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125 I – Introdução O tema da presente exposição correspondia a uma necessidade teórica defini da, que deixou de existir com a alteração da estrutura, do espírito e dos fins do primitivo planejamento deste symposium. Nele, o que prevalecia era a intenção de examinar como se poderia explorar construtivamente, no Brasil, os recur- sos postos a serviço da educação pela ciência ou pela pedagogia baseada no conheci- mento científico. O diagnóstico da situação educacional brasileira constituía um ponto de referência indispensável, tanto para a avaliação da viabilidade das soluções quanto para a apreciação do tipo de colaboração a ser prestada pelos cientistas sociais. No plano definitivo, porém, o diagnóstico da situação educacional brasileira foi con- sagrado como eixo do symposium. Em conseqüência desse deslocamento de ênfase, o tema que nos havíamos proposto ficou um tanto fora de lugar e excessivo no contexto geral. Isso nos levou a encará-lo de outro modo, que permitisse redefini-lo em termos dos pro- blemas que se tornaram substantivos. A ciência aplicada e a educação como fatores de mudança cultural provocada * Florestan Fernandes (São Paulo-SP, 1920 – São Paulo-SP, 1995) * Trabalho apresentado no Simpósio de Problemas Educa- cionais, realizado no Centro Re- gional de Pesquisas Educacio- nais de São Paulo, em setembro de 1959. Publicado original- mente na RBEP v. 32, n. 75, jul./ set. 1959, p. 28-78. 1ª PARTE R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 86, n. 212, p. 125-161, jan./abr. 2005.

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    I Introduo

    Otema da presente exposio correspondia a uma necessidade terica definida, que deixou de existir com a alterao da estrutura, do esprito e dos finsdo primitivo planejamento deste symposium. Nele, o que prevalecia era ainteno de examinar como se poderia explorar construtivamente, no Brasil, os recur-sos postos a servio da educao pela cincia ou pela pedagogia baseada no conheci-mento cientfico. O diagnstico da situao educacional brasileira constitua um pontode referncia indispensvel, tanto para a avaliao da viabilidade das solues quantopara a apreciao do tipo de colaborao a ser prestada pelos cientistas sociais.

    No plano definitivo, porm, o diagnstico da situao educacional brasileira foi con-sagrado como eixo do symposium. Em conseqncia desse deslocamento de nfase, o temaque nos havamos proposto ficou um tanto fora de lugar e excessivo no contexto geral.Isso nos levou a encar-lo de outro modo, que permitisse redefini-lo em termos dos pro-blemas que se tornaram substantivos.

    A cincia aplicada e a educao como fatoresde mudana cultural provocada*

    Florestan Fernandes(So Paulo-SP, 1920 So Paulo-SP, 1995)

    * Trabalho apresentado noSimpsio de Problemas Educa-cionais, realizado no Centro Re-gional de Pesquisas Educacio-nais de So Paulo, em setembrode 1959. Publicado original-mente na RBEP v. 32, n. 75, jul./set. 1959, p. 28-78.

    1 PARTE

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    Embora as noes de cincia aplicadae de educao sejam de uso corrente e ade mudana cultural provocada seja fa-cilmente inteligvel, pareceu-nos prudenteexamin-las luz de algumas implicaes,fundamentais do ponto de vista sociolgico.Quanto s consideraes de ordem terica,limitamo-nos a apontar em que sentido acincia aplicada e a educao podemser descritas como fatores de mudanacultural provocada. Por fim, demos a maiorateno possvel situao educacionalbrasileira, com o duplo objetivo de assina-lar a influncia exercida pela educao comofator de mudana e de estabelecer polari-zaes prticas suscetveis de orientar,especificamente, o aproveitamento dacolaborao dos cientistas sociais nesta rea.

    II Cincia Aplicada,Educao e Mudana

    Cultural Provocada

    Essas trs noes possuem importn-cia capital para a inteligncia e a discussodo nosso tema. Todas elas so de uso cor-rente na linguagem dos educadores contem-porneos. Mesmo a noo mais complexa,de mudana cultural provocada, encontroualguma voga no pensamento pedaggico sis-temtico, especialmente depois que as refle-xes sobre a dinmica da educao na civili-zao industrial foram associadas aos requi-sitos e aos fins do planejamento das ativida-des educacionais. Pelo que nos ensina a ex-perincia, entretanto, isso no contribuiupara introduzir maior homogeneidade naconceituao desses termos. Ao contrrio,apenas consagrou ambigidades a que nosacostumamos, devido explorao delescomo noes-chaves em diferentescontextos de pensamento.

    certo que a presente discusso estlonge de exigir preciso conceitual rigorosa.Contudo, ela requer uma espcie deprocedimento operacional que permitapr em evidncia as implicaes ou os

    pressupostos que daro sentido manipu-lao desses termos pelo autor. Assim, anoo de cincia aplicada formou-se numaera em que as cincias sociais ainda esta-vam em emergncia e na qual a concepoliberal do mundo restringia os interesses doscientistas na esfera da prtica. Doutro lado,a educao e a mudana cultural serovistas, nesta exposio, atravs das relaesde ambas com a cincia aplicada, ou seja,como tcnicas racionais de controle basea-das no conhecimento cientifico. No seriamelhor tornar explcitos os argumentos deimportncia central, no sistema de refern-cia imposto pela discusso sociolgica dotema?

    A concepo corrente de cincia apli-cada estreita e antiquada, pois d demasia-da proeminncia a critrios tecnolgicos emdetrimento dos critrios propriamente ex-perimentais do pensamento cientfico. Elafoi construda ao longo do desenvolvimen-to das cincias naturais e em resposta sexigncias prticas da primeira revoluoindustrial. Da suas limitaes. De um lado,o modelo de conhecimento com que ope-ram aquelas cincias prescinde da aplica-o como critrio regular de descoberta daverdade e de prova. Elas puderam conhecerrpido progresso terico sem que se inclu-ssem as atividades relacionadas com a apli-cao entre as fases do trabalho cientficopropriamente dito. certo que vrios pro-blemas surgidos na esfera da aplicao de-ram margem a investigaes que produzi-ram resultados tericos revolucionrios.Conseqncias desta ordem no chegarama alterar, no entanto, nem a organizao dotrabalho cientfico nem a tendncia a isolara pesquisa fundamental da aplicao.Doutro lado, como Mannheim demonstroucom grande penetrao, o tipo de reflexoque orientou, praticamente, a explorao dasdescobertas cientficas obedeceu ao modelodo pensamento inventivo, particularmenteinfluente na era de mudana culturalassociada primeira revoluo industrial.A capacidade criadora dessa modalidade de

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    pensamento bvia. Contudo, graas ao jogode duas influncias intelectuais diversas,ela acabou adquirindo carter e fins tcnicos.Primeiro, o pensamento inventivo foiaproveitado, extensamente, em setoresque permitiam concentrar as energiasintelectuais na soluo de um problemaprtico particular (ou de um grupo deter-minado de problemas prticos), com baseem conhecimentos e em meios de controlej descobertos. Com isso, o problema trans-formava-se numa unidade autnoma e iso-lada de trabalho que erguia desafios inte-ligncia, mas na rea da anlise dos meiosde controle e da produo original de co-nhecimentos com eles relacionados. Segun-do, o critrio experimental de prova pas-sou a ser o sucesso alcanado na combina-o de conhecimentos e de meios dispon-veis na produo de um bem cultural novo,cuja forma, estrutura e utilidade s ao in-ventor seria capaz de representar-se previ-amente. Em outras palavras, como regra, opensamento inventivo (como ele foi carac-terizado aqui) no precisava preocupar-secom o progresso terico do conhecimentocientfico, cabendo-lhe a tarefa especfica delidar com ele praticamente.

    Pondo de lado outros aspectos daquesto, isso indica que a concepo decincia aplicada, ainda hoje dominante, largamente pr e anticientfica. Ela pr-cientfica porque mantm, de modo dis-farado, o divrcio entre teoria eaplicao, herdado do conhecimentoespeculativo. Ela anticientfica porqueexclui, tambm de maneira disfarada, fa-ses legtimas e necessrias do trabalho ci-entfico da rbita nuclear do pensamentocientfico. Alm disso, semelhante concep-o de cincia aplicada traduz a existnciade grave anomalia na civilizao moderna,pois implica duas coisas:

    1) que os especialistas mais devotadosaos valores da cincia (os cientis-tas, que trabalham no campo dapesquisa fundamental) tendam a

    desinteressar-se do destino prticode suas descobertas;

    2) que os especialistas mais dedicadosao aproveitamento prtico dos co-nhecimentos cientficos (os tcni-cos e inventores, que trabalhamno campo da tecnologia cientfica)tendam a negligenciar, de forma na-turalmente varivel, os alvos intelec-tuais e as obrigaes morais que de-vem orientar as atividades doshomens de cincia.

    A anomalia no est tanto na divergn-cia dos centros de interesse, a qual poderiaser corrigida pela prpria evoluo do pen-samento cientfico. Ela reside, especialmen-te, nas zonas de frico e de conflitos,fomentadas pela expanso livre e com fre-qncia extracientfica do setor tecnolgico.

    A preservao dessa concepo de ci-ncia aplicada encontrou forte apoio na ti-ca liberal, que chegou a exercer profundasinfluncias na elaborao da parte pragm-tica da teoria da cincia, defendida por au-toridades como Stuart Mill, Whewell,Jevons, Pearson, Claude Bernard, Mach, etc.,no passado, ou como Heisenberg,Eddington, Jeans, Reichenbach, etc., nopresente. Todavia, em todos os campos dacincia tende a aumentar a insatisfao pro-duzida por suas limitaes e inconsistnci-as. Embora no possamos discutir, nomomento, essa questo a fundo, pensamosque indispensvel, pelo menos, indicaros principais focos de renovao de nossaconcepo de cincia aplicada.

    Est fora de dvida que a antiga con-cepo de cincia aplicada possui uma in-consistncia visceral: ela no decorre daprpria natureza do ponto de vista cientfico.Antes, corresponde, claramente, maneirapela qual os cientistas (ou os siste-matizadores da teoria da investigaocientfica) tentaram definir as funes da ci-ncia no mundo em que viviam. Por isso,muitas questes cruciais foram equacionadase resolvidas atravs de idias e valores de

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    procedncia extracientfica. A prpriacincia, por volta dos sculos 18 e 19, nohavia passado por um desenvolvimentoinstitucional que oferecesse uma imagemcompleta dos requisitos pragmticos do pon-to de vista cientfico e da variedade de pa-pis sociais, legitimamente atribuveis aoshomens de cincia. Isso quer dizer que arevoluo intelectual resultante do adven-to da cincia no afetou de modo homog-neo e simultneo todas as esferas do pen-samento cientfico. Durante certo tempo,apenas as atitudes essenciais conduodas investigaes e explorao sistemti-ca de seus resultados tericos foram objetode anlise racional e de codificao. Na reaem que se colocavam os problemas relati-vos a o que fazer? com as descobertas ci-entficas, prevaleceram critrios pr-cient-ficos de avaliao e de julgamento. Em con-seqncia, os prprios cientistas acabaramdefinindo seus papis sociais e as funessocioculturais da cincia em termos da con-cepo do mundo dominante na sociedadea que pertenciam. Esse processo teve im-portncia prtica reconhecvel, pois deuorigem a avaliaes da cincia acessveis aosargumentos do senso comum e facilitoua integrao dela no sistema civilizatrio dassociedades europias modernas. Mas intro-duziu, no universo de valores especiais docientista, imensa ganga intelectual que iriaprejudicar e at retardar a evoluo orgni-ca do pensamento cientfico.

    O reconhecimento dessa inconsistn-cia e de seus fundamentos intelectuais cons-titui uma conquista recente do pensamen-to cientfico hodierno. Ela se revela, predo-minantemente, atravs de argumentos par-ciais e s vezes confusos sobre as implica-es supracientficas da teoria da cincia,que herdamos do sculo 19. Contudo, taisargumentos tm a vantagem de envolver umnovo estilo de reflexo sobre os problemasprticos da cincia. Procura-se responder questo de o que fazer? com os conheci-mentos cientficos, mediante a assimilaodo raciocnio pragmtico aos procedimentos

    intelectuais empregados pela cincia. ca-racterstico desse estilo de reflexo:

    1) a tendncia a basear a nova concep-o de cincia aplicada em princpi-os e em valores coerentes com oponto de vista cientfico;

    2) a tendncia a incluir, explicitamen-te, no horizonte intelectual do cien-tista, a teia de interaes e de influ-ncias mtuas da cincia com a so-ciedade;

    3) uma viso mais complexa da res-ponsabilidade cientfica, a qualacrescenta antiga concepo de queo cientista precisa de votar-se aoprogresso terico de seu ramo deatividades a convico de que lhecompete, como obrigao essencial,desempenhar papis construtivos naexplorao prtica das descobertascientficas.

    Desse modo, a noo emergente decincia aplicada tenta responder, ao mesmotempo, necessidade de converter esse se-tor do conhecimento em parte orgnica dopensamento cientfico e ao dilema moral aque foram expostos os cientistas, com a perdade controle sobre o destino dado aos pro-dutos do seu labor intelectual.

    A transformao da antiga concepo decincia aplicada parte de um processo maisamplo de reconstruo de todo o universocientfico. Por isso, ela pode ser descrita atra-vs de propriedades marcadamente distin-tas, conforme a perspectiva de que se enca-re o referido processo. A formao e o de-senvolvimento das cincias sociais represen-tam, seguramente, a mudana mais profun-da que afetou o universo cientfico em nos-sa era. Esse evento revolucionou a teoria dacincia, que o tornou possvel. O ponto devista cientfico foi estendido observao e explicao de fenmenos cuja ordem in-terna s podia ser abstrada, caracterizada einterpretada mediante a construo de sis-temas lgicos de referncia de tipo aberto

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    e descontnuo. A principal conseqn-cia dessa extenso do ponto de vista cient-fico, para a cincia aplicada, evidencia-sena insero da aplicao nos limites do pro-cesso de investigao cientfica. O conheci-do exemplo de como Freud chegou expli-cao da histeria ilustra bem esse fato.O tratamento clnico ofereceu-lhe meios paraidentificar as falhas das explicaes anteri-ores, para coligir os dados indispensveis formulao de hipteses mais consisten-tes e para comprovar a validade da explica-o assim descoberta. O que importa res-saltar que a relao entre a teoria e a apli-cao se modificou, simultaneamente, emdois planos diferentes. De um lado, a apli-cao deixou de ser mero processo tcnico.Ela adquiriu significao precisa, como fontede verificao de conceitos, de hipteses ede explicaes, com base na observao am-parada pela experincia. De outro lado, emvirtude da natureza do conhecimento teri-co concernente a fenmenos que se passamem sistemas abertos e descontnuos, a pre-viso deixou de ser simples funo do al-cance da teoria. O conhecimento terico queexplica as condies de produo de umfenmeno, com referncia a um sistemaunvoco e fechado, tambm explica as con-dies de sua alterao, o que lhe confereenorme eficcia prtica. O mesmo no sed, em regra, com a espcie de conhecimen-to terico com que lidam, predominante-mente, os cientistas sociais. A previso as-segurada por esta espcie de teoria d fun-damento objetivo escolha inteligente dosfins e dos meios, mas insuficiente paraconduzir todas as operaes impostas pelaaplicao. A influncia dinmica do pro-cesso tcnico que ela acarreta depende detantas variveis que se torna impraticvelpredeterminar os efeitos de dada interven-o sem reajustar-se o conhecimento tericoinicial s sucessivas alteraes introduzidaspor ela nas condies de produo dofenmeno. Neste caso, pois, a aplicao re-quer a previso proporcionada pela teoriamais o conhecimento objetivo dos efeitos

    provocados concretamente pelas tentativasde interveno. Tal conhecimento precisa serobtido, naturalmente, pela observao e pelainterpretao, mediante recurso sistemticoaos procedimentos usuais de investigaocientfica dos fenmenos ocorridos nas si-tuaes submetidas a controle racional. Pora se v que as cincias sociais suscitaramuma compreenso mais complexa da impor-tncia da aplicao no pensamento cientfico,bem como das relaes de interdependnciaque se podem estabelecer entre ela, a teoriae a pesquisa fundamental.

    O universo da cincia foi convulsiona-do, em nossa poca, por outra ocorrnciadramtica. Trata-se da fisso do ncleo e dasperspectivas que o domnio da energia nu-clear abre ao controle da natureza pelo ho-mem. Essa ocorrncia refletiu-se de vriasmaneiras na rea do pensamento cientfico,que nos interessa aqui. sabido que ela deuorigem a campos de alta especializao, nosquais s os cientistas mais competentes po-dem assegurar o sucesso de planos prti-cos. Mas, acima de tudo, cumpre atentar paraas repercusses dela no horizonte intelec-tual dos homens de cincia. Essa ocorrn-cia abalou-os a ponto de compeli-los a re-voltarem-se contra as atitudes conformistase alienatrias inculcadas pela educao ci-entfica liberal. O plo positivo da rebelioest na reviso da tica cientfica, atual-mente definida por obrigaes que dizemrespeito, particularmente, participao ati-va dos cientistas no controle das aplicaesde suas descobertas. Como escreve o qu-mico norte-americano F. Daniels, j passoua era da irresponsabilidade do cientista, di-ante das conseqncias de seu trabalho.Atrs dessas impulses crticas ocultam-seinsatisfaes provocadas pelas tendncias deprofissionalizao das atividades cientficas,quase sempre em torno de posies maisou menos desprovidas de prestgio social.Por isso, elas so mais significativas do queparecem. Elas estimulam os cientistas a acei-tar tcnicas, idias e valores consagrados emoutros grupos profissionais, especialmente

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    na esfera da luta impessoal pela parcela depoder de que necessitam, para enfrentaremas obrigaes inerentes a seus papissociais. Em resumo, as novas polarizaesideolgicas dominantes nos crculos cien-tficos encontram pleno apoio na presentecondio profissional dos cientistas. Comoresultado dessa situao, h uma disposiomais realista de esprito, na avaliao dasespecialidades relacionadas com a cinciaaplicada. O reconhecimento da utilidadeespecfica que elas possuem para oprogresso geral da cincia ou para os inte-resses fundamentais dos cientistas estarruinando as prevenes que rebaixavamsua dignidade intelectual.

    Por fim, a cincia contribuiu para criarum mundo no qual suas funes so cadavez mais vitais e complexas. Em conseqn-cia, modificaram-se as relaes dela com obem-estar e a segurana das coletividadeshumanas. A chamada segunda revoluoindustrial traduz, claramente, esse fato, quedemonstra ser essencial, em nossa era, omodo de utilizar os conhecimentos propor-cionados pela cincia. Qualquer que seja osetor que examinemos da fsica sociologia , o progresso cientfico contadopela capacidade das naes em mobilizar,organizadamente, seus recursos em benef-cio da posio delas na estrutura internaci-onal de poder. O hiato entre o saber cient-fico e o proceder prtico tende a desaparecer,sob o modelo da ao planificada.Reconhecidamente ou no, o planejamentotornou-se o smbolo organizatrio da civili-zao produzida pela cincia. Limitando-nos ao que nos interessa, parece claro quea era do planejamento, dando primazia aoconhecimento das tcnicas de controle ra-cional das situaes, concede primazia fasede explorao prtica das descobertas cien-tficas. A teoria tornou-se, sob muitosaspectos, instrumental, prevalecendo o ob-jetivo de convert-la de saber sobre algu-ma coisa em saber para alguma coisa.Tal transformao teve seus inconvenientes,principalmente onde subordinou a

    pesquisa fundamental a interesses utilitrios.Mas teve o mrito de restabelecer a impor-tncia de um dos mveis bsicos da cincia,que quase chegou a submergir sob a influ-ncia anacrnica de modelos pr-cientficosde raciocnio: a conquista de poder sobre anatureza ou o ambiente nela produzido pelaatividade humana. Deste ngulo, os desen-volvimentos do pensamento moderno soconstrutivos. Eles conduzem a retificaesque do cincia aplicada o papel que eladeve ter na civilizao cientfica. Alm dis-so, lanam as bases para uma teoria integralda cincia, na qual a pesquisa, a teoriae a aplicao aparecem como fases inter-dependentes de um complicado processo depercepo, explicao e alterao darealidade.

    O conceito de educao prescinde dequalquer clarificao. Existe um consensomnimo substancial entre educadores ecientistas sociais sobre o que ela significa,tanto para a organizao da experincia eo desenvolvimento da personalidadequanto para a sobrevivncia e o funciona-mento normal das coletividades humanas.Todavia, preciso reconhecer que esse en-tendimento resulta de um clima de idiasque exerce limitada influncia na vidaprtica. Em menor ou maior escala, as pr-ticas educacionais ainda se subordinam,mesmo nos pases em que a civilizaocientfica alcanou florescimento extremo,a tcnicas, a normas e a valores obsoletos.A concepo bsica de educao sistem-tica, que inspira e d sentido a essas pr-ticas educacionais, constitui a expressode uma experincia vlida para o passa-do, para pocas nas quais as escolas con-corriam muito pouco para a socializaoda personalidade ou a preparao para avida. Aqui, portanto, a revoluo que seoperou na mentalidade mdia dos educa-dores e dos cientistas sociais permanececonfinada e inoperante.

    Por isso, o que deve atrair nossa aten-o o caminho a seguir para vencer asforas de inrcia e de conservantismo

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    socioculturais. Adaptar a educao aosrecursos fornecidos pela cincia e sexigncias da civilizao cientfica represen-ta a tarefa de maior urgncia e gravidadecom que se defrontam os educadores e oscientistas sociais no presente. Essa tarefano to simples, quando passamos daesfera da teoria para a da aplicao. Almdos obstculos opostos s inovaes neces-srias, pelo jogo dos interesses sociais oupela estrutura rgida do sistema de institui-es educacionais, convm considerar as di-ficuldades erguidas pela inexistncia deuma perspectiva comum na escolha dos finse dos meios das atividades educacionais.Uma disciplina de sntese, na qual a pes-quisa fundamental e a teoria fossem explo-radas, sistematicamente, na anlise dos pro-blemas educacionais e dos modos deresolv-los, poderia contribuir, poderosa-mente, para a formao desse horizonte in-telectual comum. Acontece, porm, que apreparao cientfica dos educadores se res-sente de seu carter predominantemente in-formativo e livresco. Em regra, falta-lhesdomnio autntico do ponto de vista cient-fico. Doutro lado, a experincia dos cien-tistas sociais na rea da educao nasce doscentros de interesses impostos por eventu-ais investigaes sobre as condies e osefeitos psicossociais ou socioculturais dasatividades educacionais. Ao contrrio doeducador, sua capacidade de situar os pro-blemas educacionais em ngulos prticos muito pobre. Em conseqncia, a discipli-na de sntese, que o educador aprovaria,daria proeminncia a modelos pr-cientficosde aproveitamento do raciocnio prtico edas descobertas da cincia. Tentativas dotipo da que Kilpatrik empreendeu, de cons-truir uma filosofia da educao fundadanos dados da cincia, ilustram razoavelmen-te essa afirmao. Os cientistas sociais, porsua vez, dariam seu apoio a disciplinas desntese nas quais prevalecessem o ponto devista de suas especialidades cientficas e asistematizao terica. Nem mesmo um so-cilogo da envergadura de Mannheim

    escapou a esse vrus, igualmente presentenas orientaes de psiclogos, economistase cientistas polticos.

    O problema central que se coloca con-siste naturalmente em descobrir meios paraajustar nossa capacidade de interveno,na esfera da educao, aos recursos forne-cidos pelo conhecimento cientfico e aosrequisitos ou s exigncias da vidamoderna. A sntese teria de corresponder,obviamente, a questes de ordem prtica,equacionadas base de cooperao inter-disciplinar. Aqui se evidencia a fecun-didade da nova concepo de cinciaaplicada. Ela que subministra, de fato, oponto de vista que torna possvel a fusode perspectivas e centros de interesses, apa-rentemente exclusivos. Primeiro, situandoos problemas em um nvel de maior com-plexidade, oferece fundamento objetivo reintegrao de conhecimentos e de estilosde pensamento no plano em que a prticarequer conscincia racional da situao eplena inteligncia dos fins, dos meios e daspossibilidades de combin-los, frutifera-mente, em dadas condies de alterao darealidade. Segundo, localiza e delimita acontribuio especfica do educador, esti-mulando-o a propor alvos que s podemser definidos atravs de raciocnio pragm-tico puro: os fins ideais, que no se reali-zam, parcial ou totalmente, nas condiesreais de organizao e de funcionamentodo sistema educacional considerado.Terceiro, projeta a contribuio do cientistaem um contexto no qual o raciocnio te-rico pode ser associado, de forma positiva,ao raciocnio pragmtico: mediante a anli-se dos efeitos presumveis da intervenoracional, tendo em vista a eficcia dos meiosde controle disponveis, as tendncias dereintegrao inerentes s condies reais deorganizao e de funcionamento do siste-ma educacional considerado e o grau decongruncia dos fins ideais propostos comas referidas tendncias dinmicas.

    Essa discusso tambm sugere osentido em que se deve entender a noo

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    de mudana cultural provocada. Nobasta a referncia ao contedo intencionalpara caracterizar a inovao cultural,que cai nessa categoria. Os estudospsicolgicos e etnolgicos sobre as basesperceptivas e cognitivas da dinmica cul-tural indicam que, sob esse aspecto, asinovaes culturais resultam, com fre-qncia, da atividade intencional dosagentes humanos. O que distingue a mu-dana cultural provocada da mudanacultural espontnea, portanto, no ocontedo intencional dos processos queas produzem, mas a maneira pela qual ele elaborado. Assim, na primeira espciede mudana, o contedo intencional ade-re a um horizonte cultural que confere aosagentes humanos a possibilidade de es-colher fins alternativos ou exclusivos ede p-los em prtica atravs de meios queassegurem, no mnimo, controle racionaldo desencadeamento e das principais fa-ses do processo. Em outras palavras, issoquer dizer que o horizonte cultural emquesto permite basear a escolha dos finse dos meios na desirabilidade de certosefeitos, cuja relao com determinadas ne-cessidades pode ser posta em evidnciaantes deles serem produzidos e cuja pro-duo pode ser prevista, regulada edirigida pelos agentes humanos.

    A moderna civilizao cientfica etecnolgica constitui, na histria da evo-luo humana, o exemplo mais completodo domnio desse tipo de horizontecultural do homem. A cincia aplicada e aeducao nela operam como polarizadoresde tendncias dinmicas. A cincia apli-cada, como fonte de conhecimentos e detcnicas de explorao prtica imediata nasoluo de problemas novos; a educao,como mecanismo de preservao ou dedifuso de tais conhecimentos e tcnicasou, principalmente, como influnciaformativa do horizonte cultural, que fez damudana provocada um recurso adaptativoessencial da civilizao cientfica etecnolgica.

    III A cincia aplicada e aeducao como fatores de

    mudana cultural provocada

    A tendncia a conceber a soluo deproblemas prticos como uma questo abs-trata, como se a eficcia das atividades hu-manas apenas dependesse do domnio in-telectual dos fins e dos meios, ainda hojeprevalece nos diferentes crculos doshomens de ao. Em esferas como as dacincia aplicada e da educao, nas quais seimpe o recurso a especialistas e a explora-o intensiva do raciocnio abstrato, essatendncia , naturalmente, mais acentuadae absorvente. Os problemas e suas soluesso vistos de uma perspectiva que lembra,teoricamente, a mentalidade utpica dosculo 18 e, praticamente, o modeloparacientfico de utilizao das descobertasdas cincias pelos tcnicos e inventores dosculo 19.

    inegvel que essas duas orientaesintelectuais tiveram importncia dinmicadefinida no horizonte cultural em que seformaram. A mentalidade utpica foi umafonte de confiana racional na cincia e nasoportunidades que ela parecia oferecer aoaperfeioamento material e moral do homem.Desse ngulo, contribuiu poderosamentepara a fomentao e a propagao de umanova concepo do mundo, que s encon-trava obstculos e resistncias no antigohorizonte cultural, em desintegrao. Porsua vez, o modelo de aproveitamento doraciocnio cientfico, explorado pelo pen-samento inventivo, exerceu profunda in-fluncia no desenvolvimento da civilizaotecnolgica, urbana e industrial. Como su-gere Mannheim, ele encontrava plena justi-ficao na fase em que o inventor podiaoperar com unidades de trabalho que podi-am ser representadas como produtos desua imaginao e de sua atividadecriadora. Contudo, tambm inegvel queambas as orientaes ficam deslocadas, tan-to terica quanto praticamente, numa eraem que a percepo, a explicao e a

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    manipulao dos problemas prticos exi-gem, como requisito intelectual, que se com-preendam as relaes entre meios e fins emtermos das exigncias e das potencialidadesdas situaes de existncia social.

    Em vista das implicaes desta ponde-rao, julgamos conveniente situar, aqui,trs temas de maior significao geral.Primeiro, em que sentido possvel enca-rar a cincia aplicada e a educao comofatores sociais construtivos. Segundo, comoopera o elemento racional na mudanacultural espontnea. Terceiro, como secomporta o elemento racional quando as con-dies de mudana cultural podem sersubmetidas a controle exterior inteligente.

    Um elemento societrio qualquer podeser descrito, sociologicamente, como fatorsocial construtivo quando concorre paraatender ou regular a satisfao de necessidadessociais novas, impostas pela diferenciaointerna do sistema societrio considerado.Portanto, ele se define atravs das funes quedesempenha como fora de transformaosocial, abstraindo-se a natureza dos efeitos quecontribui para produzir (alteraes na reada especializao de atividades sociais, dainstitucionalizao de aes ou relaessociais, da reintegrao parcial ou global desistemas axiolgicos, etc.). So fatos patentese reconhecidos:

    1) que a civilizao tecnolgica e in-dustrial repousa num ritmo de ex-panso altamente instvel, que en-gendra, de forma contnua, novasnecessidades sociais;

    2) que o desenvolvimento da cinciase prende s repercusses dessasnecessidades, seja na esfera da ex-plicao do mundo, seja nos siste-mas de adaptaes e de controlessociais daquela civilizao;

    3) que as transformaes sofridas pelaeducao sistemtica na vida moder-na resultaram, de modo varivelmas persistente, das funes que elapassou a desempenhar, direta ou

    indiretamente, na satisfao dasreferidas necessidades sociais.

    Se tais presunes so verdadeiras,como acreditam os cientistas sociais, pos-svel assinalar, na teia de vinculaes dacincia e da educao com a organizao dasociedade de classes, certas influnciasdinmicas, que elas exercem como fatoressociais construtivos.

    Atendo-nos ao essencial, podemosapontar trs nveis distintos em que a cinciaaplicada e a educao parecem operar comofatores sociais construtivos em nossacivilizao. Quanto cincia aplicada, es-ses nveis dizem respeito ao ritmo e conti-nuidade do processo de racionalizao, aodomnio dos recursos que garantem as vri-as modalidades de interveno racional e expanso orgnica da concepo cientficado mundo. bvio que, em certo ponto dodesenvolvimento social de nossa civilizao,a cincia e suas aplicaes aparecem comoprodutos das tendncias racionalizao dosmodos de conceber e de explicar e mundo.A partir do momento em que os efeitos daracionalizao passaram a transparecer nosdiferentes setores da vida social, porm, acincia e suas aplicaes passaram a contarentre os requisitos intelectuais desse pro-cesso e da crescente ampliao de suas fron-teiras. Isso ocorre de tal forma que se tor-nou impossvel pensar na soluo de pro-blemas prticos, no presente, sem recorrera conhecimentos e a procedimentos propor-cionados pela cincia aplicada ou por seusdesenvolvimentos tecnolgicos. As ligaesda cincia aplicada com o domnio dos re-cursos para a interveno racional tambmso evidentes. De um lado, ela condiciona oavano da espcie de tecnologia relacionadacom o conhecimento cientfico. A descober-ta de procedimentos tcnicos que permitemproduzir e controlar certos efeitos teis, deesquemas de organizao racional das ativi-dades humanas (inclusive na esfera do tra-balho cientfico) e de processos que garan-tem a explorao econmica de semelhantes

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    procedimentos ou esquemas est diretamen-te associada aos progressos da cinciaaplicada. De outro lado, ela oferece os ali-cerces e os principais estmulos intelectuaisque do sentido ao planejamento como basede reconstruo social da vida moderna. Porfim, o que aparentemente possui maior im-portncia, por causa do destino da civiliza-o industrial e urbana, os resultados inte-lectuais da cincia aplicada esto concor-rendo para introduzir maior equilbrio eunidade no pensamento cientfico. Comose sabe, o predomnio de mveis tericos ea relativa negligncia dos mveis prticos,que aquele acarretava, impediam que sedesse igual relevo, na concepo cientficado mundo, s diferentes condies e valo-res da vida humana. Em particular, nenhu-ma imagem do homem, construda pela ci-ncia, podia conduzir a uma representaoda pessoa, plenamente coerente com o ca-rter racional do pensamento cientfico,antes de este se converter em fonte de ori-entao do comportamento humano na vidaprtica.

    Quanto educao, sua operao comofator social construtivo, nos trs nveis aserem considerados, precisa ser entendida luz das exigncias impostas pela civiliza-o cientfica e tecnolgica ao comportamen-to inteligente do homem. Primeiro, o fun-cionamento e o desenvolvimento desse sis-tema civilizatrio repousam na transmissoeficiente de complexo acervo de conheci-mentos, boa parte do qual deve ser com-partilhada pelo maior nmero possvel deindivduos. Apesar da especializaoimperante na rea de produo do saber ci-entfico, este se destina coletividade. Devebenefici-la como um todo: seja no planointelectual, graas funo formativa quepreenche na constituio do horizonte cul-tural do homem comum e posio domi-nante que ocupa no sistema racional de con-cepo do mundo criado pela prpriacincia; seja no plano utilitrio, em virtudedas diferentes vinculaes da vida cotidia-na, na sociedade de massas, com noes,

    artefatos, tcnicas e servios produzidos combase nos conhecimentos cientficos e natecnologia cientfica; seja no plano moral,por causa das conseqncias tico-sociais,fundadas em valores de racionalidade estrita,do elevado ideal de liberdade e de respeito pessoa, inerente concepo cientfica domundo. Da a existncia de complicadosistema de comunicao simblica, em cons-tante enriquecimento e expanso, que con-fere educao sistemtica uma importnciadinmica, jamais igualada em outros siste-mas civilizatrios conhecidos. Segundo, aracionalidade do saber cientfico no derivado respeito invarivel a uma ordem estticade valores consagrados, mas da capacidadeda inteligncia em descobrir e utilizar co-nhecimentos compatveis com a objetivida-de dos eventos materiais ou humanos. Porisso, esse tipo de saber demanda disposi-es intelectuais que s podem ser continu-amente desenvolvidas e apuradas medianterigorosa preparao especializada. O que sechama de vocao cientfica representa oproduto mdio desse esforo educacionaldirigido, que tem por fim a formao damentalidade cientfica, sem a qual no ha-veria progresso na cincia e na tecnologiacientfica. Terceiro, o saber cientfico assi-nala a maior revoluo j ocorrida na hist-ria cultural do homem. Ele ope, a todas asformas possveis de alienao social depessoas, de grupos ou de coletividades hu-manas, argumentos e avaliaes que desmas-caram seus fundamentos antinaturais esupra-racionais (nas relaes dos homenscom as mulheres, dos pais com os filhos,dos adultos com os jovens, dos civilizadoscom os primitivos, dos brancos com os ne-gros, dos ricos com os pobres, dos podero-sos com os desprotegidos, dos cultos comos incultos, etc.). A tarefa de adestrar o ho-mem para agir integramente nos marcos desemelhante moralidade racional cabe edu-cao sistemtica. Embora os educadores setenham descuidado das referidas implica-es prticas do saber cientfico (com rarasexcees, como a de Lawrence K. Frank),

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    parece evidente que o circuito da revoluoprovocada pela cincia se fechar quando aescola for capaz de despertar, em todos osindivduos, os sentimentos de eqidade, asatitudes de tolerncia simptica e os ideaisde autonomia na solidariedade requeridospelo pensamento cientfico.

    Os resultados dessas explanaes co-locam uma questo de magna importncia.Dadas a natureza e as tendncias dasinfluncias sociodinmicas da cincia apli-cada e da educao na civilizao tecnolgicae industrial, como se explicam o padro he-terogneo e o ritmo descontnuo assumidospelos efeitos de ambos os fatores na evolu-o desse sistema civilizatrio? As desco-bertas feitas pelos socilogos que se dedi-caram investigao dos processos de per-cepo e de conscincia sociais nas formasem que eles se evidenciam atravs do hori-zonte cultural do homem moderno permi-tem responder a tal questo. De vriasorientaes, investigadores como Marx,Engels, Tonnies, Nash, Max Weber, Sombarte Mannheim (para s citarmos os princi-pais), descobriram que a significao do ele-mento racional na vida prtica do homemmoderno sofreu considervel transforma-o: restrita no contexto de uma concepotradicionalista, patrimonialista e sagrada domundo, herdada da sociedade medieval,estendeu-se a todas as esferas do compor-tamento social humano, com a formao eo desenvolvimento da sociedade capitalistae de classes. Essa transformao foi, aomesmo tempo, quantitativa e qualitativa.O elemento racional inseriu-se em todos ostipos de ao e de relao sociais, emboraseus efeitos se fizessem sentir com maiorrapidez e especificidade no campo da eco-nomia, da poltica e da administrao. Graasa essas circunstncias, os processos pelosquais os seres humanos explicam,etnocentricamente, suas condies de exis-tncia adquiriram uma feio secularizadae racional. As tradies, as obrigaes mo-rais e as convices religiosas deixaram derestringir a viso intelectual do homem

    comum, com referncia seja aos eventos na-turais, seja aos eventos propriamentehumanos. Em termos da atividade do ho-mem como agente criador de cultura, issorepresentava um progresso sem precedentediante de outras civilizaes. De um ladoporque promovia o alargamento do horizon-te cultural do homem, no aproveitamentopragmtico de suas experincias. Na antigaconcepo do mundo, experincias do pas-sado e do presente eram relacionadas entresi toda vez que se impunha a soluo dealgum problema na vida prtica. Mas preva-lecia a aspirao de modelar o presente pelopassado. Na nova configurao, ao contr-rio, as experincias do passado comearama ser manipuladas seletivamente, como re-cursos instrumentais, onde fosse patente suaeficcia para resolver os problemas novos.No demais, o presente passou a ser gover-nado, de maneira crescente, pelo futuro: porrepresentaes ideais de organizao da vidaprtica, que podiam ser antecipadas, men-talmente, como possveis, legtimas enecessrias. De outro lado, porque inspirouuma espcie de revoluo copernicana nasatitudes humanas. Os modelos de padroni-zao e de organizao das atividades sociaisdos homens passaram a ser relacionados comos interesses e com os valores perseguidosdeliberadamente. O prestgio inerente aocarter conspcuo do tradicional, ao exem-plo legado pelo antepassado ou consagra-o de origem religiosa deixou de influenciaras avaliaes prticas no processo de subs-tituio das antigas normas e instituiessociais. A eficcia e a compatibilidade comos interesses ou com os valores, defendi-dos conscientemente, erigiram-se em crit-rios normativos da reconstruo social. Noconjunto, o elemento racional alargava detal forma o campo de deciso do homem,que este passou a conceber-se como senhordo prprio destino.

    Uma noo como essa funda-se, subs-tancialmente, no domnio sobre as condi-es naturais e artificiais do ambiente pelohomem. claro que tal domnio no se

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    estabeleceu como efeito de um processomecnico. Ele se firmou lentamente, em co-nexo com as alteraes ocorridas na posi-o relativa do elemento racional no hori-zonte cultural do homem moderno. Comosugerem as anlises de Marx, de Nash e deMax Weber, durante algum tempo o elemen-to racional apenas se inseria nas atividadesintencionais que podiam ser toleradas nombito da ordem tradicionalista, patri-monialista e sagrada. Os setores nos quaiso elemento racional conseguiu encontrarmaior expresso, como o da burocracia e odo direito, estavam submetidos a controlergido. Por isso, foi a expanso paulatinadaquelas atividades, especialmente no pla-no da vida econmica, que repercutiu deforma explosiva na estrutura do pensamen-to, forando seja a utilizao livre das tc-nicas de cunho racional existentes, seja acriao de novas tcnicas intelectuais quepudessem corresponder necessidade dedar relevo ao elemento racional na vidaprtica. A formao e o desenvolvimentoda cincia e da tecnologia baseada no co-nhecimento cientfico exemplificam a dire-o tomada por esse processo. Contudo, oprocesso evoluiu de tal modo que as ino-vaes s parcialmente constituam oproduto do elemento racional da situao.Os fatores e as condies irracionais (naforma de hbitos, de normas, de instituiesou de valores sociais) continuavam a exercerextensa e profunda influncia ativa. Comfreqncia, fins escolhidos racionalmenteeram atingidos por meios irracionais. Nasituao global, as condies e os fatoresirracionais operavam como mecanismos deobstruo ou de solapamento, dificultandoe retardando a descoberta ou a utilizaodas tcnicas racionais que se impunham.A anlise retrospectiva demonstra, no en-tanto, que essa circunstncia no chegou aser totalmente prejudicial. Para se reconhe-cer isto, bastante que se atente para o fatode que o elemento racional fazia parte deum contexto mais amplo, no qual concor-ria e se articulava com elementos irracionais

    de vrias categorias. Sua importncia relati-va, na prtica, dependia do equilbrio quese estabelecesse, mediante a ao humanainteligente, entre os elementos racionais eirracionais da ao. Esse fato explica por-que o elemento racional desempenhou in-fluncias dinmicas revolucionrias, apesarda atividade concorrente e neutralizadoradas condies e dos fatores irracionais.Doutro lado, a convenincia de uma combi-nao ntegra entre fins, meios e condiesda ao no constitua um dilema, na pers-pectiva dos agentes sociais. Contava, acimade tudo, o propsito de alcanar os finscolimados, atravs dos meios e das condi-es realizveis na prtica. Da a conseq-ncia inevitvel: um modelo heterogneo deinterveno, incapaz de submeter todas asfases dos processos conscientes de inova-o cultural a mveis e a procedimentosracionais.

    Embora sumria, a digresso acima re-vela o que nos parece essencial. O desen-volvimento do processo da racionalizaodos modos de conceber e de explicar o mun-do, bem como das maneiras correlatas deagir, foi lento, gradual e descontnuo. A aointeligente, na esfera em que ela conduz criao de bens culturais, limitava-se, ne-cessariamente, soluo de problemas ime-diatos, elevados ao campo da conscinciapela atividade prtica. As bases perceptivase cognitivas da ao inteligente eram, por-tanto, bastante acanhadas, no que concerneao papel atribudo aos critrios racionais depensamento e de interveno na realidade.O sujeito no precisava acumular conheci-mentos exaustivos e profundos sobre osobjetos e suas relaes com a atividade hu-mana organizada, para transform-los. Bas-tava consider-los no plano em que eles ofe-reciam alguma espcie de interesse prticoe operar, intelectualmente, com os proble-mas assim evidenciados. Os procedimentosempregados pelo inventor, pelo reformadorsocial e pelos homens de ao ilustrambem o que ocorria. O inventor convertia seusproblemas em uma unidade tcnica de

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    trabalho, deixando de relacion-la seja como progresso terico dos conhecimentos ex-plorados, seja com as conseqncias queela poderia desencadear no sistema econ-mico e na sociedade. Sua curiosidade e in-terveno restringiam-se construo do en-genho que produzisse, regularmente, o efei-to tcnico desejado. Tomando comoreferncia pensadores como Hobbes eRousseau, constata-se que o reformador so-cial procedia de forma similar. O conheci-mento objetivo da realidade social ambien-te interrompia-se onde fosse possvelevidenciar o fundamento irracional daordem social existente ou das instituiesconsideradas. Alm disso, contentavam-secom a enunciao dos requisitos racionaisda reconstruo social, negligenciando ou-tras questes, inclusive as referentes re-percusso das alteraes previstas fora dombito da situao de interesses que dese-jassem modificar. Se procedimentos dessanatureza tinham pleno curso entre os inte-lectuais voltados para os problemas prti-cos, no de admirar-se que os homensde ao na economia, na administraoe na poltica se ativessem significaodas tcnicas racionais para a soluo dosproblemas do presente que ameaassem,diretamente, a continuidade das institui-es sociais a que associavam seu prestgioe seu poder. O teor altamente pragmticoda previso, neste nvel, achava uma fontede distoro e de empobrecimento na con-vergncia para interesses imediatos, em de-trimento da situao total e da importnciade lidar com eles tendo em vista a funodinmica que ela possui no contexto social.Por isso, a explorao prtica do elementoracional sofria uma sorte de efeito derecorrncia. Mesmo onde a escolha inteligen-te de fins podia amparar-se na manipulaode meios racionais, em condies relati-vamente favorveis aos intentos prticosperseguidos, os resultados alcanados refle-tem menos a eficincia das tcnicas racionaisempregadas que a seleo de seus efeitos porforas socioculturais do meio ambiente.

    luz dessas reflexes, possvel res-ponder questo proposta. A cincia aplica-da e a educao receberam, na civilizaotecnolgica e industrial, um desenvolvimen-to que exprime a interdependncia de duasordens contraditrias de condies e defatores. Primeiro, no plano da conscinciaracional dos fins, dos meios e das condiesideais para p-los em prtica: a natureza abs-trata do saber cientfico-positivo ou dos raci-ocnios baseados em sua aplicao favoreceua acumulao rpida de conhecimentos so-bre os alvos que devem orientar, racionalmen-te, a ao humana nessas esferas. Segundo,no plano da conscincia social dos fins, dosmeios e das condies ideais para p-los emprtica: o grau de secularizao das atitudese da racionalizao dos modos de perceberou de explicar o mundo revelou-se insufici-ente para criar, acima das diferenas de inte-resses e de valores grupais, alvos coletivosde aproveitamento racional das poten-cialidades socioculturais da cincia aplicadae da educao. A articulao das duas or-dens de condies e de fatores, atravs dassituaes sociais de existncia e da contnuatransformao delas, tem favorecido seja oalargamento da conscincia pelo influxo devalores polarizados socialmente, seja apermeabilidade da conscincia social a in-fluncias especificamente racionais. Noentanto, desequilbrio persistente das duasordens de condies e de fatores vem contri-buindo para reduzir o poder atuante dacincia aplicada e da educao. S as poten-cialidades de ambas que lograram incorpora-o conscincia social e, em conseqncia,reconhecimento societrio de que sovaliosas e necessrias, so exploradas efe-tivamente e encontram campo para operarcomo mecanismos de mudana da situaoexistente. Isso ilustra, empiricamente, o queacontece com o elemento racional na mudan-a cultural espontnea. Tolhido entre forasde efeitos contraditrios, o que conta no sua capacidade interna de expanso, mas omodo pelo qual ela chega a ser aproveitadasocialmente.

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    Estudos recentes, entre os quais sesalientam as contribuies histrico-sociogrficas de Bernal, evidenciam as con-seqncias negativas da incapacidade doscientistas em intervir, regular e extensamen-te, na rea de aproveitamento prtico dasdescobertas cientficas. A presente organi-zao do trabalho cientfico possui tais de-ficincias que permitem, quanto aos desen-volvimentos da cincia aplicada, estreitapredominncia dos interesses econmicose comerciais sobre as convenincias cient-ficas, as razes humanitrias e, mesmo, asegurana ou o bem-estar das naes.O predomnio de interesses extracientficose supra-racionais conduz, num setor em quea produo de conhecimentos deveria serregida por normas e valores especiais oupor interesses que afetam as naes comoum todo e a humanidade, atrofia paulati-na da pesquisa fundamental, ao progressi-vo estrangulamento dos mveis tericos dopensamento cientfico na pesquisa aplica-da e perturbao do curso ou dos efeitosdo processo de institucionalizao das ati-vidades cientficas. Como se sabe, a nor-malidade deste processo vital para a evo-luo da civilizao industrial e tecnolgica.Dele dependem, especialmente:

    1) a articulao dos diferentes nveisdo trabalho cientfico, de acordocom os requisitos tericos e as pos-sibilidades prticas do pensamentocientfico;

    2) o melhor entrosamento entre a pro-duo e a explorao dos conheci-mentos cientficos, ou seja, entre acincia e a sociedade;

    3) a continuidade das tendncias quevm assegurando a expanso inter-na do sistema das cincias e suaposio como estrutura intelectualdominante do nosso sistema racio-nal de concepo do mundo.

    Todavia, o impacto das condies e fato-res irracionais faz-se sentir, principalmente,

    sobre aquele processo. Por paradoxal queparea, isso prejudica, sobretudo, o desenvol-vimento da cincia aplicada e o alcance de suacontribuio para a alterao do mundo emque vivemos. Como j indicamos, a cinciaaplicada constitui a rea menos diferenciada eintegrada do pensamento cientfico. Em con-seqncia, os impactos sofridos pelo proces-so de institucionalizao das atividades cien-tficas concorrem, diretamente, para retardara descoberta e o domnio de tcnicas eficien-tes de controle racional das foras postas aservio do homem pela cincia.

    Fenmeno similar ocorre com a educa-o. A formao e o desenvolvimento da eco-nomia capitalista, da democracia e da socie-dade de classes deram origem a um hori-zonte cultural tipicamente caracterizado pelograu de importncia nele atribuda ao com-portamento inteligente, baseado na consci-ncia e na escolha racionais de fins e demeios. Tcnicas, conhecimentos e valoresintelectuais, antes privativos de castas oude estamentos que exerciam funes religio-sas, polticas ou burocrticas, passaram aser indispensveis s atividades cotidianasdo homem comum, tornando-se univer-sais e acessveis a todos. Vrios fatores,cuja anlise no caberia aqui, fizeram da de-mocratizao da cultura um requisito inte-lectual da vida prtica moderna, queconferiu educao sistemtica funessocializadoras relacionadas com todas asatividades sociais nucleares da civilizaoindustrial e tecnolgica. Como aconteceucom os cientistas na esfera do pensamentosistemtico, os educadores constituram-seintrpretes das exigncias da nova situaohistrico-social. Formularam e propagaramideais pedaggicos coerentes com as funesda educao escolar em sociedades, cujosistema organizatrio consagra, pelo menosteoricamente, a igualdade fundamental detodos os indivduos; idnticas oportunida-des mnimas de preparao para a vida, comorequisito para a plena fruio dos direitossociais e a aceitao responsvel dos deve-res correlatos; e o acesso, apenas restringido

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    pelas disposies ou capacidadespessoais, s diferentes posies sociais,com as probabilidades correspondentes desegurana, de prestgio e de poder. Do mes-mo modo que os cientistas com refern-cia institucionalizao das atividadescientificas, os educadores foram privadosdo controle racional das diretrizesultradidticas e das condies exterioresdo progresso educacional. Em conseqn-cia, no puderam intervir, eficazmente, nassituaes concretas que regulam o fun-cionamento das escolas e graduam suainfluncia dinmica na vida social. Aocontrrio, tiveram de ajustar-se a umarealidade educacional em flagrantecontradio com os recursos racionais ecom as polarizaes ideolgicas ouutpicas de sua conscincia profissional.

    Pode-se argumentar que semelhantesconcluses incidem em limitaesgrosseiras. Primeiro, elas no fazem honraao papel criador dos educadores no mun-do moderno. Segundo, elas omitem que astransformaes substanciais por que pas-sou a educao sistemtica nos ltimos tem-pos so produtos da frutificao natural dosideais pedaggicos propagados peloseducadores.

    Na verdade, elas no foram expostascom esse esprito. Pretendamos ressaltarsomente que, no contexto da mudana cul-tural espontnea, o elemento racional sofrereelaboraes que acabam desviando o cur-so da interveno intencional ou da criaoinovadora. Mas, tambm achamos que melhor considerar a questo do ngulo emque as atividades dos educadores se apre-sentam sob os aspectos mais favorveis.Tomemos, por exemplo, os projetos to bemsucedidos de Elsie R. Clapp e colaborado-res, em escolas rurais de Jefferson Countye Arthurdale.1 Que nos revelam eles? Deum lado, que o educador moderno estlonge de ter aproveitado, inteligentemente,todas as oportunidades abertas sua ao,em virtude dos conhecimentos de que dis-pe e do amparo que pode receber no seio

    das comunidades. Os educadores respon-sveis pelos dois projetos souberam tirarpartido construtivo dessas oportunidades.Servindo-se delas, conseguiram organizarescolas capazes de preencher as funes aque se destinavam e, o que ainda maisimportante, criar centros ativos de interes-ses para os habitantes das duas comunida-des. De outro lado, que o grau de sucessoda interveno do educador depende daelasticidade com que ele pode operar, emdo sistema social, com os problemas educa-cionais enfrentados. Nos casos em apreo,essa elasticidade era, no essencial, quase ili-mitada. Tanto as populaes afetadas quan-to o poder pblico estavam interessados nosucesso da interveno e em seus possveisefeitos para o desenvolvimento das duas co-munidades. Isso quer dizer que a interven-o dos educadores assumiu a forma de umprocesso tcnico, no qual o emprego dos re-cursos racionais disponveis foi reguladopela natureza dos propsitos visados e pelasexigncias da situao.

    Seria conveniente indagarmos, agora, oque ocorreria se o educador voltasse suaateno para problemas educacionais cujasoluo exigisse alteraes parciais ouglobais na estrutura e no funcionamento dosistema social considerado. O relatrio daComisso Presidencial sobre a EducaoSuperior nos Estados Unidos, elaboradoentre 1946-1947 por George F. Zook e cola-boradores, representa um bom exemploneutro. Trata-se de um documento rigo-roso, lcido e objetivo. As medidas prti-cas nele recomendadas s levariam a acentuarcertas tendncias da democratizao do en-sino superior nos Estados Unidos, pormeios indiretos, definidamente relacionadoscom os encargos financeiros do governofederal nessa rea. O documento no chegoua ferir a imaginao pblica nem a iluminara ao oficial. Entretanto, dez anos depois,quando os russos suplantaram os norte-ame-ricanos no terreno dos foguetes termo-nucleares, os argumentos nele discutidos seimpuseram de forma dramtica! Em uma

    1 Ambos os projetos podem serconsiderados como exemplosde mudana cultural espont-nea. Seja porque no se fez ne-nhuma tentativa de prvio da si-tuao e de controle das condi-es ou dos efeitos da interven-o, seja porque esta foi inter-rompida assim que as escolaspaca funcionar normalmenteocasio em que foram largadas aseu prprio destino. Ambas asiniciativas fazem parte da difu-so das tcnicas e instituieseducacionais modernas nomundo rural.

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    obra sociolgica notvel, AugustHollingshead esclarece objetivamente aquesto, evidenciando como os ideaisdemocrticos so minados pelo sistema declasses sociais. Os membros das camadasdominantes pensam como se a ideologiademocrtica fosse respeitada integralmentee como se a competio s favorecesse osrealmente mais capazes.

    Essa ideologia [escreve Hollingshead] fa-lha em considerar o fato de que o sistemasocial no prov todos os competidorescom oportunidades iguais. Nem reconhe-ce que o sistema de classes mantido,em parte, pelo controle das posies ofi-ciais pela classe superior. [...] Um tercei-ro fato, ignorado por essa ideologia, queo controle da classe superior tende aproduzir a manipulao das funes insti-tucionais segundo os interesses dos indi-vduos e das famlias que possuemriqueza, prestgio e poder.

    Neste plano, em que a educao apare-ce como expresso da estrutura dasociedade em que se integra, termina afaculdade do educador de lidar com os pro-blemas educacionais em termos estritamen-te racionais. Ele pode, em funo de suaintegridade intelectual, estabelecer os requi-sitos e os alvos ideais da educao sistem-tica e, mesmo, apontar como e porque elesdeixam de ser obedecidos na prtica. A me-nos que o sistema social se transforme emdada direo, porm, ele no dispe demeios tcnicos para converter seus conhe-cimentos em princpios normativos doprocesso educacional.

    Com essa discusso, podemos encer-rar a anlise do nosso tema, condensandoos resultados a que chegamos em trs tpi-cos principais. Primeiro, por causa de suasconexes com os processos psicoculturaisda conscincia, a influncia potencial doelemento racional no sofre alteraes nodecorrer da mudana cultural espontnea.Assim, os ideais de democratizao do en-sino, independentemente dos graus de suarealizao na prtica, esto subjacentes a

    todas as tendncias de renovao dos siste-mas educacionais modernos. Segundo, osmeios intelectuais que servem para escolhere dirigir as atividades intencionais de fun-damento racional, na mudana cultural es-pontnea, no asseguram, de modo invari-vel, domnio determinado sobre a realiza-o dos fins desejados. O processo de mu-dana pode ser interrompido em alguma desuas fases, antes de completar-se ou de pro-duzir os efeitos esperados, sem que seusagentes possam impedir tais decorrncias.O exemplo acima, sobre a impossibilidadede nivelar as oportunidades educacionaisem uma sociedade de classes, apesar dosincentivos ideolgicos favorveis, ilustraempiricamente essa afirmao. Terceiro, aconcorrncia do elemento racional com con-dies e fatores irracionais reduz, na mu-dana cultural espontnea, o alcance e a efi-ccia da interao intencional. Razes e cri-trios incongruentes com os intentos decunho racional interferem tanto nas avalia-es quanto na seleo dos efeitos desej-veis das inovaes. Reportando-nos aoexemplo anterior: as racionalizaes quedissimulam a interferncia da posio soci-al na limitao das oportunidades educacio-nais opem resistncias insidiosas smedidas de democratizao do ensino.

    Poder parecer estranho o fato de dar-mos tanta ateno ao papel do elemento ra-cional na mudana cultural espontnea.Contudo, esse fato era essencial para a pre-sente discusso. Ele permite estabelecer doispontos de sumo interesse para a anlise deoutra questo concernente ao comportamentodo elemento racional na mudana culturalprovocada. Em primeiro lugar, que na edu-cao, como em outras esferas da atividadeintencional, a interveno e seus graus desucesso no dependem, apenas, da consci-ncia dos fins e da disponibilidade de meiosintelectuais para atingi-los, mas tambm damaneira pela qual essas duas edies se re-lacionam com impulses coletivas paramudana. Em segundo lugar, que o proces-so de mudana espontneo, na educao

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    como em outros nveis da cultura, podeparalizar-se ou interromper-se antes de pro-duzir todos (ou os principais) efeitos espe-rados pelos agentes e objetivamente poss-veis nas condies de integrao da ordemsocial estabelecida. Estes dois pontos for-necem os fundamentos e os limites dentrodos quais precisam ser consideradas as pos-sibilidades de manipulao de educaocomo fator racional de mudana. O primei-ro indica que precisamos estar preparadospara manter e melhorar o entrosamento denossos recursos e os nossos alvos educacio-nais com a evoluo do sistema social. Masconcorre para dissipar a presuno, to di-fundida em nossa poca, de que a educa-o confere ao homem a capacidade demodificar, a seu talante, a realidade social.Ela no tem esse poder, embora isso nodiminua o interesse pelo referido entro-samento, que serve de base compreensosociolgica da importncia da educaocomo fator do progresso social. O segundomostra que tambm precisamos estar pre-parados para aumentar o entrosamento denossos recursos e alvos educacionais coma organizao e com o funcionamento dosistema social. Deixa patente, porm, queas vias racionais s so dinamicamenteconstrutivas quando o processoeducacional corresponde a necessidadespercebidas no plano da conscincia social.Em conjunto, os dois pontos alimentam aconvico de que a manipulao racionaldas condies externas do processo educa-cional apresenta interesses prticos espec-ficos. Isso parece verdadeiro tanto no quediz respeito seleo e intensificao deefeitos desejveis quanto no que concerne neutralizao ou eliminao de fontesde interferncia, cujo controle possa serobtido atravs de tcnicas racionais.

    Em outras palavras, as vinculaes daeducao sistemtica com a ordem social dasociedade de classes, vista quer estticaquer dinamicamente, suscitam problemasprticos que no podem ser enfrentados,com sucesso, no nvel da mudana cultural

    espontnea. Esta confina o elemento racio-nal a um nmero reduzido de atividadesintencionais discretas ou desarticuladas,subordinando ao acaso e concorrncia dascircunstncias o desfecho de intervenesfundadas no comportamento inteligente e naao deliberada. Da a necessidade de recor-rer a formas mais complexas de pensamento,nas quais a maior elaborao do elementoracional permita:

    1) apreender como surgem e quais soas conseqncias diretas ou indire-tas daqueles problemas;

    2) pr em evidncia at que ponto elespoderiam ser corrigidos ou solucio-nados, atravs das tcnicas conhe-cidas ou explorveis de controle;

    3) identificar e avaliar, objetivamente,os efeitos presumveis da interven-o racional, tomando em conta, iso-lada e globalmente: a natureza e gra-vidade dos problemas; a eficciacomprovada dos meios de controledisponveis ou mobilizveis eventu-almente; a qualidade das influnci-as inerentes s condies neutras,favorveis e adversas da situaoconcreta; o grau de conscincia, al-canado socialmente, sobre tais pro-blemas e a convenincia de submet-los a alguma espcie de controle; asrepercusses dos efeitos desejadosna integrao e no funcionamento desubunidades do sistema educacio-nal e neste como um todo; a impor-tncia dinmica do processo totalnas relaes do sistema educacionalcom a ordem social.

    Chegamos, assim, a uma perspectivaintelectual plenamente coerente com ohorizonte cultural do homem moderno.A percepo e a explicao dos problemaseducacionais so situadas em tal plano quea reflexo sobre eles adquire maior consis-tncia nos trs nveis distintos do conheci-mento (emprico, terico e prtico) e os

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    projeta numa dimenso histrico-volitivaem que as experincias do presente soassociadas s do passado para prevenir ofuturo. Com isso, complica-se naturalmen-te o processo tcnico, determinvel pelasatividades intencionais dos agentes. Mas,em compensao, ele ganha nova eficincia,por ajustar-se s situaes histrico-sociaise aos problemas prticos criados peladiferenciao das funes da educaosistemtica na civilizao tecnolgica eindustrial. Pela primeira vez na histriacultural do homem, este pode propor-se,conscientemente, os alvos da educaosistemtica em termos das necessidades dosindivduos, da expanso interna dossistemas educacionais e do desenvolvi-mento do meio social ambiente.

    O que caracteriza a mudana culturalprovocada, em relao ao elemento racio-nal, a extenso dos limites da aointencional. Alm da escolha deliberada dosalvos, ela envolve o conhecimento objetivodos meios, das condies e dos mecanis-mos atravs dos quais aqueles precisam seratingidos. Em outras palavras, o elementoracional penetra em todos os nveis do com-portamento inteligente dos agentes, demodo a ordenar as atividades por eles de-senvolvidas no plano relativamente abstra-to em que se definem suas intenes deintervir na realidade, seja em funo dosfins, seja em funo dos meios e das con-dies da prpria interveno. Isso colocaduas questes bsicas. Primeiro, como ouporque a ao inteligente e deliberada, ori-entada racionalmente, pde alcanar tama-nha importncia dinmica na vida socialcotidiana. Essa questo, segundo nosparece, j foi respondida acima. Os efeitosdos processos de secularizao e de racio-nalizao no se fizeram sentir apenas natransformao da perspectiva social dos in-divduos, mas tambm nos seus critrios eideais de organizao e de controle das ati-vidades humanas. Por isso, aqueles efeitosrepercutiram, extensa e profundamente, emtodas as reas em que a institucionalizao

    dependia, de maneira direta ou indireta, dosnovos critrios e ideais de organizao e decontrole das atividades humanas. assimque se explica, sociologicamente, a forma-o e a evoluo das chamadas organiza-es formais (como a grande empresa, asassociaes nacionais e internacionais ou oEstado), no mundo moderno. Segundo, se possvel conceber o homem, em face daextenso tomada pela influncia do elemen-to racional nos processos de transformaoou de produo da cultura, como senhor dasua vontade e do seu destino. Parece evi-dente que a anlise sociolgica no preten-de, no caso, sugerir que o indivduo se li-berta com o progresso da civilizaotecnolgica e industrial, dos vnculos mate-riais, psicoculturais e morais que o ligam vida social organizada. Ao contrrio, elaprocura salientar como a preservao des-ses vnculos se associa formao e ao de-senvolvimento de uma ordem social, queprecisa assegurar maior autonomia pessoa,como condio para a normalidade de seusajustamentos s situaes socais de existn-cia. Esses ajustamentos exigem tal volume evariedade de energias psquicas e de apti-des intelectuais, que o indivduo jamaispoderia corresponder a seus papis sociaissem dispor de um mnimo de liberdade, deiniciativa e de segurana, regulado pelos me-canismos organizatrios da vida social.Verifica-se, portanto, que a importncia cres-cente do elemento racional conseqnciade um processo social pelo qual os recur-sos culturais do homem so reajustados sexigncias da vida em sociedade na era dacivilizao tecnolgica e industrial.

    O estabelecimento desse ponto apresen-ta enorme interesse cientfico. que ele per-mite situar o significado geral do processoque estamos analisando. O fato de termosconscincia das origens e das funes dacrescente influncia do elemento racional navida prtica no nos coloca em situao pe-culiar, perante outros povos e outrasculturas. Ele traduz, somente, uma diferenade perspectiva, assegurada pelo horizonte

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    cultural do homem moderno. Mas, o dom-nio racional, por este alcanado sobre cer-tas situaes de existncia, possui signifi-cao comparvel ao poder conferido ao ho-mem por outras formas de saber, em outrascivilizaes.

    Qual a natureza desse domnioracional? Certos autores, como Mannheim,falam em planejamento experimental.O uso desta expresso justifica-se: de umlado, pelas oportunidades abertas inter-veno racional nas organizaes formais;de outro, porque presumvel que o de-senvolvimento da concepo cientfica domundo impor o modelo do raciocnio ci-entfico tambm s atividades prticas dohomem. Contudo, a crescente influncia doelemento racional na mudana culturalprovocada no se baseia, necessariamente,na eliminao das condies e dos fatoresirracionais da vida humana. Isto ocorre, cer-tamente, nas esferas em que as condies eos fatores irracionais se articulam a fontesde interferncia destitudas de apoio estru-tural ou funcional na ordem social existen-te. Em regra, porm, o domnio racional ca-racteriza-se pelo modo de lidar com condi-es e com fatores irracionais que, no sen-do eliminveis no presente, operam comofontes de interferncia, porque sua influ-ncia dinmica transcende aos limites dasnecessidades satisfeitas por determinadasinstituies, grupos ou valores sociais. Emsuma, o irracional persiste, em proporesvariveis, nos diferentes nveis da vida so-cial. No obstante, a interveno racionalconsegue submet-lo a controle indireto, porser capaz de representar-se, antecipadamen-te, como seus efeitos podero repercutir nasatividades intencionalmente voltadas paraa alterao da realidade.

    Da a evidncia que se impe: a dife-rena entre a mudana cultural espontneae a mudana cultural provocada (quanto aopapel do elemento racional, encarado noslimites da civilizao tecnolgica e indus-trial) antes de grau que de natureza. Umae outra so processos da mesma ordem, que

    preenchem funes anlogas. Distinguem-se uma da outra somente com referncia aosrecursos tcnicos e intelectuais, postos disposio do homem no campo do com-portamento inteligente e do controle delibe-rado das foras conhecidas do meioambiente. Essa constatao deveras impor-tante, por causa de suas implicaes prti-cas para o tema que nos preocupa aqui.A transio do estilo de pensamento ine-rente mudana cultural espontnea para oimposto pela mudana cultural provocadapode efetuar-se gradualmente, em conexocom os progressos conseguidos na tec-nologia e com o agravamento das exignciasda situao. Em face da educao sistemti-ca, isso significa que a nossa capacidade delidar com os problemas educacionais dopresente e de resolv-los de modo mais efi-ciente depende, diretamente, do sucesso quetivermos em utilizar os dados da cincia noplanejamento das atividades educacionais.

    preciso que se tenha em mira, entre-tanto, que aqui se trata, sobretudo, de ex-plorar os conhecimentos cientficos em finsprticos. Muitos dados da cincia s pode-ro ser utilizados, convenientemente, pelosprprios educadores. Outros, no entanto,exigiro novas modalidades de cooperaoentre os educadores e especialistas com trei-namento cientfico. Em particular, certasmodificaes na estrutura e no funciona-mento dos sistemas educacionais, paraadapt-los s funes formativas, adquiri-das pela educao sistemtica no presente,ou para ajust-los s formaes ocorridas noambiente social, impem problemas prti-cos que no podero ser resolvidos, com efi-ccia, sem a colaborao ntima e contnuados educadores com os cientistas sociais.Em sua maior parte, esses problemas aindano foram investigados cientificamente.Doutro lado, o interesse por eles surge numarea definidamente especializada do sabercientfico: a da cincia aplicada. Isso querdizer que as circunstncias esto favorecen-do fortes solicitaes ao maior desenvolvi-mento da pesquisa cientfica aplicada sobre

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    os problemas educacionais do mundomoderno. Mesmo que a formao do edu-cador o provesse com melhor treinamentopara lidar com os conhecimentos e com astcnicas fornecidas pelas cincias sociais,ele no poderia resolver sozinho todas asquestes que teria de enfrentar na transfor-mao deliberada do sistema educacional.Por sua vez, o cientista social no estariaem condies de prestar uma colaboraoconstrutiva, ainda que o educador pudes-se esclarec-lo a respeito da natureza dosalvos e do alcance dos meios para atingi-los, sem investigar, previamente, os proble-mas educacionais do duplo ngulo de suaemergncia e dos efeitos presumveis dainterveno racional. Como j vimos, asintenes e os ideais no asseguram efici-ncia nem continuidade s atividades deli-beradas do homem. Para reduzir ou evitaro impacto das condies e dos fatores irra-cionais, o cientista social precisa investigara situao educacional-problema e analisarcomo poder ela reagir a determinadas ten-tativas de interveno nos elementosnucleares de sua estrutura.

    Como decorrncia desse tipo de pro-cedimento, que tende a firmar-se e a difun-dir-se em nossa era, ser possvel concen-trar as energias intelectuais e os recursosinstrumentais do homem na soluo dosproblemas educacionais do presente quepossuem importncia especfica para a for-mao da personalidade, o equilbrio din-mico da ordem social e o desenvolvimentoda civilizao baseada na cincia e natecnologia cientfica. Desse ngulo, fcilperceber como a concepo cientfica domundo se est refletindo na maneira pelaqual se tira proveito construtivo da educa-o sistemtica. Esta deixou de ser conce-bida como fim em si mesmo, como regaliaou como valor supremo, para ser relacio-nada com as necessidades fundamentais davida e com os modos inteligentes desatisfaz-las, que parecem assegurar conti-nuidade ao progresso do nosso sistemacivilizatrio. Em ltima instncia, ela tende

    a converter-se, no clima moral produzidopelo pensamento cientfico, em um dos fa-tores racionais de controle dos elementosnaturais e artificiais do ambiente pelohomem.

    IV O dilema educacionalbrasileiro

    Poucos pases, no mundo moderno,possuem problemas educacionais to gravesquanto o Brasil. Como herana do antigosistema escravocrata e senhorial, recebemosuma situao dependente inaltervel na eco-nomia mundial, instituies polticas fun-dadas na dominao patrimonialista e con-cepes de liderana que convertiam a edu-cao sistemtica em smbolo social dos pri-vilgios e do poder dos membros das cama-das dominantes. O fardo era pesado demais,para ser conduzido, com responsabilidadee esprito pblico construtivo, num sistemarepublicano que se transformou, rapidamen-te, numa transao com o velho regime, doqual se tornou mero sucedneo poltico.Enquanto as condies internas se agrava-vam, pela atividade contnua e irrefreada dosmecanismos socioeconmicos que provo-cam, nos pases de estrutura econmica de-pendente, devastao com empobrecimentoeconmico-demogrfico de reas frteis eexpanso desordenada de centros circuns-tancialmente ativos de produo, novas exi-gncias histrico-sociais alargaram as fun-es da educao sistemtica, adaptando-aao funcionamento do sistema de classes so-ciais e do regime democrtico. No conjunto,os problemas educacionais, resolvidos deforma insatisfatria no passado ou nascidoscom a dinmica da prpria situaohistrico-social no presente, tiveram que serenfrentados com recursos deficientes e ob-soletos, alm disso mal aproveitados, emvirtude da mentalidade prtica predominan-te, que incentivava seja a busca de soluesimprovisadas, seja o abandono delas a umdestino quase sempre ingrato, devido s

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    influncias conservantistas de vrios crcu-los e instituies sociais. Em contraste fla-grante com essa realidade, alterou-se demodo revolucionrio a vinculao das fun-es da educao sistemtica com a organi-zao da sociedade brasileira. Graas for-mao e ao desenvolvimento do sistema declasses sociais e do regime democrtico, aeducao sistemtica passou a ocupar posi-o central entre os fatores que concorrem,estrutural e dinamicamente, para o equil-brio e o progresso da vida social. O concur-so de todas essas razes, de fundamentosnegativos ou positivos, sugere at que pontoo Brasil necessita, imperiosamente, de mo-dalidades prticas racionais de tratamentodos problemas educacionais. preciso re-correr a elas: tanto para resolver problemaseducacionais que se revelam demasiado com-plexos para as tcnicas tradicionais de ma-nipulao e de controle quanto para conse-guir condies mais favorveis utilizaoprodutiva dos recursos disponveis ou maiorcontinuidade e eficincia na poltica educa-cional. Da o interesse fundamental damencionada possibilidade de associar edu-cadores e cientistas sociais em projetos quecontribuam, definidamente, para a desco-berta de meios adequados, econmicos erpidos de interveno racional na estruturae no funcionamento do sistema educacionalbrasileiro. Ela envolve nus financeirosseveros, para um pas pobre e destitudo,inclusive, de uma rede escolar para atenders emergncias. Mas abre perspectivasencorajadoras, por permitir articular asoluo dos problemas educacionais ao co-nhecimento e ao controle efetivos dos fatoresresponsveis pelo estado de pauperismo, desubdesenvolvimento e de desequilbrioinstitucional da sociedade brasileira.

    Nesta parte do trabalho, pretendemosfocalizar duas questes especficas:

    1) em que consiste o dilema educacio-nal brasileiro;

    2) como os cientistas sociais de-vem encarar sua participao e

    responsabilidade nos projetos de re-construo do sistema educacionalbrasileiro.

    claro que outros temas e problemasmereceriam ser discutidos aqui, dado o ob-jeto da exposio. Limitamo-nos, entretan-to, s duas questes que parecem exigir exa-me imediato. Ser difcil a cooperao en-tre educadores e cientistas sociais, se osltimos no adiantarem seus pontos de vis-ta sobre a situao educacional brasileira eseus papis intelectuais nos planos de tra-tamento prtico dos problemas educacio-nais brasileiros. Neste terreno, imperio-so combater a noo de que o socilogo poderesolver os problemas educacionaisbrasileiros. Semelhante expectativa infun-dada e precisa ser removida, definitivamen-te, do horizonte intelectual dos educadores.Os problemas educacionais brasileiros spodero ser resolvidos atravs de mudanasocial organizada. Isso quer dizer que odestino prtico das contribuies dos soci-logos depende, diretamente, da maneirapela qual eles forem includos nesse pro-cesso social. Doutro lado, tambm indicaque o sucesso final de qualquer projeto deinterveno na realidade, por mais cient-fica e positiva que seja sua orientao,constitui uma funo das possibilidades demudana do meio social ambiente. Os es-pecialistas precisam dispor, alm dos co-nhecimentos sobre a situao e os alvos aserem atingidos, de condies de trabalhosocialmente ordenadas, suscetveis de re-gular, institucionalmente, sua participaona elaborao e na aplicao de planos decontrole racional. Da o interesse do Cen-tro Brasileiro de Pesquisas Educacionais:ele introduz o planejamento, como proces-so social, na esfera da educao sistemti-ca no Brasil e confere ao socilogo, dentrodele, papis sociais que lhe permitem cola-borar, regularmente, nas fases de elabora-o e de aplicao de planos de controleeducacional em que se imponha a utilizaode conhecimentos sociolgicos.

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    Os problemas educacionais brasileiros,vistos de uma perspectiva macrosso-ciolgica, apresentam-se, em grande parte,como produtos de nossa incapacidade deajustar as instituies educacionais s di-ferentes funes psicoculturais e so-cioeconmicas que elas devem preencher ede criar um sistema educacional suficien-temente diferenciado e plstico paracorresponder, ordenadamente, variedade,ao volume e ao rpido incremento das ne-cessidades escolares do Pas como um todo.Quanto ao primeiro aspecto: as instituieseducacionais brasileiras apenas satisfazem,de modo parcial, irregular e insuficiente,as necessidades escolares de setoressemiletrados e letrados, com caractersticasou com aspiraes urbanas, da sociedadebrasileira. Mesmo o ensino primrio, queabrange a rede mais extensa, permevel epenetrante de instituies escolares existen-tes no Brasil, mal atende aos requisitos fun-damentais da alfabetizao, no seio de umapopulao escolar constituda, predomi-nantemente, por imaturos extrados dos re-feridos crculos sociais. Ele , na forma ena substncia, indiferente aos recursos for-necidos pelo meio social ambiente educa-o sistemtica e totalmente alheio s ne-cessidades escolares que variam em escalalocal ou regional. Em conjunto, as escolasno so instituies organizadas para ser-vir s comunidades, em interao constru-tiva com seus centros de interesses e deatividades: elas visam, ao contrrio, desen-volver aptides e um estado de esprito qued, ao brasileiro letrado, a convico de queele no est margem da civilizao e doprogresso. Com isso, empobrecem-se asfunes potenciais da educao sistemti-ca, em dos os nveis do ensino, e a escolapassa a operar, indistintamente, como merofator de transmisso e de preservao daparcela de cultura herdada atravs docomplexo processo de colonizao. Assimse explica como e porque problemas edu-cacionais graves, cujas repercusses nega-tivas so visveis e notrias, no foram

    submetidos a nenhuma tentativa de ins-titucionalizao, embora seja essa uma esfe-ra na qual a ao voluntria e inteligenteencontra certo reconhecimento e aprovaosociais. As instituies escolares no se ajus-tam, nem estrutural nem funcionalmente, sexigncias especficas da poro da socie-dade total a que se destinam. Por isso, seurendimento efetivo s conta no plano parao qual elas esto organizadas, que o dainformao pura e simples, da escola pri-mria superior. Nas reas de expansodemogrfica da sociedade brasileira, as po-pulaes aborgenes, em processo deacaboclamento, e as populaes caboclas, emvias de proletarizao, no recebem nenhu-ma espcie de assistncia educacional apro-priada. Nas reas em regresso demogrfica,econmica e social, provocada pelo declnio,interrupo ou paralisao das atividadesprodutivas, as populaes locais no encon-tram, nas escolas, ensino apto a ampar-lasno processo de readaptao ao meio ambi-ente. Nas reas em que a produtividade as-segura crescimento demogrfico contnuo,expanso da agricultura e prosperidade dencleos urbanos regionais, as instituiesescolares no contribuem para facilitar oajustamento de segmentos flutuantes dapopulao, para educar o homem docampo nem para formar o homem dacidade. Nas reas em que as tenses tnicaspoderiam ser aliviadas ou removidas,mediante intervenes irradiadas partir daescola, esta permanece insensvel aos pro-blemas humanos que se desenrolam em seuprprio nicho. Nas reas em que a urbani-zao e a industrializao atingem certa in-tensidade, as vrias camadas da populao,incluindo-se entre elas os nativos e os ad-ventcios, no acham, nas escolas, a neces-sria preparao para o estilo urbano devida, com suas variadas exigncias na di-ferenciao do ensino especializado. Emsuma, as instituies escolares brasileirasesto organizadas para satisfazer as funesestticas universais da educao sistemticana civilizao letrada do Ocidente, mas sem

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    entros-las s flutuaes socioculturais davida humana na sociedade brasileira e emcompleto detrimento das potencialidades di-nmicas da prpria educao sistemtica.

    Isso situa, naturalmente, o segundoaspecto: como as instituies escolares brasi-leiras no se adaptam seno s funesestticas universais da educao sistemtica,elas se integram umas nas outras como seconstitussem um superorganismo autnomo. claro que semelhante condio no pre-judica nem a unidade estrutural nem acontinuidade funcional do sistema de ins-tituies escolares como um todo. Mas li-mita fundamentalmente a zona dentro daqual a educao sistemtica pode operarcomo fator social construtivo. A plas-ticidade na diferenciao representa um re-quisito essencial dos sistemas nacionais deeducao. Ao mesmo tempo que ajusta asinstituies escolares s flutuaes do meioambiente, natural e humano, ela restringe eunifica as tendncias de variao, contendo-as nos limites das presses externas e dasexigncias cruciais da situao histrico-social. Por paradoxal que parea, isso sig-nifica que o insucesso, nesse nvel, afetadiretamente a possibilidade de dar proemi-nncia eficiente aos mveis ultralocais esupra-regionais da educao sistemtica.Portanto, mesmo deixando de lado a ques-to de saber se as limitaes apontadas con-finam a seleo dos mveis nacionais dasinstituies escolares, concentrando-os emalvos ideais compatveis com as funesestticas universais da educao sistemti-ca, evidente que a falta de plasticidade nadiferenciao se associa a deficincias norendimento global do sistema educacionalcomo um todo. Deixando de satisfazernecessidades psicoculturais e socio-econmicas que variam regionalmente, osistema educacional brasileiro deixa depreencher funes socializadoras quecondicionam, inevitavelmente, o equilbrioe o ritmo de desenvolvimento da sociedadebrasileira. Um exemplo suficiente parademonstrar, empiricamente, essa concluso.

    A estabilidade e a evoluo do regime de-mocrtico esto exigindo a extenso das in-fluncias socializadoras da escola s cama-das populares e a transformao rpida doestilo imperante de trabalho didtico, pou-co propcio formao de personalidadesdemocrticas. Na medida em que restringea procura ou repele, de vrias maneiras, oscandidatos escolarizao, bem como pelainrcia que revela mudana interna, o sis-tema educacional brasileiro inclui-se entreos fatores adversos a esse desenvolvimen-to. Por conseguinte, em vez de acelerar a di-fuso e o fortalecimento dos ideais de vida,consagrados legalmente, ele interfere noprocesso como fator de demora cultural.

    Essa breve digresso mostra-nos em queconsiste o dilema educacional brasileiro.Como ocorre com outros pases subdesen-volvidos, ele de fundo institucional. Osistema educacional brasileiro abrange ins-tituies escolares que no se ajustam, nemqualitativa nem quantitativamente, a neces-sidades educacionais prementes, que socompartilhadas em escala nacional ou quevariam de uma regio para outra do Pas.Da ser urgente e vital alterar a estrutura, ofuncionamento e o modo de integrao des-sas instituies. O aspecto prtico dodilema revela-se neste plano: o reconheci-mento dos problemas educacionais de maiorgravidade e a realizao dos projetos dereforma educacional esbarram, inelutavel-mente, com diversos obstculos, do apego atcnicas obsoletas de interveno na reali-dade falta de recursos para financiarinclusive as medidas de emergncia. Emresumo, o referido dilema possui dois p-los, ambos negativos. Primeiro, instituiesdeficientes de ensino, que requeremalteraes complexas, onerosas e profundasem trs nveis distintos: a) como unidadesde trabalho didtico, em sua organizaointerna; b) como parte de um sistema comu-nitrio de instituies sociais, em suas co-nexes funcionais com as necessidadesestveis e variveis do meio social imediato;c) como parte de um sistema nacional de

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    vida, em suas conexes funcionais com osrequisitos dinmicos da continuidade daordem social inclusiva. Segundo, meios deinterveno insuficientes para fazer face,com expectativas definidas de sucesso, sexigncias prticas da situao nesses trsnveis. Todavia, no resta outra alternativaseno a de explorar as possibilidades decontrole, asseguradas pelos meios de inter-veno disponveis. A esse respeito, o Brasilest em posio anloga dos demais pasessubdesenvolvidos, a qual conduz ao maiscompleto e perfeito crculo vicioso que amente humana pode conceber. As condi-es de subdesenvolvimento geram proble-mas cuja gravidade aumenta em funo dasdificuldades materiais ou humanas emresolv-los, o que faz com que a intervenodeliberada, quando bem secedida, contri-bua muito pouco para alterar a situaoinicial. O esforo precisa ser repetido, po-rm, quantas vezes isso for indispensvel,para no se perder a pequena vantagem con-quistada. Pensamos que este esboo remataa caracterizao do que chamamos dilemaeducacional brasileiro. A relao entremeios e fins, no que concerne s perspecti-vas de controle dos problemas educacionaismais prementes, no prenuncia nenhumaespcie de xito seguro e rpido. Talcircunstncia indica, de ngulo inteiramentepositivo, que a transformao do sistemaeducacional de um povo em fator de de-senvolvimento depende, de modo direto,da intensidade, do volume e da direo dasesperanas coletivas depositadas na edu-cao sistemtica. No h dvida de que aeducao modela o homem. Mas este quedetermina, socialmente, a extenso das fun-es construtivas da educao em sua vida.

    neste plano que se deve colocar ediscutir a outra questo, relativa respon-sabilidade dos cientistas sociais nos proje-tos de tratamento prtico dos problemaseducacionais brasileiros. As atividades e ascontribuies dos psiclogos, dos etnlogose dos socilogos inserem-se, culturalmen-te, nesse processo social mais amplo, pelo

    qual os mencionados problemas so eleva-dos esfera de conscincia social. H, aqui,dois aspectos fundamentais a considerar.Primeiro, o significado desse processo;segundo, a sua funo.

    Quanto ao significado, parece bvio queele evidencia uma condio peculiar situ-ao histrico-cultural dos pases subdesen-volvidos: os cientistas sociais so chama-dos a tomar parte decisiva em atividades in-telectuais que concorreram para provocar,na Frana, na Inglaterra, na Alemanha ounos Estados Unidos, o clima espiritual quetornou possvel a prpria constituio e oflorescimento das cincias sociais. Nestasnaes atingiram-se importantes progressosna secularizao da cultura e na racionaliza-o dos modos de conceber e de explicar omundo antes do aparecimento das cinciassociais. Nos pases subdesenvolvidos, en-tretanto, a importao de certas tcnicas in-telectuais que favorece a ampliao do ho-rizonte cultural alm dos limites da concep-o pr-cientfica e pr-industrial do mun-do, independentemente do ritmo de desa-gregao da ordem social existente e dos seusreflexos nas formas de conscincia social.Isso faz com que os intelectuais, especial-mente os que possuem alguma formao ouinformao na rea da tecnologia ou do pen-samento cientficos, tenham de assumir obri-gaes especfcas como agentes de mudanacultural. O atrativo exercido pelas cinciassociais, nesses pases, explica-se, assim, peloque se espera delas, como fonte de alar-gamento do horizonte cultural e do refina-mento das formas de conscincia social.

    Quanto funo, duas so as conexesrelevantes. De um lado, o processo em ques-to relaciona-se com mecanismos que regu-lam a expanso dos estilos de pensamentoe de ao, inerentes civilizao tecnolgicae industrial. Esta conexo traduz a existn-cia de certas foras, na rbita dessa civiliza-o, que operam no sentido de diminuir adistncia cultural das vrias unidades naci-onais, nela integradas. De outro, ele concor-re, nos sistemas organizatrios de sociedades

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    pr-industriais ou em fase incipiente deindustrializao: a) para introjectar, no ho-rizonte cultural, alvos e modelos racionaisde ao; b) para fomentar, na conscinciasocial, o desejo de atingi-los.

    Esta conexo interessa-nos de perto,porque situa, claramente, como as influ