fichamento gassner

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GASSNER, John

GASSNER, John. Mestres do teatro II. So Paulo: Perspectiva, 1996. 478p. Um seguidor de Ibsen, esse Aristfanes dos tempos modernos que ningum deixar de identificar como Bernard Shaw, igualou a estatura de seu mestre, e um escandinavo antagonista de Ibsen Strindberg era seu igual na genialidade ainda que no o fosse na execuo das obras. p. 37

Mais obscurecido ainda pelas sombras durante certo tempo esteve o nico escritor que atingiu cargas de intensidade maiores mesmo que as obtidas por Ibsen e que levou sua arte realista mais longe do que no importa quem nos pases nrdicos. August Strindberg, que nasceu na Sucia em 1849, vinte e um anos depois de Ibsen e dezessete anos depois de Bjrnson, precisou trabalhar duro para viver. No primeiro de seus diversos memorveis romances autobiogrficos, Strindberg chamou-se a si mesmo de o filho da criada, e tinha para isso muitas razes vlidas. Este Ismael tambm se registrou como escarnecedor e selvagem e, caso houvesse designado a si mesmo como um perspicaz e compassivo observador do homem e da sociedade, teria desenhado um auto-retrato completo. Em outra obra, a pea A Grande Estrada, acrescentou os toques finais pintura quando, em resposta indagao Dedicas amor humanidade?, sua personagem autobiogrfica retruca Sim, em demasia. Sua me era realmente uma criada, uma garonete num bar de Estocolmo. Seu pai, um homem de negcios que contraiu essa msalliance para grande desgosto da famlia, s casou com a moa alguns meses antes do nascimento de August depois que j haviam nascido duas outras crianas. Strindberg foi embalado pela pobreza, e a famlia, arrasada por numerosos nascimentos e mortes durante todo o tempo em que viveu a criada; em certa poca, nos trs cmodos da casa apinhavam-se dez pessoas. O lar e a escola causavam igual repugnncia ao sensvel adolescente que era martirizado por seus irmos mais velhos e sofria com qualquer espcie de disciplina. Tornou-se anormalmente sensvel, desconfiado e irritvel traos que foram exacerbados pela morte da me, quando ele contava treze anos, e pelo segundo casamento do pai, apenas um ano mais tarde. E Strindberg tambm no encontrou muito conforto ou alento quando, aos dezoito anos, entrou na Universidade de Upsala, apenas para sentir frio e dome numa gua-furtada. Incapaz de prosseguir seus estudos depois do primeiro semestre, viu-se forado a lecionar na mesma escola pblica em que sofrera quando criana. Fizesse o que fizesse, sempre parecia estar preso numa armadilha; e dada sua personalidade orgulhosa e emotiva, era inevitvel que se tornasse um selvagem, prximo da parania e avassalado pessimismo. p.42-43Do desespero que o assolava nasceu o desejo de expressar-se na literatura. Depois de tentar escrever poesia, comeou a compor peas curtas, uma das quais foi encenada pelo Teatro Real com sucesso moderado. Ento, outra obra romntica, O Fora-da-Lei, com a ao situada na antiga Islndia, conquistou-lhe um estipndio de Carlos XV da Sucia, o que lhe permitiu retornar Universidade. Mas em breve Strindberg brigou com os professores e negligenciou os estudos em favor das buscar literrias. Tendo mais uma vez cortado as amarras, estudou medicina, tornou-se ator e empenhou-se ns lides do jornalismo at que, julgando todos os seus esforos infrutferos, retirou-se para uma ilha e dedicou-se inteiramente escrita. Mas o fracasso de Mestre Olaf [sic], longo drama histrico em estilo romntico que Strindberg concluiu em seu isolamento, constituiu-se em desapontamento to agudo que quase o levou a abandonar novas tentativas de escrever. Tendo felizmente encontrado um emprego na Biblioteca Real, leu e refletiu, estudou filosofia, tentou dominar o chins e escreveu uma erudita monografia. Ento se apaixonou por uma mulher casada, a Baronesa Wrangel, que se divorciou do esposo por causa do escritor e, sob a influncia dela, este retornou literatura, obtendo seu primeiro sucesso com um romance. Este foi seguido por um livro de histria, O Povo Sueco, que em pouco tempo se tornou o livro mais popular na Sucia depois da Bblia; por uma srie de contos histricos e por um volume de ensaios que se voltavam do passado para o presente e malhavam com fora as condies sociais. Finalmente, depois de uma bem-sucedida reapresentao de Mestre Olaf [sic], retornou ao teatro com algumas peas romnticas e tambm com um conto de fadas satrico, A Viagem de Pedro, o Feliz. possvel detectar a influncia de Ibsen nesse Peer Gynt sueco, embora a obra esteja muito abaixo do poema dramtico noruegus. Com a A Viagem de Pedro, o Feliz, a despeito de sua amadorstica conversa fiada sobre elfos e fadas, Strindberg abriu a trilha da stira social na dramaturgia sueca. Usa engenhosamente a esttua falante de um prefeito e a stira poltica torna-se particularmente incisiva quando Pedro colocado no pelourinho depois de uma v tentativa de introduzir algumas reformas cvicas incuas. p.43-44Confiando em que poderia agora ganhar a vida escrevendo, demitiu-se da Biblioteca Real e retirou-se para a Sua. L escreveu uma impressionante srie de conto sobre o matrimnio moderno, intitulada Casados, ultrajando as respeitabilidades e levando seu editor barra do tribunal. Embora o livro tenha sido confiscado, o episdio s fez aumentar sua popularidade junto gerao mais jovem, particularmente quando se apressou em regressar terra natal e, tomando o lugar do editor no julgamento, ganhou a causa. Um segundo volume de Casados, editado em 1886, se constitua numa denncia ainda mais descompromissada do casamento, e com esta publicao Strindberg lanou o fundamento para sua principal contribuio ao teatro. A estavam todos os elementos familiares da dramaturgia strindberguiana: observao ultra-realista, descompostura psicolgica e um antifeminismo dirigido contra o culto que encontrara alento e conforto em Casa de Boneca. A apario do ltimo desses elementos em suas estrias mostrou-se particularmente importante, posto que, por razes que melhor deixar para a psicanlise, Strindberg comeara a temer as mulheres e a mostrar-se ressentido para com elas. O ponto fulcral de sua tese que entre o homem e a mulher h uma constante e desgastante luta pelo poder. Ademais, a emancipao das mulheres serve apenas para exacerbar o conflito, pois intensifica nelas a vontade de poder e na verdade as torna mais fortes do que o homem, pois so mais inescrupulosas. Assim como D. H. Lawrence, Strindberg sustentava que algum deve ser o amo no casamento, e havia muito menos probabilidades de que, pesados ambos os sexos, o homem viesse a abusar do poder. O que quer que se possa pensar sobre a descomedida suspeita de Strindberg em relao ao sexo oposto e sobre seu raivoso protesto contra o feminismo, no h como negar que ele se tornou um dramaturgo extraordinariamente analtico. Mas o teatro anglo-saxo o aceitou indiretamente atravs de ONeill; o Strindberg realista no est longe em obras como Antes do Caf, Todos os Filhos de Deus Tm Asas e Estranho Interldio, enquanto que as posteriores incurses simbolistas de Strindberg esto presentes em peas como O Grande Deus Brown. p.44Depois dessas obras sintomticas [Credores, O pai, Senhorita Jlia etc.], ningum poderia alegar surpresa quando, em 1891, o casamento Strindberg terminou num divrcio efetuado sob circunstncias altamente desagradveis. O repugnante caso deixou nele uma funda impresso; seis anos mais tarde escreveu um forte drama sobre divrcio em que a principal considerao com seus efeitos sobre os filhos. Em O Vnculo, duas pessoas ficam ligadas entre si pelo filho at mesmo enquanto uma aciona a outra com toda a animosidade costumeira em tais processos. Amor Materno, obra anterior mas decididamente poderosa, tambm perscruta a difcil situao dos filhos, com o detalhe adicional e desfavorvel da frustrao de uma jovem por causa de sua me divorciada e prostituda. Em 1893, Strindberg casou-se com uma escritora austraca e se tornou pai. Mas esse segundo casamento tambm terminou depois de alguns anos, pois o ensombreado estado mental do dramaturgo no era propcio felicidade conjugal. Strindberg comeou a empenhar-se em fantsticas experincias qumicas, tornou-se um mstico swedenborguiano e passou a sentir curiosas reaes psquicas que s poderiam levar a uma concluso. Ele julgou oportuno internar-se num sanatrio particular e a conveniente precauo resultou numa recuperao rpida. Contudo, o choque sofrido por seus nervos no podia ser inteiramente apagado. Seu ataque mental abrira portas que normalmente permanecem fechadas ao ser humano comum. A partir de ento passou a ver a experincia como sendo composta por contnuas repeties e considerava a personalidade humana como algo que se divide misteriosamente. Ao psiquiatra, esse novo modo de Strindberg olhar as coisas, oferece os curiosos fenmenos do dj vu, da despersonalizao e da esquizofrenia. Concomitantemente o carter de sua obra sofreu uma acentuada transformao. Seus trabalhos se tornaram mais bondosos e mais compassivos, talvez porque o misticismo religioso temperasse a ira que o dominava: Tornamo-nos mais e mais humildes, escreveu, e sombra da morte muitas coisas parecem diferentes. Mas suas peas tambm se tornaram marcadamente subjetivas e esquivas. p.47-48A outra metade da mentalidade de Strindberg movimentava-se num mundo subjetivo. Consumiu-se em dramatizaes sobre contos de fadas de pouca importncia (embora A Coroa Nupcial seja uma encantadora estria popular) e fervilhou em singulares peas simblicas que so da maior importncia. Estas obras no so meramente simblicas e sugestivas maneira dos ltimos trabalhos de Ibsen, mas produtos dissociados, esquizofrnicos, combinando o mais escrupuloso realismo de pormenor com as mais evanescentes tramas e personagens.

Somente o mais temerrio adepto do teatro experimental tentaria colocar peas como O Caminho e Damasco, O Sonho, A Grande Estrada e A Sonata dos Espectros em teatros no-especializados. Quando a crise mental obrigou-o a internar-se no sanatrio, Strindberg deixou de tornar-se um mestre capaz de estabelecer comunicao completa com o espectador. Contudo, ningum pode apor um finis a esse veredicto sem importantes ressalvas. A verdade que essas obras simblicas, que esto plenas de piedade pelo atormentado gnero humano, exercem um curioso fascnio. Oferecem uma experincia surraliste que perturba a alma e abre nela algumas janelas, sem que para isso se comunique inteiramente como crebro. Tomadas em conjunto, as peas tambm podem ser lidas com interesse como captulos de uma autobiografia nica em seu gnero. Ademais, no teatro, fazem de Strindberg o precursor da manifestao teatral expressionista, que ampliou os horizontes dramatrgicos sem que, com isso, tenha exatamente juncado o palco de obras-primas. Mas at mesmo essas obras tm mritos intrnsecos, pois nasceram de uma inteligncia intensa e perscrutadora e de uma infinita sensibilidade em relao dor de existir. Suas peas expressionistas possuem inmeras simbolizaes incisivas tanto do mundo externo quanto interno do homem atual. Em O sonho encontramos detalhes provocadores como o advogado cujas mos esto demasiado negras para que voltem algum dia a ser limpas e os amantes que param na Praia Ptrida enquanto se acham a caminho da Orla Celestial sugerido o conflito de classes quando os carvoeiros afirmam estar no inferno enquanto que os ricos, no cassino, afirmam presunosamente estar no paraso. Nessa obra estranhamente perturbadora, todos os esforos do homem so considerados vos. A vida terrena um pesadelo visto que resultante de uma queda. O princpio feminino triunfou quando a idia pura (do budismo e do misticismo swedenborguiano) decaiu e foi unida matria procriativa. Os seres humanos nascidos desse casamento desejam ser libertados de sua carne, e somente seu sofrimento pode purific-los. Todos os caminhos levam a Damasco (nas trs partes dO Caminho de Damasco) se o viajante sincero; e todas as personagens fragmentam-se multiplicam-se e desaparecem no fluxo infinito que a vida. A vida est repleta das ervas daninhas da corrupo nA Sonata dos Espectros. O inferno para o qual Cristo desceu foi o inferno deste mundo, e apenas f e pacincia podem pr um fim ao trgico ciclo de iluso, culpa e sofrimento. Antecipando tanto a explorao subcutnea da psicanlise quanto os pesadelos dos expressionistas da dcada de 1920/30, que viam a humanidade moderna em todo seu horror enlouquecido pela guerra, Strindberg pertencia, em esprito, ao sculo XX to dolorosamente parido. Comparado a ele, Ibsen essencialmente um otimista e um ingnuo filho do sculo XIX que depositava uma f to infinita no progresso evolucionista. p. 48-50Depois de um terceiro e igualmente curto casamento, celebrado em 1901 com uma jovem atriz que atuara em seu drama simblico Pscoa, e depois de uma contnua produo de obras que no podem ser analisadas sem assombro mesclado de irritao. Strindberg encontrou finalmente a nica tranqilidade que era possvel para ele. Morreu aos 14 de maio de 1912, deixando atrs de si um grupo de peas que jamais poder obter grande popularidade pelo mundo afora, mais que, ao mesmo tempo, lhe do direito a um lugar entre os lderes da dramaturgia moderna.

Tal como Ibsen e outros mestres da nova escola, devotou toda uma vida de estudo a problemas de ajustamento, e seus temas correlatos de injustia no lar e na sociedade foram propiciadores tanto de experincia dramtica quanto de esclarecimento. Foi um mestre quer do naturalismo quer do simbolismo, e um precursor do expressionismo do teatro do ps-guerra. Pois poderia ser dito que o sol jamais se pe na influncia que exerce; esta se estende do Japo Amrica. Faltava a Strindberg apenas um atributo que especfico dos maiores entre os dramaturgos: tinha falta de equilbrio e racionalismo consistente. No entanto preciso reconhecer que sem as chanfraduras deletrias em sua constituio, provavelmente ele no teria conseguido perscrutar as horrendas profundidades. Se Ibsen foi o viking do teatro, Strindberg foi seu mergulhador de guas profundas. p.50