriamente simptica; ser, quando muito, concessiva. Nosromances de juventude, o novo rico, Procpio Dias, srdido ( Iai Garcia ); eCamargo, em H elena , pai interessado no casamento rico da filha, pouco menosque vilo. Guiomar e Iai, moas de origem humilde ou apenas modesta, sobemde classe por suas manobras de astcia e determinao, ganhando um t ratamen-to antes justificativo do que elogioso: nelas a segunda natureza, to imperiosacomo a primeira, rege e explica suas aes. Em Iai, se ambio havia, pareciaser de boa raa, avaliao que morde e sopra. Na fase madura, as personagensricas ou que enriquecem sero detestveis, ou quase... Nas Memrias pstumas ,Cotrim ganancioso e cruel; Lobo Neves ambicioso, mas supersticioso e, afi-nal, em face do possvel adultrio da mulher, temer antes a opinio pblica doque a verdade de sua vida conjugal. Quanto a Brs Cubas, que conta a sua hist-ria depois de morto, tampouco se poupa ao expor a fatuidade e a prtica de dri-blar os escrpulos de conscincia pela vida afora. Brs mente e sabe que os ou-tros tambm lhe negam a verdade, mas acaba concordando com a concluso deum velho conhecido seu, Jac Tavares, para quem a veracidade absoluta eraincompatvel com um estado social adiantado[...] Assim julga Machado aquelasociedade que comeava a adiantar-se. Virglia, a amante de Brs, no deixariade dar, o tempo todo, primazia considerao social, e era menos escrupulosaque o marido: posto que rica, adulava um velho amigo da famlia, pois eramvivas as esperanas que trazia no legado. Falsidade que saber ser implacvelmostrariam Palha e Sofia com o ingnuo Rubio, emQuincas Borba : o casalsubir na vida aproveitando-se daquele provinciano desfrutvel que abandona-ro na sua fase final de loucura e solido. Em Dom Casmu rro , Escobar comeapedindo uns dinheiros emprestados desambiciosa Dona Glria, e logo depoisenriquecer graas a seus finos dotes de calculista. Em Esa e Jac , Nbrega, oirmo das almas, adquire bens na base de golpes, e ser a sombra m na histriade Flora. O banqueiro Santos, pai dos gmeos, mistura cobia e desejo de afidalgar-se: Ganhou muito, e f-lo perder a outros. Enfim, Tristo, no Memorial de

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    A ires , passa de afilhado protegido a moo futuroso, mas a sua carreira deixa noleitor o gosto da ambigidade: interesseiro ou apenas poltico? Todas as sus-

    peitas, porm, atenuam-se nessa obra crepuscular.Machado no saudosista nem evolucionista, no sentido que este ltimotermo confere a uma linha que vai do tradicional ao moderno como um processoque iria do pior para o melhor. Na sua tica, tanto em um regime como no outropodem prevalecer o interesse e o mais feroz egosmo, dos quais nada h a esperarseno a reproduo da fora ou da astcia, alavancas do comportamento humano.Em contextos diversos, tanto a arcaica matrona Dona Antnia, deCasa velha ,quanto o moderno casal subido na vida, Palha e Sofia, deQu in cas Borba , lanaroas suas redes e vileza para alcanar os seus fins e manter o seustatus . E, quandoh uma personagem a quem repugnava a idia de rede, como Estela, em Iai

    Garcia , o seu destino ser o de uma altiva mas resignada solido.Nessa ordem de razes, a posio existencial do Machado maduro em facedo novo liberalismo (preconizado por tantos dos seus companheiros de gera-o) ser, no mnimo, reticente. Navegar nas guas progressistas de SaldanhaMarinho, Quintino Bocaiva, Tavares Bastos, Nabuco, Rui, Patrocnio e outros,seria conceder ao barro humano um crdito de confiana que, a rigor, pareciaexcessivo ao analista moral. A sociedade mudava de figura, sim, mas sempreenraizada no solo da dominao. Como est dito no conto Pai contra me,aordem social e humana nem sempre se alcana sem o grotesco, e alguma vez o cruel .A afirmao parte do Brasil, mas no se restringe ao Brasil: trata-se da ordemsocial, conceito aqui construdo por um olhar ctico transversal.

    Dois exemplos ainda, tomados aos ltimos romances, cuja ao t ranscorreentre fins do Imprio e o comeo da Repblica, tempos de modernizao docontexto fluminense:

    O que esperar dos jovens Pedro e Paulo, irmos e inimigos desde a infnciaque, j triunfantes na carreira poltica, juraram, ao p da me agonizante, queviveriam para sempre reconciliados e, no entanto... pouco tempo depois, volta-ram ao dio de sempre?

    O que esperar dos jovens garridos e bem postos na nova sociedade, Tristoe Fidlia, to amados e servidos pelo casal Aguiar, vistos pelos olhos de Aires no

    Memorial ? Que cumpram as leis da Vida e palmilhem a rota da felicidade pessoal,mesmo custa da solido dos padrinhos, rfos s avessas. Ser, convenhamos, amais tnue das desiluses se confrontada, por exemplo, com o destino trgico deRubio; nem por isso deixar de significar o retorno de antigas e amargas certe-zas. Les mort s vont vit e , e com eles os velhos: o que sugere o nosso conselheiro,no por acaso diplomata e aposentado.

    Reler Machado de Assis: a pirmide e o trapzio ser chamado a um dilogofecundo entre a sociologia e a hermenutica, a explicao e a compreenso, o quadroe o olhar, o que no desprazeria ao mestre de Raymundo Faoro, aquele Weber quesondou, em toda a sua obra, as intrincadas relaes entre o indivduo e a sociedade.

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    Notas

    1 Raymundo Faoro, Os donos do poder. Formao do patronato poltico brasileiro , 5ed., vol. I, Porto Alegre, Globo, 1979, p. 47.

    2 Cf. a excelente introduo que Gabriel Cohn escreveu para a coletnea Max Weber ,2 ed., So Paulo, tica, 1982.

    3 Um estudo das prticas eleitorais do Segundo Reinado, que traz novos dados paraentender o processo no seu conjunto encontra-se em Jos Murilo de Carvalho, Aconstruo da ordem e Teatro de sombras, 3 ed., Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira,2003, pp. 393-416.

    4 A distino fundamental entre liberalismo e democracia, vigente na Europa ps-revolucionria, foi aprofundada na obra clssica de Harold J. Laski,O liberalismoeuropeu, trad. de lvaro Cabral, So Paulo, Mestre Jou, 1973. Para Laski, o ncleo

    duro do liberalismo a sacralidade da propriedade privada que no guarda relaoestrutural alguma com o igualitarismo. O escravo ( observao de Nabuco) ainda uma propriedade como qualquer outra, da qual o senhor dispe como de umcavalo ou de um mvel (Em O Abolicionismo, cit.). A oposio entre liberalismoeconmico e ideais democrticos j estava explcita nas palavras do Visconde deCayru ditas na Constituinte de 1823. Absolutamente nenhum governo pode tolerarque em quaisquer aulas se ensinem, por exemplo, as doutrinas do contrato social dosofista de Genebra (cit. por Jos Murilo de Carvalho, op. cit ., p. 85).

    5 A tese de que as ideologias correntes ao longo da nossa histria poltica nocorresponderiam realidade brasileira conheceu pelo menos dois discursosdiferenciados:

    a) Em pleno sculo XIX, por ocasio do debate em torno da Lei do Ventre Livre, oMarqus de Olinda, na esteira do Regressismo de Bernardo Pereira de Vasconcelose do Visconde do Uruguai (criador do nosso Direito Administrativo), defendia oregime escravista e o centralismo por lhe parecerem mais consentneos com anossa economia e nossa estrutura poltica. A sua recusa das propostas abolicionistasinicialmente formuladas na Europa (Para c no servem suas idias) exemplodo conservadorismo que rejeitavaa priori qualquer mudana em nome de umaespecificidade ideolgica nacional. Se veio de l, no pode servir c. A mesmasndrome nativista e reacionria animou as invectivas de Jos de Alencar contra oprojeto de libertao dos nascituros. De modo geral, a combinao de xenofobiae autoritarismo tende a considerar impertinentes e disparatadas as idias estrangeiras,

    sobretudo as reformistas. Assim, o iderio integralista defendeu, no final dos anosde 1920, um brasileirismo extremado de idias e valores, separando suas guas doModernismo a que se juntara episodicamente (V. Antonio Arnoni Prado, 1922: Itinerrio de uma falsa vanguarda , So Paulo, Brasiliense, 1983). Nos anos de1930, uma corrente nacionalista e autoritria representada por idelogos quesecundaram o Estado Novo, como Azevedo Amaral e Oliveira Viana, contestou ocarter idealista e deslocado dos princpios liberais presentes na Constituiorepublicana de 1891.

    b) Entre os intrpretes da histria das ideologias no Brasil h estudiosos que, sem ovis ideolgico dos nacionalistas citados, defendem a hiptese de que as idias

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    difundidas por culturas europias, como o liberalismo ingls ou francs e opositivismo francs, estariam deslocadas, no se ajustando a uma sociedade deperiferia, defasada com o ritmo do Centro. Seriam imitaes artificiais. o transo-ceanismo, termo atribudo a Capistrano de Abreu. a afirmao de que somosdesterrados em nossa prpria terra, que percorre R azes do Brasil, de SrgioBuarque de Holanda, amparando a suposio de que os idelogos brasileirospreferem abstraes ao corpo-a-corpo com o cotidiano. Enfim, a expresso idiasfora do lugar, cunhada pelo crtico literrio Roberto Schwarz no seu notvelestudo sobre Machado de Assis ( A o vencedor as batatas, So Paulo, Duas Cidades,1977), que leva s ltimas conseqncias a tese da impropriedade de uma ideologiade origem europia (o liberalismo) em relao a um componente bsico da estruturaeconmica brasileira (o escravismo).Em outros intrpretes encontramos argumentao contrria s teses mencionadas.Paulo Mercadante v na simbiose liberalismo-escravido um uso coerente doliberalismo ocidental (que foi, sem exceo, excludente) em funo dos interessesdos fundadores do Estado-Nao brasileiro ( A conscincia conservadora no Brasil,3 ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980); articula-se, nesta obra, uma refutaoda hiptese do artificialismo das ideologias ocidentais quando aplicadas nossapoltica. Maria Sylvia Carvalho Franco, em estudos de alto rigor conceitual, buscaprovar a unidade estrutural da economia de mercado aqum e alm-Atlntico,que se afirma apesar do carter incompleto do capitalismo brasileiro ainda apoiadono trabalho compulsrio ( Homens livres na ordem escravocrata, So Paulo, USP,Instituto de Estudos Brasileiros, 1969). Maria Sylvia polemiza com a expressoidias fora do lugar no seu texto As idias esto no lugar (emCadernos de Debate, I, So Paulo, Brasiliense, 1976): a produo ideolgica do liberalismo

    estava enraizada no sistema capitalista mundial, que a constituainternamente, apartir de cada situao particular. Em toda parte, o liberalismo cimenta e racionalizaos interesses da burguesia dominante, incluindo na sua dinmica a escravido e ofavor. Do estudo clssico de Jacob Gorender, O escravismo colonial (So Paulo,tica, 1978) depreende-se que a classe dominante no Imprio no poderia deixarde aderir ao liberalismo, como ideologia arraigadamente proprietista. Para oprodutor de acar ou de caf e para o mercador de escravos, o liberalismo servia,em primeiro lugar, como ideologia do livre mercado. Recentemente, Gorendervoltou ao tema contestando a atribuio de exterioridade ao liberalismo emnosso regime oligrquico: as idias liberais estavam no lugar apropriado,reproduziram o que seus defensores pretendiam (Estudos Avanados, n 46,2002).O ensasta Srgio Paulo Rouanet formulou uma crtica radical das vrias formas deautonomismo ideolgico, na medida em que este pretende negar a pertinncia deidias e ideais cujas primeiras formulaes tenham sido concebidas fora das fronteirasnacionais (Elogio do incesto, em Mal-estar na modernidade , 2 ed., So Paulo,Cia. das Letras, 2003). Para entender as vinculaes estruturais entre o sistemaescravista e a construo do Estado nacional na fase urea do liberismo econmico,leia-se o texto incisivo de Luiz Felipe de Alencastro Lempire du Brsil em Leconcept dempire (org. por M. Duverger), Paris, PUF, 1980. Reconhecendo afuno modeladora das ideologias europias e, ao mesmo tempo, o pragmatismo,do seu uso pelos polticos do Imprio, Guerreiro Ramos ( Administrao e estratgia

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    do desenvolvim ento, So Paulo, F. Getlio Vargas, 1966) e Jos Murilo de Carvalho(op. cit .) deram contribuies inovadoras questo do lugar das idias liberais emnossa vida pblica. Fundamental, pela acuidade de suas anlises, continua sendo oensaio de Wanderley Guilherme dos Santos, A prxis liberal no Brasil, emOrdemburguesa e liberalismo poltico, So Paulo, Duas Cidades, 1978: para o autor oliberalismo oligrquico, escorado na eleio censitria e na permanncia do trabalhoescravo, acabou sendo a alternativa vivel de que dispunham os fundadores donovo Estado-Nao como sucedneo do regime colonial. Este no seria, de resto,o nico exemplo do uso perverso da racionalidade liberal-capitalista.De minha parte, elaborei uma crtica ao carter generalizante e indiferenciado dashipteses de deslocamento e exterioridade do liberalismo no Brasil. Trata-sede juzos equivocados enquanto confundem idias liberais comigualitarismo edemocracia, ignorando a funcionalidade das normas liberal-proprietistas na cons-truo do corpus jurdico e poltico do Imprio (A escravido entre doisliberalismos, em Dialtica da colonizao, So Paulo, Cia. das Letras, 1992). Squando a gerao reformista ps-1868 desbloqueou o velho liberalismo,dissociando-o do direito incondicional de propriedade, que houve condiesculturais para que emergisse o militante liberal-democrata e o liberal-abolicionista,que ocuparam a cena nos anos de 1870 e 1880. (So figuras que, sintomaticamente,no comparecem no romance de Machado de Assis). Parece-me que o conceitode filtragem ideolgicad conta das vrias modalidades de ut ilizao das correntesocidentais; hiptese que procurei testar no estudo do liberalismo excludente, doliberalismo democrtico e do positivismo social.Vale, enfim, registrar que todas as ideologias professadas entre ns no sculo XXfiltraram idias nascidas na Europa, de onde vieram os discursos integralistas,

    fascistas, socialistas, anarquistas, comunistas, cristos-de-esquerda, revisionistas etc.As doutrinas de esquerda sempre foram tachadas deexgenas e imprpriaspelos idelogos conservadores.

    6 Sobre a presena do liberalismo conciliador francs de Benjamin Constant na ela-borao da Carta de 1824, ver Paulo Mercadante,op. cit ., caps. II I e IV. A figura docidado-proprietrio, o nico a quem se conferia o direito de eleger e ser eleito, chave no discurso poltico de Constant e do liberalismo da Restaurao, cujasexpresses passaram literalmente para a nossa Carta magna. Benjamin Constant explcito: S a propriedade torna os homens capazes do exerccio dos direitospolticos. Quanto classe trabalhadora, no teria condies de tempo indis-pensveis aquisio das luzes, retido do julgamento (Principes de politique

    applicables tous les gouvernements reprsentatifs et part iculirement la Consti tu tionde la France (1815) , em crits politiques, Paris, Gallimard, 1997). Soube, porinformao da infatigvel pesquisadora Ceclia Helena de Salles Oliveira, que hcartas de Benjamin Constant a D. Pedro I, cuja leitura provavelmente trar maisluzes sobre a influncia do pensador suo-francs em nosso liberalismo excludente.

    7 Joaquim Nabuco, Um estadista do Imprio, 2 ed., Rio de Janeiro, Nova Aguilar,1975.

    8 Joaquim Nabuco, O abolicionismo, 4 ed., Petrpolis, Vozes, 1977, p. 133. (A 1edio saiu em Londres, em 1883).

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    R AY M U N D O F A O R O L E I T O R D E M A C H A D O D E A S S I S

    ESTUDOS AVANADOS 18 (51), 2004 375

    9 Rui Barbosa, Emancipao dos escravos, Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1884.

    10 Srgio Buarque de Holanda, Do Imprio R epblica, 4 ed., So Paulo, Difel,

    1995, pp. 195-238.11 Raymundo Faoro, op. cit. II, 453.

    12 Idem, ibidem.

    13 Raymundo Faoro, Machado de Assis: a pirm ide e o trapzio, So Paulo, CompanhiaEditora Nacional, 1974, p. 492.

    14 As consideraes de Faoro coincidem com as observaes analticas de RichardGraham em Gr-Bretanha e o incio da modernizao no Brasil, So Paulo, Brasi-liense, 1973.

    15 Raymundo Faoro, op. cit., 1974, p. 485.

    16 Idem, p. 486.17 Idem, p. 487.

    18 As aspas remetem a uma citao da obra de Hugo Friedrich sobre Montaigne,op.cit ., p. 496.

    19 Raymundo Faoro, op. cit ., 1974, p. 496.

    20 Idem, p. 499.

    21 Trata-se de uma crnica datada de 7 de julho de 1878 (emObra completa, Rio deJaneiro, Aguilar, 1973, vol. III, p. 386). Fiz alguns comentrios sobre o tema emO teatro polt ico nas crnicas de Machado de A ssis, Coleo Documentos. Srie

    Literatura I (USP, Instituto de Estudos Avanados, 2004).

    RESUMO RAYMUNDOFaoro dedicou sua obra Machado de A ssis: a pirm ide e o trapzio aoestudo das relaes entre as situaes e as personagens do narrador e a ment alidade dasclasses sociais e dos grupos de status do Brasil imperial. O esquema geral da sua int erpre-tao de Machado de Assis retoma a estrutura da sua obra-prima, Os donos do poder ,fortemente influenciada pelo pensament o de Max Weber.Na ob ra de Machado estariam representados os estamentos (trapzio) e as classes (pir-mide) . Alm d isso, haveria no romancista um distanciamento de valores e de estilo emrelao ao aburguesamento das elites do Segundo Imprio. O artigo aponta tambmpara a dimenso universalizante do moralismo clssico, que Faoro reconhece comoum dos eixos da perspectiva ficcional de Machado .

    A BSTRACT RAYMUNDO Faoros work, Machado de A ssis: the Pyram id and the Trapeze ,studied the relationship between the narrators situations and characters and t he mindset

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    A L F R E D O B O S I

    ESTUDOSAVANADOS 18 (51), 2004376

    of the social classes and status groups in Imperial Brazil. The framework of hisinterpretat ion of Machado de Assis resembles the structure of his own masterpiece, Os

    Donos do Poder , which was strongly influenced by Max Webers thought.According to Faoro, we find in the work of Assis both guilds (the trapeze) and classes(the pyramid) . In addition, the novelist distances himself in values and style from thebourgeoisification of the elites in the Second Empire. This article also points to auniversalizing dimension of classicalmoralism, which Faoro identifies as one of thepivots of Assis fictional perspective.

    A lfredo Bosi professor de Literatura Brasileira na Universidade de So Paulo e autor,entre outras obras, de Histria concisa da literatura brasileira , O ser e o tempo da poesia, Dialtica da colonizao, Machado de A ssis: o enigma do olhar e Literatura eresistncia. editor da revistaE STUDOS AVANADOSe membro da Academia Brasileria deLetras.

    Texto recebido e aceito para publicao em15 de junho de 2004.