feminicídio na mídia e a omissão do estado na proteção às

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO COMUNICAÇÃO SOCIAL: PUBLICIDADE E PROPAGANDA VANESSA MACHADO LAMAR Feminicídio na mídia e a omissão do Estado na proteção às vítimas de violência doméstica e familiar GOIÂNIA/GO 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO

COMUNICAÇÃO SOCIAL: PUBLICIDADE E PROPAGANDA

VANESSA MACHADO LAMAR

Feminicídio na mídia e a omissão do Estado na proteção às

vítimas de violência doméstica e familiar

GOIÂNIA/GO

2021

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VANESSA MACHADO LAMAR

Feminicídio na mídia e a omissão do Estado na proteção às

vítimas de violência doméstica e familiar

Trabalho de Conclusão de Curso de graduação,

apresentado à Faculdade de Informação e

Comunicação da Universidade Federal de Goiás,

como requisito parcial para a obtenção do título de

Bacharel em Comunicação Social, habilitação em

Publicidade e Propaganda.

Orientador: Profº. Dr. Magno Medeiros

GOIÂNIA/GO

2021

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“A violência contra a mulher não pode ser tratada como uma violência qualquer.”

Delegada Paula Meotti

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RESUMO

Esta monografia tem por objetivo analisar o tratamento dado pela mídia em relação ao

feminicídio e à omissão do Estado em proteger as vítimas de seus agressores. A pesquisa

documental aborda alguns casos de feminicídio ocorridos na última década com ampla

repercussão midiática. Dentre os casos que ganharam maior notoriedade na imprensa, citam-se

os de Eliza Samúdio, da advogada Mércia Nakahima, assassinada pelo ex-namorado e a

funkeira Amanda Bueno morta com crueldade pelo noivo. Apesar da repercussão, esses casos

não mereceram, por parte do poder público, o necessário cuidado institucional e nem obtiveram

o devido amparo legal, em conformidade com a Lei 11.340/2006, denominada Maria da Penha.

A imprensa, que tem um papel importantíssimo na divulgação de notícias, falha quando

transforma tragédias como essas em espetáculos midiáticos, a fim de ter audiência. A imprensa,

como formadora de opinião, tem o dever de cobrar do Estado a aplicação efetiva das Leis que

favorecem as mulheres, bem como promover ações que informem sobre os direitos delas e as

alternativas para que esse quadro de feminicídio diminua, evitando, assim, desfechos fatais.

Palavras-chave: Feminicídio. Omissão do Estado. Mídia. Violência doméstica.

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ABSTRACT

This monograph aims to analyze the treatment given by the media in relation to femicide and

the State's failure to protect the victims of its aggressors. The documentary research addresses

some cases of femicide that occurred in the last decade with wide media repercussions. Among

the factors that have gained greater notoriety in the press are the cases of Eliza Samúdio, of the

lawyer Mércia Nakahima, murdered by her ex-boyfriend and funkeira Amanda Bueno, who

was cruelly killed by her fiance. Despite the repercussion, these cases did not deserve the

necessary institutional care by the public authorities and did not obtain due legal support, in

accordance with Law 11.340 / 2006, called Maria da Penha. The press has an obligation to

demand better conditions and protection from the state for women victims of domestic and

family violence and to avoid sensationalizing them in the face of tragedies. Some media and

professionals in the field are not qualified to treat this type of violence as feminicide. In the last

three years, the proportion of crimes classified as feminicide has grown significantly in relation

to the total number of women murdered in Brazil.

Keywords: Femicide. Omission of the State. Media. Domestic violence.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 01 – Violência doméstica contra a mulher (nº de vítimas) ..................................... 16

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LISTA DE MAPAS

Mapa 01 – Feminicídios no Brasil ...................................................................................... 10

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LISTA DE INFOGRÁFICOS

Infográfico 01 – Feminicídio ano a ano ................................................................................. 09

Infográfico 02 – O número de homicídios caiu, mas o de feminicídios cresceu mais uma vez no

Brasil ....................................................................................................................................... 11

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LISTA DE FIGURAS

Figura 01 – Fez greve de “sapeca iaiá” e foi morta ................................................................ 24

Figura 02 – Decapitadas, baleadas e queimadas: veja quando o ciúme transforma casos de amor

em tragédias ............................................................................................................................ 24

Figura 03 – Publicações de sensacionalismo a vítima ............................................................ 25

Figura 04 – Apresentador usa sensacionalismo ...................................................................... 26

Figura 05 – Relato de publicação de Mariana Ferrer, jovem diz ter sido estuprada em beach

club. Foto/Instagram ............................................................................................................... 28

Figura 06 – Comentários sobre o post feito pela blogueira – Portal G1 ................................. 28

Figura 07 – Médico que atirou em namorada é levado para CPP e mulher pede retirada de

medida protetiva ...................................................................................................................... 29

Figura 08 – Médico atira em namorada no hospital, no Setor Bueno em Goiânia/GO, após briga

................................................................................................................................................. 30

Figura 09 – Comentários, Caso Isamara Filier ....................................................................... 39

Figura 10 – Motorista Vanusa da Cunha Ferreira foi morta após se recusar a fazer sexo com

passageiro ................................................................................................................................ 41

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 01

CAPÍTULO 1: A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UMA ANÁLISE SOB A

PERSPECTIVA DE GÊNERO ........................................................................................... 03

1.1 Feminicídio e o Código Penal no Brasil ............................................................... 05

1.1.1 Lei Maria da Penha ................................................................................ 12

1.2 Feminicídio em Goiás ........................................................................................... 14

1.3 Quem ama não mata .............................................................................................. 16

CAPÍTULO 2: MÍDIA E A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES ......................... 17

2.1 A midiatização e o feminicídio ............................................................................. 19

CAPÍTULO 3: CASOS DE FEMINICÍDIO NA ÚLTIMA DÉCADA – O

TRATAMENTO DA MÍDIA E A OMISSÃO DO ESTADO ........................................... 34

3.1 Caso Eliza Samudio .............................................................................................. 34

3.2 Caso Mércia Nakashima, advogada assassinada pelo ex-namorado .................... 36

3.3 Caso Amanda Bueno, funkeira assassinada pelo noivo ........................................ 36

3.3 Caso Isamara Filier, chacina em Campinas/SP .................................................... 38

3.4 Caso Kátia Alves Teixeira Tomazini, Pires do Rio/GO ....................................... 39

3.5 Caso Vanusa Ferreira, motorista de aplicativo – Goiânia/Go ............................... 40

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 42

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 44

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INTRODUÇÃO

Nesta monografia são utilizados como metodologia a revisão bibliográfica pesquisa

documental em livros, periódicos e artigos científicos que tratam da temática do feminicídio

estruturada em três capítulos.

O primeiro capítulo aborda historicamente a violência naturalizada na sociedade desde

a antiguidade. Partindo dessa perspectiva e para entender a história da violência contra a mulher,

é importante compreender o papel do patriarcado na construção das relações sociais entre os

sexos que acarreta na desigualdade de gêneros, que, por sua vez, tem a mulher em uma posição

ausente de poder na estrutura social. Os crimes de gênero atingem o grau máximo quando

mulheres morrem por serem mulheres. Nesses casos, dá-se o nome de feminicídio.

O capítulo dois retrata as condições em que a mídia expõe o feminicídio. Os casos de

feminicídio e suas respectivas naturezas pelo país, focando nos fatos que chamou a atenção da

sociedade. A imprensa faz sua cobertura midiática, com o intuito de aumentar a audiência e

seguidores nas redes sociais. O feminicídio, às vezes, é um desfecho lamentável de histórico de

violências até chegar a morte. O Estado, omisso na proteção às vítimas, compactua com esses

homicídios, e a mídia, ao invés de cobrar do poder público, se aproveita dos casos.

O país passa por momentos de grande incerteza quanto ao seu futuro. A insegurança

generalizada provocada pela crise política e socioeconômica dividiu o Brasil e qualificou

assuntos como cultura, artes, direitos humanos e conquistas sociais como polarização

ideológica. Estamos na era contemporânea, evolução social e digital, mas o que percebemos é

um país que regrediu em todos esses aspectos, enquanto deveria progredir e garantir igualdade

a todos.

No capítulo três é feito um levantamento de informações em sites sobre casos de

feminicídio que ocorreram na última década, priorizando aqueles que provocaram uma

repercussão na mídia local e nacional em que ocorreram omissão do Estado na proteção às

vítimas. Eliza Samudio, apresentada e julgada pela mídia e sociedade por seu passado de

modelo e da espécie de relacionamento com o assassino; a advogada que teve sua vida ceifada

por mais um homem que não aceitou o fim do relacionamento; Amanda Bueno, morta pelo

noivo com requintes de crueldade, foi exposta e negligenciada pelo Estado, que não preservou

a memória da vítima. Fotos e o vídeo da necropsia vazaram nas redes sociais e a falta de ética

profissional dos envolvidos nos exames foi escancarada configurando uma nova violência:

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contra o direito à privacidade e o respeito à memória da vítima, o respeito aos familiares;

Isamara Filier foi assassinada pelo ex-marido – o filho e mais 10 pessoas tiveram suas vidas

ceifadas - em uma chacina que ocorreu na véspera de ano novo de 2017. Esse crime poderia ter

sido evitado caso o Estado tivesse protegido a vítima; a empresária Kátia Tomazini foi morta

pelo ex-marido que não aceitava o fim do relacionamento; e a técnica em enfermagem e

motorista de aplicativo Vanusa que foi morta por um passageiro quando se recusou a ter

relações sexuais com ele.

Outros casos, de menor repercussão na mídia, foram relatados no corpo do trabalho em

homenagem a tantas outras vítimas ocultas, que não tiveram a proteção do Estado e nem a

seguridade da não exposição das vítimas pela mídia.

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CAPÍTULO 1. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UMA ANÁLISE SOB A

PERSPECTIVA DE GÊNERO

O presente capítulo busca fundamentar o feminicídio como uma discriminação em

razão de gênero e uma violência praticada contra as mulheres. A abordagem envolve, por

exemplo, a falha da proteção do Estado em relação às vítimas, haja vista que a Lei Maria da

Penha não é efetivamente cumprida na prática.

Abordam-se os conceitos e definições de: feminismo, direitos humanos, machismo,

papel da mulher na sociedade ao longo dos anos, o papel da mulher atualmente, luta por

igualdade de gêneros, feminicídio como crime, objetificação da mulher.

Historicamente, a violência atinge todos os níveis da sociedade, em todos os contextos

sociais. Dessa forma e, segundo Odalia (2004), o indivíduo não consegue fugir, pois todos os

ambientes estão suscetíveis à violência, apenas se difere a forma que vai ser praticada. A

violência existe desde a antiguidade. Os castigos já existiam, os relatos estão registrados na

Bíblia, como: apedrejamento, mãos mutiladas, purificações em fogueiras com o intuito de

“finalidade educativa” pelo castigo cometido advindo das leis impostas pelos membros

religiosos etc.

Nesse contexto, ocorre uma naturalização da violência na humanidade. Quer dizer, de

certa forma, mesmo que não comprovado cientificamente, o indivíduo sempre será violento,

pois culturalmente isso foi “ensinado”. E, apesar dos novos tempos e da evolução da sociedade,

o ser humano ainda é um ser que resiste às mudanças por conta do conjunto de hábitos e crenças.

O ato de violência humana se equipara ao dos animais, que protegem suas crias em situações

de perigo e/ou ameaça. Então o homem, quando se sente confrontado, coagido, em perigo, reage

com violência.

Ela deixa de ser uma agressividade necessária frente a um universo hostil.

Ela de alguma forma se enriquece, pois perde sua forma natural de defesa

para ser uma decorrência da maneira pela qual o homem passa a organizar

sua vida em comum com outros homens (PEREIRA, 2011 apud ODALIA, 2004, p.

14).

Nas tipificações das violências existentes, temos uma violência comum e perceptível

em todos os níveis socioeconômicos: a violência contra a mulher. Essa prática é histórica e

incorre através do patriarcado que é enraizado em nossa sociedade. É uma dominação dos

homens sobre as mulheres, que advém da desigualdade social, da violência de gênero. A

violência contra mulheres por razões de gênero é um fenômeno global. A cultura do machismo

impregnada faz com que a mulher seja vista por seus parceiros como um objeto sexual e

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descartável. Segundo a ONU (2012) – Organização das Nações Unidas, muitas mulheres

morrem em função do seu gênero, pois são mais vulneráveis.

A violência contra a mulher pelo fato de ser mulher (violência baseada no gênero) entrou

na pauta dos direitos humanos, através do movimento feminista nacional e internacional, que

exigiu respostas eficientes por parte do governo em todos os continentes pelo grande número

de homicídios de mulheres. Segundo a Diretrizes Nacionais Feminicídio (2016), o Estado tem

por dever garantir e fazer uma reparação justa na violência relacionada às questões de gênero.

“Femicídio” ou “feminicídio” são expressões utilizadas para denominar as mortes

violentas de mulheres em razão de gênero, ou seja, que tenham sido motivadas por

sua “condição” de mulher. O conceito de “feminicídio” foi utilizado pela primeira vez

na década de 1970, mas foi nos anos 2000 que seu emprego se disseminou no

continente latino-americano em consequência das mortes de mulheres ocorridas no

México, país em que o conceito ganhou nova formulação e novas características com

a designação de “feminicídio” (DIRETRIZES NACIONAIS FEMINICÍDIO, 2016, p.

19).

Em boa parte das tentativas de feminicídio o desfecho é trágico. “O Estado, por ação ou

omissão, compactua com a perpetuação das mortes” (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO,

2017, p.7).

Segundo dados do Mapa da Violência em 2015, cinco mil mulheres foram mortas em

razão da desigualdade de gênero – crime designado como feminicídio – como resultado de

vários históricos de violência (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2017).

O feminicídio acontece em todas as classes sociais, caracterizado por violência de

desigualdade de gênero – afetando mais as mulheres negras e de classe social baixa – ligado a

fatores históricos, culturais, econômicos, políticos e sociais discriminatórios (INSTITUTO

PATRÍCIA GALVÃO, 2017).

Segundo a socióloga Eleonora Menicucci, professora de Saúde da Universidade Federal

de São Paulo e Ministra das Relações Políticas entre 2012 e 2015, o feminicídio surgiu na

década de 1970 e é um crime caracterizado pelo ódio, opressão, desigualdade de gênero,

violência sistemática contra a mulher (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2017).

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1.1 Feminicídio e o Código Penal no Brasil

A violência contra a mulher não é um assunto novo. Mas a preocupação com essa

violência, a partir da década de 1980, fez surgir movimentos de mulheres feministas lutando

por seus direitos, pressionando o Estado, a fim de que ações existissem na conscientização da

sociedade sobre a gravidade do assunto.

As primeiras denúncias voltaram-se contra a tolerância dos órgãos de justiça e da

sociedade com crimes que envolviam casais, nomeados como ‘crimes passionais’ e

cujos autores eram absolvidos com base no reconhecimento da “legítima defesa da

honra”. (DIRETRIZES NACIONAIS DO FEMINICÍDIO, 2016, pp.14).

A violência contra a mulher no Brasil aumentou drasticamente nos últimos anos. A

frequência de casos de agressão doméstica e familiar em todos os níveis sociais levou à criação

de leis específicas de combate à violência doméstica.

Feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. Suas

motivações mais usuais são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda do controle

e da propriedade sobre as mulheres, comuns em sociedades marcadas pela associação

de papéis discriminatórios ao feminino, como é o caso brasileiro. (INSTITUTO

PATRÍCIA GALVÃO, 2020).

No combate ao feminicídio, deve-se considerar e pesquisar o contexto da violência e o

que levou à prática do crime ou razões que justificam as agressões, para que o Estado, através

de fatos e dados, possa realizar um trabalho de prevenção. É importante que haja a produção de

estatísticas para construir um padrão do tipo de violência. Através desses estudos feitos, o

Estado poderá atuar e criar programas sociais para auxiliar mulheres vítimas e conscientizar a

sociedade, com educação e informação.

Desde 2016, o Governo Federal possui um Decreto que dispõe que os estados têm a

obrigação de compartilhar os dados relacionados à violência contra mulheres, mas,

infelizmente, esse projeto é falho, pois os dados não são divulgados em sua totalidade. Em

2016, o Brasil estava no 8º lugar Global Open Data Index, criado pela Open Knowledge

Foundation, significando que o país tinha avançado do ano anterior de 12º para 8º, mas veio

piorando. Isso mostra que o reconhecimento do Estado e da sociedade civil é fundamental para

disseminar informações sobre essa violência.

O encontro realizado em San José/Costa Rica agenciado pela Iniciativa Latino-

Americana pelos Dados Abertos – ILDA com a comunidade técnica e temática da América

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Latina, fizeram um levantamento, baseado em fatos e dados pessoais, resguardando a

privacidade das vítimas. As características temáticas levantadas foram o local e data dos fatos,

a identificação do fato, o vínculo entre a vítima e o imputado, o tipo de homicídio, se tem

existência de denúncia prévia, estado processual e se o crime foi consumado ou somente uma

tentativa. Já as características técnicas foram que todos os dados públicos fossem

disponibilizados e incluídos no banco de dados e gravados para serem acessados. Ambos têm a

garantia de analisar as informações e o uso de dados sobre feminicídio.

O Artigo 19, da Constituição Brasileira, afirma que é dever e obrigação do Estado

cumprir com suas atribuições, ser transparente, produzir e divulgar dados de interesse público

como a disseminação dessas informações e dados sobre violência contra a mulher e o

feminicídio pela sociedade civil. Além do feminicídio preocupar as autoridades, outro problema

grave é a combinação de outros fatores como o racismo, discriminação de gênero, raça, etnia,

classe social e sexual. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública , as mulheres negras

são mais vítimas de violência doméstica, correspondendo a 61%.1

Desde os anos 1980, o combate à violência contra mulheres no Brasil foi ineficaz.

Porém, com a criação da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres da Presidência da

República em 2003, com a nova Política Nacional de Enfrentamento à Violência, foram

estabelecidos conceitos, princípios, diretrizes e ações de prevenção e combate à violência contra

as mulheres, assim como de assistência e garantia de direitos às mulheres em situação de

violência.

Com a criação da Lei 11.340/2006, denominada Maria da Penha, sancionada em 7 de

agosto de 2006, as lutas feministas progrediram e sua implementação passou a ser de

responsabilidade do governo federal, Distrito Federal, dos estados e municípios. Entretanto,

mesmo à luz dessas políticas, as mulheres se deparam com vários obstáculos.

A impunidade pela violência contra a mulher agrava os efeitos de dita violência

como mecanismo de controle dos homens sobre as mulheres. Quando o Estado

não responsabiliza os autores de atos de violência e a sociedade tolera, expressa

ou tacitamente, tal violência, a impunidade não só estimula novos abusos, como

também transmite a mensagem de que a violência masculina contra a mulher

é aceitável, ou normal. O resultado dessa impunidade não consiste unicamente

na denegação da justiça às diferentes vítimas/sobreviventes, mas também no

fortalecimento das relações de gênero reinantes, e reproduz, além disso, as

desigualdades que afetam as demais mulheres e meninas (ONU, 2006 apud

DIRETRIZES NACIONAIS FEMINICÍDIO, 2016, p. 15).

1 Disponível em: https://azmina.com.br/reportagens/entre-machismo-e-racismo-mulheres-negras-sao-as-maiores-

vitimas-de-violencia/. Acesso em 20 de maio de 2021.

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Ebe Campainha dos Santos e Luciene Medeiros (2017) alertam que a Lei foi importante

e impactou a sociedade, mas os fatores culturais e políticos atrapalham nas ações das mulheres

vítimas de violência, uma vez que várias dificuldades são encontradas como dependência

financeira e afetiva do parceiro, falta de apoio familiar, além de encontrar profissionais pouco

capacitados para lidar com essa situação.

As pesquisadoras também apontam que para a efetiva consolidação da Lei é necessário

haver ações conjuntas da sociedade, do poder público e do Estado a fim de criar uma rede de

enfrentamento da violência contra mulher no que se refere à fiscalização do cumprimento da

lei, políticas públicas sociais, departamentos exclusivos e capacitados para lidar com a violência

familiar, além da conscientização da sociedade para as questões de violência de gênero.2

Em março de 2015, a Lei nº 13.104/215 alterada pelo Código Penal Brasileiro,

caracteriza o homicídio de mulheres como feminicídio quando é decorrente de violência

doméstica e familiar em razão de discriminação e menosprezo devido ao gênero. Esses crimes

são de natureza tentada ou consumada, sendo praticadas por quaisquer pessoas que tenham

vínculo afetivo, familiar ou não.

Segundo o IBGE 2020, mesmo com a Lei Maria da Penha, apenas 2,4% dos municípios

brasileiros possuem casa de abrigo para vítimas de violência, e dos 3.808 municípios com até

20 mil habitantes apenas nove possuem a casa abrigo.

O Dia Internacional da Mulher (08 de março) é comemorado em vários países e é uma

data de história e luta pela igualdade, mas no Brasil a história é diferente. Um levantamento

feito em parceria com G1 “Monitor da Violência”, Núcleo de Estudos da Violência da

Universidade de São Paulo – (NEV-USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a

violência é um dos principais obstáculos ao empoderamento feminino e à efetiva igualdade de

gênero.

Mesmo com a queda de morte de mulheres por feminicídio no Brasil, os números são

elevados. Houve uma queda de 14,1% de homicídios dolosos de mulheres em 2018, porém

houve um aumento de casos de feminicídios de 7,3% – crimes de ódio motivados por condições

de gênero – aponta um levantamento feito pelo G1, conforme observamos no infográfico 01

abaixo.

2SANTOS, E. C. dos; MEDEIROS, L. A. de. “Lei Maria da Penha: dez anos de conquista e muitos desafios”.

XXIX Simpósio Nacional de História. Brasília: UnB, 2017. Disponível em:

https://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1488802455_ARQUIVO_ArtigoLeiMariadaPenhadezanosde

conquistaemuitosdesafios.pdf. Acesso em 20 de maio de 2021.

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Segundo o delegado Robson Cândido, diretor-geral da Polícia Civil do Distrito Federal,

em entrevista ao G1, os números de registros aumentaram. Em 2019, foram 33 casos de

feminicídio. Em 2018, foram 28. Esse aumento é em razão da tipificação da lei, pois foi adotado

um protocolo de todos os casos que envolvem mulheres, os quais são tratados como feminicídio.

Antes de 2017, teríamos um suicídio, não um feminicídio. Teria uma morte violenta ou um

desaparecimento, não o feminicídio.

A investigação tem a perspectiva de gênero. Ou seja, caso a mulher seja a vítima, ela

pode ser vítima do filho, ela pode ser vítima do pai, do namorado” diz Cândido. “A

Polícia Civil entende que nós devemos ter esse cuidado com as nossas mulheres

porque, em muitos desses crimes, o homem não teria sido vítima. (G1, 05/032020).

Para o coordenador da Delegacia de Homicídios e Proteção às Pessoas de Maceió/AL,

o delegado Eduardo Mero em declaração ao G1, esse aumento pode estar associado a erro de

análise de dados. As pesquisadoras Debora Piccirillo e Giane Silvestre, do Núcleo de Estudos

da Violência da USP, disseram que a maior parte dos estados estão aperfeiçoando e

consolidando seus registros dos crimes de feminicídio, como é o caso do estado de São Paulo.

O estado de São Paulo está investindo desde 2018 na qualificação técnica de policiais

para a “incorporação da perspectiva de gênero nas investigações de mortes de mulheres” com

cursos e formação de policiais na investigação de gênero. Para as pesquisadoras isso é

fundamental, pois o Estado pode investir em políticas públicas de prevenção ao feminicídio e

ir além no controle de criminalidade urbana, conforme informou ao G1:

É importante, também, fortalecer e investir em políticas de educação voltadas à

equidade de gênero e na valorização da dignidade e dos direitos humanos das

mulheres, bem como em políticas preventivas em todos níveis de governo. (G1, 05/03/

2020).

Para Samira Bueno e Juliana Martins, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, essa

queda na análise dos indicadores de violência baseada em gênero não indica que a violência

doméstica está diminuindo. Para elas, dados do Forúm mostram que superou os registros de

lesões corporais dolosas em decorrência de violência doméstica, atingindo 263 mil casos e 66

de estupros em 2019, conforme informações ao G1:

A queda no número de homicídios femininos não significa, necessariamente, a

diminuição da violência doméstica e intrafamiliar. Meninas e mulheres são

diariamente vítimas de violência baseada em gênero, dentro de casa, por pessoas

conhecidas e em circunstâncias ainda muito toleradas socialmente na cultura

brasileira. A naturalização de comportamentos violentos e a precariedade dos dados

Page 19: Feminicídio na mídia e a omissão do Estado na proteção às

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disponíveis contribuem ainda mais para a invisibilização das vítimas que sofrem em

silêncio. (G1, 05/03/2020).

Infográfico 01 – Feminicídio ano a ano.

Fonte: G1

Um levantamento feito pelo G1 (03/2020) em parceria com o Núcleo de Estudos da

Violência da USP e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública revela que o Brasil teve

3.739 homicídios dolosos de mulheres em 2019; 1.314 feminicídios, o maior número já

registrado desde que a lei entrou em vigor, em 2015. Os estados brasileiros com maiores casos

em 2019 são: Acre, 440.719 mulheres – 11 casos; Mato Grosso, 1.713.375 mil mulheres – 39

casos; Mato Grosso do Sul, 1399.696 mil mulheres – 30 casos e Alagoas, 1.735.799 mil

mulheres – 44 casos.3

O estado mais populoso, São Paulo, que possui o maior número de mulheres 23.530.914

de mulheres, registrou 182 casos de feminicídio, tendo o menor índice. Enquanto que o Acre,

que é o um dos estados menos povoados, tem o maior índice de homicídios de mulheres (7 a

cada 100 mil). Em 2019, os estados Ceará (4.700.823 mil mulheres – 34 casos) e Pará

(4.287.278 mil mulheres – 46 casos) apresentaram uma redução nos assassinatos de mulheres.

O Mapa abaixo mostra as taxas de mulheres em razão de gênero, por estado, e a

porcentagem de 2019.

3 Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/03/05/mesmo-com-queda-recorde-de-

mortes-de-mulheres-brasil-tem-alta-no-numero-de-feminicidios-em-2019.ghtml. Acesso em 20 de maio de 2021.

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Mapa 01 – Feminicídios no Brasil

Fonte: G1, 2019.

No infográfico 02 (abaixo), os dados divulgados pelo Monitor da Violência – G1

mostram a redução de 14% homicídios femininos, o que não significa que houve uma

diminuição de violência doméstica e, sim, acréscimo de 7% nos registros. Uma possível análise

desse fato é a tipificação da Lei Maria da Penha em 2015, que prevê morte em decorrência de

gênero e violência doméstica ou familiar. Morte por assalto não enquadra nessa tipificação.

As autoridades públicas afirmam que os casos decorrentes de feminicídio por violência

doméstica são decorrentes de companheiros ou ex-companheiros das vítimas. Mas, há outros

casos de feminicídios em que os policiais não identificaram elementos de violência de gênero,

não o tipificando.

Em 2019, aproximadamente 35% dos assassinatos de mulheres foram tipificados como

feminicídios no Brasil. O estado do Piauí foi campeão na implementação das diretrizes, com

62,2%. Nos demais estados, o Distrito Federal, por exemplo, atingiu 55%, Maranhão 54.3% e

Paraíba 51% de todos os assassinatos femininos tipificados como feminicídios.

Os dados são apresentados pelo Monitor da Violência em parceria com o G14, que no

infográfico abaixo mostra que o número de mortes vem reduzindo desde 2017, com um

percentual de 14% ao ano. Crimes cometidos por questões de gênero, “violência doméstica e

4 https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/03/05/mesmo-com-queda-recorde-de-mortes-de-

mulheres-brasil-tem-alta-no-numero-de-feminicidios-em-2019.ghtml

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11

familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher” provocados por motivos de

separação vêm crescendo 7% no decorrer de cada ano, de 2017 a 2019.

Infográfico 02 – O número de homicídios caiu, mas de feminicídio cresceu mais uma vez no Brasil.

Fonte: G1

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12

1.1.2 Lei Maria da Penha

A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, Lei Maria da Penha, foi publicada em 8 de

agosto de 2006, Art. 226 da Constituição Federal e surgiu para coibir e prevenir a violência

doméstica e familiar contra a mulher.

Maria da Penha nasceu em 1945, no estado do Ceará, formou-se em Farmácia e

Bioquímica, na Universidade Federal do Ceará. É uma sobrevivente vítima do ex-companheiro

colombiano professor de economia com quem teve 3 filhas. As agressões deram início no quarto

ano de casamento, com agressões psicológicas e verbais, que foram progredindo para agressões

físicas, até que em maio de 1983, Maria levou um tiro nas costas. Na época, o crime foi omitido

perante a sociedade e às autoridades e o casal afirmou que foi vítima de um assalto.

Cinco meses após o ocorrido, Maria voltou para casa após tratamentos nos hospitais de

Fortaleza e Brasília e novamente seu marido atentou contra sua vida, eletrocutando-a durante o

banho. Nesse momento, a vítima tomou a primeira iniciativa de pedir a separação e denunciar

a violência. As autoridades, naquela época, não deram importância para o caso que se arrastou

por 15 anos na justiça. Entretanto, antes que o crime prescrevesse, Maria recorreu à Convenção

de Belém do Pará, em que recebeu apoio das organizações internacionais, repercutindo o caso

e a condenação do estado brasileiro por não dar prosseguimento ao ocorrido, com o apoio do

Comitê Latino Americano do Caribe, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL.

Foi a partir desse fato que o Governo Federal tomou iniciativa e criou a Lei nº 11.340,

de 7 de agosto de 2006, denominada Lei Maria da Penha, a qual obriga o Estado a atuar

preventivamente contra a violência que as mulheres sofrem, incluir nos programas sociais como

vítimas vulneráveis, com medidas protetivas de urgência. Crimes de menor potencial ofensivo

como lesões corporais, ameaças, cárcere privado, modalidades costumeiras de violência, a pena

prevista é de até dois anos.

O artigo 8º da Lei Maria da Penha prevê assistência integral à mulher vítima de

violência doméstica e familiar, com ações preventivas de poderes e instituições públicas e

privadas com prevenção, assistência e atendimento ocorridas nessas situações. Essa prevenção

ocorre em conjunto com o Ministério Público, Defensoria Pública e o Estado por meio de

campanhas educativas voltadas ao público específico e para um todo, a sociedade.

Para que a mulher denuncie o agressor, deve procurar uma das delegacias especializadas

no atendimento à mulher. Quando não houver, poderá ser em qualquer delegacia mais próxima

e ou Ministério Público. Os Artigos 10, 11 e 12 referentes à Lei nº 11.340/6 estabelecem que

Page 23: Feminicídio na mídia e a omissão do Estado na proteção às

13

providências devem ser adotadas pela autoridade policial para proteção às vítimas em caso de

agressão doméstica e familiar.

A Lei Maria da Penha entrou em vigor em 2006 e, em 17 de dezembro de 2014, o

Plenário do Senado aprovou o Projeto de Lei nº 292/2013 alterando-a. A alteração prevê a

inclusão do feminicídio como crime de delito de homicídio hediondo, com pena prevista de 12

a 30 anos de reclusão, crime de violência doméstica e familiar; menosprezo ou discriminação à

condição de gênero.

Segundo Correia (2020)5, essa tipificação do termo feminicídio é importante para

“reconhecer, na forma da lei, que mulheres estão sendo mortas pela razão de serem mulheres,

expondo a fratura da desigualdade de gênero que persiste em nossa sociedade”. Além da

proteção às mulheres, ascende a discussão sobre crimes de homicídio contra negros,

homossexuais e divergência religiosa.

O feminicídio é a ponta do iceberg. Não podemos achar que a criminalização do

feminicídio vai dar conta da complexidade do tema. Temos que trabalhar para evitar

que se chegue ao feminicídio, olhar para baixo do iceberg e entender que ali há uma

série de violências”, afirma Carmen Hein de Campos, advogada, doutora em Ciências

Criminais e consultora da CPMI-VCM. (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2017,

p. 13).

A tipificação do feminicídio foi alterada devido às reivindicações dos movimentos

feministas, ativistas, pesquisadores, organizações internacionais, pois a violência contra

mulheres por questões de gênero é apontada como uma “invisibilidade”. Entretanto, as

alterações no texto da Lei n° 13.104/2015, em relação ao Projeto de Lei n° 292/2013, fez com

que os crimes de feminicídio se tornassem mais genéricos, no que se refere à proteção de

gênero.

O Domingo Espetacular exibiu uma reportagem sobre a Lei Maria da Penha, em 09 de

agosto de 2020, em que o Brasil aparece como o quinto país do mundo no ranking de violência

contra mulher, perdendo apenas para El Salvador (1º), Colômbia (2º), Guatemala (3º), Rússia

(4º) e, desses países, três são da América Latina. No período da reportagem, a Lei Maria da

Penha completou 15 anos. Segundo uma psicóloga entrevistada, a lei é boa mas não funciona,

já que falta preparo e políticas públicas voltados a execução da lei. Foram ouvidas três mulheres

vítimas de violência física e psicológica ao longo dos anos em que estiveram juntos com seus

companheiros em relacionamentos.

5 https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:YwS2xhKZtzwJ:https://dotti.adv.br/a-tipificacao-do-feminicidio/+&cd=1&hl=pt-

BR&ct=clnk&gl=br

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14

1.2 Feminicídio em Goiás

O Programa Balanço Geral/Record TV Goiás, em 18 de agosto de 2020, exibiu

reportagem com mais de 15 mulheres vítimas de feminicídio no estado até o presente momento

e esses casos aumentam a cada dia. A partir de 2015aumentaram em Goiás os registros de

violência doméstica e familiar, acenando alerta para as autoridades, chamando atenção sobre a

forma como o Estado tem protegido essas vítimas.

O feminicídio foi tipificado em 2015, pela Lei 13.104/15, já que antes não havia

diferenciação de qualificação da motivação do crime, pois não existia distinção de gênero.

Segundo a presidente da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil,

seção Goiás (OAB-GO), Ariana Garcia, dois fatores têm de ser levados em consideração para

qualificá-los como crime de feminicídio: a violência doméstica e familiar; e a misoginia6.

Segundo a delegada titular da primeira Delegacia da Mulher - DEAM e coordenadora

das especializadas em Goiás, Paula Meotti, em entrevista publicada no site do Jornal Opção,

Goiás cresce na contramão das estatísticas de número de feminicídios. Fatores como a falta de

segurança causaram um recrudescimento da violência contra a mulher no início de 2020, o que

aumentou a estatística de crimes bárbaros nesse ano, com vários casos fatais. A delegada afirma

que isso é a ponta do iceberg da questão. Em 2019 foram 2,6 mil medidas protetivas expedidas

pela DEAM, como forma de preservar a integridade física das vítimas de seus agressores (40

vítimas); em 2018 foram registrados 36 casos, com um aumento significativo em 11%.

De acordo com Mapa da Violência, divulgado pela Secretaria de Segurança Pública,

Goiás, em 2013, ocupava a terceira posição na taxa de homicídios cujas vítimas eram mulheres,

com 8,6 mortes a cada 100 mil habitantes, e 15% desses casos podem ser enquadrados como

feminicídio. Os dez municípios goianos que se destacam no agravante de violência com maiores

taxas de homicídio contra mulheres no Brasil são: Alexânia, em segundo lugar (25,1);

Cristalina, em 13º (16,5); Planaltina, em 29º (14); Luziânia, em 48º (12,8); Valparaíso de Goiás,

em 74º (11,5); Formosa, em 79º (11,4); Iporá, em 81º (11,3); Jataí, em 82º (11,2); Goiatuba, em

87º (11); e Inhumas, em 96º (10,5).

Quando a Lei Maria da Penha não é aplicada efetivamente, tem-se um problema social

grave que propicia a fragilização das instituições, pois se trata de um serviço público

desqualificado, além de propiciar empoderamento de discurso machista e violência

6 Ódio ou aversão às mulheres.

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15

institucional, afirma a diretora da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade

Federal de Goiás (FIC-UFG), Angelita Lima (Jornal Opção, 03/2020)7.

A delegada Paula Meotti disse que como “a violência contra mulher é uma questão

cultural, não é fácil mudar os comportamentos” (JORNAL OPÇÃO, 2020). Em sua opinião, a

mulher sempre é vista como inferior ao homem, a mulher se submete a esse tratamento, é uma

questão social. Em 2019, a 1ª DEAM efetuou 920 prisões em flagrante e remeteu 2,8 mil

inquéritos ao Poder Judiciário. A Delegacia da Mulher vem promovendo grupos reflexivos com

homens agressores. Atualmente, cerca de 50 homens participam desses grupos, com a

finalidade de aprender a lidar com frustrações, não responder em agressividade e a agir como

humanos civilizados.

Segundo Ariana Garcia, presidente da Comissão da Mulher Advogada – OAB/GO, a

violência institucional apontada por Angelita Lima é um ciclo que vem se repetindo. Quando a

mulher procura a delegacia já sofre novas vitimizações, a “culpabilização pública”, inclusive

em matérias jornalísticas, onde a mídia expõe de uma forma que a mulher fica se sentido

culpada (Jornal Opção, 2020).

Conforme afirma a pesquisadora Angelita Lima ao Jornal Opção, não há distinção de

classes sociais e idade referentes à violência de gênero e ao feminicídio. Mulheres jovens na

idade fértil são as mais atingidas. “Isso ocorre por causa do controle da sexualidade e do corpo,

na perspectiva da dominação da mulher”. O período em que a mulher conquista sua autonomia,

liberdade financeira “é a etapa final de um relacionamento abusivo”.

Segundo a delegada Paula Meotti, a legislação tem avançado, e a Lei 13.104/15 com o

tempo será melhor avaliada, uns dois ou três anos, talvez. Isso porque ela demanda adaptação

do aplicador do direito em geral, de como vai ser o entendimento doutrinário, sobre o aparato

estatal para combater o crime. Além das Delegacias da Mulher, existe a Patrulha Maria da

Penha, da Polícia Militar, e uma parceria com a Guarda Civil de algumas cidades que

acompanham o cumprimento das medidas protetivas, por igual teor (Jornal Opção, 2020).

Os índices de criminalidade executados através da Secretaria de Segurança Pública do

Estado de Goiás8 - SSP/GO, garantido e regulamentado pela Lei Federal nº 12.527/2011 e em

âmbito estadual, Lei nº 18.025/2013, divulgados por meio do site institucional e em

atendimento à Lei de Acesso da Informação são atualizados a cada 60 dias e analisados por

uma equipe do Observatório de Segurança Pública, proveniente de dados de Registro de

7 https://www.jornalopcao.com.br/reportagens/na-contramao-das-estatisticas-numero-de-feminicidios-cresce-em-

goias-238631/ 8 https://www.seguranca.go.gov.br/estatisticas

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Atendimento Integrado – RAI, onde as Forças de Segurança Pública mostram o andamento das

investigações, conforme vemos na tabela abaixo.

Tabela 01 - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER (Nº DE VÍTIMAS)

Natureza 20189 201910 Jan à set. 202011

Tentativa de Feminicídio 1.338 2.071 1.338

Feminicídio 36 40 30

Estupro 713 781 217

Ameaça 6.454 15.599 10.241

Lesão Corporal 2.976 10.497 7.778

Crimes contra a honra –

Calúnia, difamação e injúria

4.569 9.492 6.247

Fonte: Secretaria de Segurança Pública de Goiás (2020).

Conforme observado na tabela 01, os registros feitos no RAI, identificam as tentativas

de feminicídio no Estado de Goiás de 2018 – 2019, que aumentaram bastante. Mas de 2019

para 2020 ocorreu uma redução; o número de mortes de 2018 para 2019 aumentou, de 2019

para 2020, até a última atualização, diminuiu; os crimes de natureza de ameaça, lesão corporal,

calúnia, difamação e injúria de 2018 para 2019 aumentaram drasticamente, porém houve uma

redução de 2019 para 2020.

1.3 Quem ama não mata.

Segundo a socióloga, especialista, pesquisadora e consultora Wânia Pasinato, sobre a

justiça da ONU das mulheres, “devemos excluir de nosso vocabulário a expressão de crime

passional, porque quem ama não mata, porque o cônjuge não me quer, vou tirar sua vida, na

verdade trata-se de uma desigualdade de gênero” (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2017).

O feminicídio íntimo, conforme a Lei nº 11.340 denominada de Maria da Penha, após

2006, caracteriza-se por qualquer lesão, ação, enforcamento, mutilação, sofrimento físico,

sexual e psicológico cometido às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.

9 https://www.seguranca.go.gov.br/wp-content/uploads/2020/11/relatorio-2020-jan-e-set.pdf 10 https://www.seguranca.go.gov.br/apps/observatorio/relatorios/RELATORIO_2019.pdf 11 https://www.seguranca.go.gov.br/wp-content/uploads/2020/11/relatorio-2020-jan-e-set.pdf

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17

Atualmente esses termos enquadram-se na tentativa de feminicídio. Ao prolongar essas

agressões, elas acabam resultando em feminicídio (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2017).

A violência doméstica e familiar envolve, também, críticas, violência moral,

humilhações, proibições, ato de controlar os passos, forçar o sexo como se fosse obrigação,

obrigar a engravidar, abortar. É como se a mulher não tivesse o direito de opinar e ter suas

próprias escolhas.

As mulheres morrem em razão do gênero, elas são assassinadas por seus parceiros, ex-

parceiros. Os objetos e métodos utilizados para assassinar as parceiras são: arma branca (faca,

peixeira, canivete), arma de fogo (espingarda e revólver), agressões até a morte (socos,

pontapés, garrafa de vidro, ferro elétrico, martelo, pedra, cabo de vassoura, vara de pescar),

asfixia, envenenamento, afogamento, água quente, emboscadas, cárcere privado, violência

sexual, desfiguração facial.

Em grande parte das agressões físicas e verbais, o companheiro retorna para o lar da

família e justifica seus atos agressivos, perante a sociedade e justiça, pelo uso de álcool e/ou

drogas (Ministério da Justiça, 2015). Quase todos os casos de feminicídios estão ligados ao

ciúme e ao fim do relacionamento, atribuído a um sentimento de posse “se não for de mim, não

será de mais ninguém” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2015).

Boa parte dos casos de feminicídio estão ligados a fatores hereditários, ou seja, filhos

que presenciavam os pais brigando, pai agredindo a mãe fisicamente e verbalmente. Na maioria

dos casos, mulher é uma boa mãe e esposa, trabalhadora, cuida da família, tem seu próprio

dinheiro, responsável e respeitosa (Ministério da Justiça, 2015). Segundo afirma o Ministério

da Justiça, nas narrativas de mulheres vítimas:

[...] dessa forma, que as narrativas produzidas no campo do sistema de

justiça criminal tendem a reforçar os estereótipos que correspondem aos papéis que

homens e mulheres desempenham na sociedade. Além disso, tratam de explicar o

conflito a partir de uma lógica totalmente individual – ora resultado de atitudes de

homens sociopatas, ora provocados por mulheres desajustadas, não cumpridoras

de seus deveres sociais. Revela-se, dessa forma, um mecanismo limitado, que vem

funcionando de acordo com uma lógica tradicional em que a violência fatal contra

a mulher é episódica, desconectada de um contexto mais amplo, seja o da trajetória

do casal, seja o do problema social que representa a violência doméstica

(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2015, p. 52).

Em todas as mortes envolvendo mulheres, estão relacionados ao feminicídio motivações

de gênero, mas é dever do Estado e dos órgãos judiciários investigar as causas. Muitos casos

de vítimas de feminicídio investigam seu passado culpando a vítima pelo que fazia no passado,

tentado justificar o homicídio. É o caso da funkeira Amanda e de Eliza Samudio, que, devido

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aos julgamentos nas redes sociais, mídia e os órgãos que investigam os crimes, foram

desqualificadas enquanto vítimas e seus caracteres colocados à prova.

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CAPÍTULO 2: MÍDIA E A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

2.1 A midiatização e o feminicídio

Marshall McLuhan definiu mídia como um veículo, espaço ou canal onde uma

mensagem é transmitida com o objetivo estabelecer comunicação com o interlocutor. Para ele,

a mídia “não é apenas um canal de transmissão, pois influencia a relação de consumo e interação

com a mensagem”.12

Partindo desse pressuposto, ao analisar a mídia atualmente, percebe-se que é uma

poderosa ferramenta formadora de opinião. No âmbito da imprensa, vê-se que a mensagem

transmitida chega aos interlocutores por suas lentes, seus olhares.

Se a mídia detém esse poder de influência e manipulação sobre a sociedade, obviamente

ela pode formar opiniões, fazendo com que os indivíduos não tenham autonomia em suas

opiniões e pensamentos. Nesse contexto e direcionando a análise para a cobertura da mídia em

casos de feminicídio, pode-se constatar que a mídia ainda se porta de maneira inapropriada ao

veicular os casos desse tipo.

Segundo Ela Wiecko, subprocuradora da República e professora da Universidade de

Brasília (UnB), “A mídia hoje é considerada e estudada como uma das agências informais do

sistema de justiça, pois condena, absolve, orienta a investigação e até investiga. Então a

responsabilidade é muito grande” (INSTITUO PATRÍCIA GALVÃO, 2015, p. 142).

Para exemplificar o desserviço, em busca de audiência, na transmissão da notícia

quando se tem um caso de feminicídio, basta prestar atenção nas abordagens que ela faz. Muitas

vezes a relação que o agressor tinha com a vítima é romantizada, bem como é feita uma

culpabilização da vítima.

É comum no Brasil casos de feminicídio associados a assassinatos cometidos pelos ex-

parceiros, em casos conjugais, serem justificados pela premissa de que foi por ciúmes e traições,

como foi visto em vários casos relatados na pesquisa no Estado de Goiás. Nesses casos é

atribuída a tipificação penal do feminicídio, visto pela sociedade e mídia como crimes

passionais.

12 Cf. PIRES, Raphael. O que é mídia e por que conhecer suas características?. Disponível em:

https://rockcontent.com/br/blog/o-que-e-midia/. Acesso em 20 de maio de 2021.

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Os meios de comunicação influenciam na violência praticada pelos homens e/ou seus

parceiros ou incentivam as mulheres a se encorajarem e denunciá-los? É uma pergunta que

varia quanto à espécie da agressão, a sua localização geográfica, status social e familiar.

Segundo Fraga (2002, p.52), o sensacionalismo praticado pela mídia apenas traz mais

violência, pois acaba a estimulando. Esse sensacionalismo que a mídia instaura é apenas em

próprio benefício, pois, muitas vezes vendem informações com o intuito de lucrar e, dessa

forma, escondem detalhes importantes.

Quando a mídia expõe, divulga vídeos e fotos das vítimas ela está colaborando para a

revitimização dela. Exploram o passado da mulher, o que consta da sua vida pregressa, se fez

algo para merecer tal violência. E os agressores, ao contrário, têm seu passado desvendado em

busca de bons antecedentes para que seja justificado o crime.

Expor uma mulher dessa forma faz com que outras mulheres se sintam desencorajadas

a procurar ajuda, a denunciar seus agressores. Por isso é importante que a mídia tenha

responsabilidade no tratamento dessas notícias. Que sempre estejam em busca de ações e

informações que ajudem as mulheres a se prevenirem, a saírem desse ciclo de violência. Que

estejam sempre chamando a atenção do poder público para esses casos.

É importante entender que mesmo que o Brasil seja marcado pela desigualdade de

gênero e que a violência contra a mulher esteja presente em todos os níveis da sociedade, as

mulheres negras, indígenas, periféricas, não-binárias, mulheres trans fazem parte de uma

realidade ainda pior. Para entender isso, esclarece-se que antes da supremacia masculina, existe

a supremacia branca. A naturalização de hierarquias permite que minorias estejam ainda mais

vulneráveis à violência.

[...] a denúncia da supremacia masculina é uma empreitada libertária

que tem de ser pensada ao lado da luta pela libertação das

supremacias que inibem e constrangem a liberdade — a supremacia

branca, a supremacia da classe média, a supremacia dos proprietários.

(...) Construir uma sociedade sem supremacias é uma mudança

cultural que requer a criação de uma cultura de paz, de liberdade e de

valores de cooperação. (BENSUSAN, 2004, p.131-155).

É comum que as minorias sejam esquecidas pela mídia e pelo poder público. Afinal, ter

visibilidade e respeito em um país misógino, homofóbico, racista é quase impossível. Por isso,

mais uma vez, ressalta-se que a mídia tem o dever de divulgar dados, estatísticas sobre a

violência em todas as esferas da sociedade, principalmente as minorias, dando voz e

visibilidade, e traçar políticas juntamente com o Poder Público para informar e educar a

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21

sociedade sobre as desigualdades de gênero, estruturais e sociais no Brasil. Em um país como

o Brasil, não dá para concentrar a culpa em apenas um setor da sociedade.

Os jornais diários são imprescindíveis para conhecer-se como vai a

violência em nossa sociedade. Eles fazem a história do presente. Lendo-os

da primeira à última página, pode-se ter um quadro bem diversificado das

violências que cercam o homem contemporâneo. (ODALIA, 2004, p. 92).

Para Guimarães (2005), a mídia possui papel social e, por isso, deve exercer seu trabalho

de forma transparente com a única função de informar, evitando se manifestar a favor de algum

lado, para que não ocorra interferência na formação da opinião dos indivíduos.13

Muitos casos de feminicídio não chegam à mídia, pois o poder público acaba ocultando

os fatos para não gerar comoção na sociedade. Os perfis que se enquadram nessa realidade são

mulheres brancas, de posição socioeconômica privilegiada, classes sociais favorecidas como

cantores, empresárias, modelos ou de famílias influentes. Por exemplo, o caso que ocorreu na

cidade de Pires do Rio, em Goiás, em que Fabio Tomazini, filho da ex-prefeita, matou a esposa

Katia Alves Tomazini, 39 anos e depois cometeu o suicídio.

Para apurar os casos de mulheres assassinadas por ex-companheiros abordados pela

mídia, como ocorreu a cobertura jornalística e sua influência, foram analisados os casos de Eliza

Samudio, morta em 2010, e Mércia Nakashima. Ambos provocaram uma repercussão na mídia

mundial. São casos emblemáticos de feminicídio cometidos contra mulheres

As desigualdades entre sexos são comumente usadas no cotidiano da mídia. No mundo

político, a mídia coloca “uma mulher na política”, fazendo uma delegação de poder decisório,

a midiatização na construção do capital político.

A compreensão de que os meios de comunicação são uma esfera de representação está

diretamente ligada à compreensão de que são um espaço privilegiado de disseminação

das diferentes perspectivas e projetos dos grupos em conflito nas sociedades

contemporâneas. (MIGUEL e BIROLI, 2010, p.22 apud THURLEY, 2017).

Para diminuir os casos de feminicídio no país, o Estado deve investir em políticas

públicas, fazer valer as leis, implementar programas e projetos eficazes na construção de

direitos da mulher. Em contexto geral, o Estado é Neoliberal com a política de “Estado Mínimo”

para as políticas sociais. A responsabilidade passa a ser do indivíduo, sociedade civil e

13 Cf. GUIMARÃES, E. “O papel social da imprensa”. In: Observatório da Imprensa. 17 de maio de 2005.

Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfeitas/o-papel-social-da-imprensa/. Acesso

em 20 de maio de 2021.

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organizações do terceiro setor, e infelizmente o agressor sempre tem “brechas” na lei para se

ausentar de seus atos.

O documentário Quem Matou Eloá?, dirigido por Lívia Perez, mostra o circo de

horrores montado pela imprensa em outubro de 2008, durante o cativeiro de Eloá Cristina

Pereira Pimentel e Nayara Silva, ambas com 15 anos, mantidas reféns por cinco dias pelo ex-

namorado de Eloá, Lindemberg Fernandes Alves, de 22 anos, em um apartamento na cidade de

Santo André, em São Paulo e exemplifica o papel e o poder da mídia. Mostra, também, o

despreparo e desrespeito do poder público ao lidar com esse tipo de situação.

Segundo a Agência Brasil 2019, a cobertura que a mídia faz em cima do feminicídio e

violência sexual é inadequada. A jornalista Luciana Araújo analisou mais de 2 mil noticiários

sobre o caso e no relatório de Imprensa e Direitos das Mulheres: Papel Social e Desafios da

Cobertura sobre Feminicídio e Violência Sexual ela observou que os veículos de comunicação

não humanizam as vítimas e sequer se preocupam com a sociedade no sentido de cobrar

políticas públicas no caso de enfrentamento à violência contra as mulheres.14

O Instituto Patrícia Galvão, na publicação do relatório “Papel Social e Desafios da

Cobertura sobre Feminicídio e Violência Sexual”, analisou textos publicados em 71 veículos

de comunicação de cinco regiões do país. Foram 1.583 matérias sobre homicídios de mulheres

e 478 sobre crimes de estupro. Os materiais analisados mostram que não contêm uma

contextualização complementar, deixando de informar se a vítima já procurou o Estado para

pedir proteção. Nos relatórios existe a culpabilização das vítimas, mencionando que os

agressores estavam “fora de si”, transtornados, sob efeito de álcool e outras drogas no momento

do ato criminoso. Alguns jornalistas, no ato de suas reportagens, justificam que os agressores

cometeram o crime por questões de “defesa da honra”. Quando o assunto é sobre estupro, ainda

julgam a mulher “olha como está vestida”.

A jornalista Luciana Araújo defende a inclusão do tema Direitos Humanos na formação

de Jornalistas, pois assim, esses profissionais poderiam aprender um pouco mais sobre gênero.

Com isso, evitariam a banalização da violência contra mulheres, ao deixar de noticiar qualquer

morte de mulher relacionada à sua condição de mulher. Outro ponto que a jornalista menciona

é que profissionais dos meios de comunicação não estão atentos às expressões de

desqualificação da vítima. Em um episódio de violência contra a mulher, escrever algo como

14 ARAÚJO, Luciana. “Imprensa e Direitos das Mulheres: Papel Social e Desafios da Cobertura sobre

Feminicídio e Violência Sexual”. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-

humanos/noticia/2019-12/cobertura-da-midia-sobre-feminicidio-e-inapropriada-mostra. Acesso em 21 de maio

de 2021.

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23

“a vítima diz que foi agredida" gera desconfiança sobre sua versão dos fatos perante a

sociedade.

Segundo a jornalista Carolina Monteiro, do Jornal Marco Zero Contéudo, a

naturalização da mídia sobre a violência contra a mulher foi tema de um cine debate realizado

em 24 de julho de 2017, no Centro Popular de Direitos Humanos - CPDH, em Recife/PB. O

evento teve início com a exibição do documentário “Quem Matou Eloá? ”, dirigido por Lívia

Perez, mostrando a atuação da imprensa em 2008.

A mídia, nesse caso, atrapalhou as investigações da polícia. Fizeram uma cobertura

completa do caso com entrevistas ao vivo com as vítimas e o agressor, transmissões

ininterruptas que permitiam que o acusado tivesse clareza das ações que estavam acontecendo

do lado de fora. A mídia expunha o sequestrador como um rapaz apaixonado, por isso a

motivação do crime “fez por amor”, inconformado com o fim relacionamento. Infelizmente o

desfecho foi fatal e o crime cometido contra Eloá foi chamado de crime passional.

No supracitado debate, a advogada do Centro Popular de Direitos Humanos, Tereza

Mansi, afirmou que a mídia é regulada apenas pelo Código de Ética da profissão e que não

possui instâncias jurídicas para controlar esses excessos cometidos pela imprensa nacional. “Os

veículos de comunicação terminam alegando seu direito à liberdade de expressão e fica muito

difícil provar que alguma violação neste sentido foi cometida”, e depois a mídia ainda se coloca

de vítima em eventuais casos.

Segundo Aline Yamamoto, advogada feminista, mestre em Criminologia e Execução

Penal e pós-graduada em Direitos Humanos das Mulheres, em artigo publicado na Agência

Patrícia Galvão, o papel da mídia é informar sobre o crime ocorrido, usar parâmetros éticos e

ser responsável na conduta de abordar o fato, e não como abordaram o caso abaixo, figura 01.

Na referência, a expressão “fez greve de sapeca iaiá e foi morta” reforça o estereótipo

de que a vítima teve culpa por sua morte, além de expor sua imagem, sua família, tentando

justificar seu assassinato.

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24

Figura 01 – Fez greve de “sapeca iaiá” e foi morta.

Fonte: Instituto Patrícia Galvão

Abaixo, seguem várias reportagens publicadas no site do Instituto Patrícia Galvão sobre

“veiculação de imagem” e o modo como a mídia expõe os casos, fazendo uma capitalização da

tragédia.

Observa-se o uso de expressões que atenuam a participação dos homens nos casos:

“ataque de ciúme’, “perdeu a cabeça”, “estava fora de si”, “ficou transtornado”, “teve um

surto”, “ataque de loucura”.

Figura 02 – Decapitadas, baleadas e queimadas: veja quando o ciúme transforma casos de amor em tragédias.

Fonte: Instituto Patrícia Galvão

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25

Figura 03 – Publicações de sensacionalismo usando a vítima.

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Fonte: Instituto Patrícia Galvão

No caso acima, figura 03, o garçom que matou a prostituta foi colocado em posição de

vítima e a mulher foi citada pelos seus atributos morais, quando na verdade ela tem uma

identidade, uma vida. Quando há esse tratamento superficial e sem respeito à memória da

vítima, a mídia reforça estereótipos, contribui para o preconceito e abre espaço aos julgamentos

da sociedade que sempre se direcionam à mulher.

Na busca pela audiência, muitos jornalistas fazem um espetáculo do crime. A cobertura

do caso vem sempre com uma narrativa de história de amor trágico, loucura, onde o homem

perdeu a cabeça por culpa da vítima. Isso é para atrair o público e marginalizar a vítima perante

a sociedade (figura abaixo 04).

Figura 04 – Apresentador usa sensacionalismo.

Segundo Juliana de Faria, fundadora da ONG Think Olga (2017), que é uma

organização que traz soluções criativas para velhos e novos problemas e colabora na construção

de um mundo mais igualitário e justo, a sociedade é machista e a violência contra a mulher é

legitimada como sendo algo de nosso cotidiano.

Para ela, o modo como a mídia trata os casos de feminicídio é um terrorismo misógino

machista. A mídia, ao divulgar a carta de Sidnei Ramis de Araújo, autor da chacina ocorrida na

festa de ano novo no interior de São Paulo, matando a ex-mulher Isamara Filier, o filho João

Victor, de 8 anos, e mais 10 pessoas é um exemplo de como a violência contra a mulher é

naturalizada e entendida como algo do dia a dia. A forma como a mídia abordou o caso mais

uma vez colocou a vítima em lugar de culpa e o agressor/assassino como um homem

machucado, que chegou ao seu limite e, por isso, cometeu a barbárie.

Conforme Rachel (2017), integrante da ONG Think Olga, é importante que haja uma

contextualização do crime evidenciado. Nesse caso, a vítima já tinha registrado boletins de

ocorrência contra o ex-marido e uma suposta acusação formal de abuso contra o próprio filho.

Dessa forma, a imprensa falhou pela falta de informação e pela falta de humanização da mulher

e de sua família ao divulgar uma carta de cunho totalmente machista e de ódio às mulheres,

Page 37: Feminicídio na mídia e a omissão do Estado na proteção às

27

tornando a violência banal e dando voz ao agressor. E o Estado falhou em não oferecer

assistência e proteção à família e à vítima logo nas primeiras denúncias de violência.

Em seguida, serão citados casos de feminicídios e tentativas de feminicídio ocorridos

na última década, que foram publicados pela imprensa e chamaram a atenção da sociedade e do

poder público.

Publicado no Portal do G1 - SC, a blogueira Mariana Ferrer, influencer digital, acusou

o empresário André Camargo Aranha de estupro no seu camarim privado, em dezembro de

2018, durante uma festa em um beach club, em Jurerê Internacional, em Florianópolis. A

suspeita é que ela tenha sido dopada. A vítima tem 21 anos e era virgem.

Segundo a perícia, foi encontrado sêmen do empresário e sangue dela em suas

vestimentas e no exame toxicológico de Mariana, não foi constatado o consumo de álcool ou

drogas.

O juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, absolveu o empresário

André de Camargo Aranha da denúncia de estupro feita pela blogueira. Em seu entendimento,

não foi mostrado provas categóricas para firmar a acusação.

O caso voltou à tona quando o site The Intercept Brasil publicou o vídeo de uma

audiência do caso em que o advogado de defesa exibe fotos sensuais feitas por Mariana Ferrer

quando era modelo profissional, definindo-as como “ginecológicas”. Na audiência, o advogado

teve uma atuação agressiva contra Mariana.

Em suas redes sociais, a influencer digital fez uma postagem relatando o ocorrido e

criticando a Polícia Civil, afirmando que o poder público tem a obrigação de protegê-la, mas

que está “empenhada em proteger apenas o criminoso e o local do crime por se tratar de pessoas

de ‘poder e dinheiro' (....). Depois que descobriram quem é o estuprador e qual o local do crime,

o tratamento comigo e com minha família mudou”.

Page 38: Feminicídio na mídia e a omissão do Estado na proteção às

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Figura 05 - Relato de publicação de Mariana Ferrer, jovem diz ter sido estuprada em beach club. Foto/Instagram.

Fonte: Portal G1 (2019).

Na página de comentários do Portal do G1, comentários de ódio e difamação à

blogueira (conforme observamos na figura 08 abaixo) mostram como a própria sociedade

menospreza a figura feminina, como se ela fosse culpada pelo ocorrido.

Figura 06 – Comentários sobre o post feito pela blogueira – Portal G1

Fonte: Portal G1 (2019).

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Em 25 de setembro de 2020, o médico cirurgião Márcio Antônio Rocha de Goiânia/GO

foi acusado de tentativa de feminicídio após efetuar disparos contra a namorada no

estacionamento de um prédio. Foram efetuados dois disparos de arma de fogo: um deles atingiu

a perna da mulher e o outro a perna dele. Ambos foram levados para o hospital e receberam alta

hospitalar.

Nesse caso, a vítima retirou a denúncia, mas a polícia seguiu com as investigações.

Segundo a vítima, ela já havia sido agredida outras vezes, mas por medo da influência social e

financeira do médico, não denunciou.

A atitude da vítima foi vista com muitas críticas. O apresentador de TV, Oloares do

Balanço Geral/Record Goiânia, ao vivo, pontuou “as outras mulheres perdem a credibilidade

por essa sua atitude”.

Vale lembrar que embora a mulher esteja amparada por leis que a protejam legalmente,

fatores como: medo do agressor, dependência financeira e afetiva em relação ao agressor,

desconhecimento dos seus direitos, não ter onde denunciar, ideia de que nada acontece com o

agressor quando denunciado, falta de autoestima, preocupação com a criação dos filhos,

sensação de que é dever da mulher preservar o casamento e a família, vergonha de se separar

ou de admitir que é agredida ou, ainda, acreditar que seria a última vez são os motivos que

desencorajam as mulheres a denunciarem.

Figura 07 – Médico que atirou em namorada é levado para CPP e mulher pede retirada de medida protetiva.

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A mídia sensacionaliza os fatos e protege os agressores sendo influenciada pela classe

social. Dois internautas, em seus comentários no perfil do jornal O Popular pelo no Instagram,

questionam “por que não divulgam o nome do médico que tentou matar a namorada?”, “médico

e namorada sem nomes... legal né, seria assim com outros”.

A pergunta recebeu 229 curtidas. O jornal não respondeu, mas vários internautas

interagiram na rede social.

Figura 08 – Médico atira em namorada no hospital no Setor Bueno em Goiânia/GO, após briga.

Fonte: Instagram

Em 14 de dezembro de 2018, a advogada Luciana Sinzimbra, de Goiânia/GO, de 28

anos, foi vítima de tentativa de feminicídio. Ela estava no apartamento de seu namorado Victor

Junqueira, piloto, filho do ex-prefeito de Anápolis. Na época, ele aplicou um forte tapa no rosto

dela, conforme mostra um vídeo15. A agressão foi motivada porque a namorada esqueceu o

presente que havia dado em um bar de Goiânia.

O agressor não foi preso, pois a “lei determina que, para ele ser preso, teria que estar

em flagrante”. A vítima foi até a delegacia registar ocorrência e recebeu medida protetiva. O

agressor só poderia ser preso caso não cumprisse as determinações judiciais, afirmou à época a

delegada Ana Elisa Gomes.

O advogado do agressor culpou a bebida no dia do ocorrido, por isso ele a agrediu. “Ele

está tentando digerir isso, analisar o que o fez chegar naquela situação. Está extremamente

15 https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2018/12/30/advogada-agredida-por-namorado-diz-que-nao-imaginava-

que-seria-vitima-de-violencia-e-o-denunciou-pensando-nas-sobrinhas.ghtml

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arrependido por ter chegado aonde chegou. Ele não é um cara violento. Ambos tinham se

embriagado”, justificando o ato. As informações obtidas pertencem ao Portal G1 Goiás.

Atualmente, Luciana faz palestras incentivando as mulheres a denunciar e não aceitar

agressões físicas e verbais de companheiros e ex-companheiros. Em seu perfil no Instagram,

blog pessoal, ela faz várias publicações, reflexões aleatórias e dicas jurídicas sobre temas

relacionados ao feminicídio (@lucianasinzimbra)16.

Maria Joicevânia, 22 anos, de Bela Vista de Goiás, teve sua vida ceifada pelo pai de seu

filho dentro do Conselho Tutelar. O crime ocorreu quando o pai, em visita monitorada dentro

do Conselho Tutelar, não gostou da presença da tia de sua ex-mulher. Após discussões verbais,

o pai da criança pegou a faca e partiu para a agressão física. A tia teve ferimentos na mão. Já a

a mãe recebeu facadas em vários lugares consideráveis.

“Foi tudo muito rápido. Ela me mostrou o áudio em que eu lembro dele dizer que iria

‘beber o sangue’ dela. Falamos para ela ir à delegacia e pedir uma medida protetiva.

Mas, logo em seguida, ele chegou. De início, ele estava muito calmo, mas logo depois

ele se transformou e ficou agressivo”, conta Lilian (Mais Goiás, 2020).

Em depoimento à Polícia Civil, a conselheira tutelar Lílian Magalhães Fernandes

afirmou que o pai da criança saiu de Tocantins, onde reside, para visitar o filho em Bela Vista

de Goiás, mas não sabia o endereço da ex-esposa e, então, procurou ajuda no Conselho Tutelar

da cidade, intermediando o encontro entre mãe, criança e pai.

A vítima, a ex-mulher, morreu após 57 dias internada no Hospital Estadual Alberto

Rassi – HGG. O hospital informou em nota ao G1 que a vítima deu entrada na unidade de saúde,

no dia 7 de fevereiro, com hemorragia grave.

A polícia foi acionada e o agressor, que fugiu do local, foi preso em seguida. O nome

do assassino não foi revelado ao G1 e Mais Goiás. O caso ficou esquecido, já que a vítima

pertence a uma classe social baixa, sendo mais uma na estatística de morte de mulheres pelos

ex-parceiros.

A gerente de hipermercado que trabalhava na capital, Fernanda Souza, de Bela Vista de

Goiás, 31 anos, foi encontrada morta após uma semana de seu desaparecimento com marcas de

espancamento e o corpo parcialmente carbonizado, em uma mata na região de

Piracanjuba/Caldas Novas/GO. O principal suspeito do crime é Allan Pereira dos Reis, de 22

16 https://www.instagram.com/lucianasinzimbra/

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anos, namorado da vítima. Foi ele próprio que disse onde estava o corpo de Fernanda. Ele foi

preso, em Marianópolis, no estado do Tocantins.

O delegado Antônio André Santos Júnior afirmou que em seu depoimento, o namorado

disse que matou Fernanda porque ela teria chamado seus filhos de “bastardos” (G1, 2020).

Depois de praticar o assassinato, o criminoso acompanhou a ex-mulher e os dois filhos até um

shopping de Goiânia, onde compraram brinquedos com o cartão de Fernanda.

Ele confidenciou que foi tomado “por um sentimento de ódio profundo, que o capeta

atentou ele e que cometeu esse ato bárbaro”. As informações obtidas sobre o assassinato de

Fernanda pertencem ao G1 Goiás.

Em 2020, vários feminicídios ocorreram no estado de Goiás. Em 13 de junho de 2020,

Adriana Massena dos Santos foi assassinada pelo ex-namorado. A delegada responsável pelo

caso, Marcella Orçai, afirmou ao portal de notícias G1 que o casal tinha um relacionamento

conturbado, entre idas e vindas, e que no dia do crime os dois tinham se separado. Adriana foi

até a casa do ex-namorado e, após discutirem na rua, Wallifer Xavier pegou uma faca e atingiu

Adriana Massena dos Santos com vários golpes, matando-a (G1 Goiás, 2020).

Segundo a Polícia Civil, o rapaz tem 19 anos e se apresentou na Delegacia de

Investigação de Homicídios – DIH. Durante o crime, ele relatou com suas próprias palavras

“ela dizia que o amava e pedia pela própria vida”. Ele alegou que foi em legítima defesa e que

Adriana tinha ameaçado matá-lo e que o teria agredido com capacete. Porém essa versão não

condiz com o que foi visto em imagens de uma câmera de segurança de um morador da rua,

afirma a delegada (G1 Goiás, 2020).

No relato dos familiares, o relacionamento era conturbado, o jovem era agressivo e já a

havia agredido fisicamente e verbalmente.

Vários outros casos de feminicídio ocorreram no interior de Goiás, que não tiveram

cobertura da mídia e ficaram esquecidos pela sociedade: Amélia de Oliveira Matos, 49 anos,

morta com perfurações à bala na casa em que morava, em Anápolis/GO. Rosyrene Domingos,

31 anos, encontrada morta, com um tiro na cabeça, na fazenda em que trabalhava e morava em

Rio Verde; e Shellyda Duarte, 31 anos, morta com um tiro no abdômen na porta de casa, em

Luziânia. Todos esses casos e outros não pontuados foram praticados por parceiros das vítimas

que não aceitavam o fim do relacionamento.

O Serial Killer, o vigilante Tiago Henrique Gomes de Goiânia/GO, cometeu 39

homicídios, de 2011 a 2014. O delegado Deusny Aparecido disse que o vigilante “é uma pessoa

fria, matava por raiva de tudo e todos” e não teve nenhum vínculo com as vítimas. No início,

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ele matava aleatoriamente e depois adotou um padrão assassinando apenas mulheres (G1 Goiás,

2014)17.

Durante a prisão, o serial killer teria dito que matava mulheres porque “se sentia

angustiado e cometia os crimes para aliviar o sofrimento” (CORREIO BRAZILIENSE, 2014).

Ele afirmou ao delegado do caso que já teria sido abusado quando era criança, sofria bullying

na escola e desilusões amorosas, tentando justificar seus atos.

17 http://g1.globo.com/goias/noticia/2014/10/policia-diz-que-suposto-serial-killer-matava-por-raiva-em-

goiania.html

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CAPÍTULO 03: CASOS DE FEMINICÍDIO NA ÚLTIMA DÉCADA - O

TRATAMENTO DA MÍDIA E A OMISSÃO DO ESTADO.

Para apurar os casos de mulheres assassinadas por ex-companheiros abordados pela

mídia, como ocorreu a cobertura jornalística e sua influência, foram analisados os casos de Eliza

Samudio, morta em 2010, e Mércia Nakashima. Alguns casos de menor repercussão também

são mencionados. Todos são de feminicídio.

3.1 O Caso Eliza Samudio

Com grande repercussão na imprensa, o caso Eliza Samudio completou uma década e

sempre repercute na mídia. O ex-goleiro do Flamengo, influente e à época um pretenso jogador

para ser escalado para a Copa do Mundo de 2014, teve seu envolvimento confirmado na morte

da mãe de seu filho.

A modelo e atriz Eliza Samudio saiu de sua cidade natal em Mato Grosso do Sul ao

completar 18 anos, onde morava com a mãe, e morou entre Rio e São Paulo, pois tinha um

sonho de se tornar modelo. Devido às dificuldades financeiras, trabalhou como garota de

programa, fez desfiles, editoriais de moda e atuou em filmes pornográficos nos períodos de

2005 a 2009, além de ter feito ensaios sensuais para uma produtora erótica.

Desde 2008, Eliza e Bruno se conheciam. Segundo Bruno, os dois começaram a manter

relações sexuais na casa de um amigo numa orgia e passaram a se ver frequentemente. Naquela

época, Bruno era casado e mantinha uma relação extraconjugal com Eliza.

Em 2009, romperam o relacionamento ao descobrir que ela estava grávida. Ela recusou

a fazer aborto a pedido de Bruno. A partir dessa negação, começaram as primeiras agressões.

Em 13 de outubro de 2009, a modelo prestou queixa à polícia por ter sido mantida em cárcere

privado pelo goleiro e seus amigos, sendo obrigada a tomar medicamentos abortivos, sob

ameaça com arma de fogo.

Segundo a delegada Maria Aparecida, da Delegacia Especializada de Atendimento à

Mulher - DEAM de Jacarepaguá/RJ, que atendeu a ocorrência, o goleiro estava proibido de

aproximar-se da modelo por menos de 300 metros. No mesmo ano, a juíza Ana Paula Delduque

Migueis Laviola de Freitas, do 3º juizado de Violência Doméstica do Rio de Janeiro, negou a

medida protetiva. A juíza argumentou que Eliza, por não ter relacionamento estável com o

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goleiro, não se ampara na Lei Maria da Penha, que dispõe que somente violência familiar em

união estável ou de casamento permitem a medida protetiva.

Na época da denúncia foi divulgado um laudo do Instituto Médico Legal – IML, que

apontou que o corpo de Eliza apresentava “vestígios de agressão”. A modelo não compareceu

às audiências por medo de represálias e o processo só avançou após seu desaparecimento.

O goleiro se recusou a reconhecer a paternidade do filho, pois segundo ele, não mantinha

relacionamento sério com a modelo, menosprezando-a pela sua antiga profissão. Em seguida,

Eliza procurou a justiça e ingressou com uma ação de reconhecimento de paternidade, passando

a morar em hotéis pagos pelo jogador, que foi obrigado a pagar pensão.

Conforme as investigações policiais, Eliza deixou o hotel em que estava hospedada em

04 de julho de 2010, no feriado Corpus Christi, e nunca mais foi vista. Com o desaparecimento

de Eliza, a Polícia Civil de Minas Gerais indiciou Bruno como principal suspeito de seu

desaparecimento, já que Eliza havia sido convidada para passar uns dias no sítio do goleiro.

A partir disso, investigações foram iniciadas e o envolvimento de Bruno e seus melhores

amigos foi confirmado. O corpo de Eliza nunca foi encontrado. Bruno foi condenado a 20 anos

e nove meses pelos crimes de homicídio triplamente qualificado, sequestro e ocultação de

cadáver, apontado como o autor do assassinato de Eliza, com quem teve um filho.

O goleiro Bruno Fernandes, que mandou matar Eliza Samudio, conseguiu uma liminar

para trabalhar, e foi jogar no Boa Esporte, time local da cidade Varginha/MG. Com a

contratação de Bruno, patrocinadores romperam o contrato com o Boa Esporte provocando uma

repercussão na sociedade. Foi criado uma petição nas redes sociais para contratar o jogador,

gerando bastante críticas, muitas pessoas a favor de Bruno e outras não compactuaram com o

ocorrido e a forma como o Estado vem tratando o caso (Globo Esporte, 2017)18.

Esse caso de feminicídio, que na época não tinha essa tipificação, foi amplamente

abordado pela mídia, uma vez que o envolvido era um ídolo do esporte. Foi possível notar que

a moral da vítima foi questionada a todo momento pelos trabalhos do seu passado. Percebe-se,

também, a falha do poder público ao negar a medida protetiva nas primeiras denúncias de

agressão. Por fim, escancara a liberdade que o homem tem de possuir e de controlar as mulheres.

O goleiro não queria pagar pensão à mãe de seu filho por achar que ela deu o golpe da barriga,

por ela não ser “respeitável”, por ele ser casado etc. Se sentiu confortável e com a razão de

eliminar o problema de sua vida, afinal, para ele, a culpa era dela.

18 http://globoesporte.globo.com/mg/sul-de-minas/futebol/noticia/2017/03/apos-anunciar-goleiro-bruno-empresa-

rompe-patrocinio-com-boa-esporte.html

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Vale lembrar que o goleiro Bruno Fernandes, anos depois de sua condenação e prisão,

conseguiu uma liminar para trabalhar como jogador de futebol (Globo Esporte, 2017)19.

3.2 Caso Mércia Nakashima, advogada assassinada pelo ex-namorado.

A advogada Mércia Nakashima teve a vida ceifada pelo ex-namorado que não aceitava

o fim do relacionamento. Ela estava desparecida até que seu carro foi encontrado por bombeiros

no fundo de uma represa. Mércia foi baleada. O autor do crime foi seu ex-namorado, Mizael,

que não aceitava o fim do relacionamento.

Depois de um ano foragido, Mizael se entregou em 24 de fevereiro de 2012, no Fórum

de Guarulhos. Em dezembro de 2012, a justiça marca o julgamento para 11 de março de 2013.

Foi o primeiro caso a ser transmitido ao vivo pela TV, rádio e internet no Brasil, segundo a

assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo. Mizael negou o crime, mas a

Promotoria “sustenta que ele a matou, porque a jovem de 28 anos, que também era advogada,

não queria mais reatar o romance”.

Mizael foi condenado a 20 anos de prisão pelo assassinato triplamente qualificado. Ele

havia postulado regressão alegando “crime passional”. A juíza Sueli Zeraik Armani da Vara de

Execucções Criminais – VEC, em Taubaté, destaca que o réu foi condenado por “crime

hediondo”. Na época ainda não tinha ocorrido a tipificação do feminicídio. As informações

contidas a respeito do caso Mércia foram retiradas do Portal G1 São Paulo.

3.3 Caso Amanda Bueno, funkeira assassinada pelo noivo.

A modelo e dançarina Cícera Alves de Sena - Amanda Bueno, natural de Goiânia/GO,

26 anos, ex-integrante da Gaiola das Popozudas, foi assassinada na Baixada Fluminense/RJ,

onde residia com o noivo Miltinho de 32 anos. Após uma discussão, o namorado pegou a vítima

pelo pescoço, bateu com sua cabeça onze vezes em uma pedra do jardim e aplicou dez

coronhadas em sua cabeça. Em seguida, ele entrou na casa onde o casal morava, vestiu um

colete à prova de balas, pegou sua arma, um revólver, três pistolas e uma espingarda calibre 12.

Ao passar pelo corpo estirado no chão, deu vários tiros com sua pistola e com a espingarda no

19 http://globoesporte.globo.com/mg/sul-de-minas/futebol/noticia/2017/03/apos-anunciar-goleiro-bruno-empresa-

rompe-patrocinio-com-boa-esporte.html

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rosto da vítima, desfigurando-o. O crime foi registrado por câmeras de segurança, mas as cenas

foram editadas, pois são chocantes20.

Miltinho da Van, como era conhecido, confessou o crime contra sua noiva, a dançarina

de funk Amanda Bueno. Para justificar a ato do criminoso, o advogado Hugo Assumpção disse

que ele teve um “surto”, por isso cometeu o crime e está arrependido.

Segundo o delegado Fábio Cardoso, da Divisão de Homicídios da Baixada Fluminense,

responsável pelo caso, Milton foi indiciado por “roubo com emprego de arma de fogo, porte

ilegal de arma e homicídio triplamente qualificado – agravado por motivo fútil e ausência de

chance da vítima”. O crime se enquadra na tipificação de feminicídio. Em 11 de outubro de

2015, o juiz Alexandre Guimarães Gavião Pinto proferiu a decisão do Conselho de Sentença

do Tribunal do Júri da Comarca de Nova Iguaçu/Mesquita, condenando Milton Severiano

Vieira a 40 anos, 10 meses e 20 dias de reclusão e 32 dias-multa, pelos crimes cometidos

(G1/RJ, 2015)21.

Amanda, que integrava o grupo de funk Gaiola das Popozudas, parou de dançar a pedido

de Milton, afirmou as colegas. Quatro dias antes do assassinato da ex-funkeira, Amanda e

Milton oficializaram o noivado, após completarem seis meses de relacionamento. No dia

seguinte, ela decidiu contar ao companheiro sobre o passado, que havia trabalhado em uma

boate de striptease em Taguatinga, Brasília. Depois da revelação de Amanda, noiva de

Miltinho, três dias depois, ele almoçou com a ex-esposa, fez vídeos e fotos do encontro e enviou

para o celular de Amanda para provocá-la. Ao retornar para casa, o casal discutiu, iniciando as

agressões físicas até a dançarina ser morta.

O vídeo do circuito de segurança que filmou o ocorrido caiu nas redes sociais logo em

seguida, viralizando na internet. A repercussão foi unânime, com vários comentários de ódio à

vítima, já que ela era dançarina de funk e havia trabalhado como stripper. Amanda foi vista

como merecedora da própria morte e alvo de deboche pela sociedade.

Além da exposição do vídeo, fotos da necropsia de Amanda, no Instituto Médico Legal,

circularam e foram enviadas até mesmo para o celular de familiares da dançarina (Compromisso

e atitude, 2015)22.

A estratégia utilizada pela defesa de Milton foi de desqualificar a vítima, devido sua

atividade profissional, afirmando que era um noivo afetuoso e que teve apenas um surto, por

20 http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/04/imagens-fortes-mostram-agressao-que-levou-morte-de-

dancarina-no-rj.html 21 http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/04/imagens-fortes-mostram-agressao-que-levou-morte-de-

dancarina-no-rj.html 22 http://www.compromissoeatitude.org.br/caso-amanda-bueno-feminicidio-e-revitimizacao/

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isso cometeu o crime, se justificando. A defesa também pleiteou instauração de incidente de

insanidade mental.

3.4 O caso Isamara Filier, chacina em Campinas/SP.

Na noite de réveillon no interior de São Paulo de 2017, o ex-marido de Isamara Filier

de 41 anos, técnica em contabilidade, assassinou ela, o filho e familiares. O caso ganhou as

manchetes nas redes sociais e em sites de notícias, repercutindo na imprensa. O assassino Sidnei

Ramis, ex-marido de Isamara, deixou uma carta com amigos, que esbravejava um discurso de

ódio contra as mulheres em geral, em especial à ex-mulher, com quem tinha um filho. O G1

teve acesso à carta.

[...] Vadia: “Porque sei que você será um bom pai e sei que não vai faltar nada ao meu

filho Fiquei louco, más tinha que aceitar pra não te perder mais ainda; [...] Os homens

não batem na mulher sem motivo! Alguma coisa elas fazem pra irritar o agressor. O

cara não vai lá dar porrada à toa! [...] Depois quero ver apresentadoras em programas

de TV e telejornais me chamando de monstro ou covarde! E as muitas vadias que

usam os filhos pra ferrar os pais são o quê?[…] Neste caso, monstro é quem começa

ou quem termina essa história?” (G1, 2012)

Isamara Fillier registrou cinco boletins de ocorrência (BO) contra Sidnei Ramis de

Araujo, de 46 anos, ao longo de dez anos, afirma Secretaria de Segurança Pública - SSP do

estado de São Paulo ao G1. O primeiro BO foi em 2005 por ameaça e injúria.

Isamara ganhou a guarda do filho depois de denunciar à Justiça que o ex-marido teria

abusado sexualmente do próprio filho. Segundo a polícia, esse foi o motivo para que Sidnei

cometesse a chacina. As queixas começaram em 2005 e perduraram até 2015. Durante uma

visita monitorada em 2012, ele empurrou a ex-mulher, que caiu. Naquele mesmo ano da

chacina, no Natal, Isamara foi até a Delegacia da Mulher, em Campinas/SP, comunicar que o

ex-marido a ameaçou de morte pelo telefone. Em dezembro de 2014, a Polícia Militar foi

acionada até um clube da cidade de Campinas. Sidnei havia descumprindo uma ordem judicial

de não se aproximar da ex-mulher. A ameaça mais grave ocorreu em junho de 2015. Ele teria

dito que “é melhor você ir conversar com o diabo, porque nem Deus vai te ajudar! Porque você

e a vaca da sua mãe vão pagar!” (Gazeta do Povo, 2017)23.

Segundo a polícia, Isamara não quis receber medidas protetivas previstas na Lei Maria

da Penha, em nenhum dos casos citados acima. No dia do sepultamento, a família de Isamara

23 https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/autor-da-chacina-em-campinas-foi-denunciado-seis-

vezes-por-ex-mulher-9tauxl7xxsi6kgab3nlljzm7v/

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39

fez um pedido à imprensa, em respeito aos mortos, que se afastasse do túmulo (Gazeta do Povo,

2017).

Figura 09 – Comentários, Caso Isamara Filier.

3. 5 Caso, Kátia Alves Teixeira Tomazini, Pires do Rio/GO.

O caso ocorreu na cidade de Pires do Rio, no sudeste de Goiás. A conhecida “família

Tomazini, proprietários da empresa “Friato Alimentos” é bastante influente no munícipio.

Fabio Tomazini, filho da ex-prefeita da cidade, matou a esposa Katia Alves Tomazini, de 39

anos e depois suicidou-se.

Segundo a Polícia Civil, através do delegado Igor Carvalho Carneiro, responsável pelo

caso, a hipótese levantada pela polícia é de feminicídio seguido de suicídio. A vítima levou

quatro facadas na região torácica.

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40

3.6 Caso Vanusa Cunha Ferreira, motorista de aplicativo – Goiânia/GO.

Vanusa Cunha era técnica de enfermagem no Hospital de Urgências Otávio Lage de

Siqueira - Hugol e trabalhava para complementar a renda como motorista de aplicativo. No dia

19 de janeiro de 2019, Vanusa foi contratada para realizar uma corrida para Parsilon e

desapareceu.

Na versão de Parsilon à polícia ele diz que “os dois estavam no carro e achou que tinha

pintado um clima entre eles e aí começou a abraçá-la, fazendo algumas brincadeiras. Ela negou,

disse até que aquela não era a orientação sexual dela” (G1 Goiás, 2019). Ela recusou, “ele a

segurou com força pelo braço. Eles acabaram caindo. Vanusa bateu a cabeça no meio-fio e

perdeu os sentidos. Depois disso, ele ainda bateu a cabeça da vítima novamente contra o chão”,

nesse momento ele decidiu estuprá-la, afirma a delegada Mayana Rezende, ao G1 Goiás.

A delegada confirma que depois de morta, o suspeito ainda cometeu o estupro “eu tirei

a roupa, cheguei a fazer algumas coisas, mas não completei o ato”, disse o assassino à polícia.

O G1 informou que no dia do ocorrido, Camargo, como era conhecido, aparece em

vídeos e fotos enviados por Vanusa a parentes na noite de 18 de janeiro de 2019, pois estava

acontecendo uma gravação com a dupla Zé Luccas e Matheus e outro músico em um bar de

Goianésia, a 180 km de Goiânia. Com o fim do show em Goianésia, por volta das 4h30 de 19

de outubro, Vanusa deixou os músicos na residência, no Jardim Guanabara e seguiu para o

destino final para deixar Parsilon em uma chácara onde ele estava trabalhando como serralheiro.

O Tribunal do Júri de Aparecida de Goiânia condenou Parsilon Lopes dos Santos, que

se apresentava como empresário de uma dupla sertaneja, a 27 anos de reclusão, indiciado pelos

crimes de feminicídio, ocultação de cadáver e estupro. Os jurados qualificaram o crime

praticado por “meio cruel, emprego de recurso que impossibilitou a defesa da vítima, para

assegurar a impunidade de outro crime e contra a mulher por razões da condição de sexo

feminino”, ou seja, caracterizado como feminicídio.

A mídia expôs a vítima, como vemos na imagem publicada pelo G1, “motorista Vanusa

da Cunha Ferreira foi morta após se recusar a fazer sexo com passageiro”.

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Figura 10 – Motorista Vanusa da Cunha Ferreira foi morta após de recusar a fazer sexo com passageiro.

Fonte: G1 Goiás (2020)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mídia influencia comportamentos da sociedade, sendo formadora de opinião. Sob

esse prisma, a mídia deve ter cuidado ao noticiar um caso de feminicídio. Deve-se sempre levar

os indivíduos que consomem aquela notícia à reflexão. É importante que cada pessoa entenda

que a violência contra a mulher é pautada na desigualdade de gênero que percorre séculos.

Dessa forma, é imprescindível que estereótipos culturais sejam combatidos. A melhor forma

para isso continua sendo a educação, a informação aprofundada sobre as raízes da violência.

Cabe à imprensa relatar os fatos com objetividade e responsabilidade. Atentar-se ao

contexto daquela violência. Na maioria dos casos de violência contra a mulher, encontra-se uma

história de diversas violências anteriores. Além disso, é fundamental que seja desconstruída a

concepção de que a mulher teve culpa na sua violência. Cobrar do Estado soluções concretas

para o enfrentamento do feminicídio, bem como não promover práticas sensacionalistas a partir

de mortes, usando imagens e palavras que violam os direitos humanos e a dignidade da mulher

são ações que ajudam a mulher e a sociedade em casos desse tipo.

Seria oportuno promover debates e contextualizar o público para entender que mortes

por feminicídio não são fatos isolados, mas resultados de uma sociedade desigual, machista e

patriarcal. É seu papel questionar as políticas públicas, questionar por que, mesmo tendo leis

que protejam as mulheres vítimas de violência, ainda há tantas ocorrências e porque as leis não

estão sendo aplicadas no que se refere aos autores dos crimes que não se sentem coagidos nem

pela sociedade e nem pelo Estado.

Nesta monografia, foram analisados vários casos de feminicídio que ocorreram no

Brasil durante a última década. As informações obtidas dos casos de feminicídio foram retiradas

no site do G1, Gazeta do Povo, Mais Goiás e outros.

Em Goiás, nos últimos dois anos, aumentaram os casos de feminicídio de todas suas

naturezas. As tentativas de feminicídio podem ser evitadas, desde que o Estado ofereça amparo

legal às vítimas, conforme a Lei nº 11.340/2006, denominada Maria da Penha. Nesses casos, a

mídia tem a obrigação de cobrar do Estado melhores condições e proteção às mulheres vítimas

de violência doméstica e familiar em vez de apenas noticiar os casos, de forma superficial e

descontextualizada.

Depois da tipificação do feminicídio, vigorada em 2015, conforme observado nas

reportagens e estatísticas, aumentaram os registros de violência de natureza da qualificadora do

feminicídio. Em alguns estados brasileiros não ocorreu essa redução. Provavelmente esteja

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ligado à falta de políticas públicas ou melhor capacitação dos profissionais de segurança em

lidar com os casos de violência na hora de tipificar o crime de feminicídio.

Embora a abordagem de crimes de feminicídio esteja em alta, e embora haja Leis que

amparam mulheres vítimas de violência, é importante que se tenha a consciência de que esse

tipo de crime provém do machismo enraizado na nossa cultura. É necessário que ações e

políticas públicas sejam efetivas na educação de meninos e meninas para que esse processo não

se repita nas próximas gerações. Nos dias atuais, em que a sociedade ainda tem uma educação

arcaica, é importante que as Leis sejam cumpridas de forma eficiente e que a impunidade em

casos assim não se perpetue causando a naturalização da violência. E a mídia tem papel

fundamental nesse processo de reeducação e de cobrança do poder público.

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