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FELLINI POR ELE MESMO: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE “FELLINIANA”.
Neemias Oliveira da Silva – Universidade Estadual de Goiás – UEG – Unidade Universitária Cora Coralina da Cidade de Goiás, e-mail:
“Aceita-me tal como eu sou. Só então poderemos descobrir-nos um ao outro.” “Cinema-verdade? Prefiro o cinema mentira. A mentira é sempre mais interessante do que a verdade.” Federico Fellini.
Este texto é parte de um estudo intitulado: Carpe Diem: rituais cotidianos no
Satyricon - Petrônio e Fellini, apresentado no Programa de Pós-graduação em
Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP, na
qual tive a oportunidade de construir minha própria identidade por meio da narrativa
felliniana. Convido você leitor a entrar no universo mágico do cinema italiano,
representado pelo cineasta Federico Fellini. Seguindo este percurso, pergunto: quem foi
Fellini?
Federico Fellini nasceu em Rimini, na Itália, em 20 de Janeiro de 1920, uma
pequena cidade litorânea, na qual viveu até os seus 17 anos, cidade esta que lhe serviu
de inspiração para muitos de seus filmes, tais como: Os Boas-Vidas e Amarcord.
Fellini foi considerado um gênio dentro do mundo cinematográfico, em
decorrência da sua criatividade ilimitada, que tornava seus pensamentos e delírios como
algo próprio da nossa imaginação. Essa característica acabou virando adjetivo,
conhecida também como felliniana, que designava mulheres de seios fartos, rostos
grotescos e imagens circenses.
No ano de 1937 o cineasta dirigiu-se para Florença na tentativa de publicar suas
charges na revista satírica 420, sendo que no ano seguinte acabou indo para Roma
estudar Direito, como conseqüência acabou tornando-se colaborador e desenhista de
história em quadrinhos. Ele escreveu sketches para rádio, canções para teatro de revista
e monólogos para cômicos famosos.
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A oportunidade apareceu mesmo quando teve contato com Aldo Fabrizi, ator de
cinema e teatro italiano, que o levou para o teatro de revista, e lhe concedeu a chance de
colaborar como roteirista no primeiro filme, eram comédias humorísticas de Macário.
Fellini e Giulietta deixaram na cinematografia filmes memoráveis, como a obra: La
Strada, Noites de Cabíria, na qual ganhou o Oscar e Ginger e Fred.
No ano de 1944, ao conhecer o diretor de cinema Roberto Rossellini, este o
convidou para escrever o roteiro de Roma, Cidade Aberta. E ainda com Rossellini,
colaborou também com Paisà (1945), e em seguida, com Alberto Lattuada, contribuiu
em Il Delitto di Giovanni Episcopo; Senza Pieta (estréia de Giulietta), Duilio Coletti (Il
Passatore), o episódio Il Miracolo, do filme L’amore (de Rossellini). O estilo de Fellini
era único, não pertencia a um movimento especifico, assim como muitos críticos o
identificaram.
Com Lattuada, Masina e Carla Del Poggio, acabou formando uma cooperativa
chamada Capitolium, que produziu o filme Mulheres e Luzes, inspirado nas aventuras
da companhia de teatro de revista de Aldo Fabrizi, em 1939.
A consagração internacional ocorreu com a obra La Strada, quando ganhou o
Leão de Ouro em Veneza e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Fellini, também fez La
Dolce Vita, um retrato de Roma em seu auge: Via Veneto, estrelas de cinema, pobres
decadentes. Muito polêmico, o filme foi atacado pelos moralistas, a quem o cineasta
satirizou em um episódio de Boccaccio 70, com o qual ganhou a Palma de Ouro em
Cannes. Em 8 1/2 (Oito e Meio), um filme considerado pelos críticos como sendo
autobiográfico, Federico Fellini retratou a história de um cineasta em crise artística e
pessoal; por este trabalho também ganhou o Oscar de melhor direção e o grande prêmio
de cinema de Moscou.
Assim sendo, a dicotomia entre o movimento neo-realista e a indústria
cinematográfica hollywoodiana colocava Federico Fellini como sujeito entre um e
outro, pois o cineasta não pertencia a uma categoria propriamente definida.
[...] Passa a simbolizar o novo estágio de relações entre autor e indústria, em que o papel de diretor, promovido a protagonista do processo cinematográfico, deixa a situação artesanal e o ponto de vista da escassez e se integra ao núcleo de um mercado de luxo. Sinalizando o valor de referência central, assumido por Fellini na nova conjuntura, o qualificativo “felliniano” (para designar
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certos traços ou situações) passa a ser adotado pela mídia de vários países. (MARTINS, 1994, p. 21)
Casado com a atriz Giulietta Masina desde 1943, esta tinha sido estrela de sete
de seus filmes. Esposa e companheira, Giulietta acabou morrendo de câncer em 23 de
Março de 1994. Federico Fellini, abatido pela doença da mulher, faleceu no dia 31 de
Outubro de 1993. Foi velado durante dias no estúdio Cinecittà, fabrica de seus delírios,
e teve uma missa solene numa das maiores igrejas de Roma, antes de seguir para
repousar para sempre na terra de Rimini, seu berço de nascimento e morte. Estiveram
presentes no seu funeral vários artistas, políticos, diretores e técnicos de cinema, rádio,
televisão, jornalistas, religiosos, gente de todas as camadas e de toda espécie e a
multidão, num misto de reverência e saudade antecipada.
O Estúdio Cinecittà era a fábrica dos sonhos de Fellini. Sua construção iniciou
com o lançamento da pedra fundamental em 27 de Janeiro de 1936. No complexo de
teatros era possível encontrar além do diretor e cineasta Federico Fellini, os astros
Marcello Mastroianni e Sophia Loren; o cineasta Pier Pasolini, Michelangelo Antonioni
e Rossellini. Sobre a relação de Fellini com o Cinecittà, o mesmo cita que:
Adoro a Cinecittà. Aqui passo meus melhores momentos. É uma fábrica, é onde trabalho e é um bom instrumento de trabalho. Estou também ligado por laços afetivos. Cheguei aqui pela primeira vez, há muito tempo. Era jornalista, na época, e fazia entrevistas com as vedetes, os diretores [...] (STRICH e KEEL, 1986, p. 94)
As produções que ocorreram no Cinecittà se mesclavam com a trajetória da
história política romana. O Estúdio foi fruto do regime fascista e apresentava o
arquétipo de uma ideologia pautada pela estética fincada em valores morais e sociais,
características predominantemente do regime totalitário. A exposição dos problemas
sociais e a busca de soluções e de um “cinema-verdade” inspiraram os cineastas para
uma nova forma de se pensar o cinema italiano.
[...] Mussolini inaugurou o Cinecittà na tarde de 27 de abril de 1937, com hierarcas, bandeiras, fanfarras, crianças uniformizadas, operários perfilados militarmente, generais e deputados. O quotidiano romano (da época) Giornale d’Italia descreve: O Duce, galgando entre altíssimas
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aclamações, a grande praça, que, da Cidade cinematográfica forma a vasta luminosa entrada, presenciou o inicio do filme Elevazione, argumento de Vittorio Mussolini, e do filme Aviazione, que se desenvolvera sob a superdireção [sic] do próprio Vittorio Mussolini [...] O Duce presenciou depois a sincronização do filme Scipione l’africano. [...] No período fascista, o cinema fascina os filhos de Mussolini: Vittorio Mussolini é também roteirista. A irmã da amante de Mussolini é, por sua vez, uma diva, intérprete também de filmes distribuídos por Vittorio Mussolini. Muitas divas são amantes de hierarquias fascistas, e freqüentemente iniciam suas carreiras no cinema, graças a tal proteção. (PENAZZO, 1988, p. 8, 11 e 20)
Com isso, Fellini encontraria nos cartuns seu escape para os assuntos políticos,
bem como a inspiração para seus futuros filmes. Mesmo o Satyricon de Fellini tendo
sido produzido na década de 60, momento em que o cinema estava passando por uma
transformação, principalmente no campo do documentário, como um movimento de
expressão do cinema direto, que se desenvolvera na América do Norte, no Canadá, na
França e em Quebec, trazendo consigo novas técnicas de filmagem e de captação direta
do som. Federico Fellini procura deixar claro que sua produção não fazia parte deste
novo movimento de expressão. No entanto, o que percebemos e que mesmo o Cinema-
Verdade tendo como proposta captar a realidade tal como ela é, não podemos deixar de
notar que toda produção fílmica se passa pelo crivo de quem a produz. O diretor, suas
escolhas e sua matriz de pensamentos frente ao objeto fílmico revelam que o Cinema-
Verdade é na verdade uma construção, feita a partir da edição das imagens e sons
captados.
A primeira projeção da realidade aconteceu no dia 28 de Dezembro de 1895, no
subsolo do Grand Café de Paris, os irmãos Louis e Auguste Lumière projetaram os
primeiros registros de chegada de um trem a estação La Ciotat, bem como a saída dos
operários das usinas Lumière. Após quatro anos, o francês George Meliès lança,
Viagem a Lua, um filme de ficção cientifica, colocando em xeque a fantasia e a
realidade. Assim, ao longo da história o cinema passaria a ser uma ferramenta de
propagação de ideologias culturais e políticas.
Neste universo entre a realidade e a fantasia, o desenho, mais propriamente a
caricatura permeava o mundo de Fellini, servindo de inspiração para a construção de
seus filmes. Ao retratar assuntos Clássicos, como fez com Roma Antiga, utilizou-se de
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certo tom de liberdade. Na obra o Satyricon, desenhou uma Roma que existia somente
em sua imaginação. Para Fellini, tanto a literatura do Satyricon de Petrônio, como o
cinema devem ser compreendidos inseridos em seu próprio tempo e espaço, o que nos
revela que o cineasta pertencia ao mundo onde foi concebido, ou seja, o mundo do
cinema, da imagem em movimento.
Uma obra de arte nasce sob uma expressão única; eu acho essas transposições ridículas, aberrantes, monstruosas. As minhas preferências vão em geral às sugestões originais escritas para o cinema. Creio que o cinema não tem necessidade de literatura, precisa somente de autores cinematográficos, isto é, de gente que se expresse através do ritmo, da cadência, que são particulares ao cinema. O cinema é uma arte autônoma que não tem necessidade de transposições sobre um plano que, no melhor dos casos, será sempre ilustrativo. Cada obra de arte vive na dimensão na qual foi concebida e na qual é expressa. Que coisa se observa num livro? Situações. Mas as situações, sozinhas, não tem significado. E o sentimento com o qual elas vêm, são expressas, que conta, a atmosfera, a luz: em suma, a interpretação dos fatos. Mas a interpretação literária daqueles fatos não tem nada a ver com a interpretação cinematográfica dos mesmos. São duas maneiras de se exprimir inteiramente diferentes. (FELLINI, 1986, p: 20)
A biografia de Federico Fellini é permeada de contradições, entretanto a certeza
que temos é quanto à aproximação de Fellini com o imaginário, recurso este que vai
buscar em fontes literárias. A relação de Fellini com a Literatura e o Cinema pode ser
verificada em sua leitura do Satyricon de Petrônio. A produção do filme ocorreu sobre a
atmosfera das drogas alucinógenas e da ficção cientifica da década de 60. O Satyricon
foi filmado entre Novembro de 1968 e Maio de 1969, em um ambiente de
experimentação, polissexualidade e de autodescoberta. O movimento hippie,
convencionalmente denominado de movimento de contracultura da década de 60,
representava a ideologia do filme, caracterizado pelo espírito de liberação e da abstração
das conseqüências dos atos.
No Satyricon de Fellini tudo era válido. O filme se entrelaça por meio de dois
jovens romanos, Encólpio (Matin Potter) e Ascilto (Hiram Keller), que acabam sendo
raptados por um pirata e escravizados em um navio. Ao serem libertados, realizam
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variadas conquistas sexuais. Nesta aventura sexual Encólpio acaba sendo capturado e
forçado a lutar com um Minotauro. Este fato torna Encólpio impotente, fato que percebe
no momento em que se envolve com Ariadne. Para resolver o problema de sua
impotência, Encólpio faz uma visita ao Jardim dos Prazeres e depois a Oenothea, que
lhe devolve sua potência sexual. O filme termina com a morte de Ascilto e com a
decisão de Encólpio embarcar para a África. As cenas finais mostram os preparativos da
viagem.
As cenas do filme de Fellini se constituem como uma crítica a sociedade romana
contemporânea. Para o diretor, os romanos do período do principado tais como os
romanos da Via Veneto de seu período tinham uma vida vazia e sem sentido. Nesta teia
das relações humanas, tanto no filme de Fellini quanto na obra de Petrônio, o desfecho
se cruza através das falas dos personagens.
No ano de lançamento do filme Satyricon, os críticos afirmaram que não era
uma obra que chamava muito a atenção, apesar das cenas de orgias, dos banquetes e da
violência. O filme causava certo tédio ao espectador. Ao contrário de A Doce Vida,
todo o filme foi filmado para que o público não se identificasse com os personagens
principais, fato caracterizado pela música em estilo diegético. Mesmo Fellini tendo a
pretensão de fazer do Satyricon um documentário do mundo romano Antigo, o mesmo
passava longe das características históricas, aproximando mais do mundo de fantasias
do cineasta.
Este filme em particular foi o mais caro de Fellini, na qual foram utilizados 90
cenários, construídos todos no Cinecittà. Cerca de 250 atores compunham o mosaico do
mundo romano do período Imperial montado por Fellini nos estúdios. A estréia da obra
fílmica ocorreu nos Estados Unidos, depois de um espetáculo de Rock no Madison
Square Garden. O filme foi apresentado para um público de aproximadamente dez mil
hippies drogados e enrolados uns aos outros. Segundo especialista em cinematografia, o
filme de Fellini tinha atingido o seu público alvo, sendo um filme para adolescentes,
como classificou o United Artists. Todavia, mesmo perante todas as críticas, o Satyricon
foi indicado ao Oscar pela originalidade e pela realização, sendo aplaudido em todo o
mundo pela criatividade no conjunto da obra.
Assim, a História Nova incorpora o cinema como um documento plausível de
ser estudado e analisado. Um dos precursores desta característica é o historiador francês
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Marc Ferro. Para ele o cinema revela muito do seu tempo, ou seja, do momento em que
foi feito.
[...] o cinema destrói a imagem do duplo que cada instituição, cada indivíduo se tinha constituído diante da sociedade. A câmara revela o funcionamento real daquela, diz mais sobre cada um do que queria mostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira as máscaras, mostra o inverso de uma sociedade, seus lapsus. É mais do que preciso para que, apos à hora do desprezo venha a da desconfiança, a do temor [...] A idéia de que um gesto poderia ser uma frase, esse olhar, um longo discurso é totalmente insuportável: significaria que a imagem, as imagens [...] constituem a matéria de uma outra história que não a História, uma outra análise da sociedade. (FERRO, 1976, p. 202-203)
Para o historiador Jean-Claude Bernadet, o cinema trouxe a ilusão, algo que
parece verdadeiro, embora saibamos que é ficção. Para ele, o filme é:
[...] um pouco como num sonho: o que a gente vê e faz num sonho não é real, mas isso só se sabe depois, quando acordamos. Enquanto dura o sonho, pensamos que é verdade. Essa ilusão de verdade, que se chama impressão de realidade, foi provavelmente a base do grande sucesso do cinema. (BERNARDET, 2000, p. 12)
Nesse sentido, a utilização do cinema como um documento histórico leva-nos a
uma melhor compreensão de períodos que outrora se apresentavam de maneira obscura
em documentos ditos oficiais. Entretanto, todo documento se renova a partir da visão do
historiador. Assim, o imaginário, os ritos, os signos e mitos passaram a fazer parte da
construção das sociedades e de seus respectivos contextos históricos.
A partir da concepção apresentada por Marc Ferro, o historiador deve tomar
cuidado ao fazer a leitura de seu documento fílmico. Um documentário que se baseia
em fatos reais pode ser uma construção, assim como um filme de ficção, que também
pode apresentar cenas reais. A relação histórica e historiográfica da leitura fílmica se
expressa pela construção da narrativa do objeto estudado, que por sua vez ocorre através
da conjunção de sentidos que os filmes atribuem ao tempo que constroem.
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Dessa forma, o cinema é a expressão do homem. É na projeção da tela que os
diferentes tipos de gêneros se cruzam, e que as inúmeras estórias, mitos e fábulas
adquirem consistência. Todo este aparato faz regir um complexo comércio que alimenta
o desenvolvimento do mercado cinematográfico. A publicidade que aparece nos filmes
e nas salas de projeção, bem como as distribuidoras que enviam filmes para estas salas e
os espectadores que pagam pela bilheteria, constituem o mercado cinematográfico.
A narrativa cinematográfica é um conjunto de sons, imagens e discursos verbais
direcionados a compreensão do espectador. No campo literário, ao ser adaptado para um
roteiro, o discurso fílmico passa a ser outro texto mantendo as características do
discurso lingüístico.
Ao ser projetado temos que ter consciência que o filme passou por diversas
etapas ate chegar às salas de cinema, tais como a preparação do roteiro, das filmagens e
da edição do produto. A natureza fílmica é heterogênea e sua estrutura é uma
composição de técnicas que levam o espectador a construir um mundo de ilusões
perceptíveis ao seu modo.
Com isso, o pesquisador da obra fílmica tem que transcender a própria obra e
buscar compreender como que a película foi recebida pelo público e como este reagiu
frente à produção cinematográfica. O crítico Jean Mitry relata que o público atribui
significado a imagem seqüencial dentro da edificação e elaboração das idéias do
cineasta. Significação que esta associada à narrativa, pois a imagem em si não traz
significados, pois a mesma passa a ter significado após entrar em contato com o
público. A busca de algum significado na imagem fílmica, já é por si um exercício
interpretativo.
É preciso enfatizar que a imagem cinematográfica é uma construção, realizada
pela junção de recursos e equipamentos próprios ao mundo do cinema, tais como o som,
a iluminação, a fotografia, o roteiro e as câmeras. Nesse contexto, a produção
cinematográfica é uma construção de uma determinada visão da realidade. Ao produzir
uma obra fílmica, as escolhas do diretor influenciam a execução da mesma, pois é ele
quem indica os atores, elabora o roteiro, escolhe os cenários e aponta a temática que
será abordada.
As características expostas até o momento indicam que o historiador e os
estudiosos dos recursos audiovisuais, ao se ocuparem dos estudos de fontes fílmicas,
tornam-se necessário ainda estabelecer um diálogo com outras formas de expressão, tais
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como a imagem, o movimento e o som. Assim, um objeto fílmico permite variadas
leituras, suscetíveis a temporalidades e ângulos de análise distintos.
O olhar metodológico do historiador sobre o objeto fílmico é diferente da visão
do cineasta, do critico ou do diretor, pois além do significado da produção
cinematográfica, leva-se em conta a sua relevância quanto objeto de cunho
historiográfico. O historiador Marcos Napolitano completa dizendo que:
[...] é menos importante saber se tal ou qual filme foi fiel aos diálogos, a caracterização física dos personagens ou a reprodução de costumes e vestimentas de um determinado século. O mais importante é entender o porquê das adaptações, omissões, falsificações que são apresentadas num filme. Obviamente, é sempre louvável quando um filme consegue ser fiel ao passado representado, mas esse aspecto não pode ser tomado como absoluto na análise histórica de um filme. (NAPOLITANO, 2006, p. 237)
Um documento fílmico apresenta as mesmas armadilhas de um documento
escrito. O espectador cinematográfico estabelece uma relação com a produção em
consonância com o seu mundo. O historiador deve observar que a imagem fílmica não
determina por completo o mundo do espectador, sendo antes uma ilusão.
Todavia, nesse conjunto o espectador também exerce um papel ativo frente à
produção cinematográfica, pois ao assimilar e interpretar a imagem fílmica faz por meio
de suas vivências e aspirações. Assim, a imagem fílmica é um ponto de referência
cultural e não uma referência da realidade.
A relação de Fellini com o mundo dos sonhos estava ligada pela necessidade que
tinha de buscar decifrar-se, não somente a si próprio, mas também àqueles que o
cercavam. No conjunto das relações entre a realidade e a fantasia Fellini nos relata:
[...] No entanto a linguagem dos sonhos é a mesma de um filme e o filme é um sonho. Podemos dilatar o espaço, dar saltos no tempo, fazer aparecer e desaparecer as pessoas sem razão aparente. Assim que nos lembrarmos de um sonho, pensamos nas perspectivas e nos personagens estranhos, mas, sobretudo na luz indefinível, aquela que se associa a uma consciência livre. Ainda mais quando essa luz revela e esconde nossas mais profundas emoções; eu tento reproduzi-la no estúdio, na esperança de tornar meus filmes sonháveis. (FELLINI, 1995, p, 113)
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A necessidade de nos conhecermos como seres transformadores do meio em que
estamos imersos, bem como as relações com o “outro” caracterizava a lógica de Fellini
de anularmos os limites entre a concepção de realidade e fantasia. Para o cineasta é por
intermédio dos sonhos que nos expressamos, somos o que somos na expressão do “eu”,
na psique do pensamento.
A função estética elaborada pelo cineasta é resultado da mistura dos sons e das
formas. Em seus filmes, Fellini não apenas priorizava a imagem em si, mas dava uma
singular importância também à sonorização. A expressão por meio da dublagem era o
que dava significado às suas “figuras”.
Nesse sentido, a relação da imagem com o som para Fellini tinha muito a ver
com a construção da memória, do pensamento, da busca pela identidade. E a memória
estabelecia um jogo dialético com as lembranças, de conferir um som às imagens que
nós recordamos. Assim, por intermédio das lembranças ou através da memória, ou das
lembranças que construímos com a memória é o que nos destaca como seres únicos e
históricos.
[...] A lembrança pode ser real ou inventada, como é o caso da maioria das minhas lembranças. A memória, ao contrário, é completamente diferente: nós entramos numa dimensão entre o paranormal, o espiritual e alguma coisa que vivemos desde sempre. A memória nem tem necessidade de se exprimir através das lembranças. É um composto misterioso, quase indefinível, mas que nos liga a alguma coisa que, às vezes nós mesmos nos lembramos de tê-las vivido: os acontecimentos, as sensações que não sabemos definir, mas que confusamente sabemos que existiram. Assim, um artista – perdoe-me esta definição um pouco orgulhosa e desproporcionada -, um criador tem um conhecimento verdadeiro da memória, que pode lhe fazer lembrar que nunca apareceram de fato no contexto de sua vida. (FELLINI, 1995, p. 24)
A teórica política alemã Hannah Arendt em seu texto “O conceito de História –
antigo e moderno” relata a sua aproximação com o conceito “Histórico”, quanto se trata
da relação entre História e Memória. Com isto, tanto Hannah Arendt como o filósofo e
sociólogo Walter Benjamin consideram que os vestígios passados servem para elucidar
os acontecimentos futuros. Nessa postura “Clássica” da História comparam
determinadas experiências históricas como pérolas que estão no fundo do mar
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esperando um pescador trazê-las à superfície. O historiador seria este pescador que vai
até a profundidade da experiência humana e não para trás, como no tempo cronológico.
Para Arendt em diálogo com Benjamin, o tempo histórico, da memória histórica
é constituído por fragmentos, por rupturas e não formado por causalidades. Com este
pensamento, a concepção de memória e História para os gregos exercia a função de
salvar os feitos do homem do esquecimento, para que com isso possa ser lembrado na
posteridade.
Nesse viés, para Arendt o historiador ou pesquisador ao construir a narrativa
histórica, tendo de enfrentar a relação entre história e memória, se impõe em
julgamentos dos fatos narrados, o que por sua vez realiza no momento da narrativa,
julgamento este distinto do moral e do jurídico, o que permite ao historiador escapar dos
dilemas entre objetivismo e relativismo cultural.
Para Fellini era comum inventar recordações com a ajuda de uma memória que
nunca existiu, ou seja, de uma memória que se fazia nascer a qualquer momento. Fellini
se reconhecia apenas por intermédio de seu trabalho, que adquiria a função de espelho
d’alma.
O cinema-verdade? Prefiro o cinema-mentira. A mentira é sempre mais interessante do que a verdade. A mentira é a alma do espetáculo e eu gosto do espetáculo. A ficção pode ir em direção de uma verdade mais aguda do que a realidade cotidiana e aparente. Não é necessário que as coisas que mostramos sejam autênticas. Em geral, é preferível que elas não o sejam. O que deve ser autêntica é a emoção que sentimos ao mostrar e ao exprimir. (STRICH e KEEL, 1986, p. 86)
Essa característica deve-se ao fato de que seu trabalho era uma fuga do mundo
autobiográfico, apesar de muitos críticos e estudiosos enquadrarem sua produção no
campo autobiográfico. Fellini busca em Delacroix a reflexão sobre a construção da
memória:
As coisas que são mais reais para mim são as ilusões que criei para minha pintura. Todo o resto não passa de areia movediça. (FELLINI, 1995, p. 34)
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Nesse processo, a Rimini de Fellini era o lugar onde tinha passado boa parte de
sua infância, mas a verdadeira Rimini tinha se afastado dele, existindo apenas uma
imagem que figurava em seus filmes. O fazer cinema para Fellini consistia numa forma
de existência e não apenas de expressão.
[...] Viver fazendo filmes é, para mim, a forma mais próxima de identidade na qual posso me encontrar. É no centro de minha história que me sinto no centro de minha existência. [...] O estilo é o que une seja a memória, sejam as lembranças, ou uma certa ideologia, um certo sentimento, a nostalgia, o pressentimento e a maneira com que se exprime tudo isso. (FELLINI, 1995, p. 38-40)
A Prof. Drª. Gilda de Melo e Souza completa dizendo que:
Também o tema de Satyricon não é novo no universo felliniano. A decadência é o tema central de La Dolce Vita, e se bem que na época seja então a contemporânea, em vários momentos do filme o diretor alude ao passado, para mostrar a dessacralização atual dos valores [...] Em La Dolce Vita a comparação entre o presente e o passado visava o contraste; em Satyricon, vale como identificação. (SOUZA, 1980, p. 140)
A identificação de Fellini acha-se muito próxima da relação entre História,
memória e da construção da identidade, uma identidade felliniana, sua filmografia nos
revela um cineasta que se encontrava por meio da produção de seus filmes. A Doce
Vida (1960), Os Clows (1970) e A Cidade das Mulheres são alguns dos exemplos da
filmografia de Fellini na qual o mesmo se realiza quanto diretor e “personagem”
cinematográfico.
Para compreendermos um pouco da construção da identidade felliniana
recorremos à produção do sociólogo espanhol Manuel Castells, que em sua obra “O
poder da identidade” traça um panorama dos movimentos sociais e da política, como
resultado da interação entre globalização e tecnologia na sociedade moderna. O autor
ainda trabalha com assuntos ligados as questões da formação dos diferentes tipos de
identidades e como estas se relacionam com o Estado, na sua concepção de Instituição.
A trajetória de Castells ocorre a partir das observações e das práticas dos movimentos
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sociais em contexto culturais diversos. Por este motivo, a idéia de identidade para
Castells pode ser verificada por meio do significado e da experiência de um
determinado povo. Vejamos:
Não temos conhecimento de um povo que não tenha nomes, idiomas ou culturas em que alguma forma de distinção entre o eu e o outro, nós e eles, não seja estabelecida [...] O autoconhecimento – invariavelmente uma construção, não importa o quanto possa parecer uma descoberta – nunca está totalmente dissociado da necessidade de ser conhecido, de modos específicos, pelos outros. (CASTELLS, 1999, p. 22)
Assim, para Castells identidade é o processo de construção de significado de
uma determinada cultura. Nesta interpretação, tanto para uma sociedade quanto para o
indivíduo existem identidades múltiplas. A identidade torna-se significante ao homem
na medida em que o mesmo a constrói em seu processo de individualização.
Com isso, a identidade é oriunda do processo de construção de significados,
resultante do meio em que se encontra o indivíduo, nas relações institucionais,
produtivas, religiosas e nas relações de poder.
Ao tecer estas considerações sobre a questão da identidade, podemos dizer que
Federico Fellini aproxima-se mais da “Identidade de projeto” proposto por Castells,
uma vez que o autor elenca três possíveis formas de origem da construção da
identidade, sendo elas, a identidade legitimadora, que tem como objetivo expandir e
racionalizar o poder das Instituições dominantes no meio social, ligado as questões do
autoritarismo e do nacionalismo; a identidade de resistência, que luta contra o processo
de dominação das identidades dominantes e por sua vez a “Identidade de projeto” que
como Manuel Castells cita, é um instrumento na qual o indivíduo se utiliza para
redefinir sua posição em seu meio social. Sobre esta questão, Castells afirma:
[...] quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social. (CASTELLS, 1999, p. 24)
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Dessa forma, Federico Fellini em sua trajetória cinematográfica constrói uma
“identidade de cineasta” utilizando de um processo significante imerso na sua relação
entre o mundo do espetáculo fílmico e o da Indústria Cultural do cinema. Seu papel na
“Identidade de projeto” é com base na sua identidade reprimida, é em seus filmes que
Fellini torna-se felliniano, a marca do exagero.
A transformação social é o resultado de sua produção artística, da receptividade
do público, da construção do significado da obra fílmica de Fellini para o coletivo. Com
isso, cada espectador passa a ser atuante no processo da construção da identidade,
individualizada e coletiva.
Os “desejos” são ao mesmo tempo coletivos e individuais. A identidade de
Fellini é o resultante de seu próprio processo criativo, da formação de um personagem,
da utilização de uma metodologia constituída por ele próprio e diluída em seus
discursos. Ao nos identificarmos com a produção fílmica de Fellini, por meio de nossos
desejos e anseios, passamos também a nos identificar com o personagem felliniano,
solidificado em seu mundo individualizado.
Esta postura da formação da identidade de Fellini, somente torna-se possível
graças à montagem fílmica, da estruturação orgânica dos elementos do filme, isto
Individualizada no sentido da construção da própria identidade frente à obra fílmica e
coletiva referente ao significado cultural da obra sobre o meio social.
Ao adotarmos este ponto de vista, no processo de construção da identidade, o
indivíduo é levado a pensar sobre a formação da memória no aspecto coletivo e
individual. Nesse viés, a memória individual é caracterizada pelas recordações, das
lembranças de cunho privado, próprias da personalidade de cada um, e que
selecionamos a partir de nosso subjetivo, já a memória coletiva é caracterizada pelas
lembranças impessoais, que podem ser compartilhadas com o grupo conforme os
interesses coletivos.
A identidade é o resultado do processo histórico, formados em situações e
momentos distintos, para Stuart Hall em “A Identidade Cultural na pós-modernidade”,
afirma que a identidade linear unificada é uma fantasia ou a aceitação de uma “cômoda
estória sobre nós mesmos”. A relevância da produção de Federico Fellini para a
contemporaneidade com relação à história e memória cinematográfica se encerra na sua
própria produção, isto é, na sua identidade felliniana.
III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR
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