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ISSN 1809-2888 Licenciado sob uma Licença Creative Commons 46 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano XI, n. 51 Fé correta, fé certa: a distinção da fé cristã desde as faculdades da vontade e do intelecto 1 Correct faith, certain faith: the distinction of the Christian faith from the faculties of will and intellect Jacir Silvio Sanson Junior 2 Resumo: Quando pensado em associação com a vontade e o intelecto, o significado de alcança um sentido bastante estrito, de sorte que a precisão se torna uma característica funda- mental na formulação cristã. A fé é correta porque contém conteúdos verdadeiros (a Revela- ção). Em vista disso, seu traço de “cristã” impele que lhe seja imprescindível a exatidão, a fim de que a fé, além de correta, seja também uma fé certa: quando somente os conteúdos da fé são objeto de fé enquanto fé. Em relação à vontade, a fé certa é verificada sob o tema da doutrina da justificação (fé e obras) e na inclinação existencial da expressão “crer em” de São João e no conceito de fé como “substância” em Hebreus. A respeito da inteligência, a fé certa se exprime pela clareza epistemológica em se afirmar que o homem é capaz de alcançar indutivamente um conhecimento certo de Deus, e ainda pela liberdade de consciência, pela qual o homem procura sinceramente a verdade. Por fim, é esboçado um comentário às imagens evangélicas da figueira estéril e do grão de mostarda. Palavras-chave: fé, fé certa, vontade, inteligência, Novo Testamento. Abstract: When thought of in association with the will and the intellect, the meaning of faith reaches a strict sense, so that the accuracy becomes a fundamental characteristic in the Christian formulation. Faith is correct because it contains true content (Revelation). In view 1 Tema desenvolvido a princípio para uma aula inaugural ministrada em 26 de abril de 2013, por ocasião do Annus Fidei (11 out. 2012 – 24 nov. 2013), na Escola de Teologia e Pastoral da Paróquia Santa Rita de Cássia, Vitória – ES. A conveniência de seu estilo sintético, com disponibilização de material visual (slides), nos levou a prepará-lo em vista de um maior número de pessoas, particularmente envolvidas com a educação cristã e o ensino teológico. 2 O autor é teólogo, filósofo e psicólogo. Pesquisa sobre interioridade e exterioridade em São João da Cruz, no Mestrado em Filosofia da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGFil-UFES). E-mail: [email protected].

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ISSN 1809-2888Licenciado sob uma Licena Creative Commons

46Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano XI, n. 51

F correta, f certa: a distino da f crist desde as faculdades

da vontade e do intelecto1

Correct faith, certain faith: the distinction of the Christian faith from the faculties

of will and intellect

Jacir Silvio Sanson Junior2

Resumo: Quando pensado em associao com a vontade e o intelecto, o significado de f alcana um sentido bastante estrito, de sorte que a preciso se torna uma caracterstica funda-mental na formulao crist. A f correta porque contm contedos verdadeiros (a Revela-o). Em vista disso, seu trao de crist impele que lhe seja imprescindvel a exatido, a fim de que a f, alm de correta, seja tambm uma f certa: quando somente os contedos da f so objeto de f enquanto f. Em relao vontade, a f certa verificada sob o tema da doutrina da justificao (f e obras) e na inclinao existencial da expresso crer em de So Joo e no conceito de f como substncia em Hebreus. A respeito da inteligncia, a f certa se exprime pela clareza epistemolgica em se afirmar que o homem capaz de alcanar indutivamente um conhecimento certo de Deus, e ainda pela liberdade de conscincia, pela qual o homem procura sinceramente a verdade. Por fim, esboado um comentrio s imagens evanglicas da figueira estril e do gro de mostarda.

Palavras-chave: f, f certa, vontade, inteligncia, Novo Testamento.

Abstract: When thought of in association with the will and the intellect, the meaning of faith reaches a strict sense, so that the accuracy becomes a fundamental characteristic in the Christian formulation. Faith is correct because it contains true content (Revelation). In view

1 Tema desenvolvido a princpio para uma aula inaugural ministrada em 26 de abril de 2013, por ocasio do Annus Fidei (11 out. 2012 24 nov. 2013), na Escola de Teologia e Pastoral da Parquia Santa Rita de Cssia, Vitria ES. A convenincia de seu estilo sinttico, com disponibilizao de material visual (slides), nos levou a prepar-lo em vista de um maior nmero de pessoas, particularmente envolvidas com a educao crist e o ensino teolgico.

2 O autor telogo, filsofo e psiclogo. Pesquisa sobre interioridade e exterioridade em So Joo da Cruz, no Mestrado em Filosofia da Religio pelo Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal do Esprito Santo (PPGFil-UFES). E-mail: [email protected].

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of this, his line of Christian impels that her accuracy is essential, in order that faith, as well as correct, is also a certain faith: when only the contents of faith are objects of faith as faith. In relation to will, the certain faith is checked under the theme of the doctrine of justification (faith and works) and existential inclination of the term believe in of St. John and the concept of faith as substance in Hebrews. Concerning intelligence, the certain faith is expressed by the epistemological clarity in asserting that man is able to achieve inductively a certain know-ledge of God. Finally, we outline a comment to evangelical images the barren fig tree and the mustard seed.

Keywords: faith, certain faith, will, intelligence, New Testament.

INTRODUO

Este trabalho tem por objetivo reunir um material que subsidie estudos pastorais e acad-micos sobre a f crist, visitando algumas referncias irrenunciveis a esse tema.

Supe-se, por princpio, que a f crist atenda a certos requisitos de rigor. Nesse sentido, o ttulo F correta, f certa comporta, na realidade, uma afirmao: a f correta a f certa.

Dizendo assim, procuramos condicionar a reflexo sobre a f a padres mais rigorosos de avaliao. Por conseguinte o emprego do vocbulo f, sem um critrio mais estrito, tende a descaracterizar os traos que melhor qualificam essa mesma f como crist.

Atento a isso, o Catecismo da Igreja Catlica (CIC) afirma que a f certa porque se funda na prpria Palavra de Deus, que no pode mentir, pois a certeza dada pela luz divina maior que a que dada pela luz da razo natural. Logo a f mais certa que qualquer conhecimento humano.3

Desejaramos apontar que a f (autntica) certa no s por ser um tipo de conhecimento confivel, mas sobretudo porque precisa: tratando-se da f crist, necessrio preciso, no num sentido matemtico, claro. A preciso da f consiste em crer naquilo e s naquilo a que se remetido em razo da mesma f.

preciso mostrar que, na perspectiva da doutrina catlica, uma pessoa no ter a f corre-ta se sua f tambm no for certa, pois a exatido que sustenta a legitimidade do que se cr. Articulada pela teologia crist, a f, ou se preferirmos, o ato de f, para que seja certo, preciso ou exato, necessita comportar alguns elementos integrantes. Estes so fruto de uma reflexo constante que demarca um aprimoramento objetivo da definio de f.

Para percorrermos esse caminho, elaboramos uma reflexo teolgica expressa com dois enunciados. O primeiro trata a relao entre f e vontade; o segundo, entre f e intelecto. Es-sas duas faculdades so tomadas como eixo para localizar importantes questes que do ao sentido de f uma orientao propriamente crist, quando: contextualizada ao problema da

3 CIC 157.

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justificao e das circunstncias existenciais (f-vontade), concebida em sua requisio pela conscincia moral (f-razo).

A seguir, a ttulo de exrdio, recapitulamos algumas afirmaes do discurso doutrinal so-bre a f.

1. ITENS FUNDAMENTAIS DO ENSINO DOUTRINAL SOBRE A F

Antes de entrarmos na matria propriamente dita deste artigo, oportuno recordar alguns ensinamentos j consagrados em termos de catequese.

1. A f j o incio ou o princpio da vida eterna. Ela nos faz degustar como por an-tecipao a alegria e a luz da viso beatfica4, aquela viso em que se v a Deus face a face (1Cor 13,12), tal como Ele (1Jo 3,2).

2. A catequese da Igreja tambm ensina que a f tem por finalidade suprir alguma carncia do momento presente. H contrariedades que podem abalar a f, ao passo que a f pode ser o nico recurso contra as mesmas adversidades.5

3. Alm de textos bblicos pertinentes (cf. Mc 16,16; Jo 11,25; 12,46), dessa doutrina temos uma evidncia para demonstrar que a f necessria salvao.6

4. Por fim, ressoante falar da f como um dom gratuito que Deus concede ao homem. Como adverte Paulo a Timteo, esse dom inestimvel, mas pode ser per-dido (cf. 1Tm 1,18-19). Para viver, crescer e perseverar at o fim na f, devemos aliment-la com a Palavra de Deus; devemos implorar ao Senhor que a aumente [cf. Mc 9,24; Lc 17,5; 22,32]; ela deve agir pela caridade (Gl 5,6) [cf. Tg 2,14-26], ser carregada pela esperana [cf. Rm 15,13] e estar enraizada na f da Igreja.7

So esses alguns pontos fundamentais, comumente reforados pelo discurso homiltico e retomados na forma de exortao ao testemunho cristo de vida.

Avanaremos, por conseguinte, para uma reflexo de natureza mais teolgica, ou seja, quando o trato epistemolgico recebe o condicional de algo a ser construdo pelo debate em curso. Desse modo, o tema sobre a f problematizado com vistas a se levantar indagaes sobre certos aspectos observados.

4 CIC 163.

5 CIC 164.

6 CIC 161.

7 CIC 162.

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2. ELEMENTOS PARA UMA REFLEXO TEOLGICA

Aps essa recapitulao de cunho mais doutrinrio, vamos apresentar algumas coorde-nadas que talvez ofeream elementos para uma reflexo teolgica sobre a f. Nas pginas a seguir, isso ser feito a partir de dois enunciados, cada qual aprofundado em seus respectivos desdobramentos.

2.1 PRIMEIRO ENUNCIADO: DA RELAO F-VONTADE

Escreve-se sobre a f catlica na Constituio Dogmtica Dei Filius, do Conclio Vaticano I:

Esta f, porm, que o incio da salvao humana, a Igreja a define como uma virtude sobrenatural pela qual, sob a inspirao de Deus e com a ajuda da graa, cremos ser verdade o que ele revela, no devido verdade intrnseca das coisas conhecida pela luz natural da razo, mas em virtude da autoridade do prprio Deus revelante, o qual no pode enganar-se nem enganar.8

Segundo essas palavras, podemos afirmar: A f no consiste apenas em crer no que se acre-dita, mas em entregar-se quele em quem se acredita. Em reforo, um respaldo bblico se extrai das pginas paulinas: Eu sei em quem pus a minha f (2Tm 1,12).

Para assim dizer, ainda tomaramos por base os seguintes versculos do captulo 10 de So Joo: Jesus lhes respondeu: J vo-lo disse, mas no acreditais. As obras que fao em nome de meu Pai do testemunho de mim; mas vs no credes porque no sois das minhas ovelhas. As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheo e elas me seguem (Jo 10,25-27)9. A f comporta uma camada profunda que o mero escutar, qual seja, o seguir.

O texto parece comportar um raciocnio redundante, pois: se so suas ovelhas, claro que ouvem sua voz; e se ouvem sua voz, por bvio so suas ovelhas. Contudo o sentido da audio (ouvir) explorado pelo evangelista para indicar um progresso em relao ao testemunho: se testemunhar as obras leva f, quanto mais ouvir a voz do pastor (cf. Jo 10,2-5). Sendo opor-tuno presenciar a realizao de uma obra, mais complexo compreender o sinal intrnseco a seu significado (cf. Jo 11,45-48).

No precisamos detalhar a semntica dos verbos ouvir e conhecer para pontuar o alcance de tal conceituao da f na teologia joanina: As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheo e elas me seguem (Jo 10,27). Obedire, donde o termo obedecer, respalda a ideia de obedincia como resultado de uma escuta profunda: ob-audire. Quanto a conhecer, s vezes um eufemismo para a relao sexual (cf. Lc 1,34), conota os valores experienciais da prefern-cia e preocupao (cf. Ex 2; 6), intimidade e comunho (cf. Jo 10,14-15; 14,20; 17,21-22).

8 DS 3008.

9 Nas transcries de textos bblicos usaremos a Bblia de Jerusalm.

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O Catecismo estabelece essas ideias na seguinte observao: Obedecer (ob-audire) na f submeter-se livremente palavra ouvida, visto que sua verdade garantida por Deus, a prpria Verdade. Desta obedincia, Abrao o modelo que a Sagrada Escritura nos prope, e a Virgem Maria, sua mais perfeita realizao.10

Essa adeso pela f pode ser designada interior por inferir um reconhecimento muito fino, de difcil descrio, notado mesmo por seus efeitos na dimenso volitiva da pessoa: Tendo feito sair todas as que so suas, caminha frente delas e as ovelhas o seguem, pois conhecem a sua voz (Jo 10,4).

Alm do seguimento, as consequncias no agir patrocinam o que o evangelista conceitua como pertena: [...] eu lhes dou a vida eterna e elas jamais perecero, e ningum as arrebatar de minha mo (Jo 10,28).

A relao da f com a vontade livre alicerceia a liberdade e a tolerncia religiosa; no obje-taramos quem dissesse que a segurana de tal alicerce beneficia a constituio de uma socie-dade de direito democrtico.

Para que o ato de f seja humano, o homem deve responder a Deus, crendo por livre vontade. Por conseguinte, ningum deve ser forado contra a sua vontade a abraar a f. Pois o ato de f por sua natureza voluntrio. Deus de fato chama os homens para servi-lo em esprito e verdade. Com isso os homens so obrigados em conscin-cia, mas no so forados... Foi o que se patenteou em grau mximo em Jesus Cristo. Com efeito, Cristo convidou f e converso, mas de modo algum coagiu. Deu testemunho da verdade, mas no quis imp-la pela fora aos que a ela resistiam. Seu reino ... se estende graas ao amor com que Cristo, exaltado na cruz, atrai a si todos os homens.11

Para exprimir essa peculiaridade na concepo de f arquitetada em ambientes cristos, vamos reconhecer que nesse primeiro enunciado se formaliza a relao entre f e vontade, adentrando naquele raio de discusses acerca da justificao pela f ou pelas obras.

2.1.1 A F E AS OBRAS: O PROBLEMA DA JUSTIFICAO

Nos debates concentrados em torno do problema da justificao ps-se em oposio textos e teologias sem que se compreendessem quais eram seus referenciais.

Analisamos por exemplo estes versculos da carta aos Romanos: [...] se confessares com tua boca que Jesus o Senhor e creres em teu corao que Deus o ressuscitou dentre os mor-tos, sers salvo (Rm 10,9); [...] porque a finalidade da Lei Cristo para a justificao de todo

10 CIC 144. Noutra passagem, tambm se l: ento que devemos nos voltar para as testemunhas da f: Abrao, que creu, esperando contra toda esperana (Rm 4,18); a Virgem Maria, que na peregrinao da f foi at a noite da f, comungando com o sofrimento de seu Filho e com a noite de seu tmulo; e tantas outras testemunhas da f [...] (CIC 165).

11 CIC 160.

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o que cr (Rm 10,4); [...] porque diante dele ser justificado pelas obras da Lei, pois da Lei vem s o conhecimento do pecado (Rm 3,20).

H nessas palavras uma reivindicao de autonomia da novidade crist: a graa reden-tora de Jesus, o Cristo, que justifica a pessoa, e no a obedincia, por mais rigorosa e estrita que seja, aos cnones da halach, o conjunto de 613 mandamentos (positivos e proibitivos) mosaicos (incluindo mandamentos rabnicos posteriores) que constam na Tor e compem o Talmude.

Desguarnecidos dessa informao, tomaramos as seguintes palavras de So Tiago como, de fato, contraditoras: Meus irmos, se algum disser que tem f, mas no tem obras, que lhe aproveitar isso? Acaso a f poder salv-lo? (Tg 2,14); J vs que a f concorreu para as suas obras e que pelas obras que a f se realizou plenamente (Tg 2,22).

Mas o escritor bblico, em sua particularidade, no se pe a refutar Paulo. Na realidade, denuncia o quanto opaca a f proclamada em plena reunio ritual (cf. Tg 2,2), se dissociada da genuna caridade:

Meus irmos, vossa f em nosso Senhor Jesus Cristo glorificado no deve admitir acepo de pessoas. Assim, pois, se entrarem em vossa assembleia duas pessoas, uma trazendo anel de ouro, ricamente vestida, e a outra pobre, com suas roupas su-jas, e derdes ateno ao que se traja ricamente e lhe disserdes: Senta-te aqui neste lugar confortvel, enquanto dizeis ao pobre: Tu, fica em p a, ou ento: Senta-te a abaixo do estrado dos meus ps, no estais fazendo em vs mesmos discriminao? No vos tornais juzes com raciocnios perversos? (Tg 2,1-4).

Esteja ou no sendo referido o termo assembleia (sinagoga) a judeus convertidos, nesse eixo de reflexo as obras (incluindo principalmente o amor integral aos pobres, a assistncia direta a suas carncias), que so uma moo volitiva, autenticam a f.

Esse argumento torna imperioso que as obras certifiquem a f, forjando um pensamento audacioso: alm no reconhecer a f daqueles que a proclamam no culto litrgico ao mesmo tempo em que fazem acepo de pessoas, o autor da epstola submete a veracidade de tal dom ao crivo da caridade. A f proclamada insipiente, contanto que a autntica seja a f vivida no amor.

Conhecendo bem os referentes aos quais se dirigem as intervenes de Paulo e Tiago, no se ver contradio entre eles, como tambm se perceber a ntima relao da f com a facul-dade da vontade.

2.1.2 A F SEGUNDO UMA FORMULAO EXISTENCIAL

tambm abordando a relao entre f e vontade que alvorece uma compreenso mais existencial que doutrinal. Para isso gostaramos de recordar o significado nominal de (pstis), termo bblico traduzido por f. Mas o sentido mais correto de no f, e sim pr,

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quer dizer, repousar minha confiana em Deus ou no Messias; depender dele, entregar-lhe a vida, lanar-se a ele.

conhecido que , acompanhada da preposio (eis), verifica-se 45 vezes no Novo Testamento, a maior parte nos escritos joaninos. Quando ocorre essa construo, feita s vezes tambm com a partcula (ep), no se prescreve apenas uma atitude respeitosa, mas sim soteriolgica. Crer exprime uma atitude salvadora (f salvfica), de confiana pessoal em Jesus e descanso do esprito nele, havendo entre o crente e o Salvador uma mtua interpenetrao de personalidades.12

No sentido bblico da expresso, crer em Jesus no consiste em conceder credibilidade a suas promessas, mas deixar que sua vida dependa inteira e exclusivamente delas. Teramos, em decorrncia, um significativo deslocamento: das conotaes de crena, crdito e convico quanto ocorrncia de algum fato ou da veracidade de uma alguma assero, para as de fide-lidade, compromisso e confiana.13

Na encclica Spe salvi (SS), Bento XVI abordou esta inclinao existencial da natureza mes-ma da f ao fazer uma exegese de dois versculos da Epstola aos Hebreus (Hb 11,1 e Hb 10,34), respectivamente com as palavras hypostasis (substncia) e hyparchonta (bens).

No primeiro caso, a f hypostasis [substantia] das coisas que se esperam; prova [elenchos / argumentum] das coisas que no se vem. Segundo o Papa, o termo grego usado (elenchos) no tem o valor subjetivo de convico, mas o valor objetivo de prova.14

J no texto de Hebreus 10,34, tratando-se dos crentes que viveram a experincia da perse-guio, -se dito: No s vos compadecestes dos encarcerados, mas aceitastes com alegria a confiscao dos vossos bens (hyparchonton Vg: bonorum), sabendo que possus uma riqueza melhor (hyparxin Vg: substantiam) e imperecvel.15

Tornando evidentes os termos clssicos que subjazem s tradues modernas, o Papa pro-cura desembaralhar os ns hermenuticos formados de uma exegese no muito rigorosa.

Para Lutero, que no nutria muita simpatia pela Carta aos Hebreus em si prpria, o conceito de substncia, no contexto da sua viso da f, nada significava. Por isso, interpretou o termo hipstase/substncia no no sentido objetivo (de realidade pre-sente em ns), mas no subjetivo, isto , como expresso de uma atitude interior e, consequentemente, teve naturalmente de entender tambm o termo argumentum como uma disposio do sujeito. No sculo XX, esta interpretao imps-se tambm na exegese catlica pelo menos na Alemanha de modo que a traduo ecumnica em alemo do Novo Testamento, aprovada pelos Bispos diz: Glaube aber ist: Fests-

12 TAYLOR, 1991, p. 174.

13 MICHAELIS 2000, 2000, p. 944.

14 SS 7.

15 SS 8.

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tehen in dem, was man erhofft, berzeugtsein von dem, was man nicht sieht (f : per-manecer firmes naquilo que se espera, estar convencidos daquilo que no se v).16

Embora em si mesmo isso no esteja errado, tais interpretaes so insustentveis, no lhes sendo dispensvel determinada correo.

A f no s uma inclinao [ou uma certeza] da pessoa para realidades que ho-de vir, mas esto ainda totalmente ausentes; ela d-nos algo. D-nos j agora algo da realidade esperada, e esta realidade presente constitui para ns uma prova das coisas que ainda no se veem. Ela atrai o futuro para dentro do presente, de modo que aquele j no o puro ainda-no. O fato de este futuro existir, muda o presente; o presente tocado pela realidade futura, e assim as coisas futuras derramam-se naquelas presentes e as presentes nas futuras.17

Esta espera das coisas futuras a partir de um dom presente se explica fundamentalmente, em termos teolgicos, pela presena de Cristo.18

Expe-se assim o peso existencial da conceituao de f, a partir de uma diferenciao drstica entre aqueles cuja f se pauta da convico pessoal de contedos doutrinais inequvo-cos, e a f daqueles que, sem esta verdadeira substncia, no contariam com quaisquer outros recursos para subsistirem.

A f confere vida uma nova base, um novo fundamento, sobre o qual o homem se pode apoiar, e consequentemente, o fundamento habitual, ou seja a confiana na riqueza material, relativiza-se. Cria-se uma nova liberdade diante deste fundamento da vida que s aparentemente capaz de sustentar, embora o seu significado normal no seja certamente negado com isso. Esta nova liberdade, a conscincia da nova substncia que nos foi dada, ficou patente no martrio, quando as pessoas se opu-seram prepotncia da ideologia e dos seus rgos polticos e, com a sua morte, renovaram o mundo.19

2.2 SEGUNDO ENUNCIADO: DA RELAO F-INTELECTO

Como no primeiro enunciado vimos entrelaados f e vontade, neste se tem associados f e inteligncia.

Acerca disso, o Catecismo retoma uma frase que o Conclio Vaticano I, no sculo XIX, res-gatara de Santo Toms de Aquino, do sculo XIII: Na f, a inteligncia e a vontade humanas cooperam com a graa divina: Credere est actus intellectus assentientis veritati divinae ex impe-

16 SS 7.

17 SS 7.

18 SS 9.

19 SS 8.

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rio voluntatis, a Deo motae per gratiam Crer um ato da inteligncia que assente verdade divina a mando da vontade movida por Deus atravs da graa.20

A f que se presta a Deus no acontece sem a plena adeso do intelecto e da vontade21. O Conclio Vaticano I ainda declara que o o assentimento da f no , de modo algum um movi-mento cego do esprito22. Tais palavras nos move para um segundo enunciado: a f no supe meramente uma crena, mas uma afinidade espiritual com a Verdade em que se cr. Portanto a f supe uma afinidade espiritual com a verdade. Essa compreenso pode ser embasada na seguinte percope joanina, correlacionando a f com a luz:

Pois Deus no enviou o Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele. Quem nele cr no julgado; quem no cr, j est julgado, porque no creu no Nome do Filho nico de Deus. Este o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas luz, porque suas obras eram ms. Pois quem faz o mal odeia a luz e no vem para a luz, para que suas obras no sejam demons-tradas como culpveis. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que se ma-nifeste que suas obras so feitas em Deus (Jo 3,17-21).

A integrao da f vontade humana descentraliza exigncias demasiado afetivas no cam-po das virtudes teologais. Queremos dizer com isso que, se a relao com a vontade serve para apaziguar determinadas exigncias da f mediante o vetor tico23, algo similar se sucede em vista da inteligncia, pois o discpulo de Cristo no deve apenas guardar a f e nela viver, mas tambm profess-la, testemunh-la com firmeza e difundi-la24, dando razes de sua esperan-a (cf. 1Pd 3,15). Para tanto, necessita-se da inteligncia.

Procuraremos entender bblica e sistematicamente como o dom sobrenatural da f e a fa-culdade natural da razo se conjugam no modo de conferir uma peculiar preciso ao sentido cristo de f.

2.2.1 F E RAZO: RELAES ENTRE EPISTEMOLOGIA, MORAL E CONSCINCIA

No tema sobre o vnculo necessrio entre f e inteligncia (cf. 1Cor 2,14; Pr 28,5), recebe um matiz a relao entre f e razo, cujas propostas se graduam desde uma separao dram-tica, passando pelo reconhecimento da mtua autonomia e conformando-se a vrios tipos de interaes e radicalizaes.25

20 CIC 155.

21 DS 3008.

22 DS 3010 apud CIC 156.

23 CIC 1814-1815.

24 CIC 1816.

25 Um panorama dessa histria foi sintetizado por Joo Paulo II na Fides et ratio (cf. nn. 36-48).

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Em todo caso, orientam o posicionamento oficial do Magistrio esta importante declarao confeccionada na Dei Filius:

O constante sentir da Igreja Catlica tem tambm sustentado e sustenta que h duas ordens de conhecimento, distintas no s pelo princpio, mas tambm pelo objeto; pelo princpio, visto que numa conhecemos pela razo natural e na outra, pela f divina; e pelo objeto, porque, alm daquilo que a razo natural pode atingir, so pro-postos para crermos mistrios escondidos em Deus, que no podemos conhecer sem a divina revelao.26

Mas, ainda que a f esteja acima da razo, jamais pode haver verdadeira desarmonia entre uma e outra, porquanto o mesmo Deus que revela os mistrios e infunde a f, dotou o esprito humano da luz da razo; e Deus no pode negar-se a si mesmo, nem a verdade jamais contradizer a verdade.27

Observamos aqui um duplo intento. O primeiro consiste em neutralizar o princpio induti-vo que faria dos contedos da f revelada (o todo) uma resultante de operaes lgico-racio-nais (as partes). Sem isso, o conceito de Revelao estaria subscrito induo.28

Na sequncia, vemos o Vaticano I salvaguardar a finalidade comunicativa intrnseca pr-pria Revelao, isto , o seu aspecto dedutivo, pois por uma deciso totalmente livre, Deus se revela e se doa ao homem29, revelando seu mistrio e seu projeto benevolente.

Bem mais melindrosas so as discusses de vis epistemolgico sobre a relao entre f e razo, pelo qual se pretende conciliar afirmaes um tanto conflitantes. historicamente muito serviente dizer que: a. nenhum homem, de modo algum, pode atingir por suas prprias foras a ordem de conhecimento da Revelao divina, ao passo que, por outro lado, b. cogite-se para a razo natural do homem o conhecimento seguro de Deus a partir das suas obras.30

A dinmica entre velamento e desvelamento na ideia de Revelao (cf. 1Cor 13,9-12) fo-menta uma multiplicidade de nuances quando se pensa a relao entre f e razo, como o indi-ca a sutil ambiguidade na primeira Timteo 6,16: o nico [...] que habita uma luz inacessvel.

Em certas passagens, Justino e Clemente de Alexandria31 exploram nessa relao uma fun-o propedutica: a razo, no dissociada de um esprito reto e uma vida pura, prepara re-cepo do Evangelho; serve para sua defesa, no para ser complementado ou corroborado. Em

26 DS 3015.

27 DS 3017.

28 Em Lgica formal, o conceito de induo diametralmente oposto ao de deduo. Como explica Rgis Jolivet (1982, p. 57): A induo um raciocnio pelo qual o esprito, de dados singulares suficientes, infere uma verdade universal. O raciocnio dedutivo, ao contrrio, parte do geral para chegar ao especfico, j contendo a concluso, portanto, em suas premissas.

29 CIC 50.

30 DS 3015.

31 apud JOO PAULO II, Fides et ratio, n. 38.

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outras construes, como a de Santo Agostinho nas Confisses (Conf.), a relao incrementa-da com o fator soberba/humildade, caro ao apstolo Paulo em Romanos 1,21-32.

Quiseste mostrar-me, antes de tudo, como fazes resistncia aos soberbos e concedes tua graa aos humildes, e como em tua misericrdia quiseste indicar o caminho da humildade. Tu me proporcionaste, atravs de um homem inflado de orgulho imenso, alguns livros dos platnicos traduzido do grego para o latim, onde encontrei escrito, se no com as mesmas palavras, certamente com o mesmo significado e com muitas provas convincentes, o seguinte: No princpio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. No princpio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito. E o que foi, a vida nele, e a vida era a luz dos homens, e a luz brilha nas trevas, e as trevas no a apreenderam [Jo 1,1-5]. [...] Li escrito nesses livros que o Verbo, que Deus, nasceu, no da carne nem do sangue, no da vontade do homem, nem da vontade da carne, mas de Deus [Jo 1,13]. Mas no en-contrei escrito nesses livros que o Verbo se fez carne e habitou entre ns [Jo 1,14] (Conf. VII,9,13-14).

Na ordem do debate epistemolgico entre f e razo assim enxertado um elemento moral, enriquecendo a investigao com um problema no mais exclusivo do limite natural prprio razo da criatura face o mistrio inefvel, mas tambm com o limite moral imposto, conforme a filosofia em questo, pela condio carnal ou pelo pecado.

Outro nome que muito contribuiu para uma construo onde f e razo pudessem coabitar foi o de Santo Anselmo de Canturia. O texto abaixo marca um otimismo perante a capacidade de conhecimento racional, policiado, verdade, com dimenses do senso religioso.

Antes de discutir a questo (da Encarnao do Verbo), direi algumas palavras para conter a presuno daqueles que, por uma temeridade mpia, se atrevem a questio-nar um ponto qualquer da f crist por no poderem compreend-la, e julgam, por um orgulho tolo, que o que no podem compreender impossvel, em vez de con-fessar, por uma humilde sabedoria, que podem existir muitas coisas que so incom-preensveis. Nenhum cristo dever tentar jamais demonstrar que no existe o que a Igreja Catlica cr de corao e confessa com a boca. Ao contrrio, conservando sempre firmemente esta f, amando-a e conformando com ela sua vida, deve inves-tigar humildemente, na medida de suas foras, a razo que lhe faa ver como essa f. Se pode compreend-la, d graas a Deus. Se no pode, no levante a cabea para combat-la, mas deve antes abaix-la em adorao.32

Esses conselhos compelem a encontrar uma harmonia entre a f confessada e a razoabili-dade do que se confessa, apesar de se tratar de eventos destinados muito mais recepo na f do que assimilao pela razo.

32 ANSELMO DE CANTURIA, Carta sobre a Encarnao do Verbo apud BOFF, 1998, p. 127.

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Justifica-se tal equilbrio porque ainda que a f esteja acima da razo, no poder jamais haver desarmonia entre uma e outra, porquanto o mesmo Deus que revela os mistrios e in-funde a f dotou o esprito humano da luz da razo33. A nosso ver, o pressuposto dessa har-monia tambm pode ser visualizado no fato de a razo lidar inevitavelmente com questes a princpio incompreensveis, pois sempre indeterminado at onde possvel (caso haja algum limite absoluto) compreend-las.

Portanto aqui se fala da f no no sentido fiducial, a saber, o de conduzir a uma converso religiosa-institucional (f-converso), mas no sentido epistemolgico correlato (cf. Hb 6,1-6). Ao invs de se fazer da f um instrumento anti-intelectualista34, admite-se nela uma vontade de verdade35; alternativamente a estimul-la em seus potenciais de iniciao36, visa-se nela sua modalidade como saber substancial37, de envergadura tanto estrutural como estrutu-rante.38

Essa perspectiva reforada pela reflexo de Ricardo de So Vtor e sua passagem da f, simplesmente, inteligncia da f.

Que ardor no devemos ter por esta f na qual todo bem tem seu fundamento e encontra sua firmeza! Mas se a f a origem de todo o bem, o conhecimento sua consumao e perfeio. Lancemo-nos, pois, em direo perfeio e, por toda a srie de pro-gressos possveis, avancemos apressadamente da f para o conhecimento. Faamos todos os esforos possveis para compreender aquilo que cremos (ut intelligamus quod credimus).Pensemos no ardor dos filsofos profanos quanto ao estudo de Deus, nos progressos que fizeram. E envergonhemo-nos de nos mostrar, nesse ponto, inferiores a eles. (...) E ns, que fazemos ns, que, desde o bero, recebemos a tradio da verdadeira f? O amor verdade deve ser em ns mais eficaz que neles o amor da vaidade! Ser preciso que, nessas questes, nos mostremos mais capazes, ns que somos dirigidos pela f, arrastados pela esperana, impelidos pela caridade!Devemos julgar ainda insuficiente ter sobre Deus, pela f, ideias corretas e verdadei-ras. Esforcemo-nos, como dizamos, por compreender o que cremos (quae credimus intelligere). Empenhemo-nos sempre, nos limites do lcito e do possvel, por captar pela razo aquilo de que estamos convencidos pela f (comprehendere ratione quod tenemus ex fide). Alis, de se admirar se diante das profundezas divinas nossa in-

33 Porm, ainda que a f esteja acima da razo, no poder jamais haver desarmonia entre uma e outra, porquanto o mesmo Deus que revela os mistrios e infunde a f dotou o esprito humano da luz da razo; [...] Mais ainda: quem tenta perscrutar com humildade e perseverana os segredos das coisas, ainda que disso no tome conscincia, como que conduzido pela mo de Deus, que sustenta todas as coisas, fazendo com que elas sejam o que so (CIC 159).

34 Clodovis Boff (1998, p. 530-533) denomina essa acepo de fidesmo.

35 BOFF, 1998, p. 25.

36 BOFF, 1998, p. 130.

37 BOFF, 1998, p. 129.

38 BOFF, 1998, p. 32.

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teligncia se obscurea, ela que , quase a todo momento, envolvida pela poeira dos pensamentos terrenos?[...]Pois para o cu que somos levados pelo Esprito, que nos levanta, todas as vezes que a graa da contemplao nos faz alcanar a inteligncia do eterno. Deve-nos, pois, parecer pouca coisa ter uma f autntica nas realidades eternas, se no nos dado corroborar estas verdades da f pelo testemunho da razo. Sem nos satisfazer com o conhecimento do eterno que s a f outorga, procuremos atingir o que d a inteligncia, se ainda no somos capazes do conhecimento que concede a experin-cia (mstica).39

Ricardo de So Vtor conclama inteligncia da f, justamente por perceber que a f porta um elemento de verdade que disponibiliza aos cristos um privilgio de saber nunca antes obtido pelos filsofos pagos.

A mstica parece se apresentar no meramente como uma via alternativa do trabalho racional, mas como algo que a excede. O empenho da razo que visa compreender no re-presenta em si qualquer averso aos termos de uma experincia. Portanto tal experincia, a assim chamada mstica, no algo em si desarrazoada, mas transpe o imperativo prprio inteleco.

Enquanto o conhecimento passvel de uma evoluo mediante esforos concentrados, a experincia, por sua vez, guarda sempre a marca do imprevisvel. No entanto diramos que, no horizonte da mstica, ao progresso no saber no estranha a sensao de um desejo sempre operante.

Ainda no excerto acima ocorre uma aparente depreciao teodiceia pag. Achamos ser aparente, porque no chega a ser um valor, mas a deduo (lgica) de um pressuposto: fica os cristos a deverem uma elaborao racional mais sistemtica de sua f desde o momento em que a admitem por Revelada, no sentido pleno da palavra. Compreende-se assim a Revelao como uma beneficiria direta da razo.

Se Ricardo de So Vtor ousou condicionar a perfeio da f ao patamar de compreenso e conhecimento que lhe aporta, outro momento de grande audcia no tema f e inteligncia foi o protagonizado por Santo Toms de Aquino, sob o comentrio abaixo de Joo Paulo II:

Uma resposta, de resto que faz eco ao ensinamento dos Padres e tradio dos te-logos, desde Santo Toms de Aquino a John H. Newman. O Conclio nada mais faz se-no reiterar aquela que foi a constante convico da Igreja. Com efeito, conhecida a posio de Santo Toms: ele to coerente nesta linha a respeito da conscincia, a ponto de considerar ilcito o ato de f em Cristo feito por quem, por absurdo, estives-se convencido em conscincia de agir mal ao faz-lo.40

39 RICARDO DE SO VTOR. De Trinitate Prlogo apud BOFF, 1998, p. 23-24.

40 TOMS DE AQUINO, Summa Theologiae, 1-2, q. 19, a. 5 apud JOO PAULO II, 1994, p. 179.

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Tanto Newman como Santo Toms colocam a conscincia, ou o imperativo interior da cons-cincia, acima da autoridade, nos moldes da explicao de Joo Paulo II (1994, p. 178): O ser humano no pode ser obrigado aceitao da verdade. Para ela somente impelido pela sua natureza, isto , pela sua prpria liberdade, que o compele a procur-la sinceramente e, ao encontr-la, a ela aderir quer com a convico quer com o comportamento.

Essa uma posio que o Magistrio permanente da Igreja sempre assumiu, como asseve-rado recentemente no Conclio Vaticano II por meio da Dignitatis humanae. Se o ser humano perceber pela prpria conscincia uma chamada, mesmo errnea, que no entanto lhe parea inquestionvel, deve sempre e em todo caso atend-la. O que no lhe permitido aderir cul-posamente ao erro, sem procurar chegar verdade (JOO PAULO II, 1994, p. 179).

Essa rpida incurso sobre trs interfaces da f, como vimos a respeito da epistemologia (o saber), da moral (a humildade) e da conscincia (foro ntimo), reivindicam uma necessria relao com a inteligncia. Isso demarca ao conceito de f uma preciso a f crist certa que a seguir trabalharemos por meio de dois comentrios bblicos.

2.2.2 A PRECISO DA F

Jesus no apenas exortou f no sentido de ter f, mas principalmente para que se tives-se a f certa, ou seja, a f em ordem inteligncia. E duas de suas exortaes merecem uma ateno maior. No seria petulante tentar entender o possvel sentido de suas palavras, seja para se evitar equvocos, seja para melhor demonstrar a participao da inteligncia na noo cristolgica de f.

2.2.2.1 A figueira estril

Numa das exortaes de Jesus, a f vem articulada com o efeito de a figueira ter-se secado subitamente por no produzir frutos (figos).

No texto paralelo de Lucas (cf. Lc 13,6-9) encontramos uma breve parbola para o que, em Marcos, l-se assim:

No dia seguinte, quando saam de Betnia, teve fome. Ao ver, distncia, uma figuei-ra coberta de folhagem, foi ver se acharia algum fruto. Mas nada encontrou seno folhas, pois no era tempo de figos. Dirigindo-se rvore, disse: Ningum jamais coma do teu fruto. E seus discpulos o ouviam. [...] Passando por ali de manh, viram a figueira seca at as razes. Pedro se lembrou e disse-lhe: Rabi, olha a figueira que amaldioaste: secou. Jesus respondeu-lhes: Tende f em Deus. Em verdade vos digo, se algum disser a esta montanha: ergue-te e lana-te ao mar, e no duvidar no cora-o, mas crer que o que diz se realiza, assim lhe acontecer. Por isso vos digo: tudo quanto suplicardes e pedirdes, crede que j o recebestes, e assim ser para vs (Mc 11,12-14.20-24).

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Segundo esses ensinamentos de Jesus, a f, mais fundamental que ocasionar um aconteci-mento extraordinrio, como o deslocamento de um monte, teria o poder de tornar imediata a relao entre a palavra e o acontecimento subsequente: tudo o que disser ser feito, inclusive fazer um monte passar de um lugar a outro. No importa do que se trate: se pela f se diz, pela f acontece.

Como a f estabelece uma relao imediata entre palavras e acontecimentos, isso pode ser transposto para o momento atual. O prprio evangelista Lucas o percebe: tanto maior seria a f no momento presente, quando se tm cumpridas as palavras da promessa. Uma vez mais se veem diretamente referidas, pela f, as palavras (da promessa) aos acontecimentos (realiza-o da promessa).

Quando comearem a acontecer essas coisas, erguei-vos e levantai a cabea, pois est prxima a vossa libertao. Em seguida contou-lhes uma parbola: Vede a fi-gueira e as rvores todas. Quando brotam, olhando-as, sabeis que o vero j est prximo. Da mesma forma tambm vs, quando virdes essas coisas acontecerem, sabei que o Reino de Deus est prximo. Em verdade vos digo que esta gerao no passar sem que tudo acontea (Lc 21,28-32).

Geralmente a f pensada como pertencente ao mbito de uma atitude pessoal41. Todavia no trecho acima de Lucas pensa-se nas condies macroestruturais de possibilidade da f. Estaria acontecendo, no tempo presente (contemporneo a Jesus), a estruturao de uma con-juntura extrapessoal que favorece como nunca o ato de f pessoal.

Isso esclarece com maior profundidade o exemplo da figueira: enquanto a interpretao comum conduz a um espelhamento autocrtico minha f to estril como a figueira?42 , pontuamos uma dimenso em que se solicita veementemente a faculdade da inteligncia: sou eu como uma figueira frutfera que prediz a chegada do vero? Dessa forma, a hermenutica no se restringe a dois elementos apenas: os (1) frutos e a (2) figueira; mas se expande conta de trs: a (1) figueira produz ou no os (2) frutos que anunciam a chegada do (3) vero.

O apelo, portanto, feito inteligncia que deve procurar um entendimento sempre mais apurado das coisas, a ler os sinais, importando-se numa talentosa percepo da fora divina atuando e conduzindo o mundo. Antes de uma adeso pessoal, o ato de f evoca uma com-preenso conjuntural, s possvel atravs de um empenho intelectual.

41 Esta definio do Catecismo serve de ilustrao: A f primeiramente uma adeso pessoal do homem a Deus; , ao mesmo tempo e inseparavelmente, o assentimento livre a toda a verdade que Deus revelou (CIC 150).

42 Produzimos os frutos que ele [Jesus] espera? E nossa vida de igreja no se limita a um estril aparato exterior? So essas algumas indagaes pastorais lanadas pelo Missal cotidiano (CNBB, 2011, p. 839) em seu comentrio a Marcos 11,11-26. A dimenso escatolgica chega a ser destaca no comentrio a Lucas 13,1-9, mas se mantm o tom de uma autocrtica moral: [...] a parbola da figueira estril um convite preciso a no viver uma existncia vazia, porm frutificar e enriquecer-se para o dia do chamado do Senhor (CNBB, 2011, p. 1422). Gonzlez-Ruz (2007, p. 1009) pensa a respeito da fecundidade religiosa que Israel teria perdido, a ponto de o Templo, casa de orao, ter-se transformado em covil de ladres. A f assim no mais produzia orao, nem despertava para o servio, tampouco cativava o perdo, mas era de toda ineficaz contra a explorao do povo simples.

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A f, no sentido estritamente cristo, consiste em manifestar uma inteligncia sintonizada com os sinais dos tempos. J com o exemplo do gro de mostarda, torna-se saliente mais um aspecto.

2.2.2.2 Como o gro de mostarda

Outra exortao de Jesus para que se tenha f aparece novamente com o deslocamento da montanha, desta vez seguido com a analogia do gro de mostarda; isso em Mateus 17,20, pois em Lucas tem-se novamente o gro de mostarda, s que com o translado ou o desenraizamento da amoreira: Os apstolos disseram ao Senhor: Aumenta em ns a f!. O Senhor respondeu: Com a f que tendes, como um gro de mostarda, se disssseis a esta amoreira: Arranca-te e replanta-te no mar, e ela vos obedeceria (Lc 17,5-6).

Esse pedido: aumenta, acrescenta, adiciona, prsthes, supe que os discpulos j tinham alguma f. No era preciso dar-lhes nova f, como se fosse outro produto ou uma substncia diferente, mas apenas colocar mais daquilo que j tinham (Rienecker; Rogers, 1995, p. 142).

Isso pode indicar uma relao teolgica harmnica entre a f num sentido mais natural43 e a f como graa44. Pode tambm falar, como assinala a Bblia de Jerusalm (BJr), de um aper-feioamento da f que se tem atual e concretamente, ao contrrio de se visar uma f ideal e possivelmente ilusria.45

Santo Toms de Aquino arguiu na Suma Teolgica (ST) uma questo em que objeta a si mesmo com a prpria tese. A f no poderia ser suscetvel a aumentar ou a diminuir: um he-rege, rechaando obstinadamente um nico artigo de f, perde o hbito necessrio a todo ato de f, semelhante a quem cujo pecado mortal fez com que perdesse toda a caridade46. Nesse sentido, no existe mais ou menos f, muita ou pouca f.

Por outro lado, a concluso do artigo 4 da questo 4 no se aplica situao propriamente dita de um herege: o hbito da f se diversifica para mais ou para menos apenas naquilo que no lhe essencial, ou seja, quando se trata da vontade ou da caridade47. Sob essa determina-o, pode-se, sim, falar em mais ou menos f, no sentido de fervor ou intensidade apenas.

Santo Toms esclarece: no existe diferena entre f formada e f informe quanto ao objeto da f, ou seja, a Verdade primeira, que nica e simples48. No entanto a f pode ser maior em

43 Como abordado por Santo Agostinho em sua obra De Fide rerum quae non videntur liber unus (Sobre a f no que no se v). Disponvel em: .

44 CIC 153-154.

45 BJr, 2006, p. 1819, nota d.

46 ST IIa IIae, q. 5, a. 3.

47 ST IIa IIae, q. 4, a. 4.

48 ST IIa IIae, q. 1, a. 1.

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um que em outro conforme a participao do sujeito, como se destaca nas Escrituras (cf. Mt 14,31; 15,28), mesmo permanecendo formalmente una em todos os crentes.49

[...] as verdades materialmente propostas para crer so muitas, e se pode acolh-las mais ou menos explicitamente. [...] pode um crente crer explicitamente em mais coi-sas que outro [...]. Pode-se portanto dizer que a f maior em um que em outro, ou por parte do entendimento, causa de sua maior certeza e firmeza, ou por parte da vontade, causa de sua maior prontido, entrega e confiana (ST IIa IIae, q. 5, a. 4).

A reflexo tomasiana solicita, para a f, um empenho no sentido da vontade e da intelign-cia, a fim de que, nessa e somente nessa condio, fale-se de uma f maior. Evidentemente, no a f (objeto) que se altera, mas a participao do sujeito conforme sua vontade e inteligncia.

Esse debate nos coloca diante da percope mateana sobre o gro de mostarda. Como popu-larmente considerada a menor de todas as sementes, tende-se a captar nisso uma interpela-o contra uma f vacilante em vista de uma f autntica que, mesmo demasiado pequena como um gro de mostarda, participa do poder onipotente de Deus.50

Mas esta pouca f, oligopistia, uma pequena f51 no no sentido literal, e sim como uma pequenez de f52 ou uma f fraca, de acordo com a verso a seguir:

Ento os discpulos, procurando Jesus a ss, disseram: Por que razo no pudemos expuls-lo [o demnio do menino luntico]? Jesus respondeu-lhes: Por causa da fra-queza da vossa f; pois em verdade vos digo: se tiverdes f como um gro de mostar-da, direis a esta montanha: transporta-te daqui para l, e ela se transportar, e nada vos ser impossvel (Mt 17,19-20).

Nesse trecho vemos a nica apario de oligopistia em todo o Novo Testamento53. O termo no pode ser confundido com apistos (sem f, descrente, incrdulo), que aparece onze vezes, uma delas a dois versculos antes (cf. Mt 17,17).54

A passagem no supe uma proporo direta entre o tamanho do gro e da f, to pequena a ponto de no ser comparativamente maior que a menor das sementes. Mas como se est tratando de oligopistia, a hermenutica toma um trajeto bem distinto. Podemos avaliar que a nossa f no seja to pequena, e sim, grande demais, contudo sem fora ou vigor: nesse caso, no seria preciso aumentar/inchar a f at que se alcance o tamanho do gro; pelo contrrio, ela supostamente grande demais, e mesmo assim, pequena no sentido de fraca.

49 ST IIa IIae, q. 4, a. 6.

50 RAMOS, 2007, p. 886-887.

51 Rienecker; Rogers, 1995, p. 39.

52 Novo Testamento interlinear grego-portugus, 2004, p. 71.

53 METZGER, 2006, p. 35.

54 Rienecker; Rogers, 1995, p. 38.

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O gro de mostarda fornece assim a imagem da f certa: a f deve ter a preciso de um gro de mostarda. To maior a exatido quanto menor o tamanho da semente. O gro de mostrada seria assim a metfora de um alvo.

Desse modo, o comparativo f-gro se desprende do eixo de variao quantitativa para assumir uma compreenso totalmente nova de f: o gro de mostarda o anlogo de uma f altamente depurada e rigorosamente precisa; logo de uma f certa, como o sugere o advrbio (como).55

O gro de mostarda o paradigma da lisura e justeza da f, e no o limite crnico de sua completa falncia. Por isso mesmo lemos: se tiverdes f como um gro de mostarda. Isso sig-nifica que a mencionada semente usada para indicar um trao fundamental da f autntica.

O comentrio do Catecismo ao Proslogion de Santo Anselmo ratifica a pertinncia dessa leitura: A f procura compreender: caracterstico da f o crente desejar conhecer melhor Aquele em quem ps sua f e compreender melhor o que Ele revelou; um conhecimento mais penetrante despertar por sua vez uma f maior, cada vez mais ardente de amor.56

A f portanto maior enquanto se conhea melhor. E assim, independentemente de ser pouca ou muita a f, necessrio que seja certa, ou seja, uma f respaldada na faculdade inte-lectiva. imperativo crer, se muito ou pouco, na verdade e somente na verdade que se preci-so crer, sem lhe acrescentar e nada lhe subtrair.

O Novo Testamento um campo onde se pode recolher alguns bons exemplos de uma ten-dncia cujo intuito seja a preciso. cristmente impensvel que se afirme uma f sem que esta se submeta a rgidos processos de filtragem e depurao. Esse tipo de operao foi algu-mas vezes visado, como nos mostra o trecho a seguir.

Sentindo fome, quis comer. Enquanto lhe preparavam alimento, sobreveio-lhe um xtase. Viu o cu aberto e um objeto que descia, semelhante a um grande lenol, baixado terra pelas quatro pontas. Dentro havia todos os quadrpedes e rpteis da terra, e aves do cu. Uma voz lhe falou: Levanta-te, Pedro, imola e come!. Pedro, porm, replicou: De modo nenhum, Senhor, pois jamais comi coisa alguma profana e impura! De novo, pela segunda vez, a voz lhe falou: Ao que Deus purificou, no chames tu de profano. Sucedeu isto por trs vezes, e logo o objeto foi recolhido ao cu (At 10,10-16).

Esse alargamento universal no conceito de purificao (kathardzo) significa limpar57 traz consequncias maneira crist de se relacionar com o conjunto da criao, percebendo nela uma sacralidade para alm do culto e do templo. Isso sugere uma correo na maneira de se relacionar e usufruir das coisas profanas.

55 VOCABULARIO GRIEGO DEL NUEVO TESTAMENTO, 2001, p. 209.

56 CIC 158.

57 Rienecker; Rogers, 1995, p. 209.

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J no testemunho paulino, embora num momento extremo, v-se enfatizado aquilo que o penhor ante a diversidade das circunstncias. Tal conscincia tambm certifica a f de lisura e acerto, qual ponto seguro a pedra angular (At 4,11-12; cf. 1Pd 2,4-5) em meio flutuao dos entes:

Segundo est escrito: Por sua causa somos postos morte o dia todo, somos consi-derados como ovelhas destinadas ao matadouro. Mas em tudo isto somos mais que vencedores, graas quele que nos amou. Pois estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes, nem a altura, nem a profundeza, nem qualquer outra criatura poder nos separar do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 8,36-39).

Enfim, -nos mostrado, pela formulao crist, que a relao do homem com o Sagrado adquire o horizonte de uma sntese global e definitiva. Sem esse propsito, a f, numa acepo crist, permaneceria desprovida de rigor, qual noo malevel a intercmbios e outras barga-nhas.

Ele, porm, visto que permanece para a eternidade, possui sacerdcio imutvel. Por isso capaz de salvar totalmente aqueles que, por meio dele, se aproximam de Deus, visto que ele vive para sempre para interceder por eles. Tal precisamente o sumo sacerdote que nos convinha: santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores, elevado mais alto do que os cus. Ele no precisa, como os sumo sacerdotes, oferecer sacrifcios a cada dia, primeiramente por seus pecados, e depois pelos do povo. Ele j o fez uma vez por todas, oferecendo-se a si mesmo (Hb 7,24-27).

Assim, pois, como se passa com a redefinio de sagrado, mediao e sacerdcio, tambm a compreenso da f indica um estreitamento em vista da preciso: toda f legitimamente crist atem--se somente quilo que objeto dessa mesma f, sem nada a lhe acrescentar nem a lhe retirar.

CONSIDERAES FINAIS

De fato, a elaborao crist sobre a f assumiu para si algumas orientaes bastante singu-lares. Realando a relao entre a f e as faculdades da inteligncia e da vontade, refora-se o quanto imprescindvel a colaborao pessoal para que isto, a que a doutrina declara ser uma virtude sobrenatural infusa, alcance a realizao de seus efeitos.

A f crist atende a certos requisitos de rigor. Ao afirmarmos que a f correta, no sentido cristo, a f certa, justapomos noo de f um critrio mais estrito, passvel de manifestar--se num duplo eixo antropolgico.

Relativo faculdade volitiva, vimos ser incisiva em textos neotestamentrios a interde-pendncia de f e caridade: no s a caridade cede f os elementos de autenticidade, como tambm a f terminantemente vista como substncia existencial, e no mero contedo de persuaso mental. No aspecto da vontade, portanto, no se pergunta qual a sua f? ou em

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quem voc acredita?, no sentido de convico doutrinal; crer em supe indagar aonde sua f lhe conduz?. Pensa-se, mais profundamente, em como sua f a ponto de ela tornar-se real fundamento de sua vida, no sentido de adeso e seguimento.

A relao com o intelecto, como na faculdade anterior, tambm nos favoreceu conceber a f crist em termos de preciso. A plataforma epistemolgica aposta na deduo prpria ideia de comunicao divina, promovendo assim uma linha apoftica muito instigante ao pensar. Alm disso, os Santos Padres atentaram para a influncia do estado moral da alma na recepo da Revelao: no se v neles, tampouco na Escolstica, a inteno da fazer da f um instrumento de coao institucional, mas torn-la apreensvel como meio cristo privilegiado para atender s aspiraes de todo homem que busque a verdade com conscincia livre, reta e sincera.

Em ordem a uma solicitao da inteligncia, vimos que nessa linha possvel catalisar a hermenutica de duas imagens evanglicas sobre a f. A figueira estril no evoca uma crtica f sem frutos, mas sim mencionada para fins de interpelar por uma f inteligente, ou seja, se a nossa razo, em ordem f, capaz de inteligir a realizao das promessas no tempo presente. Isso sem dvida amplia o horizonte da f para alm de um reduto intimista ou individual.

O gro de mostarda, como analisamos, a matria-prima de uma analogia que tambm confirma o entendimento da f crist segundo o ndice da preciso: a minscula semente no citada para se lanar uma indagao pelo tamanho da f, mas para dizer que convm f crist uma percia equiparvel de se acertar um gro de mostarda como alvo. Tocante inte-ligncia, isso significa que a f do sujeito deve no apenas conter, mas tambm se ater f em seus artigos objetivos, sem jamais se valer de conjugaes alheias aos mesmos contedos. A f precisa condio da f correta que, enquanto tal, uma f grande/forte, uma f crist.

REFERNCIAS

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Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano XI, n. 51

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Recebido: 04 03 2015

Aprovado: 27 05 2015

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