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FAZENDO 102 o boletim do que por cá se faz E na vida? Navegais à popa ou à bolina? gratuito julho 2015

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Page 1: Fazendo 102

FAZENDO 102o boletim do que por cá se faz

E na vida? Navegais à popa ou à bolina?

gratuito julho 2015

Page 2: Fazendo 102

10 2 0 2FAZENDO * **

2002

Sumário Ficha Técnica

MúsicaKing John por luís silva.10206

Culturacultura açorespor filomena barcelos.10208

Intervenção fazendo (as) conversarpor fernando nunes com ana paula inácio e renata correia botelho .10214

Artemanifestos futuristas por assunção melo.10216

Ciênciaáguas-vivaspor helena krug.10220

Intervençãoo estio por fernando nunes.10221

Directoresaurora ribeiro

tomás melo

Colaboradoresana lúcia almeida

assunção meloana paula inácio

carlos mourafernando nunes

filomena barceloshelena melo medeiros

lia goulartluís silva

paco garcíapaulo vilela raimundorenata correia botelho

rogério sousa

Revisãoaurora ribeiro

Capaleonie greefkens

Paginaçãoraquel vila

Projecto GráficoilhasCook

p r o p r i e d a d e assoc cultural fazendos e d e rua conselheiro medeiros nº 19

9900 hortap e r i o d i c i d a d e mensal

t i r a g e m 500 exemplaresi m p r e s s ã o o telégrapho

Leonie Greefkens

ilustração Merijn Hos

-The boats on the seaare like the clouds in heaven.

The clouds in the oceanare like the boats in the sky.-

Page 3: Fazendo 102

2002

ele chegou descontraídocaminhando sozinho.devagar se vai ao longedevagar eu chego lámostra -me o teu rostomenina mulher da pele pretacombinação de coresperfeição tropicalaqui onde estão os homenseu vou torcer pela paz, alegria e amor.já consultei os astrospode -se voar sozinho até às estrelasao sair da ilhauma cabana

FAZENDO 102Capa

Fernando Nunes

Leonie Greefkens-The boats on the sea

are like the clouds in heaven.The clouds in the ocean

are like the boats in the sky.-

Luchtbootjesen zeewolkenspelen tussen

hemel en aarde.

A Organização das Nações Unidas considerou o segundo ano do século XXI como o Ano Internacional do Património Cultural. A Associação Cultural Maré de Agosto constituída formalmente a 16 de outubro de 1987, em Vila do Porto, Ilha de Santa Maria, viu nesse ano oficialmente reconhecida o seu Estatuto de Entidade de Utilidade Pública, tendo recentemente recebido no âmbito das comemorações do dia dos Açores a Insígnia Honorífica de Mérito Cívico. O Instituto Açoriano de Cultura publica o título: “João Correia Rebelo: Um arquitecto moderno nos Açores sob a direcção de João Vieira Caldas” tem ainda em anexo dois Manifestos “Não”. João Correia Rebelo nasceu em Ponta Delgada, São Miguel, na década de vinte do século passado. Era filho do pintor Domingos Rebelo e estudou Arquitectura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, concluindo o seu curso no início dos anos cinquenta. Gostava de desenhar e chegou a fazer uma exposição com desenhos seus sobre figuras de Hollywood em Ponta Delgada. Apelidado de moderno tinha vontade que a sua cidade de nascimento acompanhasse os novos valores e movimentos que emergiam na arquitectura do seu tempo. Por isso, fez intervenções, criticou o edificado existente e planificado, apontou novos rumos e apresentou propostas nem sempre consensuais. Acreditava que a função do arquitecto era criar e não copiar, daí o seu universo arquitectónico girar em torno de duas figuras inventivas da arquitectura moderna: Le Corbusier e Frank Lloyd Wright. Esteve fora, emigrado, regressou e foi ainda mais crítico com a pequenez e limitação de horizontes em que julgava viver. Tem uma obra com uma força imponente que vale pelo seu conjunto, destacando-se o Edifício dos CTT de Vila do Porto, em Santa Maria, o Colégio de São Francisco Xavier, em São Miguel, e a Estalagem da Serreta, na Ilha Terceira.

ilustração Estel Boada

Barcos aéreos E nuvens marinhas

Brincam entre O céu e a terra.

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10 2 0 4FAZENDO * **

O Museu de Angra do Heroísmo acolhe até 13 de setembro a exposição itinerante “Dacosta 1914-2014”, organizada em conjunto com o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e a Secretaria Regional da Educação e Cultura/Direção Regional da Cultura, cujo curador é José Luís Porfírio.

Composta por 48 peças distribuídas pelas salas do Capítulo e Dacosta, esta exposição retoma a mostra comemorativa do centenário do pintor terceirense António Dacosta, apresentada no CAM, em Lisboa, e que esteve também já patente no Centro de Arte Contemporânea Graça Mourais, em Bragança.

Obras marcantes como “A Cena Aberta”, a “Serenata Açoriana” e “A Festa” combinam-se com outras inéditas e menos conhecidas de forma a dar uma imagem de conjunto da obra do artista e a ilustrar dois aspetos fundamentais das suas criações: a Calma e a sua antítese, a Inquietação.

arte

Assim, na Sala Dacosta, está aberta a “Caça ao Anjo”, sucedem-se testemunhos inquietantes de um mundo em desconcerto e os cinzentos densos e a luz velada indiciam a meditação sobre a existência e a finitude. Apenas n”A Festa”, em que a matança sacrificial serve o bem comum, em louvor do Divino, os tons suaves e a serena confraternização entre bestas enfeitadas e meninos instauram uma atmosfera harmónica e limpa, que antecipa a atmosfera solar das telas felizes espraiadas na Sala do Capítulo. Ali, sol, mar e ilhas, bichos e mulheres, fruta e fontes sucedem-se, criando uma Calma refrescante, ou, no dizer de José Luís Porfírio “um espaço contemplativo, presença e memória do Sul e da Ilha relembrada, quer em Lisboa, quer em Paris, (…) onde a mancha se transforma em paisagem e a memória é a presença de um monumento terceirense.”

A exposição em causa tem sido alvo de um programa de dinamização por parte do Serviço Educativo do Museu de Angra do Heroísmo, que envolveu já mais de 300 crianças e jovens dos concelhos de Angra do Heroísmo e Praia da Vitória. A par de uma visita orientada que fomenta a observação e exploração das obras expostas, decorre o ateliê de expressão plástica “Antítese e Calma”, em que os participantes são convidados a compor atmosferas de sonho ou pesadelo, combinando e sobrepondo paisagens, motivos e personagens emblemáticas de Dacosta, recorrendo a técnicas e materiais vários. Para crianças entre os quatro e os nove anos foi preparada a atividade “Em viagem com o coelhinho de Dacosta”, que apresenta a obra do artista, mediante a narração de uma história dramatizada, cujas sequências narrativas se organizam a partir de algumas das suas principais telas, assumindo os meninos o papel de personagens.

DACOSTA 1914-2014

No Museu de Angra do Heroísmo

Ana Lúcia Almeida

A Calma e a sua Antítese

Page 5: Fazendo 102

10 2 0 5 FAZENDO ***

& cinema

Somos terra

s pequenas. N

ão terras d

e

pequenos, mas p

equenas em si mesm

as.

Vastas n

a imensid

ão do mar, estre

itas

nas relações q

ue se estabelecem em

terra. É natural, p

ortanto, que os p

ontos

de contato e as sinergias su

rjam mais

naturalmente cá do que nas vasta

s e

imensas re

lações das te

rras grandes.

Exemplo disto é a recém-cria

da parceria

que o Cineclube da Ilha Terceira

e o

Alpendre – Grupo de Teatro, com o apoio

da Associação Cultu

ral Burra de Milho,

estabeleceram em prol do público e

oferta cultu

ral da ilha Terceira

.

A partir da últim

a semana de setembro, a

sua quarta porta

nto, a sede do Alpendre

– Grupo de Teatro, no Alto das C

ovas,

Angra do Heroísmo passa

a receber

Cinema às quintas-fe

iras, M

úsica às

sextas-feira

s, e Teatro

ao sábado.

Três dias, t

rês artes, u

ma só lógica: cria

r

regularidade na oferta

. Só assim há

habituação. Uma boa habitu

ação, neste

caso. Da qual não nos queremos li

vrar.

O grande ecrã e as grandes histó

rias

à quinta-feira; o so

m e a música dos

artistas d

os Açores à sexta, na entra

da

do fim-de-semana com arte

s de palco ao

sábado.

A partir de setembro, às se

gundas e

quartas se

manas de cada mês, a

não

esquecer: cinema, m

úsica e teatro estã

o

lado a lado à vossa espera.

Façam-se desta

casa.

Com Som Rogério Sousa

Palco

Cinema, Música e Teatro

DACOSTA 1914-2014

Ana Lúcia Almeida

A Calma e a sua Antítese

Page 6: Fazendo 102

10 2 0 6FAZENDO * **

Não é um apelo à restauração da mo-narquia. Nem sequer se trata de uma notícia fútil acerca de algum mem-bro de uma das famílias reais que pululam por essa Europa confusa. É um caso sério que recentemente invadiu a música açoriana e prome-te dar que falar e, sobretudo ouvir, dentro e fora do arquipélago.

King John, alter-ego de António Al-ves, compositor e multi-instrumentis-ta oriundo de S. Miguel, vem de um reino de paisagens marcantes e tão diversas como os Blues, Rock’n’Roll, psicadelismo, jazz ou folk e, desde o primeiro momento que se ouve, o rei descarna a sua alma com uma honestidade nas letras desconcertan-te, pondo a nu as suas fragilidades, angústias e desejos, confundindo-se com qualquer mero plebeu deste ou de outro reino.

Com um formato sonoro eminente-mente minimal e, por isso, proposita-damente intimista, cruzando-se por caminhos não alheios a Bob Dylan, John Lee Hooker ou Jimi Hendrix, King John poderá ser subtil e visce-ral, melancólico e eufórico, brando e intenso. A forma como gere a energia debitada tanto na guitarra e teclas como na voz firme e melodiosa confere-lhe uma maturidade invul-gar para quem tem apenas 26 anos de idade. Os temas, esses deixam espaço, muito espaço para o ouvinte poder viajar pelo seu reino.

Segue-se uma entrevista com Sua Majestade:

Quem é King John?King John é sobretudo um escape. Surgiu da necessidade recorrente que eu tinha para expor ideias e pensamentos sobre a forma de letras e música. Está a tornar-se agora num veículo que me tem ajudado

na procura de um sonho que é ser músico não só de alma mas também de estúdio e palco.

Que semelhanças e diferenças há entre King John e o seu progenitor, António Alves?As semelhanças acabam por ser bastantes e as diferenças poucas. O alter-ego, ao mesmo tempo que me dá segurança, dá-me privacidade. É mais nesse sentido que surgiu a necessidade de ter um “estranho” a dar nome ao meu projecto. King John é um pouco mais sociável e mais ex-posto – porque tem de o ser. De resto, são essencialmente a mesma pessoa com os mesmos gostos, defeitos e virtudes.

As letras abordam temáticas tão abrangentes como diversas, nome-adamente as desilusões amorosas, a crença no amor eterno, a procu-ra de abrigo num mundo caótico, as atrações perigosas ou a vene-ração da Natureza e o apelo à sua preservação. Há mais espaço para outras temáticas?Sim, sem dúvida. Para ser muito sin-cero, não penso muito quando escre-vo. Acaba por sair naturalmente e, se tiver que ser um coração partido ou um sítio perdido no tempo, assim o será. No meu modo de ver, a escri-ta de letras não deve ser limitada por mais nada que não seja a nossa mente e aquilo que nos vai na alma. Felizmente, já tive a possibilidade de fazer coisas bastante diferentes na vida e talvez seja daí que os temas das minhas músicas sejam tão dife-rentes e abrangentes.

Viver nos Açores é, sobretudo, uma limitação geográfica ou é um privilégio pelos estímulos criativos que possa proporcionar?Definitivamente um privilégio e dos grandes. Acho que muitos açorianos

KING JOHNBlues de Azul Salgado

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10 2 0 7 FAZENDO ***

música

não dão o devido valor ao sítio onde vivem. Para além do excelente nível de vida que nos proporciona e da diversidade cultural que nos ensina – é preciso explorar todas as ilhas – também me estimula e muito em termos criativos. Tenho uma música que se chama “Heaven can wait” que foi escrita em S. Jorge, na Fajã do Sto. Cristo, e fala sobre o facto de nem num sítio tão único as pessoas conse-guirem respeitá-lo ou tratá-lo com o devido respeito. Talvez noutra parte do mundo não seria tão marcante a imagem com que fiquei. Casa é casa e os açores são definitivamente CASA para mim.

Lançaste o EP ”Home Recordings” e o 7 inch Single “45 RPM”, ambos disponíveis na Internet. Como ca-raterizas estes dois trabalhos? O primeiro surgiu da necessidade que tive de mostrar o meu trabalho ou pelo menos apresentá-lo às pesso-as para também perceber como seria a reacção delas em relação à minha música e se estava num bom cami-nho. O segundo surgiu por causa de uma música que escrevi e gravei praticamente num dia: “Cool by asso-ciation”. A partir desta música, tive a ideia de lançar a minha versão dos antigos 7 inch single com um lado A e um lado B, para ser algo diferente.

Podes falar um pouco dos músicos que te acompanham?O primeiro músico com quem colaborei foi o Paulo Fonseca que é um baterista da Terceira mas que reside em São Miguel há já alguns anos. Mais recentemente, fui acom-panhado na bateria pela talentosa Sara Cruz que, para além de ter uma bela voz e tocar muito bem guitarra como a maioria das pessoas saberá, também é uma excelente baterista. E claro, o meu irmão João Alves, que me acompanha desde o primeiro

concerto (Fevereiro de 2015) e é o principal responsável por eu ter voltado a tocar guitarra.

Recentemente (dia 23 de Maio) atuaste no Teatro Angrense na Ilha Terceira, no Festival + Jazz. Qual é o balanço que fazes desse concer-to? Foi um excelente experiência. Poder ter a oportunidade de mostrar a minha música fora de São Miguel e a pessoas diferentes, sendo apenas o meu terceiro concerto, foi sem dúvida bastante gratificante. A ade-são das pessoas foi muito boa e tive bastantes felicitações depois do con-certo, portanto acho que o balanço é bastante positivo.

Quais são os próximos objetivos?Gravar um novo EP e continuar a tocar ao vivo que é onde acho que preciso de melhorar e sentir-me mais confortável. Tentar tocar noutras ilhas e, quem sabe, fora dos Açores também está nos planos mas talvez só a médio prazo.

Em que endereços poderemos acompanhar a tua atividade?Soundcloud: https://soundcloud.com/kingjohnofficial

Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCxa1NxIaUufaYDJ-8x7LLhg

Facebook: https://www.facebook.com/pages/King-John

Uma última mensagem para quem estiver a ler esta entrevista?Deem uma oportunidade à música e aos músicos açorianos. Aos músicos em particular, apelo que apostem nos originais. Sejam gentis para com os outros e protejam a Terra em geral e a nossa em particular, que é um verdadeiro paraíso.

Luís SilvaKING JOHNBlues de Azul Salgado

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10 2 0 8FAZENDO * **

ilustração Raquel Vila

A disponibilização do património cultural, em forma-to digital, tem merecido uma atenção muito especial, nomeadamente da parte da Comunidade Europeia e da Unesco. Desde a Convenção para a Proteção do Pa-trimónio Mundial, Cultural e Natural, da Unesco, em 1972, que efetivou, internacionalmente, as medidas inovadoras mais relevantes para a salvaguarda e pro-teção do património mundial teem sido, entretanto, produzidas Recomendações e Orientações, também por parte da Comunidade Europeia, que visam con-vergir os esforços, assim como estabelecer, de for-ma transversal, políticas e normas de identificação, proteção, conservação, valorização e transmissão às gerações futuras, do património cultural da humani-dade.

As novas tecnologias permitiram que a dinâmica da preservação e divulgação assumissem relevância através dos formatos digitais, nomeadamente por via da web; atualmente está ao alcance de todos uma par-te considerável do património da humanidade.

Nesta perspetiva e enquadramento os objetivos da sociedade do conhecimento, a Secretaria Regional da Educação e Cultura, através da Direção Regional da Cultura/Centro de Conhecimento dos Açores, tem vin-do a disponibilizar, através do portal “Cultura Aço-res” (http://www.culturacores.azores.gov.pt), vários conteúdos que possibilitam o acesso ao conhecimen-to sobre os Açores.

O Centro de Conhecimento dos Açores (CCA) resulta de um projeto de candidatura apresentado pela Di-reção Regional da Cultura (DRC), em 2004, no âmbito do Programa Regional de Ações Inovadoras (PRAI--Açores). O projeto enquadrou, como objetivos: pro-mover e divulgar a cultura açoriana através das no-vas tecnologias e facultar o acesso do público ao seu conhecimento. O desenvolvimento do projeto teve a duração de 24 meses.

Através do Decreto Regulamentar Regional nr. 3/2006/A (Artº. 9º.), de 10 de janeiro, o Centro de Conhecimento dos Açores foi constituído como um serviço da Direção Regional da Cultura.

Em 2005 foi criada a primeira página web do Centro de Conhecimento dos Açores que incluía os conteú-dos: Inventário Genealógico e Biblioteca Digital.

Ao longo do tempo os conteúdos progrediram e, em 2010, entendeu-se criar uma página que possibili-tasse também a promoção e divulgação dos eventos culturais promovidos pela Direção Regional da Cultu-ra: o portal Cultura Açores (http://www.culturacores.azores.gov.pt).

Atualmente estão disponíveis através do portal Cultura Açores, os seguintes conteúdos, em permanente atuali-zação:

CULTURA AÇORESO acesso ao conhecimento sobre os Açores

cultura

Page 9: Fazendo 102

GaspachoPaco Garcia

ame of Plants

GArquivos Digitais: Arquivo de Imagem dos Açores; Arquivo - CEGF - CMATI (Centro de Estudos Gaspar Frutuoso e Centro de Matemática Aplicada e Tecnologias de Informação, da Universi-dade dos Açores); Espólio Francisco de La-cerda e Registos Paroquiais e de Passapor-tes dos Açores.

Bibliotecas Digitais: Atlas Linguístico-Et-nográfico dos Açores; Biblioteca - Mono-grafias e periódicos; Enciclopédia Açoria-na; Inventários e Registos; Inventário do Património Imóvel dos Açores; Património Cultural Imaterial dos Açores; Património Arqueológico dos Açores; Património Ba-leeiro dos Açores; Registo Fonográfico dos Açores; Registo Regional de Bens Culturais e Teatro Popular - Documentação.

Para além dos conteúdos anteriormente referidos, o portal Cultura Açores disponi-biliza também as “Visitas Virtuais aos Mu-seus dos Açores”, a “Loja de Cultura”, os “Roteiros Culturais - Personalidade”, “Cul-turAçores - Revista de Cultura” e a “Agen-da Cultural dos Açores”, a qual faculta ao público o acesso à informação sobre acon-tecimentos de carácter cultural em todas as ilhas dos Açores ou promovidos pelos Açores, no exterior do arquipélago.

Qualquer agente cultural (entidade, as-sociação, particular, etc.) pode solicitar o acesso à “Agenda Cultural dos Açores”, sem quaisquer custos, passando a inserir nesta plataforma as atividades que pro-move, desde que de carácter cultural. Para o efeito deverá contatar a Direção Regio-nal da Cultura, no sentido de ser celebrado um protocolo de adesão, o qual contem as condições de acesso para a inserção dos dados.

Diretora do Centro de Conhecimento dos Açorese-mail: [email protected]

CULTURA AÇORESO acesso ao conhecimento sobre os Açores Filomena Barcelos

Chega o verão e as hortas de nossa ilha competem pelo prémio de mais produtiva. Nas hortas do sul, como resultado do referendo que houve agora há duas luas, ganhou o SIM ao gaspacho, embora com extensos sectores contra, como o lobby do tomate.

Em declarações a este meio, o seu presidente ex-pressou que “não se pode permitir que sejam os tomates dos ramos mais altos a compor sempre a maior parte do gaspacho, e tantos pepinos e pi-mentos a colaborarem muito pouco”.

Por outro lado, favas e alfaces já abandonaram este cenário de conflito sem fazer declarações.

A ONG Sumos Unidos Macedónia lançou uma cam-panha de crowfunding para tratar de ajudar o gas-pacho no seu trabalho de refrescar, conseguindo até à data um grande êxito, especialmente nos do-mingos de ressaca.

Mas fora das nossas hortas sobrevoa a sombra dum grande inimigo do calor asfixiante: a Cerveja, em todas suas variações.

Decidam vocês mesmos e support your local!!

Page 10: Fazendo 102

PIRATAS EM PORTO PIMEspectáculo de dança dos alunos de Ballet da EBI de HortaHelena Melo Medeiros

Horta, 9 de junho de 2015

O sol espreguiçou-se no horizonte, vestindo o seu pijama

de nuvens e de chuva. Que pena!- pensei. Logo hoje que há

animação em Porto Pim! Oxalá não chova logo à noite… E não

choveu!

Enquanto dezenas de pessoas esperavam pela hora da entrada

no local do evento, o sol foi deitar-se naquele lindo horizonte

de mar na calma baía de Porto Pim e, para o substituir, surgiu

a tímida lua vestida de constelações.

Tal como aconselhado no panfleto de promoção do evento,

levei a manta e a almofada, coloquei-as no chão e esperei pelos

piratas. O espaço aberto a poente da fábrica estava repleto

de gente de todas as idades, com as suas respetivas mantas

e almofadas. Conversavam alegremente umas com as outras.

Numa pequena área improvisada para o efeito vendiam-se

fatias de papagaio (não se assustem, era bolo de banana!),

barquinhos de papel cheios de guloseimas e algumas bombas

(bolinhos de chocolate com um rastilho…não explodiam,

iluminavam-se!). Acreditem, eram saborosos.

Sentada no chão, por entre a multidão, olhei em volta, apreciei

discretamente os rostos felizes das pessoas e esperei.

O espetáculo de bailado organizado pela professora Aline

Despres estava um mimo! Adorei o pirata órfão, o Martim

Medeiros, um miúdo muito engraçado que anunciou o

início, o intervalo e o fim do evento pondo-se em cima de

um balde de madeira. Todos os dançarinos, piratas e nativos,

estiveram à altura do evento, dos mais pequenos aos mais

crescidos contribuindo para um espetáculo de luz e de cor

que, certamente, ficará nas suas coloridas memórias e nas de

quem os viu atuar.

Parabéns pelo vosso desempenho!

Page 11: Fazendo 102

De autoria de Marion Hartley, e com tradução anotada por Elisa Gomes da Torre, a mais recente edição do Instituto Açoriano de Cultura arrasta-nos para uma revisitação aos Açores do início do século passado, com um especial enfoque na ilha de São Miguel, em pleno período da I Grande Guerra.

Fruto de um feliz acaso, um conjunto de trinta cartas manuscritas e enviadas por Marion Hartley a uma amiga norte-americana, foram encontradas na biblioteca da Universidade de Oxford, pela professora universitária e investigadora Elisa Gomes da Torre que, identificando a riqueza desses testemunhos, assumiu a (por vezes) complexa tarefa de traduzir e comentar essa interpretação feminina do que poderão ter sido as vivências do casal Hartley e da sociedade envolvente, naquilo que começando por ser uma visita de três meses à ilha de São Miguel (inverno de 1916), acabou por prolongar-se por três anos de permanência nos Açores.

A narrativa das riquíssimas e detalhadas missivas, mesmo que sob filtros resultantes da barreira linguística e da

Estranhos C

art

as

dos

Aço

res

1916 -

1919

Paulo Vilela Raimundo

em terra

estranha

diferença de usos e costumes que a autora dificilmente ultrapassava, caracteriza a sociedade da época e a realidade encontrada, transportam-nos para cenários conhecidos, embora respeitantes a uma conjuntura que há muito deixou de existir.

A escrita fluida e minuciosa desta “estranha” viajante que permaneceu entre nós, sob suspeições (não comprovadas) de espionagem, oferece-nos um viagem hiper-realista a ambientes e lugares que a marcaram indelevelmente, ao ponto de no final da permanência azórica, a fazerem refém de um misto de nostalgia e de saudade precoce, por esse torrão insular que também já era seu.

Em período de reflexão inerente à efeméride do primeiro centenário da I Grande Guerra, e em busca de um passado esquecido que nos ajudará a melhor entender o presente, fica o convite para, através da narrativa da autora, voltarmos ao início do século XX e às suas vivências insulares.

Venham daí!

PIRATAS EM PORTO PIM

Page 12: Fazendo 102

Pois, não é nossa intenção pretender fazer psicanálise, mas o que faz Doutor Mara com uma revista desse calibre?

É verdade… isto não tem explicação segundo os médicos nem a ciência moderna. Os músicos dizem que isto acontece quan-do um disco jóquei actual passa mais de três músicas seguidas com grande nível, o que é raro nos dias que correm. Por outro lado, quan-to mais danço mais vontade tenho de fazer amor, desculpem, quan-do mais danço mais vontade tenho de fazer a revolução, desculpem outra vez, quanto mais danço mais vontade tenho de dançar…assim é que é… será? Tirei a noite para dançar…não sei, portanto, quando é que isto irá parar.

Alguma lata e algum descaramento, pois claro. Mais con-cretamente a bandeira serve para eu me poder encostar com segurança ao balcão. Aqui o taberneiro, o meu amigo, Gonçalo Pratas, um homem de armas como vocês podem ver, não pode ver nada sujo e está sempre a deitar deter-gente e lixívia para cima do balcão. Com esta sua atitude, já me deu cabo de umas quantas camisas de cor compradas nas melhores boutiques de ocasião. Já se sabe, a bandeira protege das nódoas e esta foi comprada por alturas do Eu-ropeu 2004 e já está um pouco desbotada… As manchas não ofendem a pátria, pelo menos não tanto como aqueles que andam agora com um pin da bandeira nacional na lapela.

AS CHARLAS QUOTIDIANAS DO DOUTOR MARATexto de Fernando Nunes interpretado por Aurora Ribeiro e Tiago Vouga

Compreendemos, Doutor Mara. No entanto, junto do seu banco do jardim, vemos que tem consigo uma revista da Playboy. Sem

querer invadir a sua privacidade, diga-nos, qual é a sua situação civil actualmente?

Uma novela gráfica (com muito texto e ar antigo) a partir da versão encenada

Mas isso interessa, actualmente, para

alguma coisa?

Este material de fino recorte e curvas perfeitas, diga--se, deve ter sido deixado aqui por algum leitor furtivo. Paz à sua alma. Longe de mim a castidade, meus ami-gos, mas também não gostaria de passar a imagem de um pervertido sexual de domingo à tarde. É certo que não pretendem fazer psicanálise nem relembrar os meus tempos de libertinagem na juventude mas confesso que, por vezes, me deixo surpreender pelas malhas eufóricas da erotização do real. (...) Posso afir-mar que o sexo tornou-se de plástico e o amor é para românticos. Julgo que tem a ver com as máquinas que nos rodeiam, disparam conteúdos de cariz erótico/sensual como as galinhas depositam ovos nos aviários.

Sim, foi inesquecível e trágico ao mesmo tempo. Foi num acampamento de jovens anti-militaristas com uma jovem esquerdista-libertária, filha de um ex-oficial do Ultramar. O pai apareceu pela manhã sem ninguém contar e abriu o fecho da tenda, obrigando-me a sair e a fazer quatrocentas flexões de uma assentada, a chamada GM (Ginástica Militar). Para mim, o acampa-mento anti-militarista terminou ali. Ela teve que trabalhar nesse verão e foi proibida de voltar a falar comigo, ao que ela acedeu. Encontrei-a alguns anos mais tarde numa arruada de um partido da direita conservadora, com um cheiro a perfume de rosas e uma mala Chanel. Questionou a minha relação com as drogas recreativas e desejou-me sucessos para minha vida futura. Vi-rei costas, apertei os atilhos dos sapatos e fui comer umas iscas ao “Zé Manel dos Ossos”.

Quer contar-nos como se tornou Homem pela primeira vez?

Mas, doutor, isso parece-nos muito gra-ve, muito grave mesmo… não consegue

mesmo parar de dançar?

Há alguma razão para tra-zer a bandeira portuguesa aos ombros, Doutor Mara?

Page 13: Fazendo 102

Tenho um velho amigo que após muitos anos a “olhar os lírios do campo” se dedicou à família, à mulher e aos seus cinco filhos. Os resultados foram surpreendentes. Hoje consegue ser mais fiel que o Pluto, o seu cão de estimação. Um amigo da minha infân-cia passada junto do mar, recém-regressado da Islândia onde fez o doutoramento em Espeleologia e Mineralogia, confessou-me a este propósito que tudo vai bem desde que não se saiba. Ora bem, a fidelidade é um prato de duas bocas, como eu costumo dizer. Só come quem quer! Por isso prefiro a exaltação da lealdade, isto é, ser fiel a um compromisso, dizer sim a uma verdade partilhada. Será que aceitam esta resposta?

Alguma lata e algum descaramento, pois claro. Mais con-cretamente a bandeira serve para eu me poder encostar com segurança ao balcão. Aqui o taberneiro, o meu amigo, Gonçalo Pratas, um homem de armas como vocês podem ver, não pode ver nada sujo e está sempre a deitar deter-gente e lixívia para cima do balcão. Com esta sua atitude, já me deu cabo de umas quantas camisas de cor compradas nas melhores boutiques de ocasião. Já se sabe, a bandeira protege das nódoas e esta foi comprada por alturas do Eu-ropeu 2004 e já está um pouco desbotada… As manchas não ofendem a pátria, pelo menos não tanto como aqueles que andam agora com um pin da bandeira nacional na lapela.

AS CHARLAS QUOTIDIANAS DO DOUTOR MARATexto de Fernando Nunes interpretado por Aurora Ribeiro e Tiago Vouga

Fotografias de Raquel Vila e Dieter Ludwig

Uma novela gráfica (com muito texto e ar antigo) a partir da versão encenada

Sim, foi inesquecível e trágico ao mesmo tempo. Foi num acampamento de jovens anti-militaristas com uma jovem esquerdista-libertária, filha de um ex-oficial do Ultramar. O pai apareceu pela manhã sem ninguém contar e abriu o fecho da tenda, obrigando-me a sair e a fazer quatrocentas flexões de uma assentada, a chamada GM (Ginástica Militar). Para mim, o acampa-mento anti-militarista terminou ali. Ela teve que trabalhar nesse verão e foi proibida de voltar a falar comigo, ao que ela acedeu. Encontrei-a alguns anos mais tarde numa arruada de um partido da direita conservadora, com um cheiro a perfume de rosas e uma mala Chanel. Questionou a minha relação com as drogas recreativas e desejou-me sucessos para minha vida futura. Vi-rei costas, apertei os atilhos dos sapatos e fui comer umas iscas ao “Zé Manel dos Ossos”.

Quer contar-nos como se tornou Homem pela primeira vez? Doutor Mara,

sinceramente, acredita na fidelidade?

A conversa já vai longa. E para terminar: o que é que gostaria de transmitir aos portugueses,

Doutor Mara?

Em primeiro lugar, que bebam vinho de qualidade. Que sejam exigentes e que leiam sobre os novos vinhos que têem vindo a ser feitos nas diferentes

regiões vitivinícolas. Depois, não devem ter medo de oferecer às namoradas/os, amigos e amigas, caixas de

vinho ou mesmo garrafões de cinco litros de vinho, desde que seja de qualidade, claro. Pode ser que, en-tretanto, baixem o preço das garrafas. Haja saúde.

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10 214FAZENDO * **

São ambas mulheres. Mulheres escritoras. Gostam ambas de conversar. A Renata Correia Botelho é licenciada em Psicologia e a Ana Paula Inácio é professora de Filosofia. A primeira vive em São Miguel e a segunda habita na Ilha Terceira. Elas aceitaram conversar uma com a outra. Sentemo-nos numa típica conversadeira/namoradeira a escutá-las com o que ambas têm para dizer.

Ana Paula Inácio: Renata, que farias tu com uma pedra?

Renata Correia Botelho: Sempre recolhi pedras dos sítios por onde passo. Pedras que, de uma forma ou de outra, se intrometem no meu caminho. Trago-as comigo, espalho-as pelas estantes. Ficam a respirar com os livros. Não faço mais nada com elas. Julgo que à noite deambu-lam pelo quarto. Lembro-me sempre de Emanuel Félix. São as minhas pedras-poema.

API: Eu ligo sempre a pedra à palavra, à sua capacidade certeira de representação. Muitos dos meus poemas nascem assim. Como pedras arremessadas contra algo ou alguém. É verdade que, por vezes, fazem ricochete e morro também. Diria que caminho com os bolsos cheios de pedras: para matar ou para morrer. Lembro-me que Buñuel, na noite da estreia de Un Chien Andalou, também atestou os bolsos com pedras. Acho que não as chegou a usar... São pedras duras as que me guiam (embora também saibam transformar-se em matéria leve e terna. Como a pedra de memória na “Concha” de Nemésio. Na minha sentam-se avós à sombra da tardinha, retardando a janta). A essas pedras podes ouvi-las em Álvaro Lapa que as junta como Dacosta a dois limões em férias, mas em grafite a preto e branco, desertificado, reduzido a um fio mínimo de conversação.

RCB: Fizeste-me pensar na Virginia Woolf, no seu bolso cheio de pedras avan-çando pela água dentro... Fala-me agora do mar, tu que vieste de um rio.

API: O meu sentimento, primeiro, é o de uma continental que conta, essencialmente, com as pernas para contrabandear, dar o ‘salto’ ou fazer mundo. O mar, roubando-me à mão de meu pai, num acidente, em pequena, ficou marcado pela hostilidade, colado ao acto de engolir. Mesmo o tempo extraordinário de férias na praia não ultrapassava o obstáculo que ele impunha. Mais tarde, Sophia reconciliou-me com ele, literariamente. Hoje sofro-o quando o tempo se demora mais em terra e acontece-me transformar a película azulada que, por vezes, se abate so-bre a serrania numa linha marítima de horizonte. Continuo, no entanto, num estádio platónico sem poder celebrar a união com ele. E esse rio de que falas que percurso fez em ti?

RCB: Amo muito esse rio. A ele devo um resgate de águas, num período em que me falhou o mar. Atravessava todos os dias a ponte entre Gaia

Fernando Nunes com Ana Paula Inácio e Renata Correia Botelho

e o Porto. Apaixonei-me depressa por aquele leito de memórias sem tempo, que me devolvia a minha ilha. Rendi-me ao fôlego que ali se esconde, ao lume brando daquela paisagem que me deix-ava respirar a maresia. E o rio passou a chamar-se mar. Ou vice-versa. Eram um só. Hoje, com o mar novamente à porta, é ele que me falta, esse rio amado. E as vozes amigas, e os rostos que ficaram para trás.

API: Partilhamos a memória desse rio estreito, curvilíneo, serpente. Gosto dele barrento, sujo, a ameaçar as margens. Imagina o que seria um guardador de margens ou de rios...Também eu, a par-tir dos 9 anos e durante muito tempo, fiz essa passagem: Gaia-Porto, a roda de uma vida. Falas de vozes, de rostos e lembro-me de Mesa de Amigos, de Pedro Silveira. Quem se senta à tua mesa?

RCB: Tenho uma mesa redonda, sem cantos, sem ângulos. Pode sempre partir alguém; cabe sempre uma cadeira mais. Às vezes a mesa encolhe, a poesia falha, a manhã chega sem vozes, faz-se silên-cio; outras vezes, sem avisar, estende-se a mesa pela sala fora, pela casa fora, em algazarra. Ali se sentam sempre bons amigos. Os de há muito, outros mais re-centes, que vão ocupando, dia após dia, verso após verso, uma cadeira firme. Sentou-se há pouco Alejandra Pizarnik, começou por tomar um chá mas penso que veio para ficar. Com quem te sentas tu, Paula, nestas tardes de primavera?

API: Também Alejandra Pizarnik se sentou comigo. Deixou pedras, vento, vestidos de pássaros, árvores, prox-imidade intensa a um homem (Julio Cortázar), boca de oxigénio. Ultimam-ente acompanha-me o texto do Antigo Testamento - Qohélet (ou Ecclesiastes), pelo trato sereno de Maria Filomena

FAZENDO(as) CONVERSAR

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10 215 FAZENDO ***

FAZENDO(as) CONVERSAR

Molder (“Lança o teu pão sobre as águas” - Conferências de Filologia). Estranho texto, este, que transforma em vapor todo o terreno firme que pensamos poisar e nos entrega a um emaranhado de contradições, de onde o princípio do ter-ceiro excluído não nos salva, que nos esmaga e a um tempo nos reconstitui. Seguindo duas traduções - Guido Ceronetti e Haroldo Campos -, Maria Filomena Molder apresenta-nos Qohélet como boca que grita, de «fome de vento», como «harpa eólica», força motriz, poderosa e incontornável. O axioma «vaidade das vaidades» ou «tudo é vaidade» é sub-stituído por «vento de vento», «fome de vento» ou «névoa de nadas». É quase uma família que me acompanha: o texto hebraico, A. Pizarnik, de origem judia, Etty Hillesum, judia norueguesa vítima de Auschwitz, cuja correspondência, num confesso voyeurismo, espreito e transporto debaixo do braço. E Robert Walser que alarga esta família ao círculo da estranheza e da unidade sombria da existência. «The shape of my heart»: assim a mesa a que me sento, às vezes, avara e pequena, outras, generosa e grande, à sombra daquela que poderia ser a tua árvore de infância, a mesma, talvez son-hada por Vieira da Silva. Nesta conversadeira, começámos numa pedra, seguimos até ao mar, subimos um rio, onde uma árvore. Escolhe agora um pássaro.

RCB: Um pássaro? Penso logo em Ana Teresa Pereira, em Messiaen, em Farid ud-Din Attar. Gaivotas, sempre. E a música que oiço desde criança: “Uma gaivota voa-va, voava / Asas de vento, coração de mar”. Depois, os pardais, bandos deles a povoar, com os gatos, a minha casa na Achadinha. Sempre me comoveu aquela pre-sença essencial, primordial, um compromisso alado que, por meio deles, se selava entre mim e o céu. Que pássaro canta à tua janela?

API: Emily Dickinson, acomodada na campa, respon-dendo baixinho ao companheiro do lado, antes do musgo lhe cobrir os lábios. Lee Miller, fotografada por Man Ray, suspensa numa região onde as metamorfos-es são fáceis. Um pássaro pequeno da América do Sul que, com um breve bater de asas, consegue um som semelhante ao do virtuoso violinista. E, quando o sino toca longe, Arvo Pärt prolonga-o em litania pela casa, onde faz ninho. Renata, vamos então com os pássaros.

ilustração Raquel Vila

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O que é que pequeno-almoçaste?Yogurte com cereais do tipo alpista, e um café de cáp-sula a imitar outros também de cápsula mas mais con-hecidos e portanto mais caros.

Se o Conde Drácula viesse cá às ilhas onde o levarias?Levá-lo-ia à Lagoa do Congro, onde se não fosse atacado por cães de fila selvagens, poderia avistar o congro gigante que ali vive submerso e de vez em quando vem à tona para se alimentar de atónitos.

Qual é a semelhança entre o Pico e o Faial?A semelhança mais gritante e inabalável é que em qualquer das duas ilhas se consegue avistar a outra, e vice-versa.

Se não gostas de chuva o que é que estás aqui a fazer?Quem disse que não gosto de chuva?E quem disse que estou aí?Se alguém me vir por aí que me avise!

Na escola que outra “disciplina” deveria ser obrigató-ria?Ética social e política.

Tomás Melo

Levá-lo-ia à Lagoa do Congro, onde se não fosse atacado por cães de fila selvagens, poderia avistar o congro gigante que ali vive submerso e de vez em quando vem à tona para se alimentar de atónitos!

Entrevista com o Morcego

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10 217 FAZENDO ***

Porque é que tens alguns projectos na gaveta?Porque ainda não estão preparados para sair da gaveta, podendo dar-se o caso de nunca virem a estar, ou de já terem estado e eu não me ter apercebido.

O que é que odeias na internet?A democratização da estupidez.

Que forma de arte é que te aguça os caninos?Depende do momento. Neste momento mais a pintura e a estética espacial.

O que é que gostavas de ter nascido?Gostava de ter nascido um bebé recém-nascido. Passada essa fase, gostava de ter sido um actor de cinema num filme de Fellini

Gostavas de ir morrer longe?Não, mas gostaria de morrer depois de ter ido longe.

NomePedro Gaspar

Idade39 anosProfissão

Artista de variedades

David Yudovin tinha 59 anos de idade quando levou 2 horas e 20 minutos do Ilhéu Negro, junto do Monte da Guia, Ilha do Faial, até à Ponta da Pedra Branca, na Madalena do Pico, num dos dias da Semana do Mar de 2008.

Na edição do ano passado da Swim Cross Challenge, o tempo conseguido por aquele antigo empresário californiano, falecido em Março deste ano, pairou sobre os nove nadadores que conseguiram a proeza de realizar a travessia. Pelo meio houve uma mulher, Letícia Toste, a primeira a concretizar tal desafio. À semelhança do ano passado, no regresso da edição de 2015, voltaremos a ter Vítor André, carteiro de profissão, faialense, que realizou o tempo de 3 horas e 37 minutos. Sabemos que a tarefa é árdua, que é necessário persistência, resiliência, para realizar tal proeza. Vítor André treina todos os dias com afinco, e, como sabemos o quanto é difícil treinar no inverno nas águas açorianas, mantendo, por isso, doses diárias de corrida para preparar a resistência. O desafio envolve mais do que apenas coragem, pois necessita de uma boa preparação e um favorável estado físico e psicológico. Ao Victor André e a todos os atletas que irão participar na edição deste ano, é já dia 31 de julho, pelas 14 horas, auguramos uma bela e auspi-ciosa travessia.

Swim Cross Challenge

Travessia Horta-Madalena

David Yudovin

Fernando Nunes

Tomás Melo

Entrevista com o Morcego

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10 218FAZENDO * **

MANIFESTOS FUTURISTASE ALGUMAS RAZÕES PARA A PERSISTÊNCIA DO PROVINCIANISMO PORTUGUÊS

Entre 1915 e 1965 foram produzidos em Portugal, pelo título genérico de textos de intervenção, os primeiros Manifestos Futuristas Portu-gueses. Um dos principais autores desses textos foi Almada Negreiros que os produziu e declamou, tendo como objetivo principal a denún-cia da situação portuguesa e, sobretudo, as razões do seu atraso.

Este estilo agora utilizado por Almada fora definido, anos antes, na Itália por Filippo Tommaso-Marinetti, a 20 de Fevereiro de 1909 num diário parisiense Le Figaro. Este facto viria a marcar um dos mais im-portantes momentos do século XX, no qual se inseria toda uma estéti-ca vanguardista, não só nas artes plásticas, mas sobretudo nas letras, das quais os Manifestos tiveram como ponto de partida.

O futurismo foi introduzido em Portugal por um pintor – Santa Rita - e por um poeta que se encontravam em Paris. Assim, já em 1913 Mário de Sá Carneiro escreve “Quase” e “Como Eu Não Possuo”, que apesar de não serem poemas futuristas, funcionam como um prenúncio do sentimento latente português, sendo que, um ano depois, “Manucure” seria considerado o primeiro poema semi futurista português. Seguia--se, no mesmo ano, a “Ode Triunfal” e a “Ode Marítima” de um dos filhos de Fernando Pessoa – Álvaro de Campos, sendo que em 1915 Al-mada se estreava com uma peça que já estaria muito perto da estética de Marinetti “A cena do Ódio”.

Estas tentativas de introdução no país de um modo de sentir seme-

lhante ao resto da Europa, bem como a inserção dos portugueses

no século XX, não foram nada fáceis. Lutar contra os revezes da

persistência do provincianismo, levou a que Portugal fosse uma

preocupação constante, estando por isso presente nos manifestos,

ao contrário do que se passou em Itália, atingindo um carácter

mais internacionalista. O facto dos manifestos portugueses serem

normalmente redigidos na primeira pessoa do singular e os italia-

nos na primeira pessoa do plural, é bem sintomático desse obstá-

culo.

Fernando Pessoa, no capítulo que dedica ao Provincianismo Por-

tuguês tenta compreender essa síndroma de mal-estar, em três

pontos explicativos dessa persistência: o primeiro, seria a admi-

ração pelos grandes meios e pelas grandes cidades, o segundo, en-

tusiasmo e admiração pelo progresso e modernidade, o terceiro e

último, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia. Este

último ponto é um modo interessante de combater esse flagelo,

ou seja há que reconhecer que ele existe, só então se pode ironizar. Um povo que não ri de si, não poderá dar-se conta da gravidade do seu mal, nem muito menos reivindicar para si o bem que lhe perten-ce. Neste âmbito, o quadro que Almada traça de Portugal, não poderia ser nada abonatório.

Em 1915 Almada redige o Manifesto Anti Dantas, tecendo duras críticas não só a Júlio Dantas, mas também ao país: Se o Dantas é Português, eu quero ser Espa-nhol. No final, torna-se mais evidente a acusação: Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação de país mais atrasado da Europa e de todo o mundo (...).

No manifesto da Exposição a Amadeo de Souza-Cardoso, Almada compara o acontecimento à Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia, mais do que isso,

Estamos perto de acordar,

quando sonhamos

que sonhamos.

Assunção Melo

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10 219 FAZENDO ***

afirma que a Exposição na Liga Naval é mais impor-tante porque é a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX. O limite da descoberta é infinito (...) por isso é que a descoberta do Caminho Marítimo para a Índia é menos importante que a Exposição de Amadeo.

Em 1917, ano das primeiras aparições de Fátima, Almada escreve o Ultimatum Futurista às gerações Portuguesas do século XX. Aqui, a situação problemá-tica do país, é posta em evidência, propondo alguns parágrafos à sua resolução. Primeiro, corta com o passado, depois, faz a apologia da guerra (tal como Marinetti fizera alguns anos antes), reservando um curto, talvez tímido parágrafo à condição feminina na sua verdadeira missão de fêmea para fazer ho-mens (Nous voulons démolir le feminisme).

Quais as razões que levam Almada a demorar-se mais longamente na situação portuguesa, enquanto que Marinetti na Itália, apesar de criticar instituições como os museus, esta crítica dirige-se não só a um país, mas a toda a civilização greco-romana. As ra-zões para este facto devem, a meu ver, não só ser bus-cadas no provincianismo, que já referi anteriormen-te, mas também numa terminologia autóctone que diferencia Portugal dos restantes países europeus, ou seja: Marinetti utilizou vocábulos como, amor ao perigo, energia, audácia revolta, coragem, agressivi-dade, glória. Por outro lado, Almada, sentiu necessi-dade de denunciar um Portugal de brandos costumes antes de lhe introduzir conceitos que não lhes diziam nada. Deste modo, palavras e sentimentos como a saudade, fado, resignação, fatalismo, medo, servilis-mo, timidez, são reveladoras de uma certa resigna-ção e também pelo facto de Portugal não ser um país de rivalidades nem de inimigos, tendo perdido desde Alcácer Quibir todo o caracter aventureiro, culmi-nando tudo isso com uma alta taxa de analfabetismo. Retomo a batalha que o rei D. Sebastião “desapare-ceu”, para ver nela uma forte razão do mal-estar por-tuguês. Este facto, levou ao que alguns historiadores dominaram de sebastianismo que é uma teoria que se funda numa espera passiva constante de um sal-vador que há-de vir, sem que o povo, por si só sinta necessidade de fazer algo de construtivo. Esta espera arrastou-se por séculos e séculos, tornando Portugal uma nação, de certo modo, impotente, vendo ou-tras nações levantarem-se e traçarem o seu próprio

MANIFESTOS FUTURISTASE ALGUMAS RAZÕES PARA A PERSISTÊNCIA DO PROVINCIANISMO PORTUGUÊS

rumo. Almada neste contexto diz: Perde-mos de repente em Alcácer Quibir a dian-teira do mundo, ficamos despistados para sempre. Contudo, este mito parece ter-se instaurado injustamente, se atendermos a grandes personalidades e feitos do nosso país, aos quais, por vezes, não parecemos dar significativa importância. Há também que exaltar o que temos de bom, apesar de ser igualmente útil a tomada de consciên-cia daquilo que está mal, de modo a cor-rigir. De facto, destes Manifestos notamos algumas contradições. Assim, enquanto que proclamam a coragem, contraditoria-mente proclamam um nada a fazer, uma impossibilidade de viver em Portugal, para além de termos todos os defeitos que uma nação deve ter. Coragem portuguesa, só vos falta qualidades. O modo como Alma-da acaba este manifesto é revelador da sua

incredibilidade, mas também pode ser entendido de um modo irónico, sendo esse facto um dos modos mais eficazes para combater o provincianismo.

Resta a questão, que futuro nos reser-va uma geração cheia de vícios, con-seguiremos ultrapassa-los? Vivemos à margem da Europa. Será isso uma vantagem, de modo a preservarmos algo que faça parte de nós próprios ou uma desvantagem no sentido de um fraco envolvimento nos eventos cul-turais, económicos e políticos. Talvez possa concluir que Portugal é um país cheio de contradições e que só toman-do consciência desse facto possa pro-videnciar o futuro, aceitando-se, nas suas limitações de modo a superá-las, um dia, fazendo tudo para não perder, agora, o “comboio” do século XXI.

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A ideia partiu de investigadores e da direção do Departamento de Oceanografia e Pescas ao reconhecerem a necessidade de se compreender as grandes agregações de águas-vivas e caravelas-portuguesas, que afetam os recursos pesqueiros e o sector do turismo no arquipélago dos Açores.

Existem diversas teorias sobre as grandes agregações de medusas tais como, a influência dos ventos, marés, correntes oceânicas de meso- e larga-escalas, temperatura da água, nutrientes, fitoplâncton, variabilidade sazonal e inter-anual, poluição marinha, reprodução das espécies e declínio de predadores naturais como tartarugas e algumas espécies de peixes. A formação de ‘blooms’ de águas-vivas e sua distribuição à superfície e coluna de água resultam sem dúvida de um efeito combinado de mais do que um dos fatores acima enunciados. Contudo os mecanismos subjacentes a tais distribuições e seu desenvolvimento no tempo e espaço são ainda desconhecidos para muitas destas espécies. No caso particular dos Açores, não existem

ainda estudos de monitorização para estas espécies e consequentemente muito pouco se sabe sobre a biologia, variabilidade genética e distribuição das mesmas no arquipélago. Nesse sentido, e dado o recente interesse demonstrado não só pela comunidade académica mas principalmente pelo público, a Universidade dos Açores lançou este novo portal (www.medusa.uac.pt) que pretende registar, numa primeira fase, os avistamentos das medusas realizados por banhistas e mergulhadores dos Açores. Pretende-se com esta iniciativa incentivar os cidadãos e comunidades públicas a contribuírem também para o conhecimento científico através de conceito “cidadão cientista”, sob a supervisão dos cientistas e/ou instituições científicas regionais. Adicionalmente, os nadadores-salvadores e capitanias das ilhas de São Miguel, Santa Maria, Faial, Pico e Terceira estão já a participar neste estudo através do registo diário dos eventos com maiores agregações de medusas nas diferentes zonas balneares vigiadas do arquipélago.A investigação está a ser coordenada

pelos biólogos marinhos Carlos Moura e João Gonçalves, e pela oceanógrafa Ana Martins. Tal como referido acima, o estudo conta ainda com a colaboração importante de cidadãos e visitantes dos Açores, pretendendo contribuir desta forma, para uma primeira avaliação e conhecimento da biologia das espécies existentes na região, assinalando e tentando prever (a médio e longo prazos) os locais e alturas do ano com maiores agregações de medusas no arquipélago. Pretende-se ainda com esta iniciativa dar um primeiro passo no sentido de auxiliar políticas de gestão das pescas e fornecer informações científicas mais detalhadas e rigorosas sobre eventuais medidas de proteção de costa para atividades marítimo-turísticas.

Por favor, colabore então com este novo projeto ao registar os seus avistamentos de águas-vivas e/ou caravelas-portuguesas nos Açores em

www.medusa.uac.pt

Para se compreender as dinâmicas dos

‘BLOOMS’ DE ÁGUAS-VIVAS e caravelas-portuguesas nos Açores

ciência

Carlos Moura

Page 21: Fazendo 102

10 2 21 FAZENDO ***

O verão, finalmente, regressou. A água salgada entretanto aqueceu e, com as temperaturas mais quentes, regressam também as águas vivas, esses seres indesejados que marcam de rubro a pele dos mais incautos. Há tanta humidade na época estival que repetimos os chavões sobre ir a banhos, ainda os requebros físicos, a necessidade de refrescar o corpo e a mente, o desligar automático do cérebro por momentos. Ler? Nem pensar!... Ou então aqueles livros de capa grossa que sacodem bem quando tomados por areia. Para lá de tudo isso, temos refrões de canções menores na cabeça, aceitamos com bonomia a época da parvoeira (os anglo-saxónicos apelidam de silly season), que de tão habituados que estamos evocamos por entre as conversas: o canto dos grilos, a preguiça das cigarras, a água da melancia, os sabores dos gelados, o divertido e ridículo dos chinelos calçados. Atento, entretanto, na tez grande que a rapariga ostenta, em noite de festa da cidade e bailarico popular, ao exibir um vestido preto com flores garridas. Deve ser assim o estio no país de onde ela vem: flores coloridas, música alegre, diversão e exultação à beira-mar.

Esta é a estação das estações, como diria o alemão Goethe, por isso queremos sempre nela ficar.

Somos o país com mais emigrantes na União Europeia, dizem-nos. Este país parece uma lágrima permanente, tal como o fado, não conseguimos sair do muro permanente das lamentações. Ouço de novo a rapariga estrangeira

O estio para dizer adeus às minhas coisas

que fala um português escorreito e perceptível, há pouco tempo aqui connosco e é um contentamento seguir-lhe as frases, os recursos estilísticos, as hesitações linguísticas. E por vezes, só tenho vontade de dizer que este país é para chorar. Que gostamos mais dele quando estamos fora ou temos que partir para outro país para aí ganhar, ou perder a vida. Eu sei que não devia, mas estremeço de emoção de cada vez que vejo passar um avião, sempre que vejo aviões passar de um lugar para outro. Abandonarei assim o meu quarto, mais uma casa (em quantas casas já vivi??? vinte, trinta???), a certeza também de que em breve não serei o único a mudar.

Digo, portanto, adeus às minhas coisas, aos lugares onde pernoitei e às pessoas que conheci. Interrompo, entretanto, as conversas com os amigos e as amigas com quem conversei, relembro os momentos partilhados e peço desculpa pelas ocasiões em que abusei da paciência deles sempre que quis exaltar o prazer no presente ou a existência de melhores dias no futuro. A rapariga vai, no entanto, dizendo-se encantada com este lugar de instabilidades meteorológicas e natureza deslumbrante. Guardarei, por isso, o seu sorriso, a sonoridade das gargalhadas e, digo-lhe que somos assim, nada a fazer, uma parte de nós não tem emenda. Somos pesados, somos muito tristes, inclusive, a escrever, tão culpados de tudo e de nada, tão sem jeito é esta videirunha à portuguesa, já dizia o Alexandre O´Neill com razão e sem ela. Ele que se despediu da vida em Agosto. E que frequentemente tropeçava de ternura…

Fernando Nunes

ilustração Raquel Vila

Carlos Moura

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10 2 2 2FAZENDO * **

AHoje está

um dia maravilh

oso.

Na verdade, a expressão ce

rta se

ria “h

oje

está se

ndo um dia maravilh

oso”. O se

r

no gerúndio. Como aliá

s, sempre deve-

ria se

r. No “e

stá”, e

stá o dia lá

fora. E

stá

o sol q

ue se abriu

e fechou as n

uvens.

Para lá do que me é visív

el. Está

o Tempo

que cresce

u dentro de si

mesmo para dar

espaço a mim

. O Eu que se

ndo se encon-

tra. É precis

o Tempo para se se

r. Aqui. N

a

mesa do café. N

o olhar, na co

ntemplação,

na não procura. No repouso no Outro,

nos Outros,

nas Coisas.

Elas dizem-me

que estou aqui. Porque vejo-as,

não as

olho apenas. E elas v

êem-me de volta

com

olhos que não têm. M

esmo as p

essoas q

ue

não sabem que as v

ejo, vêem-me. Porque

deixam-me ficar n

elas. O Tempo deixa-

-me ficar n

elas… O

brigada, T

empo, por

te teres sacri

ficado. Por te teres a

longado

ao ponto da dilaceração, ao ponto de des-

ventrares a

s horas e

gerares outra

dentro

do teu relógio in

fértil. U

ma Hora nova, só

para mim

. Só para estar, s

endo, aqui.

Lia G

oula

rt

HORA

SAIR À RUA SEM CULTURA

Page 23: Fazendo 102

10 2 2 3 FAZENDO ***

A HORA

Quem afirma não querer saber da política arrisca-se a ouvir esta frase clássica: “Porque tudo é política, desde o preço do café, aos transportes públi-cos, ao trânsito, à escola, à habitação, etc.” É verdade. Os políticos sabem-no bem.

O que muitos políticos não sabem, ou não se lembram ou nem sequer pensam nisso, é que tudo é, também e antes de mais, cultura. Desde o cos-tume de se beber café, à forma como habitamos uma cidade, como educa-mos os filhos, desde o garfo com que espetamos a comida às marcas de au-tomóvel que os presidentes das câma-ras gostam de usar, tudo é cultura. O nosso sistema político existe e tem esta forma que lhe conhecemos porque foi assim que no seio da nossa cultura nos soubemos organizar. Se não comemos com pauzinhos, se os nossos filhos não são crianças-soldado, se os nossos presidentes da câmara não se movem de bicicleta, se já não vivemos em ditadura, é porque culturalmente nos fomos desenvolvendo neste sentido.

A cultura não é uma agenda cultural, não é uma programação artística, não é um concurso de fotografia. Alguém (não esqueço quem) me disse uma vez: “Eu gosto muito de cultura, mas...” O que ainda hoje me espanta, tal o inusitado da fórmula. Não há como gostar ou não gostar de uma coisa que

simplesmente faz parte de todos nós e é universal ao mesmo tempo. Faz tanto sentido como dizer “Gosto muito do universo, mas...” Porque a cultura é tudo quanto é humano, é a arte de saber viver atentos ao mundo que nos rodeia, é a curiosidade que nos faz conhecer e reflectir sobre as nossas existências e o sentido que tem estar-mos aqui, para podermos melhorar a nossa forma de viver (sozinhos ou em comunidade).

Na Banda Desenhada que ilustra este texto, a Susaninha afinal nem chega a ter um pingo de razão. Ao sair para a rua vestidos, já estamos a exprimir a nossa cultura. Se fosse sequer possível sair à rua sem cultura, iríamos para uma prisão pior do que se saíssemos nus. Só consigo conceber um cenário assim imaginando uma espécie de menino da selva adulto a passear pelas ruas, que além de barbudo e desgre-nhado se encontraria totalmente des-provido de noções de comportamento, educação e interacção com o espaço e com os outros seres humanos. E mes-mo assim lá teria os seus conhecimen-tos, hábitos e costumes. A sua cultura própria.

Dito isto, que concluir? Que a cultura está presente em todo o lado. E então? Se tudo está cheio de cultura qual a razão para andarem aí a chatear que é preciso dinheiro para a cultura?

A razão é simples. A cultura existe mas é muito melhor quando é valorizada, enriquecida, celebrada e partilhada. Porque cada troca cultural, em forma de pensamentos, textos, desenhos, canções, poemas, festas, filmes, per-mite aumentar o Conhecimento sobre nós e sobre os outros. Porque é que as grandes cidades são sempre tão mais desenvolvidas e fascinantes que as pequenas aldeias? Porque há nelas um fervilhar cultural que ao mesmo tempo espelha e potencia os interesses dos seus habitantes. E esta magia pode acontecer em todo o lado. E quem sabe onde nos poderá levar? Basta que nos interessemos por muito mais coisas do que aquelas a que nós estamos habituados. Nós mas também e sobre-tudo os políticos (de todas as pastas). A educação e a cultura são motores mais potentes que os dos carros alemães e sair à rua com cultura é tão mais elegante do que sair à rua num carro de alta cilindrada!

O Fazendo regressa, com novas cores e formas, depois do merecido descanso.

SAIR À RUA SEM CULTURA

Aurora Ribeiro

Aut

or:

Qui

no

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tirilha

rebus Letras e imagens são usados para formar uma nova palavra ou frase. Deve ser lido da esquerda para a direita.Os algarismos entre parêntesis indicam quantas palavras compõem o enigma e o número de letras de cada uma.

As letras fornecidas devem ser compostas com o nome das imagens para formar novas palavras.Quando uma letra surge entre parêntesis deve ser subtraída da palavra da imagem correspondente.

O símbolo significa que a palavra em questão deverá ser utilizada como capicua.(2+5+5+6+1+5+6+6+3+1+8)

solução no facebook do fazendo e em www.fazendo.pt

texto: Tomás Melo desenhos: Joseph Lewin

escreve um diálogo para estes desenhos e envia-nos para [email protected]

FAZENDO 102o boletim do que por cá se faz julho 2015 [email protected] www.fazendo.pt

gatafunhos