fernandes edésio; alfonsin betânia. revisitando o instituto da desapropriação

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9 Capitulo 1 Revisitando o instituto da desapropriação: uma agenda de temas para reflexão Edésio Fernandes Betânia Alfonsin Sumário: 1 Uma agenda de temas para reflexão - 2 Alternativas à desapropriação - 3 Aspectos principais da reflexão critica - 3.1 Um Cddigo da Desapropriação? - 3.2 Valor da indenização e preço - 3.3 Cálculo de valor: mercado ou imposto - 3.4 Cálculo de valor em áreas ambientais e áreas informais - 3.5 Desapropriação indireta por regulação urbanística? - 3.6 Formas de pagamento da indenização - 3.7 Legalidade do procedimento - 3.8 Mudança de finalidade e de uso - 3.9 Procedimento judicial - 3.10 Desapropriação administrativa - 3.11 Desapropriação, impacto ambiental e responsabilidade fiscal - 3.12 Desapropriação e corrupção - Conclusão Constituição Federal de .1988 Texto consolidado atá a Emenda Constitucional n' de 20 de dezembro de 2007 Art. 5' Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e

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Page 1: FERNANDES Edésio; ALFONSIN Betânia. Revisitando o Instituto Da Desapropriação

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I

Capitulo 1

Revisitando o instituto da desapropriação: uma agenda de temas para reflexão

Edésio Fernandes Betânia Alfonsin

Sumário: 1 Uma agenda de temas para reflexão - 2 Alternativas à desapropriação - 3 Aspectos principais da reflexão critica - 3.1 Um Cddigo da Desapropriação? - 3.2 Valor da indenização e preço - 3.3 Cálculo de valor: mercado ou imposto - 3.4 Cálculo de valor em áreas ambientais e áreas informais - 3.5 Desapropriação indireta por regulação urbanística? - 3.6 Formas de pagamento da indenização - 3.7 Legalidade do procedimento - 3.8 Mudança de finalidade e de uso - 3.9 Procedimento judicial - 3.10 Desapropriação administrativa - 3.11 Desapropriação, impacto ambiental e responsabilidade fiscal - 3.12 Desapropriação e corrupção - Conclusão

Constituição Federal de .1988Texto consolidado atá a Emenda Constitucional n'

de 20 de dezembro de 2007

Art. 5' Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:( . . . )

XXit - é garantido o direito de propriedade;XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

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22 Eddslo Femandes, Alfon.tin (Coord.)Revisitando o instituto da dtsaproptiaç:to I 2 3

170. A ordem económica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:(...)II - propriedade privada;

- função social da propriedade;

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.(...)§2e A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fuudamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.§51 As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.§4' É facultado ao poder público municipal, mediante lei especifica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:I - parcelamento ou edificação compulsórios;ii - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;111- desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, Iguais e sucessivas, assegurados o valor real da Indenização e os juros legais.

1 Uma agenda de temas para reflexão

A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade de 2001 conso-lidaram uma nova ordem jurídica no Brasil baseada no princípio da função socioambiental da propriedade e da, cidade. Trata-se de princípio constitucional , com profundas implicações e extensas ramificações que ainda não foram devidamente assimiladas pelos juristas e formuladores de políticas públicas, em que pesem os muitos avanços já promovidos pela impressionante leva de leis, políticas e programas urbanos e ambientais aprovados em todos os níveis governamentais nos últimos anos. Toda uma nova cultura jurídica foi instaurada em 1988, com o reconhecimentõ explícito do Direito Urbanístico como sendo o paradigma central de interpretação conceituai para a determinação da natureza, possibilidades e limites do controle jurídico dos processos de desenvolvimento, uso, ocupação, parcelamento e construção do solo

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Z

processos de uso, conservação e preservação de recursos naturais. Novas "regras do jogo" de desenvolvimento urbano foram claramente estabelecidas, para regular e dar suporte às novas relações que se têm estabelecido entre o Estado, proprietários e usuários de imóveis, e os setores privado, comunitário e voluntário. Essas são regras de direito público, cuja racionalidade intrínseca requer .2 adoção de critérios coerentes de interpretação, sobretudo nos casos de conflitos administrativos e judiciais.

É nesse contexto que um dos mais tradicionais institutos do Direto Civil e do Direito Administrativo, a desapropriação, precisa ser repensado com urgência no Brasil: para além de sua concepção tradicional como "forma de extinção da propriedade" ou mero "procedimento" e/ou "ato administrativo", a desapropriação tem um papel e urna relevãncia muito maiores, que ainda não foram devidamente compreendidos, enquanto instrumento de política urbana e enquanto processo sociopoiftico. Para que Isso possa acontecer, o instituto necessita ser revisitado de forma ampla e crítica, de uma perspectiva analítica de Direito Urbanístico, Essa é uma tarefa reflexiva ainda não enfrentada pela maioria dos operadores jurídicos e gestores de políticas urbanas, acarretando, assim, na reprodução sistemática de práticas administrativas obsoletas e de políticas públicas inaceitáveis no marco legal da nova ordem jurídico-urbanística vigente no país. Também as relações sociopolíticas de várias ordens que se estabelecem em torno da utilização da desapropriação — relações de poder — merecem uma maior consideração crítica, para que a utilização do instituto se dê de maneira eficiente, racional, justa e sustentável.

No Brasil, como internacionalmente, a desapropriação — eufemisticamente denominada em diversos contextos como "aquisição compulsória" ou "exercício do domínio eminente do poder público» — tem historicamente gerado tensões jurídicas e resistências políticas, tanto da parte dos proprietários afetados, como da parte dos juizes e tribunais envolvidos em processos de resolução de conflitos. A desapropriação é um Instituto jurídico essencialmente complexo: por um lado, significa a supressão da propriedade de um bem imóvel particular visando à sua incorporação ao patrimônio público mediante o pagamento de uma indenização ao proprietário; por outro lado, representa a plena consagração do instituto jurídico da propriedade individual, pois são justamente o reconhecimento e a garantia constitucional do direito de propriedade que acarretam o dever de indenizar pela desapropriação, como regra geral, mediante prévia e justa indenização em dinheiro.

Em que pese essa evidente reverência aos direitos do proprietário, ainda prevalece no imaginário social e inclusive no meio jurídico uma noção equivocada de que políticas públicas e mesmo atos de desapropriação implicariam na ruptura radical da ordem socloeconôrnica baseada no reconhecimento dos direitos individuais de propriedade imobiliária.

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24 EdEsto Pe rn;snde4, Betàrá All'onmn (Coard ) Reviskando o instituto de des2propáçá 1

Urna melhor organização formal do instituto que consolidasse em um único diploma legal suas virias categorias e que pudesse revogar as respectivas e defasadas leis que as regulam — um Código da Desapropriação ou Consolidação das Leis de Desapropriação — seria uma iniciativa importante e bem-vinda. Mais importante, porém, seria uma ampla redefinição conceituai do instituto, sua natureza e possibilidades. Essa é uma tarefa doutrinária que já está atrasada no país e para a qual este livro pretende contribuir, Insistindo na inadequação da leitura obsoleta do Direito Civil e mesmo da leitura reducionista do Direito Administrativo tradicional, já que a desapropriação é um instituto de direito público que se orienta, hodiernamente, por princípios muito mais amplos que a mera referência à supremacia do interesse público sobre o interesse particular — quais sejam, os princípios do Direito Urbanístico.

Este livro se propõe a revisitar criticamente esse importante instituto jurídico, organizando de maneira geral os principais temas da discussão doutrinária sobre a desapropriação de forma a contribuir para o avanço da investigação acadêmica sobre a matéria desapropriatória; para a renovação da jurisprudência especifica; e, sobretudo, para a inovação nas políticas públicas tradicionalmente demandantes de desapropriações. O livro se concentra na discussão das categorias de desapropriação aplicáveis às áreas urbanas, reconhecendo em um capítulo próprio as especificidades da questão agrária e das características específicas assumidas pela desapropriação para fins de reforma agrária no país a partir da Constituição Federal de 1988, embora os demais autores não desconheçam a relação íntima entre as políticas urbanas e as políticas agrárias em um país que ainda não conseguiu garantir efetividade ao princípio da função social da propriedade nem no campo e nem nas cidades.

2 Alternativas à desapropriaçãoAntes de se proceder a uma avaliação do instituto da desapropriação

per se, cabe ressaltar seu caráter cada vez mais excepcional — não apenas porque não existem recursos financeiros suficientes para que a desapropriação seja a base principal de políticas públicas em áreas urbanas, por causa da burocracia envolvida, ou porque o procedimento administrativo pode levar um tempo considerável, mas principalmente porque não é mais necessário que a.desapropriação seja um instrumento-

amplaniehte utilizadà para viabilizar políticas públicas que requerem a obtenção de solo ou a preservação de imóveis. No contexto atual do regime jurídico da função social da propriedade e da cidade instituído pela Constituição Federal de 1988, são inúmeras as possibilidades alternativas à disposição do poder público, em termos de instrumentos, procedimentos e mecanismos

Na realidade, seguindo uma tendência internacional, a necessidade de se recorrer à desapropriação para a promoção de políticas públicas em áreas urbanas — políticas urban(sticaS, habitacionais, de transporte e mobilidade, ambientais e/ou culturais — tem se tornado cada vez mais excepcional no contexto do regime jurídico orientado pelo princípio da função socioambiental da propriedade e da cidade que, como mencionado, no caso brasileiro foi instituído pela Constituição Federal de 1988 e amplamente consolidado pelo "Estatuto da Cidade", Lei Federal ng 10.257/2001.

São multas as alternativas à desapropriação existentes hoje, decorrentes da série de instrumentos jurídicos, mecanismos administrativos e processos sociopolíticos de gestão fundiária e urbana claramente reconhecidos pela nova ordem jurídico-urbanística brasileira * alternativas essas que permitem, como nunca antes, urna convivência mais adequada entre interesses individuais e interesses difusos, bem como um equilíbrio maior entre as possibilidades de aproveitamento econômico da propriedade —, sempre protegido seu núcleo

__essencial mínimo — pelos proprietários individuais e a afirmação de valores públicós, sociais, ambientais e culturais quanto à utilização e destinação dos bens imóveis.

De qualquer forma, em que pese o fato de que muitas administrações públicas evitam a desapropriação devido a seus altos custos financeiros; à

defasagem e ao autoritarismo da legislação básica que regula o procedimento desapropriatário, contemporânea da ditadura de Getúlio Vargas durante o Estado Novo e editada na vigência da Constituição outorgada de 1937; e aos obstáculos de todo tipo para a sua utilização, a desapropriação continuará certamente sendo um instrumento importante para a viabilização de políticas públicas em áreas urbanas.

Nesse contexto, a necessidade de compreensão crítica do instituto como um todo se torna cada vez mais imperativa. De modo geral, a doutrina adrninistrativista tem inovado muito pouco no exame critico do instituto; em especial, poucos foram os comentários doutrinários significativos-publicados até hoje a respeito da nova regulação oriunda da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade para a desapropriação-sanção para fins de reforma urbana. Ã-êt-ifse-ddutrinária,-corn rãrás e>feeçõe-S,--áin-da repete-irrefletidamente antigas lições, baseadas em uma hermenêutica construída no marco de um paradigma conceituai já superado pela nova ordem jurídico-urbanística. A compreensão da alteração qualitativa experimentada nos próprios fundamentos do instituto da desapropriação torna urgente que o mesmo seja repensado à luz dos princípios de política urbana instituídos pela Constituição Federal de 1988 e, • muito especialmente, à luz das diretrizes da política urbana preconizadas pelo Estatuto da Cidade.

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26 1 Edésio Fernandes, 6etánia idfonsin (Coord,) Revisitando oinstiorto da desapropriado

A ordem jurídico-urbanística em vigor claramente permite que interesses sociais de várias ordens co-existam com a noção da propriedade privada. Como regra geral, pode-se dizer que a desapropriação deve mesmo ser evitada, já que indeniza o proprietário em valores que, em nome de atender à regra constitucional de que a indenização deve ser "justa", muitas vezes terminam por implicar— na lição sempre instigante de Sonla Rabello de Castro — em enriquecimento sem Causa financiado pelo poder público e pela coletividade.'

Gerar recursos financeiros e fundiários significativos com o planejamento territorial e com os processos de gestão urbana — especialmente através da aplicação de políticas e técnicas. de distribuição das vantagens e benefícios da urbanização; da captura das chamadas mais-valias urbanísticas; da aplicação consistente do Imposto predial e territorial urbano, da contribuição de melhoria e da ampla gestão social da valorização imobiliária decorrente da ação do poder público; da atribuição de uma função social clara também aos bens públicos — é o desafio maior colocado aos formuladores de políticas públicas e aos gestores urbanos contemporâneos.

Nesse sentido, já existe na legislação ern vigor uma série de alterna-tivas à desapropriação, que podem ser utilizadas de maneira isolada ou conjuntamente:

negociações e/ou compra negociada; permutas; operações urbanas consorciadas que indiquem a dação em pagamento como forma de contrapartida dos beneficiários; operações urbanas consorciadas que incorporem transferências de direitos de construção que possam ser mobilizados para obtenção de bens necessários ao atendimento de finalidades públicas; consórcios imobiliários; bancos de terras; declaração de abandono de Imóveis; direito de preempção ou preferência, etc.

Dentre essas categorias, a discussão teórica necessita avançar muito mais no sentido de compreender e possibilitar a utilização do Instituto do abandono de imóveis de forma mais sistemática e em uma escala mais ampla — especialmente se considerado o número absurdo de imóveis vazios de propriedade particular existentes nas cidades brasileiras. O dispositivo do art. 1.276 do Código Civil é claro: o proprietário de imóvel urbano que não esteja na posse de outrem não pode abandoná-lo, sob pena de perdê-lo sem direito a qualquer indenização; nos

' CASTRO, Santa Rabello de. O conceito de fusta indenização nas expropriações imobiliárias urbanas: Justiça social ou enriquecimento sem causa?. Revista Forense, v. 388, p. 221-245, 2006. Reproduzido neste livro.

termos do §2v, presumir-se-á de modo absoluto o abandono quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais.

Esse elenco de instrumentos reduz-se apenas àqueles já disponíveis na legislação brasileira, já que o Direito Urbanístico espanhol, por exemplo, bem como o Direito Urbanístico colombiano, influenciado por aquele, trabalham ainda com outros princípios e instrumentos absolutamente eficientes e fundados em outros pressupostos que não a reverência pura e simples ao direito de propriedade que se manifesta no procedimento desapropriatório tradicional. Podemos citar como importantes contribuições a essa discussão institutos identificados no Direito Comparado como o reparto eqüitativo de cargas e benefícios (não apenas como princípio, mas enquanto técnica urbanística); e o reajuste de terras e/ou reparcelam,ento.

3 Aspectos principais da reflexão crítica

Com o objetivo de possibilitar uma revisão crítica do instituto da desapropriação, este livro se propõe a elencar as questões principais de uma ampla discussão doutrinária sobre tema. Todas essas questões são intimamente inter-relacionadas, mas que também têm suas especificidades, e que serão na sua maioria discutidas em maior profundidade nos capítulos seguintes, embora de forma alguma tenhamos a pretensão de esgotar os temas envolvidos na discussão sobre a desapropriação.

3.1 Um Código da Desapropriação?Um bom começo para a reavaliação do instituto da desapropriação seria sua

organização formal em um código ou consolidação própria: embora o Decreto-Lei d 3.365/1941 seja a legislação que regula, até hoje, a desapropriação por utilidade pública no país, sendo legislação subsidiária no que diz respeito ao procedimento para a legislação que regula a desapropriação por interesse social, Lei Federal n' 4.132/1962, na realidade são várias e distintas as categorias de desapropriação plenamente reconhecidas pela ordem jurídica em vigor, a saber:

desapropriação por necessidade e utilidade pública (Constituição Federal, Decreto-Lei n' 3.365/1941); desapropriação por interesse social (Constituição Federal, Lei Federal ri2 4.132/1962); desapropriação-sanção para fins de reforma urbana, aplicada quando do descumprimento da notificação para fins de edificação/parcelamento compulsório, e após a utilização do imposto predial progressivo (Constituição Federal de 1988, art. 89 da Lei Federal n' 10.257/2001);

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28 1 EcVso fttnandes, BeUnla Altonstn (Coord.) Revisicando o instituro d2 demptopriario I 29

e desapropriação para fins de reforma agrária (Constituição Federal, art. 184, e Lei Complementar n2 76/1993);oexpropriação de glebas com cultivo de culturas ilegais de plantas psicotrópicas (Constituição Federal, art. 243, e Lei Federal na 8.257/1991), consistente no único caso de confisco sem direito a indenização ao proprietário previsto na legislação brasileira, sendo que existem propostas semelhantes para terras nas quais se comprove a existência de trabalho escravo.

Além dessas categorias tradicionais, pode-se também incluir as seguintes categorias não plenamente legisladas, mas discutidas na doutrina e reconhecidas em alguma medida na jurisprudência:

desapropriação de bens públicos;

o a chamada "desapropriação por zona", na qual áreas maiores do que as estritamente necessárias para a execução de obras e projetos públicos são desapropriadas, antecipando-se a valorização imobiliária das áreas contíguas decorrente do investimento público, para posterior revenda dessas áreas valorizadas, e assim recuperar, parte do valor do investimento público;

o a chamada "desapropriação indireta", que seria decorrente do esvazia-mento total do núcleo essencial mínimo da propriedade em decorrência da regulação urbanística e/ou ambiental, ou ainda nos casos em que o poder público obrar sobre área privada sem ter observado, ex ante, o procedimento desapropriatório.

Além da evidente conveniência de se atualizar a legislação, aponta-se ainda para a necessidade de urna consolidação da legislação esparsa, tornando a aplicação, estudo e interpretação do instituto da desapropriação no país processos menos fragmentados. As evidentes diferenças e justificativas para a adoção de distintas categorias desapropriatórias significam não apenas a necessidade de compreender seus aspectos procedimentais formais distintos, mas, sobretudo, compreender que cada categoria insere-se no ordenamento jurídico preenchendo necessidades especificas e gerando efeitos jurídicos igualmente específicos, que não podem ser generalizados, ainda que fundados, todos, no mesmo princípio constitucional da função social da propriedade.

Apenas para, dar um exemplo, se a desapropriação de áreas, ocupadas por assentamentos informais consolidados se der no contexto de um projeto de regularização fundiária, fica evidente que a presença de famílias de baixa renda insere essa forma de desapropriação no regime jurídico de interesse social reconhecido pela lei especifica de desapropriação, justificando, assim, a transferência direta dos lotes aos ocupantes com dispensa de licitação, conforme já autoriza hoje a própria Lei Federal na 8.666/1993. Contudo, a referida dispensa licitatória não poderia ser argüida no caso de regularização de assentamentos informais ocupados por famílias de renda média e alta; nesses casos, em que pese ser questionável a utilização da desapropriação por utilidade pública, se

a mesma ocorrer visando à regularização das áreas, em princípio deverão os ocupantes submeter-se ao procedimento licitatário, mesmo que possam ter direitos de preferência.

3.2 Valor da indenização e preço

Talvez a questão mais importante na revisão do instituto *da desapropriação se refira à necessidade de compreensão de que há uma diferença fundamental entre preço justo e valor. Não há nessa discussão um rigor geométrico típico de um contrato de direito civil, mas deve-se aplicar o espírito de direito público na busca dejustiça e equidade (CASTRO, op. cit.).

Mudar a lógica do Direito Civil na discussão do preço justo não significa necessariamente que o proprietário vá receber valores inferiores aos de mercado: decisões judiciais significativas em diversos contextos e países — como a Colômbia — têm destacado que a indenização pode ter caráter compensatório, reparatório, ou restitutivo, sendo que cada caso deve ter suas especificidades consideradas.

Na lição precisa de Fábio Konder Comparato,

A propriedade ainda deve hoje ser reconhecida como direito fundamental, quando necessária à manutenção de uma vida individual ou familiar dignas. Fora dessa hipótese bem demarcada, estamos diante de um direito ordinário, que não goza das garantias fundamentais previstas na Constituição. Mas, em qualquer hipótese, o direito de propriedade não deve ser confundido com o poder de controle empresarial, que é um direito sobre pessoas, e não só sobre coisas,Perante um direito fundamental de propriedade, o juiz deve, na desapropriação, fixar uma indenização que corresponda à totalidade dos danos sofridos pelo expropriado; o que pode superar o valor venal do bem. No caso da propriedade ordinária, ao contrário, a indenização não deve exceder o valor correspondente à efetiva Importância da coisa no patrimônio do proprietário, o que pode equivaler a muito menos que o valor venal; pois o interesse público prevalece sempre sobre o interesse privado.'

Uma determinação crucial nesse contexto é a de quem determina o preço justo. Atualmente, a fixação desse preço em-cada caso é confiada ao prudente critério do juiz, devidamente assessorado por laudos técnicos de um perito por ele nomeado e por laudos técnicos elaborados por assistentes do perito nomeados pelo proprietário e pelo poder público. É o caso de se questionar, todavia, se a discussão doutrinária, jurisprudencial e mesmo as novas diretrizes

COMPARATO, Fábio Konder. A propriedade ou a vida. Folha de São Pauto, 07 maio 2008,

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1.

30 jEddsio Fernandes, Bednla Alfonlin (Coetd.)

da política urbana não poderiam informar algumas regras ou critérios gerais (dentro de cada categoria desapropriatória, evidentemente) que pudessem ser estabelecidos por lei para o cálculo do quantum indenizatório devido ao proprietário e que orientassem a ação de peritos e juízes.

3.3 Cálculo de valor: mercado ou imposto

Ainda no que diz respeito a essa discussão acerca do cálculo do preço justo da indenização, de imediato um problema tradicional diz respeito ao fato de que os valores dos imóveis utilizados pelas administrações municipais

para calculo do IPTU e ciütros tributos (cQrno o ITBI) tendem a ser mais baixos em relação aos

valores venais de mercado, g que os cadastros e plantas de valores municipais são geralmente desatualizados, quando não manipulados por razões políticas, pelas administrações municipais. Contudo, ainda que os proprietários não tenham problemas com o fato de pagarem impostos sobre valores mais baixos que os de mercado, e mesmo no caso de proprietários isentos de pagamento dos impostos por

qualquer razão, quando se trata de desapropriação de seus imóveis todos têm a expectativa — estranhamente reconhecida por decisões judiciais — de que o cálculo do preço justo da indenização seja feito com base em valores praticados pelo mercado imobiliário.

Outro aspecto dessa reflexão que também deve ser considerado é de que a indenização deve ser calculada com base no valor do imóvel no momento da declaração da intenção do poder público, excluindo assim quaisquer incrementos de valor posteriores à declaração da utilidade/necessidade pública ou de interesse social para fins de desapropriação. Hoje, a única legislação que faz o desconto das mais-valias incorporadas ao valor do imóvel é o Estatuto da Cidade, que, no artigo 8s, em seus parágrafos dispõe sobre o preço da indenização devida na desapropriação para fins de reforma urbana, descontando toda a valorização experimentada pelo bem após a notificação para fins de parcelamento ou edificação compulsória, anos antes. É.

assim imperativo que se definam com mais clareza os critérios para cálculo do preço, incluindo o cálculo de juros e interesses e os descontos que serão procedidos ern função dos investimentos públicos. Essa discussão evidentemente terá

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que ser feita de maneira mais ampla.

3Á Cálculo de valor em áreas ambientais e áreas informais

Ainda uma outra questão relacionada, e que necessita ser urgentemente enfrentada, diz respeito à necessidade de se estabelecer como dominante o entendimento de que em áreas de valor ambiental que sejam de propriedade privada, ou em áreas privadas ocupadas por assentamentos informais

RevÉ0ando o losticwo da desapropriação

I 31

consolidados, e que devam ser desapropriadas para implementação das políticas públicas ambientais ou de regularização fundiária, não há nem sequer que se falar de "valor de mercado", já que nesses casos não há mercado como tal.

Ainda que os direitos dos proprietários originais devam evidentemente ser respeitados — com exceção naturalmente das situações onde couber a possibilidade de declaração judicial de usucapião —, dadas as implicações jurí dicas dos gravames e dispositivos legais que reconhecem direitos de moradia e outros direitos sociais e ambientais, não se pode tratar situações de fato

como se se tratassem de áreas vazias e livremente inseridas no mercado imobiliário. Trata-se de uma falácia que beneficia apenas os proprietários, que, de não terem atendido ao dever constitucional de garantir a função social da propriedade, ainda serão generosamente premiados com uma indenização fixada em valores fictícios para seus terrenos.

É evidente que nesses casos os critérios a serem estabelecidos para cálculo da indenização não podem ser baseados em valores de mercado inexistentes no caso concreto e que somente poderiam ser aplicado em outras a situações não afetadas pelos gravames sociais e ambientais.

3.5 Desapropriação indireta por regulação urbanística?

A questão da "desapropriação indireta" por regulação urbanística e/ou ambiental merece uma discussão mais aprofundada, na qual a idéia de que as leis "retiram valor" deveria ser equilibrada com a noção de que essas leis — e com muito mais freqüência — também "acrescentam valor".

O argumento central articulado pelos defensores do direito de propriedade pela perspectiva civilista tradicional é o de que conteúdo econômico do direito de

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propriedade privada tem que ter plenamente assegurado, já que se trata de bem intrinsecamente comercializável, uma mercadoria à qual não se pode retirar esse conteúdo econômico. De outra parte, os que advogam a função social da propriedade pela perspectiva do Direito Público, contra-argumentam lembrando que sempre existiram "limitações" e "restrições" administrativas, que cabe às leis determinar o conteúdo concreto e a forma de exercício do direito de propriedade em cada região da cidade, e que, por serem genéricas e abstratas, essas determinações oriundas do zoneaniento ou das leis urbanísticas e ambientais não acarretam direito à indenização — novamente, desde que respeitado o núcleo essencial mínimo que assegure o conteúdo econômico da propriedade —, não cabendo nem ao proprietário privado e nem ao mercado imobiliário interferir nessa típica forma de intervenção regulatória do Estado sobre a propriedade privada. O paradigma do Direito Urbanístico permite argumentar ainda mais além, no sentido de que o direito de propriedade na verdade é um direito vazio, sem conteúdo econômico predeterminado: são exatamente as leis urbanísticas e ambientais que vão determinar esse valor. Mais

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32 I Wslo Femande3, BednLI Monsin (Coord.)

do que meras "limitações" ou "restrições" administrativas externas ao direito do particular, as leis urbanísticas e ambientais qualificam por dentro as formas de uso, gozo e disposição da propriedade imobiliária.

As contrapartidas exigidas dos promotores imobiliários — por exemplo, a reserva de um percentual de áreas para finalidades de interesse público e outras obrigações de fazer, como condição de licenciamento de projetos urbanísticos e ambientais — não significam nenhuma forma de "retirada de valor" cio bem. Nesse aspecto, o Direito Urbanístico espanhol e o da Colômbia estão bem mais adiantados do que o Brasil, entendendo inequivocamente que a urbanização tem que se dar promovendo um reparto eqüitativo de cargas e benefícios.

Da mesma forma, como segundo a própria ordem constitucional o direito de construção não é acessório automático do direito de propriedade, também as restrições à edificação não necessariamente implicam em esvaziamento do conteúdo econômico da propriedade para além do seu núcleo essencial, e, portanto, não podem, em princípio, gerar a obrigação de pagamento de indenização. Há que se adotar ern definitivo a noção de que não há direito

___adquiric.lo_ern matéria urbanística.Uma dimensão específica dessa discussão diz respeito à questão do

tombamento, que para muitos proprietários corresponderia a uma forma de "desapropriação indireta". Há entendimentos contemporâneos no sentido de que em alguns casos poderia caber alguma forma de compensação pelo dano causado pela intervenção do poder público, justificada no âmbito da noção da responsabilidade objetiva do Estado. Nesse sentido, em que pese o tombamento de bens imóveis per se não gerar direito à indenização por se tratar de uma restrição parcial ao direito de propriedade, já há inúmeros incentivos fiscais (como isenção de IPTU, por exemplo) e incentivos urbanísticos (Transferência do Direito de Construir, dentre outros), operados como formas de se compensar o proprietário atingido pela obrigação de conservar o patrimônio histórico, arquitetônico, paisagístico ou ambiental sobre o qual tem a propriedade. Essa construção doutrinária e jurisprudencial não pode ser simplesmente naturalizada, e é preciso que seja compreendida e reinterpretada nesse contexto.

3.6 Formas de pagamento da indenização

Ainda que a fórrhula trã'dici6nal de regülãção do instituto' determine o pagamento de indenização prévia e em dinheiro, o fato é que no caso da categoria da desapropriação-sanção para fins de reforma urbana já se aceita a possibilidade de pagamento em títulos da dívida pública com resgate em 10 anos. Também nos casos de desapropriação por Interesse social para fins de reforma agrária, a União pode fazê-lo mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até 20 anos, a partir do segundo ano de sua emissão.

Revisicanclo o insdaito da deftpropriacto I 33

Dadas as limitações financeiras das administrações públicas, uma utilização mais dinâmica e efetiva da desapropriação em suas outras categorias deveria poder considerar a possibilidade de pagamento da indenização através da participação — consensual, dada a atual ordem constitucional, ou compulsória,

no caso de urna mudança constitucional — dos proprietários originais nos projetos que são objetos das políticas públicas: por exemplo, o pagamento poderia ser feito com solo urbanizado, direitos fiduciários, direitos de construção, etc. A experiência do Município de Porto Alegre com a utilização do potencial construtivo como meio de indenização para aquisição de áreas necessárias à execução de uma obra viária de grande porte é um exemplo da possibilidade de inovação na gestão pública da indenização aos proprietários atingidos por obras ou projetos de interesse público. Nesse Município, a aquisição das áreas necessárias ao alargamento das ruas e avenidas integrantes da Terceira Perimetral foi feita através da permuta por índices construtivos.

Em termos pragmáticos, em muitas situações essas alternativas poderiam ser até mais proveitosas para os proprietários privados do que o pagamento -prévio em dinheiro.

3.7 Legalidade do procedimentoNa tradição brasileira, os únicos aspectos da desapropriação que de maneira

inconteste estão sujeitos à revisão judicial são a legalidade dos procedimentos formais e o valor da indenização. Trata-se de fórmula historicamente construída, que tem por objetivos, dentre outros, afirmar a supremacia do interesse público sobre o interesse privado e despolitizar o tratamento da questão, afastando toda e qualquer discussão relacionada ao mérito da desapropriação para outras ações judiciais.

Contudo, assim como tem acontecido em outros países, também no Brasil há elementos que permitem a argumentação de que seria importante permitir a discussão judicial e/ou extrájudicial acerca da conveniência, oportunidade e necessidade da desapropriação na própria ação desapropriatórikInclusive para que a intervenção do poder público possa ser analisada como uma totalidade, e possa ser observado pelo Poder judiciário se houve violação dos princípios const i tucionais que regem a adminis t ração públ ica . - - -

Tal controle judicial e extrajudicial do mérito da decisão administrativa do poder público poderia ser uma forma não apenas de minimizar a ocorrência de situações de abuso de poder, mas também, e principalmente, de se garantir uma maior eficácia econômica e racionalidade administrativa na utilização da desapropriação. Cabe discutir se a atual regulação da matéria, restringindo a discussão judicial ao quantum indenizatório, atenta contra o princípio da economia processual e sobretudo à própria .ordem democrática.

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34 2ddslo Pernandts, Beedrila Alfonsin (CoOrd,) Revisitando o instIndo d2 despproptbOo I 35

3.8 Mudança de finalidade e de usoNão se discute mais a questão da retrocessão — isto é, a possibilidade de

reversão do bem desapropriado ao patrimônio do particular se não for cumprida a função originalmente declarada para justificar a desapropriaçãO, desde que uma outra função pública tenha sido dada ao bem. O art. 519 do Código Civil Brasileiro reconhece o direito de preferência do expropriado "pelo preço atual da coisa", "se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos".

Contudo, há uma série de outras questões relacionadas que necessitam uma maior consideração crítica. A desapropriação se justifica tão-somente para o desempenho de função pública em sentido estrito, ou seria possível utilizar o instituto desde que exista um interesse público maior? Não se trata aqui da utilização da área desapropriada para outra finalidade pública, pois essa já legalmente afasta o direito à retrocessão. Por exemplo, e essa é uma questão que tem provocado fortes polêmicas em outros países, como os EUA, é possível promover a desapropriação de uma área para que o setor privado possa desenvolvê-la, se for do interesse público o desenvolvimento dessa área?

O artigo 17 da Lei Federal ri9 8.666/1993, recentemente modificada pela Lei Federal n411.481/2007, dispensou a licitação nos seguintes casos; alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente utilizados no ãmbito de programas habitacionais ou dé regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidades da Administração Pública. Contudo, em que pesem essas mudanças legislativas que dispensam a licitação em casos que claramente envolvem um interesse social, ainda há casos que mereceriam uma discussão a respeito da gestão dos bens dominlais do poder público. Por exemplo, quais devem ser as regras e as possibilidades de alienação de áreas remanescentes na desapropriação por zona, considerando-se alas mais-valias certamente geradas pelas obras, visando à geração de recursos para pagar parte da intervenção do poder público?

3.9 Procedimento judicialDados os longos procedimentos judiciais envolvidos, com freqüência os

processos judiciais para resolução de conflitos decorrentes da desapropriação ficam incompletos por muitos anos, geralmente gerando diversos tipos de problemas. No caso das companhias habitacionais que atuavam junto ao BNH, muitos dos conjuntos habitacionais construídos pelo poder público em áreas que

foram objeto de desapropriação encontram-se até hoje ilegais, já que, como os processos não chegaram a seu final, o registro da transferência da propriedade ainda não foi feito. As irregularidades decorrentes do título da gleba transferem-se às muitas unidades habitacionais e aos mutuários de maneira perversa, g que são de difícil.regularização.

Tendo essa preocupação, e considerando que se trata de "caminho sem volta", merece destaque a mudança introduzida no texto da Lei Federal ri." 6.766/1979 pela Lei Federal n." 9.785/1999, permitindo que a transferência da propriedade seja registrada com a mera imissão na posse pelo poder público, quando se tratar de parcelamento popular destinado às classes de menor renda, em imóvel com processo de desapropriação judicial em curso, e desde que promovido pela União, Estados, Distrito Federal, Municípios ou suas entidades delegadas, autorizadas por lei a implantar projetos de habitação. Trata-se de flexibilização que poderia e deveria ser estendida para muitas outras situações, beneficiando um grande número de famílias.

A questão de fundo, todavia, continua sendo a necessidade de o pro-cesso de reforma do Judiciário avançar ainda mais no sentido de simplificar, agilizar e baratear os processos judiciais em geral, e as ações de desapropriação em particular.

3.10 Desapropriação administrativa

Dadas as dificuldades anteriormente mencionadas, uma discussão relevante diz respeito à questão de como simplificar e agilizar os procedimentos de desapro-priação, inclusive pelo estabelecimento de mecanismos extrajudiciais eficientes de concertação, negociação e resolução de conflitos.

Também é necessário que sejam garantidas melhores condições de transpa-rência e publicidade, bem como de prestação regular de comas, monitoramento e acompanhamento dos procedimentos desapropriatórios, não apenas pelos órgãos de controle como os Tribunais de Contas, mas pelo conjunto da sociedade.

De especial importância seria a divulgação de informações detalhadas acerca das políticas públicas não apenas para os proprietários, mas também para os vizinhos diretamente afetados pela desapropriação.

Outro tema que poderia ser tratado nesse contexto da desapropriação administrativa diz respeito ao equacionamento das tensões porventura decor-rentes da desapropriação .de bens públicos, sobretudo quando os Municípios desapropriam bens dos Estados e/ou da União.

3.11 Desapropriação, impacto ambiental e responsabilidade fiscal

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Tradicionalmente considerada de maneira isolada, a utilização da desapro-priação como instrumento de política urbana não pode mais ser considerada fora

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36 I Edèsio Fernandes, Betinta Alfortsin (Coari.)

do contexto mais amplo da discussão sobre as condições de responsabilidade territorial e fiscal do poder público.

Muitas das decisões que levam à desapropriação requerem estudos prévios de impacto ambiental e de viabilidade financeira; tais decisões não podem ser meramente políticas, técnicas ou administrativas, sem urna preocupação clara com os impactos ambientais da intervenção do poder público e/ou com a definição do "pagamento da conta" — que, dada a tradição de falta de continuidade das políticas públicas em mudanças governamentais, com freqüência fica pendente para administradores futuros, assim comprometendo as possibilidades de ação da Administração Pública, mesmo com o maior rigor oriundo das regras da Lei Complementar n' 101/2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal.

No caso da desapropriação-sanção para fins de reforma urbana, há claras conseqüências para a desapropriação feita de forma irresponsável. Como o fundamento específico dessa forma de desapropriação de base constitucional é o não atendimento da função social da propriedade, o gestor público que faz a desapropriação com pagamento em títulos terã o prazô de cinco anos para dar adequado aproveitamento ao terreno, sob pena de ser enquadrado na Lei de Improbidade Administrativa, Lei Federal ri' 8.429/1992.

Nos casos em que o poder público alega urgência na utilização do bem a ser desapropriado e lança mão da possibilidade de imissão provisória na posse, depositando tão-somente o valor originalmente oferecido ao proprietário, ou ainda o valor cadastral do bem para fins de lançamento do imposto territorial ,

a proliferação de problemas envolvendo precatórios judiciais provenientes de ações de desapropriação e a discussão judicial acerca dos juros Incidentes sobre o saldo indenizatório claramente demonstram que, em muitos casos, a utilização da desapropriação não tem sido feita de forma fiscal e financeiramente responsável pelos administradores públicos, sendo que até mesmo medidas provisórias já alteraram o. Decreto-Lei n9 3.365/41 procurando amenizar as repercussões jurisprudenciais do tema.

3.12 Desapropriação e corrupçãoDe especial importância nesse contexto é a discussão acerca da necessi=

dade de se minimizar o escopo existente para práticas de corrupção em políticas públicas que envolvam procedimentos de desapropriação.

. Especialmente no contexto de políticas públicas ambiciosas como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com enormes volumes de recursos públicos sendo utilizados, na falta de critérios técnicos claros para utilização da desapropriação e de mecanismos efetivas de controle social, o escopo não apenas para ineficiência e desperdício, mas também para desvio de

Revistundo o instituto da desapropriae2o I 37

recursos financeiros e corrupção, se torna ainda maior. O exemplo já citado da criação de novos casos de improbidade administrativa trazidos pelo Estatuto da Cidade vem ao encontro dessa preocupação, em que pese o fato de que o mais importante é a introdução de mecanismos de controle social da Administração pública, especialmente em operações ou programas vultosos como é o PAC.

ConclusãoRever o instituto da desapropriação é certamente condição para o avanço

das políticas públicas nas áreas urbanas, mas também tem o efeito jurídico, em última instância, de garantir que o exercício do direito à propriedade privada seja exercido em consonância com o dever constitucional de atender á função social e ambiental da propriedade.

No nosso entendimento, a utilização da desapropriação deve ser reconsi-derada no contexto de uma cultura jurídica que também acabe com a tradição inconteste de outorga privativa e gratuita de valores imobiliários resultantes da ação do poder público, seja pela execução de obras e serviços, seja por mudanças de uso e ocupação do solo decorrentes da regulação urbanística.

O que está em jogo é uma outra concepção de direito de propriedade Imobiliária: na fórmula constitucional constante do artigo 59, inciso XXII, trata-se de um direito vazio, sem conteúdo econômico predeterminado, e cujas possibilidades de aproveitamento econômico resultam das leis urbanísticas e ambientais. Esse inciso garantidor do direito de propriedade não pode ser retirado do contexto constitucional em que se insere, colocando o direito difuso à função social da propriedade no mesmo patamar do direito individual à propriedade. Novamente, não se trata aqui de meras limitações administrativas externas ao direito: trata-se de reconhecer que as formas legalmente reconhecidas de uso, gozo e disposição da propriedade qualificam e disciplinam o exercício do direito de propriedade por dentro, tornando a função social um elemento estrutural ao próprio direito, um dever ina.fastável, um múnus público imposto ao detentor da riqueza, que é traduzido nas limitações administrativas e obrigações de fazer impostas aos proprietários.

Inforrnacáct blbitOgnfficn deste capitulo, conforme a 1,113R 6023:2002 da Associaçâo Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

FERNANDES, Edéslo; ALFONSIM, Betánla. RevIsItand0 o Instituto da doa-piopriaçao: urna agenda de ternas para rellexio. In: FERNANDES, &lesto; ALFONSIM, Betánia (Coord,). &visitando o instituto da desaproplação. Belo Horizonte: Fdeurn, 2009. p. 21.37. ISDN 978-83-7700-234-4.