flavia nunes carvalho06

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FLÁVIA NUNES DE CARVALHO A entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional à luz da Constituição Federal e das alterações advindas da Emenda Constitucional nº 45 de 2004 Monografia apresentada à Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios- FESMPDFT como exigência parcial para obtenção do grau de pós-graduado em Direito Público sob a orientação do Professor Paulo Gustavo Gonet Branco. Brasília 2009

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Page 1: Flavia Nunes Carvalho06

FLÁVIA NUNES DE CARVALHO

A entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional à luz da Constituição Federal e

das alterações advindas da Emenda Constitucional nº 45 de 2004

Monografia apresentada à Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios- FESMPDFT como exigência parcial para obtenção do grau de pós-graduado em Direito Público sob a orientação do Professor Paulo Gustavo Gonet Branco.

Brasília

2009

Page 2: Flavia Nunes Carvalho06

2

Dedico o presente trabalho a Deus, alicerce da minha vida. Aos meus pais, irmã e sobrinhos, por me darem o que há de melhor na vida: amor!

Page 3: Flavia Nunes Carvalho06

3

Agradeço ao meu orientador Paulo Gustavo Gonet Branco, pelo exemplo, solicitude e carinho com o qual desempenha o magistério. Ao professor Paulo Afonso Cavichioli Carmona, pelo incentivo e valiosos ensinamentos. À promotora Hiza Maria Silva Carpina Lima pela amizade e apoio na realização deste trabalho. Aos meus colegas de turma, pelos inúmeros sonhos e anseios compartilhados durante o período de convivência acadêmica. Aos servidores da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, pela disponibilidade em atender bem os alunos.

Page 4: Flavia Nunes Carvalho06

4

“Se a justiça pudesse perecer, não teria sentido e nenhum valor que os homens vivessem sobre a Terra.”

Immanuel Kant

Page 5: Flavia Nunes Carvalho06

5

RESUMO

CARVALHO, Flávia Nunes de. A entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional à luz da Constituição Federal e das alterações advindas com a Emenda Constitucional nº 45 de 2004. Fl. 74. Trabalho de conclusão de curso de Pós-Graduação – Direito Público, Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios - FESMPDFT, Brasília, 2009. Pesquisa a entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional à luz da Constituição Federal e das alterações advindas com a Emenda Constitucional nº45 de 2004. A impossibilidade de extradição de brasileiros imposta como cláusula pétrea na Carta Magna. Principais características e diferenças entre os institutos da extradição e da entrega. Análise do artigo 5º, LI da Constituição, bem como dos artigos 89 e 102 do Estatuto de Roma. Aspectos hermenêuticos a serem considerados na recepção do Tribunal Penal Internacional pela Lex Superior, fundamentando-se nos princípios da dignidade humana e da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais. Análise dos reflexos da Emenda constitucional 45/2004 no que diz respeito ao Tribunal Penal Internacional e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Precedentes históricos e a contribuição dos Tribunais Temporários – Tribunal de Nuremberg, Tribunal de Tóquio, Tribunal Penal Internacional para antiga Iugoslávia e Tribunal Penal Internacional para Ruanda – para a criação de uma Corte de caráter permanente, que veio consagrar a internacionalização da justiça penal individual. Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional, Estatuto de Roma, entrega de nacionais, extradição, constitucionalidade, Emenda Constitucional 45/2004.

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6

LISTA DE SIGLAS

ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

CDI – Comissão de Direito Internacional

EC – Emenda Constitucional

ONU – Organização das Nações Unidas

STF – Supremo Tribunal Federal

RE – Recurso Extraordinário

TMI – Tribunal Militar Internacional

TPI – Tribunal Penal Internacional

TPII – Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia

TPIR – Tribunal Penal Internacional para Ruanda

Page 7: Flavia Nunes Carvalho06

7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 9

Capítulo 1 ................................................................................................................... 12

A criação do Tribunal Penal Internacional e seus principais aspectos .................. 12

1.1Antecedentes ................................................................................................................12

1.1.1 Tribunal de Nuremberg ...................................................................................................... 15

1.1.2 Tribunal de Tóquio............................................................................................................. 19

1.1.3 Tribunais ad hoc para ex-Iuguslávia e Ruanda .................................................................. 22

1.2 Estatuto de Roma – características do Tribunal Penal Internacional ...................25

1.2.1 Aspectos institucionais ....................................................................................................... 27

1.2.2 Jurisdição do Tribunal Penal Internacional ........................................................................ 28

1.3 Ratificação do Estatuto de Roma pelo Brasil ...........................................................32

Capítulo 2 ................................................................................................................... 35

Extradição e entrega.................................................................................................. 35

2.1 Extradição ...................................................................................................................36

2.1.1 Princípios e Formas de extradição ..................................................................................... 39

2.1.2 Extradição no ordenamento jurídico brasileiro .................................................................. 40

2.1.3 Princípio da igualdade de soberania – cooperação horizontal ............................................ 42

2.2 Entrega ........................................................................................................................44

2.2.1 Entrega no contexto do Estatuto de Roma ......................................................................... 45

2.2.2 Princípio da complementaridade – cooperação vertical ..................................................... 46

Capítulo 3 ................................................................................................................... 50

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8

A entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional à luz da Constituição

Federal e das alterações advindas da Emenda Constitucional nº 45 de 2004 ...................... 50

3.1 Princípio da prevalência dos Direitos Humanos nas relações internacionais .......52

3.2 Princípio da dignidade da pessoa humana ...............................................................54

3.3 Hermenêutica constitucional ante a questão da entrega de nacionais ...................56

3.3 Os reflexos da Emenda Constitucional 45/2004 no que diz respeito ao Tribunal

Penal Internacional e na jurisprudência correlata do Supremo Tribunal Federal ...................62

CONCLUSÃO ............................................................................................................ 68

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 72

Page 9: Flavia Nunes Carvalho06

9

INTRODUÇÃO

O Tribunal Penal Internacional (TPI) foi criado ante a necessidade de uma

corte internacional permanente, independente e competente para julgar os crimes de

maior seriedade de interesse internacional1.

Dessa forma, foi aprovado em 17 de julho de 1998, na denominada

conferência “United Nations Diplomatic conference of Plenipotentiaries on the

Establishiment of an International Criminal Court”, o Estatuto de Roma do Tribunal

Penal Internacional, o qual teve sua atuação jurisdicional iniciada em 1 de julho de

2002.

O Brasil tornou-se membro originário do TPI ao ratificar em 20 de junho de

2002 o Estatuto de Roma, promulgado pelo decreto nº 4.388, de 25 de setembro de

2002. Obrigando-se, assim, segundo a prática consuetudinária que rege o Direito

Internacional, a cooperar e cumprir as normas previstas neste.

Impende aventar, que no ordenamento pátrio, a Constituição é tida como a

Lex Superior e, portanto “erige-se como parâmetro de validez das demais normas

jurídicas do sistema”2. Neste prisma, com a ratificação do Estatuto de Roma, pelo

Brasil, surgiram algumas questões acerca da constitucionalidade de alguns de seus

artigos, dentre elas o tema da presente monografia, qual seja, a entrega de

nacionais ao Tribunal Penal Internacional à luz da Constituição Federal das

alterações advindas com a Emenda Constitucional 45 de 2004.

O cerne da questão encontra-se no fato de o Estatuto de Roma prevê em

seu artigo 89 a entrega de pessoa que cometa qualquer um dos crimes de

_____________

1GUSKOW, Miguel. O Tribunal Penal Internacional e os problemas futuros a enfrentar em relação à soberania nacional. Tribunal Penal internacional: universalização da cidadania. Câmara dos Deputados, Brasília: Centro de documentação e informação, coordenação de publicação, 2000, p. 11. 2 SANTOS, Fernando Ferreira. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Celso Bastos Editor: instituto brasileiro de Direito constitucional, 1999, p. 13.

Page 10: Flavia Nunes Carvalho06

10

competência do TPI3, sem estabelecer qualquer exceção aos nacionais; ao passo

que a Constituição Federal tem como uma de suas Cláusulas Pétreas a proibição da

extradição de nacionais. Assim, gerou-se uma polêmica acerca da

constitucionalidade de tal entrega, ou melhor, se esta seria uma espécie de

extradição.

Justifica-se a escolha do tema, uma vez que não se tem definida a postura a

ser adotada pelo Brasil, ante a um caso prático de pedido de entrega de um nacional

brasileiro ao TPI, mais precisamente, se a Constituição admite a entrega. Ainda

neste sentido, nas entrelinhas, encontra-se uma matéria bem mais ampla a ser

estudada que é a relação da soberania brasileira e as relações internacionais

quando o que se encontra em voga é um bem maior e de interesse mundial, que são

os direitos humanos.

Neste contexto, um estudo aprofundado é de suma importância,

notadamente pelo fato de ainda ser escassa a literatura acerca do tema.

A problematização do tema, portanto, fixa-se em dois pontos: a) a entrega

prevista no artigo 89 do Estatuto de Roma pode ser considerada uma espécie de

extradição? b) a entrega de um nacional ao Tribunal Penal Internacional é, ou não,

uma afronta a Constituição Federal de 1988?

O objetivo maior da presente pesquisa, como já mencionado, é averiguar a

constitucionalidade da entrega de nacionais ao TPI, para tanto, faz-se necessário

em um primeiro momento buscar o contexto histórico em que o TPI foi criado, bem

como entender suas características; em seguida há de se comparar os institutos da

entrega e da extradição, para enfim analisar aspectos constitucionais e hermenêutas

de tal entrega.

Destarte, para alcançar todos os objetivos acima propostos o presente

trabalho está estruturado da seguinte forma:

_____________

3 Segundo o artigo 5º o Estatuto o Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes: a) O crime de genocídio; b) Crimes contra a humanidade; c) crimes de guerra; d) O crime de agressão.

Page 11: Flavia Nunes Carvalho06

11

No primeiro capítulo tratar-se-á dos Tribunais que antecederam a criação do

TPI, o seu surgimento, as suas características, aspectos institucionais e sua

jurisdição, bem como a ratificação do Estatuto de Roma, pelo Brasil.

No segundo capítulo, será traçado um paralelo entre o instituto da extradição

e da entrega no intuito de que seja estudado com profundidade cada um com suas

peculiaridades e os seus princípios.

No terceiro e último capítulo, tendo por fundamento os anteriores, o leitor

poderá embasado no enfoque deste, qual seja: princípios da prevalência dos direitos

humanos nas relações internacionais, da dignidade humana, alguns aspectos

hermenêuticos constitucionais e análise dos reflexos da Emenda Constitucional

45/2004, concluir se a entrega de nacionais é uma afronta à Constituição Federal de

1988.

No que diz respeito à metodologia de abordagem será utilizado,

principalmente, o método dedutivo, o qual parte do geral, versando noção de

interpretação jurídica, tratando os métodos ou técnicas principais, como processos

de raciocínio, para se chegar ao específico. Sem, contudo, descartar o uso da

metodologia jurídica lógica, do razoável e dos métodos teleológico e evolutivo.

Salienta-se, ainda, que a técnica a ser empregada na coleta de dados é a pesquisa

bibliográfica, a qual terá como fonte os textos legais, doutrina e publicações.

Considerando o número de obras citadas, optou-se pela remissão completa

nas notas de rodapé e a utilização do sistema numérico de chamada. No texto, foi

utilizada a fonte Arial, no tamanho 12 (doze), reservando-se a letra em itálico às

palavras de língua estrangeira e ao destaque dos títulos das obras citadas.

Page 12: Flavia Nunes Carvalho06

12

Capítulo 1

A CRIAÇÃO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E SEUS PRINCIPAIS ASPECTOS

A idéia da criação de um Tribunal Penal Internacional nos termos adotados

no Estatuto de Roma é fruto de um longo processo, que foi catalisado com as

atrocidades decorrentes, em especial, da I e II Guerra Mundial.

Assim, o mundo almejava paz e decidiu não mais fechar os olhos às

agressões, genocídios ou qualquer tipo de violação aos direitos humanos. Dessa

forma, conclamou-se a necessidade da internacionalização da justiça penal

individual.

1.1Antecedentes

Remonta-se de 1474 a primeira notícia de um tribunal penal internacional, o

qual foi instituído em Breisach, Alemanha, para julgar Peter Von Hagenbach, por

haver permitido que suas tropas saqueassem, estuprassem e matassem civis,

durante um momento que não havia hostilidades4

_____________

4 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 37.

Page 13: Flavia Nunes Carvalho06

13

Embora tal fato seja freqüentemente abordado como precedente histórico do

atual Tribunal Penal Internacional, segundo Carlos Eduardo Adriano Japiassú, tal

julgamento “não influenciou na criação de Tribunal permanente”.5

Verifica-se, portanto, que foi em 1872 a primeira vez que aventou-se a

necessidade da criação de uma jurisdição internacional penal permanente, cujo o

objetivo seria processar e julgar os responsáveis pelas violações da Convenção de

Genebra de 1864, que se deu com as atrocidades cometidas na guerra Franco-

Prussiana de 18706. No entanto, tal idéia não prosperou.

Após a I Guerra Mundial, mais especificamente em 1919, foi criada uma

comissão de investigação para julgamento de criminosos em conflitos

internacionais7, a fim de investigar os excessos cometidos durante a guerra, no

massacre de 600.000 armênios praticado pelo Império Turco-Otamano. Neste

sentido, ao recomendar o julgamento dos militares turcos, a comissão utilizou a

noção de crime contra a humanidade o que fez com que os Estados Unidos

alegassem que tais crimes não existiam no cenário internacional.8

Dessarte, o Tratado de Sèvres que serviria de base ao Tribunal, pois previa

em seu artigo 230 o julgamento dos responsáveis pelo massacre supramencionado,

“não foi ratificado pela Turquia, sendo substituído em 1927 pelo Tratado de

Lausanne, que concedeu anistia geral aos oficiais turcos".9

Não obstante, em 28 de junho de 1919 o Tratado de Versalhes previu a

criação de um tribunal criminal internacional para processar o Kaiser Guilherme II e

_____________

5 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 38. 6 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 38. 7 MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 46. 8 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 39.

9 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2ª Ed., São Paulo : Max Limonad, 2003, p. 149/150.

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14

oficiais militares que haviam violado leis de guerra. Neste tribunal, os 21.000

acusados foram reduzidos a 895. Destes, o Procurador Geral Alemão reduziu para

45, sendo julgados efetivamente 21, e apenas 13 condenados a pena máxima de

três anos10, cabendo salientar que o Kaiser não foi condenado, prevalecendo-se,

assim, a política em detrimento à justiça.

Apesar da idéia da criação de uma corte penal internacional ter surgido no

século XIX e evoluído, na medida do possível, ao longo do tempo, foram às

agressões e atrocidades cometidas pela Alemanha e Japão durante a II Guerra

Mundial que instigaram os aliados a “constituírem dois tribunais penais

internacionais: em Nurmberg e em Tóquio”.11

Ao fim da guerra, mais precisamente em 1947 a ONU criou a Comissão de

Direito Internacional (CDI), com o intuito de elaborar um código contendo o que seria

considerado delitos contra a paz e a segurança da humanidade, bem como criar

uma corte internacional permanente com competência de julgar indivíduos, uma vez

que a Corte Internacional de Justiça limitava-se à resolução de conflitos e

conseqüente punição de Estados. Dessa forma, a CDI apresentou em 1951 um

anteprojeto, e outro revisado em 1953, no entanto, o mundo encontrava-se em meio

a guerra fria, o que fez com que os trabalhos fossem procrastinados por 35 anos,

sendo reabertos somente em 198912 com a queda do muro de Berlim, por iniciativa

de Trinidad e Tobago.

Cabe ressaltar, que esta reabertura foi impulsionada pelo violento conflito

étnico ocorrido na ex-Iugoslávia, o que levou o conselho de segurança da ONU a

criar o Tribunal Penal Internacional para ex-Iugoslávia. Da mesma forma, o conselho

_____________

10 ARAUJO JR., João Marcello. Tribunal penal internacional permanente, instrumento de garantia dos direitos humanos fundamentais (processo legislativo histórico e características). Parecer apresentado ao Instituto dos Advogados Brasileiros, indicação nº 036/98,1999,p. 38. 11 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2ª Ed., São Paulo : Max Limonad, 2003, p. 150. 12 MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 51/52.

Page 15: Flavia Nunes Carvalho06

15

interveio criando uma segunda Corte de Justiça, o Tribunal Penal Internacional para

Ruanda, devido a um genocídio sem precedentes lá ocorrido.

É inegável que os Tribunal de Nuremberg, Tribunal de Tóquio, Tribunal ad

hoc para ex-Iugoslávia e Tribunal ad hoc para Ruanda representaram um avanço em

favor do desenvolvimento da paz e do respeito ao direito internacional, no entanto,

suas competências estavam circunscritas ao julgamento de determinados crimes,

cometidos em um certo território e dentro de um lapso temporal definido, assim,

careciam de princípios fundamentais do direito.

Neste mesmo sentido encontra-se o posicionamento de Juan Antônio

Martabit Scaff (in verbis):

“(...) Los tribunales de Nuremberg y Tokio, estabelecidos al término de la segunda guerra mundial para juzgar a los responsables de crimines de guerra, si bien constituyen precedentes de una ”justicia internacional”, sufren el stigma de ser la manifestación de la ley del vencedor sobre el vencido. Asimismo, los tribunales de naturaleza ad-hoc creados por el consejo de seguridad para juzgar los crimines de la Ex Yugoslavia y Ruanda, sin perjuicio de las circunstâncias que justificaron su instauración, carecen de las condiciones de legitimidad, representatividad y amplio consenso con que deberia ser consagrado un tribunal con tales atribuiciones (...) 13

1.1.1 Tribunal de Nuremberg

Considerado “o mais célebre dos tribunais penais ocorridos até hoje, o

Tribunal de Nuremberg julgou alguns dos homens mais importantes da Alemanha,

_____________

13 SCAFF, Juan Antônio Martabit. Tribunal Penal internacional: universalização da cidadania. Câmara dos Deputados, Brasília: Centro de documentação e informação, coordenação de publicação, 2000, p 31/32.

Page 16: Flavia Nunes Carvalho06

16

considerados responsáveis pelo desencadeamento de toda a sorte de atrocidade

cometidas sob a égide do nazismo.”14

O contexto histórico do final da Primeira Guerra, na qual a Alemanha foi

derrotada e teve que solicitar armistícios, sendo gravosamente atingida com as

severas cláusulas do Tratado de Versalhes, corroboraram para surgimento de um

sentimento de ódio, concomitantemente, ao de um nacionalismo exacerbado, que foi

o palco perfeito para o ascensão ao poder de uma figura como Adolf Hitler com

ideais nazistas, nitidamente evidenciados na questão judaica que “teve três

soluções: inicialmente, a expulsão; após a deportação para campos de

concentração; e, ao final, o extermínio”15de milhares de judeus.

Neste ínterim, os aliados denunciaram inúmeras vezes tais atrocidades

cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, cabendo salientar a Declaração de

Saint James, de 13 de janeiro de 1942, e a Declaração de Moscou, de 30 de outubro

de 1943, a qual, por seu turno, fixou o modelo de julgamento a ser seguido para os

que tivessem praticado violações16.

No entanto, somente com o fim da Guerra, mais precisamente em 8 de agosto

de 1945, na Conferência de Londres, os países vencedores – Estados Unidos,

Reino Unido, União Soviética e França – firmaram o Acordo no qual delineavam a

Carta do Tribunal Militar Internacional (TMI) – também conhecido como Tribunal de

Nuremberg – prevendo no seu texto as regras de processo e julgamento dos

criminosos ligados ao regime nazista, que cometessem crimes contra a paz , crimes

de guerra e crimes contra a humanidade17.

_____________

14 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 43. 15 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 44. 16 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 48.

17 MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 48.

Page 17: Flavia Nunes Carvalho06

17

O Tribunal de Nuremberg, em sua composição contava com um

representante e respectivo suplente de cada um dos países supracitados. Geoffrey

Lawrence (escolhido como presidente do Tribunal) e Normann Birkett (suplente)

eram os representantes do Reino Unido; Francis Biddle e John Parker (suplente)

foram indicados pelos Estados Unidos; Henri Donnedieude Vabres e Robert Falco

(suplente) pela França; e o Major-General Iona T. Nikitchenko e o Tenente-Coronel

Alexander F. Volchkov pela União Soviética.

Não obstante, as quatro nações também cuidaram da composição do

Ministério Público, nomeando assim, cada uma o seu represente na qualidade de

Procurador-Chefe da seguinte forma: Robert H. Jackson, pelos Estados Unidos;

François de Menthon, pela França; General R. A. Rudenko , pela União Soviética; e

Sir Hartley Shawcross, pela Grã-Bretanha.18

Por oportuno, ressalta-se que a defesa foi representada por advogados

alemães indicados pelos aliados.

Por base em sua organização, difícil seria entender a conotação que é

conferida ao Tribunal de Nuremberg de Tribunal “Militar”, haja vista que a maioria

dos juizes eram civis considerados juristas notáveis. No entanto, esta foi a forma que

os Estados Unidos encontraram para contornar o “princípio da anterioridade da lei

previsto no Direito Penal comum interno e inexistente em seu Direito Penal Militar”19.

A cidade de Nuremberg foi escolhida como sede porque lá foram

promulgadas as leis de perseguição racial, bem como foi local que houve a maior

concentração do partido nazista.

_____________

18 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nurembreg: dos precedentes à confirmação de seus princípios. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 139. 19 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 50.

Page 18: Flavia Nunes Carvalho06

18

No que concerne ao julgamento, o estatuto do Tribunal de Nuremberg previa

tanto o julgamento de indivíduos, como de organizações. Neste sentido, foram

denunciados vinte e quatro líderes nazistas e seis organizações: o Governo do

Reich, o corpo dos chefes políticos do Partido Nacional Socialista Alemão (NSDAP);

grupos de segurança do Partido Nacional Socialista (SS); grupos de segurança (SD);

a polícia secreta (GESTAPO); seções de assalto do Partido Nacional Socialista (AS);

o Estado-Maior das forças armadas.20

Neste viés, em 20 de novembro de 1945 iniciou-se o julgamento o qual era

feito em inglês, francês, alemão, russo e na língua do acusado, caso não fosse

nenhuma das línguas oficiais. As decisões advinham sempre da maioria, e em caso

de empate o voto do presidente do Tribunal era o decisivo.

Ao final do julgamento, em 01 de outubro de 1946, chegou-se aos seguintes

números: dos 24 indiciados, dois não chegaram a ser julgados, pois um, Robert Ley,

cometeu suicídio e o outro, Gustav Krupp, sofreu um acidente circulatório e perdeu a

razão. No entanto, dos 22 que foram efetivamente processados, 03 foram

absolvidos, 03 condenados à prisão perpétua, 04 condenados de 10 à 20 anos e os

12 restantes, condenados à pena de morte. Estes, tiveram suas penas executadas

por enforcamento em 16 de outubro de 1946 na própria prisão de Nuremberg.

De fato, o Tribunal de Nuremberg representou um avanço, no Direito

Internacional Penal, pois além de dar uma resposta ao mundo que viu atemorizado o

massacre de milhares de judeus, trouxe uma importante contribuição teórica ao

definir crime contra humanidade e reconhecer os crimes de guerra e agressão.

Embora, não se possa negar a fragilidade sob a qual se ergueu a estrutura

do TMI, pois além de ter sido um tribunal de vencedores sobre vencidos, prejudicou

princípios importantes tal como o da irretroatividade da lei penal; também não se

_____________

20 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nurembreg: dos precedentes à confirmação de seus princípios. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 143.

Page 19: Flavia Nunes Carvalho06

19

pode negar o seu mérito, de levar a julgamento ao invés de somente punir, em um

mero exercício de vingança.

A contribuição do Tribunal de Nuremberg para o direito penal internacional

sintetiza-se bem com os ensinamentos de S Herbst, in verbis:

“(...) una evolución que abrió nuevos cauces al Derecho Penal Internacional y la convivencia entre los pueblos, pues esa era la primera vez que la comunidad internacional hizo el intento de llevar ante los Tribunales a criminales de guerra y responsables de crímines contra los Derechos humanos, y así juzgar a los acusados en un proceso justo, es decir, hacerles acreedores de la protección y la dureza de la justicia, sin abandonarlos en manos de la arbitrariedad de los vencedores, pero tampoco dejarlos impunes, sino exigirles responsabilidad por sus hechos ilícitos.21

1.1.2 Tribunal de Tóquio

Na Conferência do Cairo, em 1º de dezembro de 1943, suscitou-se, pela

primeira vez, a idéia da criação de um Tribunal Militar para o Extremo Oriente. Tal

intuito foi reiterado em Potsdam, julho de 1945; ganhando força em 2 de setembro

do mesmo ano, com o ato de rendição japonesa, o qual definia “como se daria a

prisão e o tratamento imposto aos criminosos de guerra” 22.

Neste ínterim, as Nações Unidas também recomendaram a criação do

referido Tribunal, tendo a Conferência de Moscou decidido que o esse seria em

Tóquio.

_____________

21 HERSBT, S. Los derechos humanos ante las cortes: los juicios de Nuremberg y su significado actual. Revista Memoria, Nuremberg,n.8,p.12-20,1996 apud MAIA, Marriele. In: Op cit, p. 48. 22 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 61.

Page 20: Flavia Nunes Carvalho06

20

Assim, em 19 de janeiro de 1946, baseado no ato de rendição dos japoneses,

foi instituído o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente – também

conhecido com Tribunal de Tóquio – com a finalidade de julgar as agressões

japonesas cometidas durante a Guerra.

No que diz respeito à composição, o Tribunal era formado por onze juízes,

representantes da Austrália, do Canadá, da China, dos Estados Unidos, das

Filipinas, da França, do Reino Unido, dos países Baixos, da Nova Zelândia, da

URSS e da Índia.23 Assim, verifica-se que o Tribunal de Tóquio possuía uma

estrutura mais diversificada do que o Tribunal de Nuremberg, aproximando-se mais

da regra da imparcialidade.24

No entanto, semelhantemente ao TMI, foi também um tribunal de vencedores

julgando vencidos e os procedimentos adotados foram marcados por irregularidades

e abusos, dado ao critério político utilizado na escolha dos acusados.

A carta do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente possuía 17

artigos de natureza similar aos 30 artigos da carta do TMI. Competiu ao Tribunal de

Tóquio julgar os crimes contra paz; crimes de guerra e crimes contra Humanidade.

As atividades do Tribunal tiveram início em 29 de abril de 1946, terminando

em 12 de novembro de 1948, neste período dos 80 prisioneiros, apenas 28 foram

acusados, sendo que três não chegaram a ser julgados pois dois, Yosuke Matsuoka

e Osami Nagano, morreram de morte natural no decorrer do processo, e o terceiro,

Sumei Okawa, foi hospitalizado e libertado em 1948.

Ocorre que, diferentemente do TMI, somente foram levadas a julgamento no

Tribunal de Tóquio pessoas físicas, salientando-se ainda, que nenhum dos

acusados julgados foi absolvido, embora as decisões não tenham sido sempre

_____________

23 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 61. 24 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2ª Ed., São Paulo : Max Limonad, 2003, p. 151.

Page 21: Flavia Nunes Carvalho06

21

unânimes; e os que foram condenados à pena de morte tiveram suas sentenças

executadas na prisão de Sugamo, Tóquio, em 23 de dezembro de 1946.

As questões políticas no Tribunal Militar para o Extremo Oriente

sobressaíram, mais uma vez, em detrimento da justiça. Fato que comprova-se com o

não julgamento do imperador Hirohito, que ao que tudo indica estava diretamente

relacionado com os crimes cometidos durante a Guerra, sobremaneira com o ataque

de Pearl Harbor. 25

Outra crítica que se faz ao Tribunal é o fato de mais uma vez somente os

vencidos terem sido julgados, ao passo que os responsáveis aos ataques cruéis de

Hiroshima e Nagasaki ficaram impunes.

Evidencia-se, ainda, a influência norte-americana, no que tange ao fato de

terem libertado inúmeros criminosos de guerra sem qualquer processo. “Os Estados

Unidos financiavam o Tribunal, dessa forma, haviam imposto a rendição aos

japoneses à derrota e o seu Comandante Supremo podia escolher os juízes e

igualmente reduzir as penas, somente não podia aumentá-las.”26

Adstrito ao todo elucidado, verifica-se que tanto o Tribunal de Tóquio, quanto

o Tribunal de Nuremberg violaram o princípio da reserva legal. Por outro lado,

significaram um passo significativo na história do Direito ao trazer à tona a questão

da responsabilidade penal internacional individual.

_____________

25 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 67. 26 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 67.

Page 22: Flavia Nunes Carvalho06

22

1.1.3 Tribunais ad hoc para ex-Iuguslávia e Ruanda

Desde a idade antiga há conflitos na região dos Balcãs, no entanto, a idéia

denominada de “limpeza étnica” surgiu com vigor em 1941 com a invasão dos

nazistas alemães à Iugoslávia que uniram-se aos croatas para deportarem e

executarem os sérvios.27

Em 1944 o Marechal Josep Braz Tito, com apoio da União Soviética e do

Reino Unido, expulsam os alemães, instaurando-se o regime comunista que, nas

quatro décadas seguintes, conseguiu manter uma harmonia no território. Entretanto,

com a morte do Marechal, em 1980, ressurgem os conflitos que se agravaram ainda

mais devido à crise econômica em 1987.

O cenário da época aliava a derrocada do regime comunista no Leste

Europeu, com antigos ódios raciais que fizeram eclodir uma série de conflitos onde

as atrocidades cometidas chocaram o mundo.

Desse modo, em 17 de novembro de foi constituído o Tribunal Penal

Internacional para ex-Iugoslávia (TPII), o qual possuía poderes para julgar graves

violações à Convenção de Genebra, violações de leis e costumes de guerra,

genocídio e crimes contra a humanidade, que tenham sido cometidos no território da

ex-Iugoslávia, a partir de 1991.28

O Tribunal para ex-Iugoslávia é composto por dezesseis juízes permanentes

e no máximo nove ad litem, provenientes de diversos países, distribuídos em três

câmaras de julgamento e uma câmara de apelação, a qual representou um avanço

considerável em relação aos tribunais de Nuremberg e Tóquio, onde o acusado não

tinha direito a recorrer de sua sentença.

_____________

27 MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 48. 28 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 97.

Page 23: Flavia Nunes Carvalho06

23

As investigações ficam a cargo da promotoria, no entanto, o indiciamento

precisa ser confirmado pelo juiz. Mister se faz a presença do acusado para que haja

o julgamento, não sendo permitido julgamento in absentia, sendo que a maior pena

a ser imposta é a de prisão perpétua.

Dessa forma, constata-se que o procedimento adotado pelo TPII sofre

influência de características de vários sistemas judiciais, especialmente o da

commom law e da civil law.29

Quanto ao andamento do tribunal, observa-se que mais de sessenta

pessoas foram condenadas e, atualmente, mais de quarenta estão em diferentes

fases do processo perante o Tribunal.30

Não obstante a criação e efetivo funcionamento do Tribunal, recentemente

reapareceu em Kosovo mais um conflito decorrente de uma questão étnica, pois os

sérvios reagiram belicosamente ao intuito dos albaneses se tornarem

independentes, ação esta que resultou em milhares de albaneses refugiados. Assim

demonstra-se que longe está de haver uma situação de paz na região dos Balcãs.

O leste africano, mais especificamente, Ruanda, também viveu momentos

de tensão e terror devido a fatores étnicos.

O processo de colonização da África havia colocado em um mesmo território

etnias historicamente rivais, como é o caso dos tutsi e hutus. Nos anos 60 com o

processo de independência da maioria dos países africanos, por conseguinte o

processo de descolonização, juntamente com as dificuldades econômicas

desencadearam conflitos como o de Ruanda. 31

_____________

29 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 99. 30INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR THE FORMER YUGOSLAVIA. About the ICTY. Disponível em: <http://www.icty.org/sections/AbouttheICTY>. Acesso em: 07 nov. 2009. 31 MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 10/11.

Page 24: Flavia Nunes Carvalho06

24

A ditadura hutu estabelecida neste país, fizeram inúmeros refugiados tutsi.

Em contrapartida, com o processo de redemocratização em 1990, adveio a

competição pelo poder. A situação foi agravada em 1994, com a morte dos

presidentes de Ruanda, Juvenal Habyarimana e do Burundi, Cyprien Ntaryamira, os

quais ao voltarem de uma conferência de paz tiveram o avião abatido, por razões até

hoje desconhecidas.

Assim, Ruanda se viu envolta em uma enorme guerra entre as etnias, onde

os direitos humanos sucumbiram em face às atrocidades cometidas.

Diante de tal barbárie o Conselho de Segurança criou, por meio da

resolução 955 de 08 de novembro de 1994, o Tribunal Penal Internacional para

Ruanda (TPIR), com sede em Arusha, capital da Tanzânia, o qual possui

competência para processar e julgar os crimes de genocídio, crimes contra a

humanidade, violações da convenção de Genebra e de seu protocolo Adicional II,

cometidos entre 1º de janeiro e 31 de dezembro de 1994, que tenham sido

cometidos por cidadãos ruandenses no território de Ruanda e de seus vizinhos,

assim como de cidadãos estrangeiros, por crimes cometidos naquele país.32

Em sua composição e procedimento o Tribunal para Ruanda muito se

assemelha ao Tribunal para ex-Iugoslávia, uma vez que foram criados nos mesmos

moldes, ao ponto de dividirem a segunda instância.

Os dados atuais do tribunal traçam a seguinte realidade: 3 casos aguardam

julgamento, vinte seis estão em andamento, trinta e uma condenações, seis

absolvições, seis absolvições e dez estão aguardam resultado de recurso.33

A contribuição dos Tribunais ad hoc para Antiga Iugoslávia e para Ruanda

ao Direito Penal Internacional, está, principalmente, no fato de demonstrar a

_____________

32INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA. About the Tribunal. General Information. Disponível em: <http://69.94.11.53/default.htm>. Acesso em: 7 nov. 2009. 33INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA. About the Tribunal. Status of Cases. Disponível em: <http://69.94.11.53/default.htm>. Acesso em: 7 nov. 2009.

Page 25: Flavia Nunes Carvalho06

25

possibilidade de uma justiça internacional que não seja imposta pelos vencedores

aos vencidos, bem como no fato da responsabilização do indivíduo que pratica crime

contra os direitos humanos.34

No entanto, a natureza temporária e a competência limitada daqueles

Tribunais, ratificaram a necessidade da criação de uma corte penal internacional

permanente com capacidade de atuação em qualquer circunstância e tempo dentro

de sua jurisdição.

1.2 Estatuto de Roma – características do Tribunal Penal Internacional

Mediante o contexto histórico supracitado e, impulsionada pela criação dos

tribunais ad hoc, em “25 de novembro de 1992, a Assembléia Geral, pela resolução

47/33, recomendou à Comissão de Direito Internacional que elaborasse um Projeto

de Estatuto de um Tribunal Penal Internacional”35 permanente.

Em 1993, as resoluções 47/33 e 48/31, solicitaram a apresentação do

projeto do Estatuto. Já em 1994, a Assembléia Geral, por meio da resolução 49/53,

resolveu-se estabelecer um Comitê Especial em que todos os países da ONU

poderiam discutir acerca do projeto que havia sido elaborado pela Comissão.

O ano de 1995, por seu turno, foi marcado por algumas controvérsias dentro

do Comitê, assim, os países começaram a constituir blocos de interesses. Em

dezembro do mesmo ano, com a conclusão do mandato do Comitê em questão, a

_____________

34 MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 123. 35 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 108.

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26

Assembléia Geral convocou um Comitê Preparatório para o estabelecimento do

TPI.36

O Comitê Preparatório, em 1996, reuniu-se por duas vezes para discutir

sobre jurisdição, princípios gerais do direito internacional, direito dos acusados e

definição de crimes. Em dezembro, a Assembléia Geral decidiu que a Conferência

dos plenipotenciários para a criação do Tribunal Penal Internacional seria em 1998,

ano da comemoração dos 50 anos da Convenção de prevenção e Punição para os

crimes de Genocídio e da declaração Universal dos Direitos Humanos.

Dessa forma, o Tribunal Penal Internacional foi criado em 17 de julho de

1998, tendo 120 países votado a seu favor, 21 abstenções e sete votos contra

(Estados Unidos, China, Filipinas, Índia, Israel, Sri Lanka, e Turquia).37

Os avanços que o Direito Penal Internacional sofreram ao longo do tempo,

encontra-se consolidados no Estatuto de Roma, o qual a fim de garantir o perfeito

andamento do TPI, encontra-se estruturado em um preâmbulo e 128 artigos

dispostos em 13 capítulos, são eles: Criação do Tribunal; Competência,

Admissibilidade e Direito Aplicável; Princípios gerais do Direito Penal; Composição e

Administração do Tribunal; Inquérito e procedimento criminal; O Julgamento; As

Penas; Recurso e Revisão; Cooperação Internacional e Auxílio Judiciário; Execução

da Pena; Assembléia dos Estados Partes; Financiamento e Cláusulas Finais.

Dentre as características do TPI, as principais encontram-se elucidadas em

seu próprio preâmbulo, o qual define que o Tribunal tem caráter permanente,

independente e vinculado ao sistema das Nações Unidas, com jurisdição sobre os

crimes mais graves que preocupam a comunidade internacional em seu conjunto.

_____________

36 MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 57. 37 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 113.

Page 27: Flavia Nunes Carvalho06

27

Enfatiza-se, ainda, o caráter de jurisdição complementar do TPI, o qual

somente deverá agir nos casos em que as Cortes nacionais não forem capazes de

exercer sua jurisdição, ou se mostrarem desinteressadas ou precárias em fazê-lo.

1.2.1 Aspectos institucionais

O Tribunal Penal Internacional está localizado em Haia, na Holanda e, é

composto por dezoito juízes permanentes os quais são eleitos em votação secreta

pela Assembléia dos Estados Partes, atualmente, os juízes que compõem o TPI são

dos seguintes países: Coréia, Mali, Alemanha, Costa Rica, Gana, Finlândia, Letônia,

Reino Unido, Bulgária, Uganda, França, Quênia, Botsuana, Bélgica, Itália, Bolívia e

Brasil. 38

Segundo o artigo 34 do Estatuto o Tribunal dividi-se no seguintes órgãos:39

Presidência – a qual é representada por um presidente (Sang-Hyun Song da

Coréia), primeiro (Fatoumata Dembele Diarra de Mali) e segundo vice-presidente

(Hans-Peter Kaul da Alemanha), os quais são eleitos pela maioria absoluta dos

juízes e terão como atribuição a administração de todos os demais órgãos, exceto a

acusação.

Seções – divididas em uma Seção de Apelações; uma Seção de Primeira

Instância e uma Seção de Questões Preliminares.

Promotoria – que funciona de forma independente, como órgão autônomo do

Tribunal. É dirigida por um Procurador-Geral, que é eleito por votação secreta da

_____________

38INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. Structure of the Court. Disponível em: <http://www.icc-cpi.int/Menus/ICC/Structure+of+the+Court/>. Acesso em 07 nov. 2009. 39INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. Structure of the Court. Chambers. Disponível em: <http://www.icc-cpi.int/Menus/ICC/Structure+of+the+Court/Chambers/>. Acesso em 07 nov. 2009.

Page 28: Flavia Nunes Carvalho06

28

maioria absoluta dos membros da Assembléia supramencionada, com plenos

poderes de administração, inclusive no que diz respeito ao quadro funcional,

instalações e outros recursos.40

Secretaria – é um órgão administrativo o qual seu titular, que deverá ser

eleito pelos luízes em seção plenária, se encarregará dos aspectos não judiciais da

administração.

No que concerne às línguas oficiais do TPI, o artigo 50 estabelece a árabe,

chinesa, espanhola, francesa, inglesa e russa, ressalvando-se que outros idiomas

oficiais poderão ser utilizado para efeito de regras de procedimento e prova.

Outro aspecto salutar é o financeiro, nesse sentido, o artigo 114 do Estatuto

afirma que as despesas do Tribunal e da Assembléia dos Estados Partes, incluindo

a sua mesa e os seus órgãos subsidiários, serão pagas pelo fundo do Tribunal; e

complementa no artigo 115 que estas se forem inscritas no orçamento aprovado

pela referida Assembléia, serão financiadas: pelas quotas dos Estados Partes e

pelos fundos provenientes da ONU.

1.2.2 Jurisdição do Tribunal Penal Internacional

O TPI, no que diz respeito a sua jurisdição, possui caráter complementar às

jurisdições nacionais, ou seja, somente atuará quando estas “não puderem ou não

quiserem fazer, ou ainda quando os procedimentos observados não sejam

considerados genuínos".41.

_____________

40 CHOUKR, Fauzi Hassan et alli (organizadores). Tribunal Penal Internacional. São Paulo: ERT, 2000, p. 312/313. 41 COSTA, Alberto. Tribunal Penal Internacional: para o fim da impunidade dos poderosos. Portugal: Editorial Inquérito. 2002, p.17.

Page 29: Flavia Nunes Carvalho06

29

Neste mesmo prisma, a jurisdição do Tribunal deverá ser analisada quanto à

matéria (ratione materiae), ao tempo (ratione temporis), à pessoa (ratione personae)

e ao lugar (ratione loci).

Quanto à jurisdição ratione materiae, se dá sobre os crimes de genocídio, de

agressão, de guerra e contra a humanidade, considerados os crimes de maior

seriedade de interesse da comunidade internacional. Cumpre, portanto, definir tais

crimes à luz do Estatuto de Roma:

Genocídio – disposto no artigo 6º é conceituado como qualquer um dos atos

praticados com intenção de destruir total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico,

racial ou religioso, matando membros do grupo; ofendendo–os gravemente a

integridade física ou mental; sujeitando-os intencionalmente a condições de vida

com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; impondo-os medidas

destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; ou transferindo, à força,

crianças do grupo para outro grupo.

Não houve dificuldades para definir esse crime. A convenção sobre a

prevenção e punição do crime de genocídio, de 09 de dezembro de 1948, já havia

definido, em termos semelhantes ao acima exposto, o crime de genocídio.

Crime Contra Humanidade – os denominados crimes de lesa humanidade

podem ser cometidos tanto durante um conflito armado quanto em tempo de paz,

distinguem-se dos crimes de guerra ou dos delitos comuns por se tratarem de delitos

cometidos contra qualquer população civil e pela escala em que são cometidos.42

Está estatuído no artigo 7º e inspirou-se nas Cartas dos tribunais de

Nuremberg e de Tóquio. Sua definição foi objeto de difícil negociação durante a

Conferência, no entanto, concluiu-se de que seria crime contra a humanidade os

_____________

42 SABÓIA, Gilberto Vergne. A Criação do Tribunal Penal Internacional. Revista CEJ, Brasília, nº 11, 2000, p. 8.

Page 30: Flavia Nunes Carvalho06

30

atos cometidos no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra

qualquer população civil.

Compreendem tais atos: assassinato; extermínio; escravidão; deportação ou

translado forçado de populações; e encarceramento ou outra privação grave da

liberdade física em violação de normas fundamentais de direito internacional; tortura;

violação; escravidão sexual; prostituição forçada; gravidez forçada; esterilização

forçada ou abusos sexuais de gravidade comparável; perseguição de um grupo ou

coletividade com identidade própria; fundada em motivos políticos; raciais; nacionais;

étnicos, culturais, religiosos, de gênero ou outros motivos universalmente

reconhecidos como inaceitáveis pelo direito internacional, em conexão com qualquer

ato mencionado no presente parágrafo ou com qualquer crime de competência do

tribunal; desaparecimento forçado de pessoas; apartheid; outros atos desumanos de

caráter similar que causem intencionalmente grandes sofrimentos ou atentem

gravemente contra a integridade física ou à saúde mental.

Crime de Guerra – disposto no artigo 8º o Estatuto reserva grande redação

para tipificá-lo, indicando primeiramente que “A Corte terá competência para julgar

os crimes de guerra, em particular quando cometidos como parte integrante de um

plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse tipo

de crime”.

Verifica-se que apesar do intuito das superpotências em fazerem do caráter

planejado e maciço dos crimes de guerra um elemento constitutivo; o uso do termo

“em particular” não limita definitivamente a competência do TPI, tendo, portanto,

atribuição para julgar todos os crimes de guerra.43

Entende-se por crime de guerra: as violações graves das Convenções de

Genebra de 1949; violações graves das leis e costumes aplicáveis aos conflitos

armados internacionais no âmbito do direito internacional; em caso de conflito

_____________

43 BAZELAIRE, Jean Paul. A justiça penal internacional: sua evolução, seu futuro: de Nuremberg a Haia. Tradução de Luciana Pinto Venâncio. Barueri: Manole, 2004, p. 77.

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31

armado que não seja de índole internacional, as violações graves do artigo 3º da

Convenções de Genebra de 1949, qualquer ato cometido contra indivíduos que não

participem diretamente das hostilidades, incluídos os membros das forças armadas

que tenham deposto as armas e os que estejam fora de combate por doença,

lesões, detenção ou por qualquer outra causa: aplica-se aos conflitos armados que

não tenham caráter internacional.

Tem-se, ainda, caracterizado como crimes de guerra: outras violações

graves das leis e usos aplicados nos conflitos armados que não sejam de cunho

internacional, no quadro do direito internacional: aplica-se ao conflitos armados que

não sejam de índole internacional e, por conseguinte, não se aplicará a situações de

distúrbio e de tensão internas, tais como motins, atos de violência esporádicos ou

isolados. Aplicar-se-á, ainda, a conflitos armados que tenham lugar no território de

um Estado, quando exista um conflito armado prolongado entre as autoridades

governamentais e grupos armados organizados ou entre estes grupos.

Crime de Agressão – “hoje previsto no Estatuto do Tribunal Penal

Internacional, outrora era denominado 'crimes contra paz', e de todos os crimes

internacionais, é o de mais difícil conceituação”.44 Por essa razão o TPI não trouxe

ainda uma definição de agressão.

Assim, o TPI só exercerá sua jurisdição sobre o crime após a aprovação de

um dispositivo que conceitue e enuncie as condições pelas quais o Tribunal

exercerá sua jurisdição. O dispositivo será apresentado através de emendas ou na

revisão, previstas sete anos após a entrada em vigor do Estatuto.

Com relação à jurisdição ratione temporis, o art. 11 do TPI determina que

somente serão abarcados os crimes cometidos após a entrada em vigor do

Estatuto45, ou seja, a partir de 1º de julho de 2002.

_____________

44 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 251. 45 CHOUKR, Fauzi Hassan et alli (organizadores). Tribunal Penal Internacional. São Paulo: ERT, 2000, p. 222.

Page 32: Flavia Nunes Carvalho06

32

Por último, impende salientar que o Tribunal Penal Internacional em respeito

ao princípio nullun crimen, nulla poena sine lege só julga crimes praticados após sua

entrada em vigor; seus crimes são imprescritíveis; não tem competência para julgar

menores de dezoito anos; não responsabiliza quem tem deficiência mental ou

praticou crime sob coação quando se defendia; e não tira a responsabilidade de

quem cometeu crime sob cumprimento de ordem superior a não ser que tenha sido

obrigado a cumpri-la, ou ainda, se a pessoa não sabia que a ordem era ilegal.46

1.3 Ratificação do Estatuto de Roma pelo Brasil

Em uma primeira análise, faz-se salutar conceituar ratificação, a qual para

Francisco Rezek: “é o ato unilateral com que o sujeito de Direito internacional,

signatário de um tratado, exprime definitivamente, no plano internacional, sua

vontade de obrigar-se.47

Dentre as etapas que compreendem o processo de ratificação no

ordenamento brasileiro, verifica-se que foram todas cumpridas. O Brasil participou

das negociações, assinou em 07 de fevereiro de 2000 o Estatuto de Roma, sendo

este aprovado pelo Congresso Nacional e ratificado pelo Presidente de República

em 20 de maio de 2002.

Cabe ressaltar, que no momento da ratificação o Brasil obriga-se no plano

internacional a cumprir o ali disposto, in verbis:

“O País ao assinar e ratificar uma convenção – e essas ratificação se

processa depois da aprovação do Congresso Nacional –, automaticamente,

_____________

46 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito Internacional Público. 12. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 909. 47 REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

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33

está aceitando o que está naquele tratado internacional. Não há diminuição

de soberania, ao contrário, o País, ao ratificar uma convenção, pratica ato

de soberania, e o faz de acordo com sua constituição”48

Não obstante, também obrigou-se no plano interno, ao promulgar o decreto

nº 4388, de 25 de setembro de 2002, o qual foi devidamente publicado no Diário

Oficial.

O Estatuto de Roma em seu artigo 120 já prevê que não se admitirá

reservas, esta, por sua vez, é uma declaração unilateral do Estado que consente

visando a excluir ou modificar efeito jurídico de certas disposições do tratado em

relação a esse Estado. Dessarte, o Estatuto foi ratificado pelo Brasil sem nenhuma

cláusula de reserva.

No Brasil o Supremo Tribunal Federal tinha o posicionamento consolidado

no sentido se que os tratados e convenções internacionais adentram no

ordenamento pátrio com o valor correspondente à lei federal. Embora, há de se

destacar, que recentemente o Pretório Excelso tenha indicado uma tendência mais

aberta aos tratados que versem sobre direitos humanos, apontando para uma

hierarquização que lhes imprimem o caráter de norma supralegal. Entendimento

este, sustentado por Gilmar Mendes em julgamento recente do RE 466.343/SP. 49

Sob qualquer dos prismas acima delineados o Estatuto de Roma ainda seria

considerado uma norma infraconstitucional, razão pela qual são suscitadas algumas

hipóteses acerca da inconstitucionalidade de alguns artigos, tais como o artigo 89

que prevê a entrega de pessoas ao TPI, sem nenhuma ressalva quanto aos

nacionais.

_____________

48SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e. A Incorporação ao Direito Interno de Instrumentos Jurídicos de Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Direitos Humanos. Revista CEJ, Brasília, nº 11, 2000, p. 20. 49MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 708.

Page 34: Flavia Nunes Carvalho06

34

Na Conferência Internacional que elaborou o Estatuto de Roma, a própria

delegação brasileira fez questão de ressalvar, em seu voto favorável, o temor de

suposto conflito entre o artigo que refere a necessidade de entrega de acusados

com o artigo da Constituição Federal que proíbe a extradição de nacionais.50

Em contrapartida, não é esse o entendimento de grande parte dos

doutrinadores, como Flávia Piovesan que defende que os tratados que versam sobre

direitos humanos tem status de norma constitucional, para tanto fundamenta-se no

artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal. 51 Assim, respaldado nesse posicionamento,

o Estatuto que instituiu o TPI, por ser indiscutivelmente um Tratado de direitos

humanos, teria valor constitucional.

Outra vertente, encontra-se no posicionamento da doutrina de Celso D. de

Albuquerque Mello, o qual entende que no que diz respeito aos direitos humanos, a

norma internacional deve prevalecer sobre norma constitucional, devendo ser

aplicada sempre a norma mais benéfica ao ser humano. 52

_____________

50 CHOUKR, Fauzi Hassan et alli (organizadores). Tribunal Penal Internacional. São Paulo: ERT, 2000, p. 247. 51 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 5ª Ed., São Paulo: Max Limonad, 2002, p.111. 52 MELLO, Celso D. de Albuquerque, O § 2º do art. 5º da Constituição Federal. In: Teoria dos direito fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 25.

Page 35: Flavia Nunes Carvalho06

35

Capítulo 2

EXTRADIÇÃO E ENTREGA

A questão suscitada no capítulo anterior, mais precisamente no item 1.3,

referente a um aparente conflito entre a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto

de Roma para o Tribunal Penal Internacional tem como ponto principal à discussão

acerca da relação entre Extradição e Entrega.

O documento diplomático mais antigo da história da humanidade é um

tratado de extradição. Dessa forma, além de ser considerada uma prática milenar, é

o mais tradicional de todos os instrumentos de cooperação internacional penal.53

A extradição, embora tenha sofrido mudanças ao longo do tempo, é um

instituto já consolidado, com características e peculiaridades próprias. Em

contrapartida, surge recentemente, com a criação do TPI, a Entrega que erige-se

como outro instituto que busca conquistar o seu lugar no direito internacional penal.

Assim, um estudo mais detalhado faz-se salutar para o esclarecimento da

primeira dúvida surge ao analisar o tema da presente monografia, qual seja, o que

difere Extradição de Entrega?

De antemão, Carlos Eduardo Adriano Japiassú assevera: “A distinção não

se restringe à denominação, mas também à substância dos institutos”54

_____________

53 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 211. 54 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 214.

Page 36: Flavia Nunes Carvalho06

36

2.1 Extradição

A extradição, conforme Celso D. de Albuquerque Mello “pode ser definida

como sendo o ato por meio do qual um indivíduo é entregue por um Estado a outro,

que seja competente a fim de processá-lo e puni-lo”.55

Neste mesmo sentido, leciona Francisco Rezek: “É a entrega por um Estado

a outro, e a pedido deste, de indivíduo que em seu território deva responder a

processo penal ou cumprir pena”.56

Em uma terceira e última explanação, Hildebrando Accioly assevera:

“Extradição é o ato pelo qual um Estado entrega um indivíduo acusado de fato

delituoso ou já condenado como criminoso à justiça de outro Estado, competente

para julgá-lo e puni-lo”57

Perante as definições de renomados juristas, verifica-se que o conceito de

extradição é, em geral, pacífico na doutrina, não havendo grandes divergências

quanto aos seus elementos constitutivos, dentre os quais, o fato da entrega se dar

de Estado para Estado, merece especial atenção.

Historicamente, remonta de 1291 a.C. o primeiro registro de extradição,

constante do tratado de paz celebrado entre Ramsés II e Hattisuli, rei dos Hititas,

devido à tentativa frustada de seu povo invadir o Egito. Assim, o tratado dispunha

expressamente sobre o retorno de pessoas procuradas por seus soberanos, que

tinham se refugiado em outros territórios.58

_____________

55 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito Internacional Público. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 947. 56 REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 197. 57 ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacional público. 12ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 347. 58 LISBOA, Carolina Cardoso Guimarães. A relação extradicional no direito brasileiro. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 95.

Page 37: Flavia Nunes Carvalho06

37

A referida extradição, não apresentava as características do instituto tal

como é reconhecido hoje, pois naquela época extraditava-se o criminoso político e

não o criminoso comum.59 Devido ao elucidado, Celso Albuquerque D. de Mello,

menciona que alguns autores refutam a tese de ter havido na antigüidade o instituto

da extradição, no entanto, como contra-argumento, ressalva que um instituto jurídico

não conserva as mesmas características através dos séculos, e que sua essência,

qual seja a de conduzir um indivíduo para fora de um Estado a fim de entregá-lo a

outro, existia na prática desde aquele tempo.

Não obstante, cumpre ressaltar que tanto na Grécia, embora houvesse a

existência do direito de asilo, quanto em Roma, a extradição foi praticada e estava

sempre associada ao caráter político.

Já na Idade Moderna, com o aparecimento do absolutismo, os tratados de

extradição se caracterizaram por vislumbrar a entrega de criminosos militares e a

defesa dos regimes.60

A extradição começa a aparecer com as suas características atuais no

século XIX, devido “à grande influência que as idéias de que soberania reside no

povo, sustentadas por contratualistas como Locke, tiveram na organização dos

Estados que se construíram sobre bases democráticas”61.

No que concerne a regulamentação internacional acerca de extradição,

deve-se salientar, no âmbito da Europa, a convenção geral de extradição 1957 com

os protocolos de 1975 e 1978; já na América a convenção de Montevidéu (1933); o

Código de Bustamante (1928); e por último, em Caracas (1981) foi concluída a

convenção interamericana de extradição.

_____________

59MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito Internacional Público. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 947. 60 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito Internacional Público. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 948. 61 LISBOA, Carolina Cardoso Guimarães. A relação extradicional no direito brasileiro. Belo horizonte: Del rey, 2001, p. 101.

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38

Finda a parte de conceituação e abordagem histórica. Passemos a análise

detida do instituto da extradição, o qual “predomina, na espécie, o sentido superior e

universal de justiça, que busca impedir sua oposição à impunidade”62.

Inserto no direito penal encontra-se o princípio da territorialidade, presente

na maioria dos países, o qual dispõe que o país terá competência para julgar os

crimes cometidos em seu território. Desse modo, em um primeiro momento, seria

fácil a um indivíduo que cometesse um crime, se evadir para outro país tentando

fugir do processo e da pena.

No entanto, “o fato de um criminoso transpor os limites territoriais do país

onde cometera o delito não importa a extinção de sua punibilidade”.63 Para tanto, a

fim de evitar a impunidade, os Estados vislumbram a extradição de tais indivíduos

por meio de uma colaboração mútua, que tem respaldo no Direito Internacional, mais

precisamente no artigo 1º, nº 03 da Carta da ONU64.

O fundamento de tal instituto está alicerçado na necessidade internacional

de segurança e de defesa social, podendo-se afirmar que a extradição é atualmente

considerada um dever recíproco dos Estados, que se legitima amparado no sistema

universal do direito de punir65.

Quanto a sua natureza jurídica, a maioria dos autores entendem que a

extradição é um instrumento processual da cooperação penal internacional na luta

contra o crime, sob a forma tradicional de cooperação judicial, que se desenvolve

entre dois Estados, segundo a lei internacional, tratado e convenção e até mesmo os

costumes, a promessa de reciprocidade e a lei nacional do País requerido.

_____________

62 GUIMARÃES, Francisco Xavier da Silva. Medidas compulsórias: a deportação, a expulsão e a extradição. Rio de Janeiro: Forense,1994, p. 59. 63 GUIMARÃES, Francisco Xavier da Silva. Medidas compulsórias: a deportação, a expulsão e a extradição. Rio de Janeiro: Forense,1994, p. 59. 64 “os propósitos das Nações Unidas são: (...) 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.” 65 GORAIEB, Elizabeth. A extradição no direito brasileiro. Rio de janeiro: Mauad, 1999, p. 22.

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39

2.1.1 Princípios e Formas de extradição

Em linhas gerais, são dois os princípios norteadores da extradição. O

primeiro, denominado princípio da especialidade, versa que o indivíduo não pode ser

julgado por delito diferente do que fundamentou o pedido de extradição.

Já o segundo, denominado princípio da dupla incriminação do fato ou da

identidade de infração, determina que nenhuma extradição terá seguimento sem que

o fato motivador do pedido seja considerado crime tanto no país requerente quanto

no país requerido.

Faz-se necessário, ainda, uma breve analise a respeito de algumas formas

de extradição definidas por internacionalistas.

A priori, estas se classificam como sendo de fato ou de direito, de forma

que a primeira consiste na entrega do criminoso sem que haja qualquer

procedimento jurídico, já a segunda ocorre conforme as normas jurídicas internas e

internacionais.66

Pelo ângulo de quem formula o pedido de extradição, tem-se a denominada

extradição ativa, ao passo que pelo ângulo de quem recebe o pedido, tem-se a

extradição passiva.

Por último, encontra-se a extradição instrutória, a qual o pedido objetiva

que o indivíduo se submeta ao processo criminal, enquanto a executória o pedido

visa obrigar o indivíduo a cumprir a pena a que foi condenado.

_____________

66 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito Internacional Público. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 950.

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40

2.1.2 Extradição no ordenamento jurídico brasileiro

A Constituição Brasileira de 1891, não vedava a extradição, em face a tal

omissão, adveio em 1911 a lei de nº 2.416 que a permitia tanto para estrangeiro,

quanto para nacional, desde que esta última se desse mediante reciprocidade por

parte do Estado interessado. Em contrapartida, a constituição de 1934 impediu

expressamente a extradição de nacionais, erigindo tal condição a princípio

constitucional.67

Neste mesmo prisma, a Constituição de 1988 em seu artigo 5º que delibera

acerca dos direitos e deveres individuais e coletivos, inciso L I afirma: “Nenhum

brasileiro será extraditado, salvo naturalizado, em caso de crime comum, praticado

antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de

entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”. Assim, manteve a proibição da

extradição de nacionais.

Enfatiza-se, ainda, que esta previsão constitucional sequer pode ser alterada

por emenda constitucional, ante a cláusula pétrea inserida no § 4º do artigo 60 que

dispõe in litteris: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a

abolir: (...) IV- os direitos e garantias individuais.”

Adstrito ao disposto no artigo 5º inciso LI cumpre distinguir brasileiro nato, o

qual é vedado, expressamente, qualquer forma de extradição do brasileiro

naturalizado, que se enquadra nas hipóteses ressalvadas.

Considera-se brasileiros natos: os nascidos na República Federativa do

Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de

seu pais; os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que

qualquer deles esteja à serviço do Brasil, e os nascidos no estrangeiro, de pai

_____________

67 GORAIEB, Elizabeth. A extradição no direito brasileiro. Rio de janeiro: Mauad, 1999.

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41

brasileiro ou mãe brasileira, desde que venham residir no Brasil e optem, em

qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira.

Quanto aos brasileiros naturalizados o artigo 12, inciso II, alíneas a e b, da

Constituição define como: os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade

brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência

por um ano ininterrupto e idoneidade moral; e os estrangeiros de qualquer

nacionalidade residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos

ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade

brasileira.

Entende-se por nacionalidade “um vínculo jurídico político pelo qual uma

pessoa passa a ser considerada parte integrante de um Estado.” 68Assim, diz-se que

os natos possuem nacionalidade originária resultante de seu nascimento; ao passo

que os naturalizados enquadram-se na nacionalidade secundária, a qual se adquire

por um processo voluntário de naturalização pós nascimento.

A regra, de fato, é a inextraditabilidade do brasileiro, nato ou naturalizado,

sendo excepcional as duas hipóteses previstas na segunda parte do inciso LI, do

artigo 5º. No entanto, a referida inextraditabilidade não significa impunidade, pois

nenhum crime pode ficar impune, sendo que nos casos em que não se possa

extraditar, deve-se observar o disposto no artigo 7º do Código Penal, efetivando o

princípio aut detere aut judicare, o qual disciplina que se o Estado não entrega a

pessoa solicitada, deverá julgá-la.69

No Brasil, o foco principal na doutrina e jurisprudência, é a extradição

passiva, tendo havido poucos casos em que atuou no pólo ativo. Dessa forma, faz-

se necessário mencionar como se processa no ordenamento interno um pedido de

extradição recebido.

_____________

68 BENARDES, Wilba Lúcia Maia. Da nacionalidade: brasileiros natos e naturalizados. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p 91. 69 SOUZA, Artur de Brito Gueiros; ARAUJO, Nádia de. As novas tendências do direito extradicional. Rio de Janeiro: Renovar , 1998,124/126.

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42

Segundo Francisco Xavier Guimarães, opera-se em três fases distintas: na

primeira (denominada administrativa) não há a intervenção do judiciário, cabendo

exclusivamente ao governo aceitar ou não o pedido de extradição; caso seja aceito o

pedido, na segunda fase (classificada como controle jurisdicional do ato de

extradição) o judiciário analisará os seus requisitos legais, proferindo assim sua

decisão; se esta for pelo deferimento da medida passará, então, para terceira fase

(conhecida como entrega), na qual ficará novamente a cargo do governo acatar a

decisão da segunda fase, ou em caso de recusa por parte do Estado requerente em

assumir determinados compromissos, poderá até mesmo adiar ou impedir a

extradição.70

O fato do Poder Judiciário ser responsável pelo controle da legalidade da

extradição é uma forma de dar efetividade aos direitos e garantias individuais

salvaguardados na Constituição de 1988. Cabe ressaltar, ainda, que a

regulamentação da matéria em questão no Brasil, encontra-se no Estatuto dos

Estrangeiros (Lei nº 6.815/80), na Lei nº 6.964/81 e no Regimento Interno do STF,

artigos 207 a 214.

2.1.3 Princípio da igualdade de soberania – cooperação horizontal

No direito internacional as relações que ocorrem entre Estados soberanos,

são regidas pelo princípio da igualdade de soberania, haja vista que não há que se

falar em tal direito, da prevalência de um Estado em face a outro. Nesse âmbito, as

relações são regidas pela cooperação dos países que se dá de forma horizontal,

uma vez que todos são igualmente soberanos.

_____________

70 GUIMARÃES, Francisco Xavier da Silva. Medidas compulsórias: a deportação, a expulsão e a extradição. Rio de Janeiro: Forense,1994, p. 241.

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43

Miguel Guskow leciona que “a extradição diz respeito à cooperação entre

Estados, regida pelo princípio da igualdade soberana, ou, podendo-se qualificá-la

como cooperação horizontal”.71

A idéia inicial de soberania, de Jean Bodin, tal como sendo um poder

absoluto e perpétuo de uma República, vem cedendo, ao longo do tempo, espaço a

um ideário mais comunitário, bem demonstrado por Francisco RezeK ao referir-se

que é possível identificar o Estado quando o seu governo não se subordina a

qualquer autoridade que lhe seja superior, e só se põe de acordo com seus

homólogos na construção da ordem internacional, e na fidelidade aos parâmetros

dessa ordem, a partir da premissa de que aí vai um esforço horizontal e igualitário de

coordenação no interesse coletivo.72

Dois fundamentos se depreendem da idéia de soberania, qual seja, a

independência e a supremacia, pois no plano interno nada pode se sobrepor às

decisões emanada do Poder Público. Já no campo externo o estado encontra-se em

igualdade com todos os membros da comunidade internacional.73

Neste mesmo sentido, Jorge Miranda explica que “a soberania hoje significa

essencialmente que os Estados são iguais e não que os Estados excluem qualquer

poder proveniente da ordem jurídica internacional”.74 Dessarte, esta não deverá ser

invocada como empecilho ao cumprimento das normas do TPI.

Cumpre ressaltar, que aqui o estudo refere-se a denominada soberania

jurídica, a qual é completamente diversa da soberania política, onde não há que se

falar em igualdade entre os Estados uma vez que o fator determinante é a força e o

_____________

71 GUSKOW, Miguel. O Tribunal Penal Internacional e os problemas futuros a enfrentar em relação à soberania nacional. Tribunal Penal internacional: universalização da cidadania. Câmara dos Deputados, Brasília: Centro de documentação e informação, coordenação de publicação, 2000, p. 21. 72 REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, 226 73 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 129. 74 MIRANDA, Jorge. A Incorporação ao Direito Interno de Instrumentos Jurídicos de Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Direitos Humanos. Revista CEJ, Brasília, nº 11, p. 23-26, 2000, 25.

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44

poder. Desse modo, vislumbrando segurança nas relações jurídicas internacionais,

os países devem relevar a questão da soberania política.

Em uma última abordagem, Carlos Eduardo Adriano Japiassú afirma que

atualmente, há juristas sociólogos e pensadores que afirmam que a soberania é um

conceito em evidente declínio, que já não mais se coaduna com as exigências do

Estado moderno, muito menos com uma concepção que busque a

internacionalização dos Direitos dos Homens.75

Ante ao todo exposto, sem entrar necessariamente no mérito deste último

posicionamento, pode-se perceber que tanto o fato da “decadência” da idéia de

soberania, quanto o conceito desta, se revelam no plano internacional como a

igualdade entre os Estados, não implicam em obstáculos para que os países

cooperem com o TPI.

2.2 Entrega

A entrega adveio com o Estatuto de Roma, a fim de operacionalizar e

assegurar a eficácia do TPI. Conforme o disposto no artigo 102, b, a Entrega deverá

ser entendida como a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos

do Estatuto.

Cabe ressaltar que, diferentemente da extradição, a entrega ocorrerá de

Estado para organismo internacional, pois “o Tribunal não é uma jurisdição

estrangeira, como, no mesmo sentido, os outros Estados o são”.76

_____________

75 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 133. 76 RODAS, João Grandino. Entrega de Nacionais ao Tribunal Penal Internacional. Revista CEJ, Brasília, nº 11, 2000, p. 33.

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45

Não é difícil encontrar afirmativas no sentido de que a distinção feita entre os

dois institutos (extradição e entrega)77 no estatuto, foi uma forma de fugir dos óbices

que encontrariam nas ratificações em diversos países que vedam a extradição de

seus nacionais, como é o caso do Brasil.

Em que pese este argumento, certo é que de fato a extradição (extradition)

se mostra diametralmente diversa à entrega (surrender), pois, em favor desta, milita

o caráter complementar do TPI e o fato de ser uma corte supranacional a qual o

Brasil faz parte.

2.2.1 Entrega no contexto do Estatuto de Roma

O capítulo IX do Estatuto de Roma versa a respeito da cooperação

Internacional e auxílio judiciário, vislumbrando a apoio pleno dos Estados Partes

para com o TPI.

Neste sentido, está previsto no artigo 89 do Estatuto que o Tribunal poderá

solicitar a cooperação dirigindo um pedido de detenção e entrega de um indivíduo a

qualquer um dos Estados Partes em cujo território esse possa se encontrar. Desse

modo, ao solicitar a detenção e entrega da pessoa, os Estados darão satisfação por

meio do disposto no capítulo IX do Estatuto e nos procedimentos previstos nos

respectivos direitos internos.

No entanto, se o indivíduo, o qual a entrega foi solicitada, impugnar tal

pedido invocando o ne bis in idem perante a Corte nacional, o Estado requerido

entrará em contato com o TPI a fim de verificar se há uma decisão acerca da

_____________

77 Nos termos do artigo 102, a definição adotada para os fins do Estatuto (in litteris): a) Por "entrega", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto. b) Por "extradição", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno.

Page 46: Flavia Nunes Carvalho06

46

admissibilidade do caso. Se este houver sido considerado admissível o Estado

prosseguirá com o pedido, por outro lado, se não houver ainda a decisão, o Estado

poderá postergar a execução do pedido de entrega até que o TPI se pronuncie.

Impende aventar, que ao longo do Estatuto em momento algum há ressalvas

quanto a entrega pelos Estados Partes de seus nacionais.

2.2.2 Princípio da complementaridade – cooperação vertical

O instituto da Entrega reger-se-á pelo princípio da complementaridade, que

diz respeito à cooperação entre Estados e o Tribunal Penal Internacional, o qual a

jurisdição tem caráter excepcional e complementar. Isto quer dizer que somente será

exercida em caso de manifesta incapacidade ou desinteresse do sistema judiciário

nacional em exercer sua primazia. Assim, “se a jurisdição do TPI for acionada, os

Estados se obrigam a cooperar com o Tribunal, no que se aplica à entrega de

pessoas, qualquer que seja sua nacionalidade. Pode-se dizer assim, que este é um

caso de cooperação vertical.”78

Havia desde o início dos trabalhos preparatórios, um acordo entre as

delegações no sentido de que o TPI não exerceria a primazia de jurisdição sobre os

tribunais nacionais, tal como ocorreu nos tribunais ad hoc.79

Cabe ressalvar, que tanto o Tribunal de Nuremberg, quanto o Tribunal de

Tóquio previam que suas jurisdições eram primárias em face das legislações

nacionais. Não obstante, embora os Tribunais ad hoc para ex-Iugoslávia e para

_____________

78GUSKOW, Miguel. O Tribunal Penal Internacional e os problemas futuros a enfrentar em relação à soberania nacional. Tribunal Penal internacional: universalização da cidadania. Câmara dos Deputados, Brasília: Centro de documentação e informação, coordenação de publicação, 2000, p. 21-22. 79 MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 78.

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47

Ruanda declarassem que a jurisdição internacional e nacional eram concorrentes, a

primeira possuía primazia ante a segunda.

Deve-se frisar ainda, que a primazia é conseqüência direta do modo de

criação de tais Tribunais, que se deu por decisão do Conselho de Segurança,

conforme o disposto da carta da ONU.80

Em contrapartida, o TPI possui características diversas dos tribunais

supramencionados e por ser um organismo permanente, a forma encontrada e

indispensável à sua existência e funcionamento foi o princípio da

complementaridade.

Nas discussões que se travaram até chegar de fato a tal princípio, encontra-

se posicionamentos contrários no sentido de que viam a atribuição complementar à

jurisdição do TPI como um retrocesso no direto penal internacional e, portanto,

defendiam a ampliação da competência do Tribunal.

Em torno dessa discussão, unânime é o entendimento da universalidade do

direito de punir (abordado no item 2.1) quando se fala de criminalidade internacional

e quando o objetivo é estabelecer uma jurisdição penal de caráter internacional, no

entanto, no que diz respeito a sua competência o ponto foi bastante controverso.

Superada a etapa polêmica com a determinação de fato do princípio da

complementaridade como fundamento do TPI, há de se observar como ele está

estatuído no art. 17, no qual refere-se exatamente que o TPI tem uma presunção

relativa em favor dos Estados nacionais, que em primeiro momento estarão

legitimados para agir. Não obstante, como já mencionado, esta presunção poderá

ser superada quando se observar a falta de interesse ou a impossibilidade de fazê-

lo.

Neste mesmo prisma, Flávia Piovesan assevera, in verbis:

_____________

80 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 167.

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48

“O Estatuto de Roma reitera a idéia de que o Estado tem a responsabilidade primária, o dever jurídico de emprestar a sua jurisdição. No entanto, se isso não ocorrer, a responsabilidade subsidiária é da comunidade internacional (...) Dessa maneira, entendemos que o estatuto busca equacionar a garantia do direito à justiça, o fim da impunidade, a soberania do estado à luz do princípio de complementaridade.81

O princípio da complementaridade é baseado em duas regras a publicidade

e a possibilidade de impugnação do processo. A primeira disposta no artigo 18

ressalta a necessidade de notificação dos Estados Partes, com jurisdição sobre um

determinado caso, sempre que o TPI iniciar investigações a fim de que possam se

manifestar no que diz respeito ao exercício de sua jurisdição. Já a segunda disposta

no artigo 19 estabelece o direito do Estado com jurisdição sobre o caso de

impugnar, por uma única vez, a jurisdição do Tribunal, devendo este fazê-lo antes ou

no início do processo, na primeira oportunidade que tiver.82

No que se refere às conseqüências decorrentes do princípio da

complementaridade, o Estatuto discorre sobre o princípio do ne bis in idem que

dispõe, em regra, que o TPI não julgará novamente alguém que já tenha sido

julgado pelo mesmo fato no tribunal nacional, no entanto, cria exceções caso o

processo tenha tido objetivo de subtrair o acusado à sua responsabilidade, ou não

tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial (artigo 20, 3, a e b),

O caráter complementar, por si sós, não bastaria para a efetivação do

Tribunal, para tanto o Estatuto impõe aos Estados Partes a obrigação da

cooperação, a qual implica, dentre outros, na adoção de procedimentos internos

para a implementação do Estatuto, a realização de prisões preventivas, proteção de

testemunhas, produção de provas e entrega de pessoas, inclusive de seus

nacionais.83

Sob esse viés, feliz foi a ressalva de Miguel Guskow ao atribuir a referida

cooperação o sentido vertical, diferentemente da horizontalidade que se dão às

_____________

81 PIOVESAN, Flávia. Princípio da Complementaridade e Soberania. Revista CEJ, Brasília, nº 11, 2000, 73. 82 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2ª Ed., São Paulo : Max Limonad, 2003, p. 162. 83 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2ª Ed., São Paulo : Max Limonad, 2003, p. 163.

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49

relações entre Estados. De fato, o TPI é uma corte supranacional, assim, os Estados

ao cooperarem com o Tribunal o estarão fazendo de baixo para cima, sem, contudo

ferir sua soberania, pois estarão colaborando com um organismo internacional que

eles próprios outorgaram poderes (ao ratificarem o Estatuto) e que, de certa forma,

operará como uma extensão, ou complemento, no que concerne aos crimes de

competência do TPI, da justiça nacional.

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50

Capítulo 3

A ENTREGA DE NACIONAIS AO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DAS ALTERAÇÕES ADVINDAS DA

EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45 DE 2004

A Constituição Federal de 1988 representa um marco jurídico da transição

democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil, trazendo

consigo o valor de dignidade humana como núcleo básico e informador do

ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração do sistema

constitucional84.

O referido diploma legal inova significativamente ao trazer os princípios da

prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, cooperação entre

os povos, repúdio ao terrorismo e ao racismo, os quais realçam uma orientação

internacionalista nunca vista antes na história constitucional brasileira.85

Sob a égide dessa Constituição, ratificou-se o Estatuto de Roma, surgindo

assim, como já mencionado, a problemática tema da presente monografia e capítulo,

que se restringe a verificar se a entrega de nacional seria ou não compatível com a

Carta.

Após a devida distinção entre Extradição e Entrega, cabe analisar se na

Constituição de 1988 há respaldo para o TPI e, por conseguinte, para a entrega.

_____________

84 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional internacional. 5ª edição p.319 85 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional internacional. 5ª edição p.320

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51

Impende aqui mencionar o parecer jurídico, acerca da ratificação do TPI,

encaminhado ao Congresso Nacional pelo Doutor Antônio Paulo Cachapuz de

Medeiros, in verbis:

“Enfatiza a citada exposição que a ratificação do Estatuto de Roma pelo Brasil estaria em plena sintonia com os princípios da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais e da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado, inscritos na Constituição de 1988.

Ressalva, porém, que a perspectiva da segurança jurídica pode tornar recomendável que a ratificação seja precedida da aprovação de emenda constitucional que lhe dê “endosso explícito”.86

Neste sentido, o fundamento para subdivisão deste capítulo encontra-se

respaldo na declaração alhures, fazendo-se imprescindível a elucidação dos

princípios da dignidade humana, da prevalência dos direitos humanos nas relações

internacionais, bem como aspectos hermenêuticos constitucionais e o denominado

“endosso explícito”, que veio por meio da EC 45/2004, a qual inseriu no artigo 5º, o

parágrafo 4º, os quais conjuntamente formarão sustentáculos suficientes a um juízo

de valor sobre a constitucionalidade do Estatuto.

_____________

86 BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Secretaria de estado das relações Exteriores. Consultoria Jurídica. Parecer CJ nº 002/2001. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Submissão ao Congresso nacional. Diário do Senado federal, Brasília, DF, 30 abr. 2002.

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52

3.1 Princípio da prevalência dos Direitos Humanos nas relações internacionais

Dentre os princípios constitucionais que regem a República Federativa do

Brasil no cenário internacional, encontra-se o da prevalência dos direito humanos, o

qual está disposto no artigo 4º, inciso II, da Constituição de 1988, in litteris: “Art. 4º -

A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos

seguintes princípios: (...) II – prevalência dos direitos humanos”. Ante a inserção de

tal princípio, o direito internacional dos direitos humanos foi incluído no elenco dos

direitos constitucionalmente protegidos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 combina

ineditamente o discurso liberal e o discurso social da cidadania, aliando o valor da

liberdade ao da igualdade. Ao assim agir, a Declaração demarca a concepção

contemporânea de direitos humanos, pela qual, estes passam a ser concebidos

como interdependente e indivisível. Nesta concepção, todos os direitos humanos

constituem um complexo integral, único e indivisível, em que diversos direitos são

inter-relacionados e interdependentes. Contudo, é universal, pois decorre da

dignidade inerente a pessoa humana.87

De fato, no atual contexto mundial, a interação do direito internacional com o

direito interno, é salutar para assegurar o cumprimento dos direitos humanos, os

_____________

87 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 5ª Ed., São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 325.

Page 53: Flavia Nunes Carvalho06

53

quais “devem ser interpretado do modo mais amplo possível”,88 bem como para

evitar possíveis violações contra estes.

O princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais

traz ao Brasil a necessidade de colaborar e cumprir qualquer decisão de órgão ou

tribunal, do qual faça parte, que envolvam matéria de direitos humanos.89 Dessa

forma, pode-se dizer que tal princípio “invoca a abertura da ordem jurídica interna ao

sistema internacional de proteção dos direitos humanos”.90

No que concerne à sua relação com o Tribunal Penal Internacional, verifica-

se que o princípio em questão é uma das formas que fazem com que o TPI adentre

ao ordenamento jurídico em plena conformidade com a Constituição Federal.

Neste prisma, George Rodrigo Bandeira Galindo lecionou ao tratar do tema

quando o Estatuto de Roma ainda estava por ser ratificado in verbis:

“Lido em conjunto com o artigo 7º das Disposições Constitucionais Transitórias (O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos), este princípio favorece uma futura ratificação por parte do Brasil do estatuto de Roma, criando o Tribunal Penal Internacional, uma vez que uma ampla proteção dos Direitos humanos não pode prescindir do princípio da responsabilização individual por crimes contra a humanidade”. 91

_____________

88GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Tratados internacionais de direitos humanos e a Constituição Brasileira. Belo horizonte: Del Rey, 2002, p.120. 89 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Tratados internacionais de direitos humanos e a Constituição Brasileira. Belo horizonte: Del Rey, 2002, p.120. 90 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 5ª Ed., São Paulo : Max Limonad, 2002, p. 320. 91 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Tratados internacionais de direitos humanos e a Constituição Brasileira. Belo horizonte: Del Rey, 2002, p.120/121.

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54

3.2 Princípio da dignidade da pessoa humana

O conceito de pessoa como possuidora de direitos subjetivos ou

fundamentais e, por conseguinte, dignidade, surge com o cristianismo, com a

denominada filosofia patrística, sendo depois aprimorada pelos escolásticos.92

De fato, a definição de dignidade veio sendo elaborada no decorrer da

história e chega ao século XXI repleta de significado em si mesma, como um valor

supremo, construído pela razão jurídica. 93

Um dos grandes colaboradores para a idéia de dignidade foi Kant, segundo

o qual afirma que o homem é o fim em si mesmo, não podendo, por conseguinte, ser

usado como instrumento para algo, e justamente por isto, tem dignidade, é pessoa.

Assim, ao trazer o conceito de dignidade humana como o fim em si mesmo,

sobressalta que o Estado está para o homem e não o inverso. Não obstante,

verifica-se que tanto o Estado, quanto o direito, só encontra justificativa se regido

em função das pessoas.94

Neste sentido, constata-se dignidade humana como um valor preenchido a

priori, ou seja, todo o ser humano tem dignidade só pelo fato de ser pessoa.

_____________

92 SANTOS, Fernando Ferreira. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Celso Bastos Editor: instituto brasileiro de Direito constitucional, 1999, p. 19. 93NUNES. Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 46. 94 SANTOS, Fernando Ferreira. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Celso Bastos Editor: instituto brasileiro de Direito constitucional, 1999, p.107/108

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Para que seja possível uma melhor compreensão do que seja dignidade,

faz-se necessário considerar todas as violações que já foram praticadas, destaca-se

aqui o nazismo e toda sorte de atrocidades que já foram cometidas na humanidade,

para que contra elas se possam lutar. Portanto, extrai-se desse contexto histórico

que a dignidade nasce com o homem, sendo inata, inerente a sua essência. O ser

humano é digno, porque assim o é.95

No entanto, cumpre salientar que o ser humano é um ser sociável e como tal

a sua dignidade deverá receber um plus, pois sua liberdade, imagem, intimidade

deverão ser respeitadas. Em contrapartida, se em seu convívio social o ser humano

- tão dignamente protegido - violar a dignidade de outrem, ter-se-á aí que incorporar

no conceito de dignidade certos limites, pois a dignidade só é garantia ilimitada se

não ferir outra.96

O ideal jurídico do princípio em questão evolui mundialmente e caso

brasileiro encontra-se a Constituição Federal de 1988 traz o princípio da dignidade

humana disposto no seu artigo 1º, III, in verbis:

“Art. 1º - a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana”.

Neste viés, é considerado o primeiro fundamento de todo o sistema

constitucional, funcionando como princípio maior para interpretação de todos os

_____________

95NUNES. Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 49. 96NUNES. Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 49/50.

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direitos e garantias conferidas às pessoas, não podendo assim ser desconsiderado.

É, sem dúvida, como leciona Rizzatto Nunes, um verdadeiro supraprincípio

constitucional que ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e

infraconstitucionais.97

Adstrito ao todo elucidado, constata-se que a dignidade humana é um dos

fundamentos da República Federativa do Brasil. Dessa forma, a dignidade deve ser

vista como o fim e, o ordenamento jurídico, deve ser voltado à sua busca, de modo

que, a jurisdicidade das normas devam caminhar para tal fim.

Neste sentido, não há que se falar em óbices para a inserção e efetivação

do Tribunal Penal Internacional no ordenamento pátrio, pois a Constituição e o

Tribunal têm finalidades convergentes no que concerne a resguardar a dignidade

humana. Pois o TPI tem como seu objetivo cuidar dos crimes mais cruéis contra a

dignidade humana, resguardando a paz, a segurança e o bem-estar da humanidade.

3.3 Hermenêutica constitucional ante a questão da entrega de nacionais

É salutar, não obstante o estudo já realizado acerca dos princípios supra,

para o deslinde da questão da entrega de nacionais ser, ou não, uma afronta a

_____________

97 NUNES. Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 49/50.

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57

Constituição Federal de 1988, elucidar alguns aspectos da hermenêutica

constitucional no atual contexto.

Para Interpretar a Lei Maior, primeiramente, deve-se observar que as

normas constitucionais são normas jurídicas, com todas as conseqüências teóricas e

práticas que resultam dessa qualificação. Entretanto, em sua parte dogmática possui

estrutura normativo-material distinta das normas infraconstitucionais, principalmente

no que se refere à interpretação, pois enquanto a lei possui alto grau de

determinação material, podendo ser diretamente aplicável; a Constituição apresenta-

se como um sistema aberto de regras e princípios, que necessitam da mediação de

intérpretes para lograrem efetividade. 98

Grandes doutrinadores do Direito Constitucional já reconhecem a

importância das relações internacionais no processo de interpretação da

Constituição. Entendem, assim, que a Constituição deve ser aberta no sentido de

admitir sua reinterpretação galgada nas dinâmicas políticas e jurídicas, tanto

internas, quanto internacionais.

Neste sentido, valioso é o ensinamento de Pablo Lucas Verdú, in verbis:

“ (...) la normativa constitucional es abierta en la medida que permite una reinterpretación constante de si mesma: tiene considerable capacidad expansiva y receptiva como “(...) (consecuencia de factores internos y externos al hacerse depender el texto constitucional de dinâmicas políticas y juridicas interiores y internacionales) (...)“.99

_____________

98 COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1997, p. 25/26. 99 VERDÚ, Pablo Lucas. La Constituición abierta e sus enemigos. Madrid: Ediciones Beramar, 1993, p. 57.

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58

Canotilho também demonstra a necessidade da cooperação, apontando a

importância do Direito Internacional dentro de uma ótica constitucional ao afirmar

que hoje os fins dos Estados podem e devem ser os da construção de Estados de

Direito Democráticos, sociais e ambientais, no plano interno, e Estados abertos e

internacionalmente “amigos” e “cooperantes”, no plano externo. Afirma, ainda, que o

princípio de autodeterminação deve ser reinterpretado no sentido de que a

legitimação da autoridade e soberania política deve e pode encontrar suportes

sociais e políticos em outros níveis – supranacionais e subnacionais – diferentes do

“tradicional” e “realístico” Estado-Nação.100

Nesse prisma, o STF sentiu a necessidade de rever o posicionamento

adotado quanto ao status de lei federal atribuído a todos os tratados internacionais

indistintamente. Agora, em julgados recentes este tribunal dá sinais de evolução no

sentido de que aos tratados que versem sobre direitos humanos deverá ser

conferido no mínimo o status de norma supralegal. 101

Assim, demonstra-se valioso o entendimento de Inocêncio Mártires Coelho

acerca da interpretação constitucional que aponta a necessidade releitura da norma

_____________

100 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002, p.1353-1354. 101 Depreende-se da leitura do acórdão do RE 466343/SP, de relatoria no Ministro Cezar Peluso, onde se discutia inadmissibilidade da prisão do depositário infiel, uma nova postura daquela Corte que aproveitou a oportunidade para adentrar no tema que há tempos pedia uma nova interpretação, qual seja, onde os tratados internacionais de direitos humanos se encaixam no ordenamento pátrio. Nesse ponto, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, em seu voto, sustenta, a tese da supralegalidade, ao passo que o Ministro Celso de Mello defende que os referidos instrumentos adentram ao ordenamento como norma constitucional. Independentemente da tese que se solidificará nos próximos julgados, de antemão, já se constata que a tese de que tratados internacionais de direitos humanos equivalem a leis federais (tese esta, que vigorou por muito tempo), sucumbiu perante aquele órgão.

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quando há alteração no contexto, o que está ocorrendo na atual fase da história

jurisprudencial. Vejamos:

“Em razão dessa abertura e infinitude, toda interpretação é sempre um resultado, entre outros, a que se pode chegar em função de um determinado contexto, mas que deve ser modificado quando se alterarem as coordenadas da situação hermenêutica. As mudanças de jurisprudência comprovam que essa é uma lei de desenvolvimento da experiência interpretativa no âmbito do direito em geral, atestando por outro lado a unidade dialética do processo hermenêutico, no qual se fundem, necesariamente – como etapas distintas, mas complementares – a compreensão, a interpretação e a aplicação dos modelos”.102

Diante do atual contexto de abertura ao direito internacional e considerando

os princípios de interpretação constitucional, quais sejam, da unidade da

Constituição, do efeito integrador, da máxima efetividade, da conformidade

funcional, da concordância prática, da força normativa e da interpretação conforme a

Constituição103; fácil fica a interpretação do exposto no artigo 1º, inciso III104 e no

_____________

102 COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1997, p. 96. 103 Segundo Inocêncio Mártires Coelho, em sua Obra Interpretação Constitucional: o princípio da unidade da Constituição versa que as normas constitucionais devem ser consideradas como um sistema interno unitário de regras e princípios; o princípio do efeito integrador dispõe que na resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deve-se dar primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política; o princípio da máxima efetividade traz que deve-se atribuir as normas constitucionais o sentido que lhes empreste maior eficácia ou efetividade; o princípio da conformidade funcional assevera que não se pode chegar a resultados que subvertam ou perturbem o esquema organizatório-funcional; o princípio da concordância prática demonstra que os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou concorrência, devem ser tratados de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício do outro; o princípio da força normativa assevera que deve-se dar primazia às soluções que, densificando as suas normas, as tornem eficazes e permanentes; e o princípio da interpretação conforma a Constituição, o qual afirma que em face de normas infra-constitucionais polissêmicas ou plurissignificativas, deve-se dar prevalência à interpretação que lhes confira sentido compatível e não conflitante com a Constituição. 104 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em estado Democrático de Direito e tem como Fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana.

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artigo 4º, inciso II105, em um paralelo com o artigo 5º, § 2º da Constituição Federal de

1988,

Atendo-se a primeira parte do § 2º da CF, qual seja, “os direitos e garantias

expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime dos

princípios por ela adotados” e, apoiando-se no pressuposto de que um dos

princípios adotados pela Carta é o da prevalência dos direitos humanos nas relações

internacionais, a outro entendimento não se pode chegar, senão o de que a

Constituição de 1988 atribui ao Tratado Internacional de direitos humanos a

hierarquia de norma constitucional. Posicionamento este, que acredito ser o mais

correto e brilhantemente defendido pelo ministro Celso de Mello no já mencionado

RE 466.343/SP.

Cabe ainda destacar que em caso aparente de conflito deverá sempre ser

aplicada a norma mais benéfica às vítimas, independente se a interna ou a

internacional.

Neste sentido, leciona Velerio de Oliveira Mazzuolli, in litteris:

“Dessa forma, com base na própria Carta da República, deve-se entender que em se tratando de direitos humanos provenientes de tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte, há de ser sempre aplicado, no caso de conflito entre o produto normativo convencional e a Lei Magna Fundamental, o princípio da primazia da norma mais favorável às vítimas”.106

_____________

105 Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...) II – prevalência dos direitos humanos. 106 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos humanos & relações internacionais. Campinas, São Paulo: Agá Juris Editora, 2000, p. 133.

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Por base nesse entendimento advindo de interpretação sistemática e

teleológica, especialmente em face da força expansiva dos valores de dignidade

humana107, a entrega de um brasileiro ao Tribunal Penal Internacional nos termos da

Constituição deverá ser interpretada seguindo a mesma linha de raciocínio.

Assim, ainda que se entendesse a entrega como uma forma de extradição,

haveria amparo para ela no ordenamento pátrio, pois embora a vedação da

extradição de nacional ser tida como uma garantia fundamental, ela não exclui

outras decorrentes de princípios, tais como a dignidade da pessoa humana e a

prevalência dos direitos humanos, e de tratados internacionais em que o Brasil seja

parte.

Verifica-se, portanto, que o TPI amolda-se com perfeição no contexto

supracitado, pois é oriundo de um tratado de direitos humanos, em que o Brasil é

Estado Parte, e visa assegurar dignidade humana.

Dessa forma, constata-se que a entrega é uma hipótese de garantia

decorrente de tratado internacional de direitos humanos, que adentra ao

ordenamento brasileiro como norma constitucional, não podendo, portanto, ser

excluída somente pelo fato de haver a garantia de não extradição de nacional.

Então, nesse caso, de aparente conflito, dever-se-ia observar os

ensinamentos de Valerio Mazzuoli e aplicar o princípio da primazia da norma mais

favorável às vítimas.

_____________

107 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2ª Ed., São Paulo : Max Limonad, 2003, p. 45.

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Pôr último, cabe asseverar que qualquer aspecto hermenêutico

constitucional deverá ser fundado no princípio da dignidade humana, o qual é

considerado núcleo essencial da Lex Superior.

Por óbvio, toda a questão de interpretação constitucional abordada neste

item visa dar respaldo para o posicionamento que entendo ser o mais correto, qual

seja, de que os tratados internacionais de direitos humanos, como é o caso do

Estatuto de Roma, tem hierarquia de norma constitucional. Em contrapartida, por

uma questão de honestidade científica torna-se necessária a sistematização das

correntes doutrinárias acerca do tema, as quais serão abordadas no tópico a seguir.

3.3 Os reflexos da Emenda Constitucional 45/2004 no que diz respeito ao Tribunal Penal Internacional e na jurisprudência correlata do Supremo Tribunal Federal

O “endosso explícito” do Estatuto de Roma, referido pelo Doutor Antônio

Paulo Cachapuz, veio por meio da Emenda Constitucional 45/2004 que acrescentou

ao artigo 5º, o parágrafo 4º: “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal

Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.

É importante lembrar que o próprio poder constituinte originário já assinalava

no art. 7º do ADCT que: “o Brasil propugnará pela formação de um tribunal

internacional dos direitos humanos“.

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63

Ora, diante das assertivas supramencionadas parece ser incontestável a

constitucionalidade do TPI, que nada mais é do que uma corte de caráter

permanente e mundial que tem por objetivo principal a proteção dos direitos

humanos.

A constitucionalidade do Tribunal Penal Internacional como um todo,

certamente é indene de dúvida, mas algumas questões polêmicas como a ora

analisada, certamente sempre sofrerá resistência por uma parcela da doutrina que

não está aberta às questões internacionais.

Caberá, assim, ao Supremo Tribunal Federal, que é órgão competente para

o deslinde de questões que envolvam organismos internacionais (artigo 102, inciso I,

alínea “e”, CF), decidir acerca de cada ponto polêmico, dentre eles, a entrega de

nacionais ao TPI.

Desse modo, é importante observar que após a referida EC 45/2004, o

Supremo Tribunal Federal já mostra sinais de mudança no posicionamento,

abandonando o antigo posicionamento consolidado de que os tratados

internacionais, inclusive os de direitos humanos, tinham o status de Lei Ordinária.

Nesse ponto cabe elucidar, que a mudança de posicionamento mostrou-se

no julgamento do RE 466.343/SP, onde o ministro Gilmar Mendes ao analisar a

inserção do Pacto de São José da Costa Rica, tratado internacional de direitos

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64

humanos, no ordenamento brasileiro, já aponta para as quatro correntes acerca do

tema: 108

A primeira é defendida por Celso Duvivier de Albuquerque Mello e

reconhece a natureza supraconstitucional dos tratados e convenções internacionais

de direitos humanos.

A segunda entende que os referidos tratados têm natureza constitucional.

Entendo, por toda a explanação já desenvolvida nos itens anteriores, ser esta a

corrente cientificamente mais correta. São defensores desta tese doutrinadores

como Antônio Augusto Cançado Trindade, Flávia Piovesan, Valério de Oliveira

Mazzuoli e, mais recentemente, o ministro Celso de Mello, que reviu o seu

posicionamento no julgado supracitado.

A terceira corrente atribui aos diplomas internacionais o status de lei

ordinária. Esta corrente já apresenta nítidos sinais de superação, ante a nova

composição do STF.

A quarta e última corrente ganhou um ilustre defensor no julgamento em

comento Ministro Gilmar Ferreira Mendes, que pauta-se na supralegalidade dos

tratados internacionais de direitos humanos, os quais estariam abaixo da

Constituição, mas acima da legislação ordinária. Esta tese já havia sido aventada

pelo Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento do RHC 79.785/RJ em 2000, mas

após a Emenda Constitucional 45/2004, notadamente devido ao § 3º do artigo 5º da

_____________

108 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 466.343/SP. Min. Rel. Cezar Peluso. Brasil. DF, 03.dez.2008. DJE. 104, publicado em 05-06-2009.

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Constituição Federal, o Ministro Gilmar Mendes defende uma postura jurisdicional

mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas

primordialmente à proteção do ser humano, sugerindo, assim, a adoção da tese da

supralegalidade.

O ministro Gilmar Mendes afirma, ainda, que o legislador, no entanto, poderá

submeter o tratado que verse de direitos humanos ao procedimento especial de

aprovação previsto no artigo 5º, § 3º, da Constituição, conferindo-lhes status de

Emenda Constitucional.

Observa-se que a cláusula que afirma a submissão do Brasil à jurisdição do

Tribunal Penal Internacional já passou pelo referido procedimento especial, o que

faz com tenha ganhado segundo Gilmar Mendes, status de Emenda Constitucional.

Por outro lado, entendo ter maior razão o ministro Celso de Mello que com

base em autores renomados elaborou um brilhante voto, subscrevendo a tese da

segunda corrente, que afirma que as alterações trazidas pela emenda constitucional

45/2004, abre a possibilidade de que a matéria disciplinada em tratados de direitos

humanos, as quais são materialmente constitucionais, quando submetidas ao

procedimento especial do § 3º do artigo 5º da constituição se tornem, também,

formalmente constitucionais.

Sob este aspecto, o Tribunal Penal Internacional é materialmente e

formalmente constitucional, encontrando-se perfeitamente incorporado no direito

brasileiro.

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Oportuno lembrar, no entanto, a preocupação aventada pelo ministro Celso

de Mello, na condição de presidente em exercício, ao proferir despacho no primeiro

caso de pedido de cooperação judiciária que objetiva a detenção para ulterior

entrega ao TPI de Omar Hassan Ahmad Al Bashir, chefe de Estado da República do

Sudão,onde assinalou algumas dúvidas em torno da suficiência da cláusula inscrita

no § 4º do artigo 5º da Constituição, para efeito de se considerarem integralmente

recebidas, por nosso sistema constitucional, todas as disposições constantes no

Estatuto de Roma.109

Em que pese as dúvidas suscitadas, por outro lado o ministro Celso de Mello

já aponta a nítida distinção entre os institutos da entrega e da extradição, de modo a

sugerir que não vislumbrará óbices quanto ao deferimento de eventuais pedidos de

entrega.

Esse é, em apertada síntese, o atual quadro doutrinário e jurisprudencial em

que o Tribunal Penal Internacional e, por conseguinte, as suas questões

controvertidas no que diz respeito à compatibilidade com a Constituição Federal, se

encontra.

Embora não se possa precisar qual será a postura do Supremo Tribunal

Federal ante aos pedidos formulados pelo Tribunal Penal Internacional, já se pode

verificar uma maior sensibilidade por parte dos ministros com os tratados que

_____________

109 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pet. 4625. Min. Rel. Ellen Gracie. Brasil. DF, 17.jul.2009. DJE. 145 publicado em 04-08-2009.

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versam sobre direitos humanos, o que se apresenta como um avanço nas relações

internacionais em que o Brasil é Estado Parte.

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68

CONCLUSÃO

É notória a evolução da justiça penal internacional ao longo do tempo. Os

tribunais temporários – Tribunal de Nuremberg, Tribunal de Tóquio, Tribunal Penal

Internacional para antiga Iugoslávia e Tribunal Penal Internacional para Ruanda –

foram criados ante a necessidade de se dar uma resposta às grandes atrocidades

que o mundo viu, principalmente decorrentes da I e II Grande Guerra Mundial.

Tais Tribunais representaram, sem dúvida, um avanço no Direito Penal

Internacional. No entanto, são alvos de inúmeras críticas pelo fato de serem

marcados pela parcialidade e desrespeito a princípios básicos do direito penal, onde

a justiça, muitas vezes, era preterida em favor da política.

Dessarte, a idéia de uma corte penal internacional de caráter permanente,

desprovida dos vícios dos tribunais temporários, ganhava força e viu-se concretizada

com a criação do Tribunal Penal Internacional, uma corte supranacional, de caráter

complementar, que tem por finalidade resguardar direitos humanos e zelar pela

dignidade humana.

A ratificação do Estatuto de Roma da criação do TPI pelo Brasil, fez surgir a

dúvida acerca da constitucionalidade do artigo que obriga os Estados Partes a

cooperarem, entregando a pessoa que tenha cometido qualquer um dos crimes de

sua competência, sem fazer ressalva aos nacionais.

Ao longo do estudo, pode-se perceber que a extradição e a entrega, apesar

de demonstrar um conflito aparente, são institutos distintos, apresentando em seus

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69

conceitos, elementos constitutivos distintos. Assim, a Extradição ocorre entre

Estados igualmente soberanos – cooperação horizontal – e a Entrega ocorre entre

Estado e organismo internacional – cooperação vertical.

Caso ocorra de o TPI solicitar que o Brasil coopere entregando um de seus

nacionais, deverá ser levado em consideração que o estará fazendo à uma corte

supranacional, da qual é Estado Parte e, inclusive, possui uma representante

brasileira como juíza, Sylvia Steiner. Portanto, em nenhum momento sua soberania

estará sendo prejudicada, pois estará cedendo a um pedido de um tribunal

internacional, e não de um Estado. Neste mesmo sentido, cumpre salientar que a

jurisdição do TPI funcionará como um complemento à justiça nacional.

Sob o aspecto constitucional da entrega de nacionais, deverá se observar

que ao interpretar a Carta, no atual sistema aberto de regra e princípios, suas

normas não deverão ser consideradas isoladamente, mas sim como um sistema

unitário, buscando sempre uma interpretação compatível.

Desse modo, primeiramente, constata-se que o Estatuto de Roma é um

tratado internacional de direitos humanos o que faz com que, por base no disposto

no artigo 5º, § 2º, adentre ao ordenamento pátrio com o status de norma

constitucional, conforme disciplina da melhor doutrina.

O segundo aspecto é que o Tribunal Penal Internacional tem como uma de

suas preocupações, resguardar a dignidade humana, que é considerada o primeiro

dentre os fundamentos constitucionais. Dessa forma, deverá servir sempre como

base para interpretação da Lex Superior.

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70

Por último, há ainda que se verificar o disposto no § 4º, do artigo 5º da

Constituição Federal, fruto da EC 45/2004, que explicitou a submissão do Brasil à

jurisdição do TPI. Ademais, o próprio artigo 7º do ADCT, já previa a colaboração do

Brasil na criação de um tribunal internacional de direitos humanos. Estes elementos

demonstram o real intuito da Constituição, qual seja, cuidar para que os direitos

humanos sejam respeitados tanto no âmbito interno quanto no internacional.

Adstrito ao elucidado, outra não poderia ser a conclusão, senão que a

entrega está em conformidade com a Lei Maior, pois além de não se confundir com

a extradição, está prevista no Estatuto de Roma, o qual encontra-se

constitucionalmente protegidos pelos princípios da dignidade humana e da

prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais.

O Tribunal Penal Internacional é uma realidade incontestável que traz

consigo uma nova ordem jurídica internacional, pautada no respeito ao ser humano,

à imparcialidade e aos princípios do direito penal. No entanto, não se objetiva, aqui,

dizer que o TPI é infalível, até mesmo porque embora já tenha iniciado as suas

atividades, ainda se mostra prematuro um juízo de valor quanto à sua atuação.

Em contrapartida, não se pode negar o brilhantismo de sua proposta, pois

não se pode silenciar ante aos extermínios, crimes de guerra e toda sorte de

atrocidades. De fato, o mundo não pode ficar sujeito aos desmandes de uma minoria

que atenta contra a dignidade humana.

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71

Assim, o Tribunal Penal internacional é a esperança de que os que cometam

tal crime, considerado de maior interesse e seriedade internacional, não saiam

impunes.

Neste viés, impende aventar que os Estados Partes não podem, sob o

manto da nacionalidade, deixar de entregar aquele indivíduo que foi capaz de

cometer crimes de extrema gravidade, que afetam a toda comunidade internacional,

deixando vulnerável a segurança da humanidade, colocando em risco os direitos

que foram erigidos à categoria de fundamentais, data a sua máxima importância.

Caberá aos Estados Partes, inclusive ao Brasil, que segundo as mais

recentes orientações da Supremo Tribunal Federal tem se mostrado mais aberto a

estas questões, cooperarem para que o TPI seja eficaz, devendo todos se unirem na

luta contra a impunidade e, em favor do homem, da dignidade e dos direitos

humanos.

A Constituição Brasileira vê o homem como o bem maior, portanto, não fica

difícil extrair que é a favor da inserção de instrumentos que tendem a garantir a paz

mundial. O direito tem que trabalhar para a justiça, e da forma como o Tribunal Penal

Internacional se impõe, a entrega é o meio capaz de assegurar que a justiça penal

internacional alcançará o seu propósito.

Page 72: Flavia Nunes Carvalho06

72

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FLÁVIA NUNES DE CARVALHO

A entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional à luz da Constituição Federal e

das alterações advindas da Emenda Constitucional nº 45 de 2004

Brasília

2009