flexibilidade e dinamismo dos fenÔmenos cognitivos

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2020 Fernanda Costa Vogt COGNIÇÃO DO JUIZ NO PROCESSO CIVIL FLEXIBILIDADE E DINAMISMO DOS FENÔMENOS COGNITIVOS

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Page 1: FLEXIBILIDADE E DINAMISMO DOS FENÔMENOS COGNITIVOS

2020

Fernanda Costa Vogt

COGNIÇÃO DO JUIZ NO PROCESSO CIVIL

FLEXIBILIDADE E DINAMISMO DOS FENÔMENOS COGNITIVOS

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Capítulo 4

COGNIÇÃO, PROVA E RACIONALIDADE

4.1. O OUTRO LADO DA ESPIRAL HERMENÊUTICA: AS QUESTÕES DE FATO E A PROVA

Muito embora entre juristas e processualistas a acepção dada ao nomen iuris “prova” seja, na aparência, intuitiva, existe considerável ganho em pesquisar a etimologia do termo. Na verdade, a constatação não é incomum em relação a conceitos que povoam o dia a dia dos juristas. Não bastasse a centenária polêmica em torno da “verdade” no processo, é necessário dar um passo atrás e conferir de que fenômeno se trata quando se fala em “prova”. 1

A compreensão da prova e dos meios de prova altera-se na medida em que ampliada ou não a sua função demonstrativa da verdade. Quando concebida a verdade como entidade transcendental, de impossível reprodução pelo traçado humano do processo judicial,2 a acepção da prova transmuta--se, porque, por consequência, nenhum esforço probatório seria capaz de chegar ao retrato fidedigno da realidade. De outro lado, a própria cognição judicial sobre as alegações de fato seria formatada de maneira diversa. A cognição estaria desgarrada do convencimento judicial – empreendimento impossível (ou improvável?) –, devendo ser compreendido como simples constatações objetivas que, dentro do espaço amostral dos autos, poderiam levar a determinada conclusão.

1. A ausência de rigor terminológico do legislador e do operador do direito, no campo probatório, já foi observada em doutrina. Vale conferir: “Desde logo, e como exemplo, basta lembrar que nosso Código de Processo Penal, nas disposições gerais sobre o tema (arts. 155 usque 157), emprega a expressão prova em três sentidos diferentes: o art. 155 a utiliza como meio de prova, o art. 156, como resultado de prova e, finalmente, o art. 157, como conjunto dos elementos de prova.” GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro) in YARSHELL, Flávio Luiz, MORAES, Maurício Zanoide (coord.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ Editora, 2005, p.304.

2. CHIMENTI, Francesco. O processo penal e a verdade material: teoria da prova. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 49.

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Convém esclarecer que o objeto da prova é, sempre, uma alegação de fato.3 No processo, o fato não se qualifica como verdadeiro ou falso, mas sim a alegação sobre o fato. O fato em si só pode ser existente ou inexistente.4

Há, ainda assim, restrições admitidas à busca da verdade, o que torna especialmente impróprio conceber o que se fala nos autos como retrato da realidade.5 Exemplo bastante claro em nosso ordenamento é a vedação às provas ilícitas, que impõe evidentes limitações ao alcance da atividade probatória e, por conseguinte, à busca pela verdade.6 Carlos Alberto Alvaro de Oliveira explicava que a busca pela verdade não é fim em si mesmo, mas meio para a aplicação do direito ao caso concreto. Mencionava, além das restrições à admissão de determinadas provas, as limitações materiais do juiz e as provas legais ou tarifadas, meios pré-determinados pelo legislador.7

É evidente que, descartados absurdos, como ignorar que a Terra é redonda, existem fatos que permanecem em uma zona de penumbra, nem sempre possível que, em relação a eles, seja atingido o pleno convencimento do juiz. O juiz os conhece, mas há uma zona de penumbra que permite afirmar que, embora provados, ainda que por inferências lógicas (prova indireta), talvez tais fatos não correspondam à verdade, embora revelem conclusões suficientemente coerentes quando contrapostas as narrativas processuais de cada uma das partes. Isso acontece, por exemplo, na difi-culdade (quase impossibilidade) de provar cabalmente fatos psicológicos, mesmo se socorrendo de regras ou presunções e das, por vezes parcas, manifestações externas do fato.8 No ponto, interessante notar que a nor-ma jurídica, qualquer que seja a sua fonte, é mais um elemento a somar e interferir na cognição do juiz sobre os fatos. Mais uma vez, rompe-se a repartição estanque entre fato e direito.

3. CARNELUTTI, Francesco. La prueba civil (Trad.: Niceto Alcalá- Zamora y Castillo). Buenos Aires: Depalma, 1982, p. 40.

4. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil, vol.2. São Paulo: RT, 2015, p.251. Nesse sentido, arremata José Maria Tesheiner: “(...) o processo judicial não constitui um método de investigação da verdade, mas é apenas instrumento para a produção de uma decisão jurídica”. TESHEINER, José Maria. Direito fundamentais, verdade e processo in Colecao Grandes Temas do Novo CPC, vol. 5. Direito Probatorio. Salvador: Juspodivm, 2016, p.60. Embora resistamos à visão instrumentalista do processo, assiste razão ao autor quando afirma que, diferentemente de ciências exatas ou empíricas, impossível depositar no processo a tarefa de trazer a lume algo tão relativo como a verdade.

5. TESHEINER, José Maria. Direito fundamentais, verdade e processo. Op.cit., p.60. 6. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil, vol.2.

Op.cit., p.245.7. ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do formalismo no processo civil. Op.cit., p.145.8. FERRER BELTRÁN, Jordi; LAGIER, Daniel González. Introducción. Discusiones: prueba, conocimiento y

verdad, ano III, n.3, 2003, p.13.

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Para compreender a discussão, cabe, ainda, visitar os assim chamados “modelos” subjetivo e objetivo da compreensão da prova. Afirma-se que o modelo subjetivo condiz com o convencimento do juiz, ao concebê-lo como destinatário final do factum probandum. A verdade seria, assim, conceito puramente subjetivo, uma tradução da convicção do magistrado sobre os fatos.9 Seria manifestação do “modelo hierárquico” aplicado ao processo, cujo traço marcante seria a triangulação – assimetria – da relação entre juiz e partes.10

O problema desse paradigma remonta, entre outras coisas, à artificial separação entre questões de fato e questões de direito: estando o juiz subje-tivamente convencido, reputa concludente a atividade probatória, indepen-dentemente do direito. A prova estaria relegada então à função “marginal” de convencer o juiz, subjetivamente, sobre as questões de fato, outorgando qualificação jurídica àquelas que lhe pareçam verdadeiras. Não haveria qual-quer parâmetro de controle desse convencimento, mesmo porque o controle estaria, justamente, na interface prévia com as questões de direito.11 Questões de fato e questões de direito eram tradicionalmente vistas como heterogêneas, porque examinadas em isolado, cada uma com seu “instrumental” específico. Às questões de fato, estaria destinado o instrumental do direito probatório, percebido de maneira quase extrajurídica.12

Um grande erro que se originou aí, ao separar as duas espécies questões em compartimentos estanques e incomunicáveis, estava na compreensão de ordenação temporal entre as duas etapas cognitivas.

9. RAMOS, Vitor de Paula. O procedimento probatório no novo CPC in Colecao Grandes Temas do Novo CPC, vol. 5. Direito Probatorio. Salvador: Juspodivm, 2016, p.117. Idem, Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2018.

10. No sentido de que os ordenamentos de civil law não poderiam ser enquadrados no “modelo hierár-quico” de Mirjan Damaska, justamente porque haveria uma horizontalidade entre os juízes, o que fala a favor da repartição de funções. Ao desenvolver suas ideias tomando por base as estruturas de governo, observa que o modelo adversarial caracteriza-se por um formato de disputa entre partes diante de um julgador relativamente passivo, em contraste com o modelo não-adversarial, no qual vige a estrutura daquilo que seria uma espécie de “inquérito oficial”. Enquanto no pri-meiro modelo – coordenado – os sujeitos “não-oficiais encarregam-se da maior parte dos atos processuais; no segundo, os sujeitos “oficiais” são, em maioria, os seus titulares. DAMASKA, Mirjan R. The faces of justice and State authority: a comparative approach to the legal process. New Haven: Yale University Press, 1986, p.3-4. Emmanuel Jeuland enxerga problemas na divisão entre os dois modelos, proposta por Damaska: “However, the Damaskian distinction is not totally helpful since for the topic of court management it may be misleading. It seems that the system is vertical in civil law countries and horizontal in common law countries. In civil law countries, there is not a true hierarchy between judges, since they are all independent. Nevertheless, the court of appeal is a superior court which adjudicates a second time in fact and law.” JEULAND, Emmanuel. Towards a New Court Management? “General Report” apresentado à Conferência Internacional da IAPL em Tianjin (China), 2017, p.9.

11. KNIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. Revista da Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v.3, 2001, p.107.

12. Idem, p.107.

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Cabe notar, porém, que a qualificação jurídica não pode ser momento posterior ao conhecimento dos fatos. O intercâmbio entre esses dois mo-mentos é positivo, mas apenas se torna possível quando todos os sujeitos do processo concorrem para a interpretação tanto de um (fatos) como de outro (direito), ao contrário dos adágios que deixavam os fatos a cargo das partes e o direito a cargo do juiz.

De outro lado, o modelo objetivo da prova exclui de plano o subjeti-vismo do juiz e se pauta em standards probatórios.13 Divorcia-se em larga medida da noção de verdade, porque mantém o objeto da prova adstrito aos fatos alegados nos autos.14

Vitor de Paula Ramos, em defesa da existência de um legítimo dever de provar, mais que o ônus (imperativo do próprio interesse, e, portanto, situação jurídica neutra,15 que pode gerar consequências favoráveis ou des-favoráveis se observada ou inobservada determinada condição prescrita em lei),16 acredita serem incompatíveis o modelo objetivo de prova e o princípio dispositivo, ou seja, o direcionamento da atividade probatória pelas partes.17

Mas o reconhecimento do poder instrutório do juiz18 não conduz (i) à anulação das prerrogativas instrutórias das partes, nem (ii) à impossibilidade de que estas produzam a prova no limite de seus interesses.19 Inadmitir tais constatações seria flertar não com o modelo objetivo de prova, mas com um modelo de irrestrito subjetivismo, que outorgaria ao juiz a qualidade de “senhor da prova”.

No entanto, é impossível pensar a verdade sem relativizá-la, sendo hoje majoritariamente admitido que a verdade é uma espécie de “horizonte de sentido” a dirigir a atuação dos sujeitos do processo, e não como fim últi-

13. KNIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. Op.cit., p.107. Idem, A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.17-37.

14. TESHEINER, José Maria. Direito fundamentais, verdade e processo. Op.cit., p.59. DAMASKA, Mirjan R. Rational and irrational proof revisited. Op.cit., p.29.

15. SILVA, Paula Costa e. O processo e as situações jurídicas processuais” in Teoria geral do processo: panorama doutrinario mundial. Salvador: Juspodivm, 2008, p.794. Compreendendo que, por ser imperativo do interesse da parte, seria o ônus situação jurídica ativa, MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi Medeiros. Ônus da prova e sua dinamização. Salvador: Juspodivm, 2013, p.98.

16. TARUFFO, Michele. O ônus como figura processual. Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 11, n.11, 2013, p.422.

17. RAMOS, Vitor de Paula. O procedimento probatório no novo CPC. Op.cit., p.121. Em monografia sobre o tema, com maiores detalhes, o autor compreende que, enquadrada a prova como ônus, as partes não teriam estímulos para produzir a totalidade de provas necessárias. RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar. Op.cit., p.104-107.

18. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutorios do juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed., 2001.

19. GODINHO, Robson Renault. Negocios processuais sobre o ônus da prova no Novo Codigo de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p.153-154.

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mo da atividade jurisdicional.20 A utopia do alcance da verdade21 reverteria então em uma diretriz, concretizável ou não, para a atuação dos sujeitos do processo,22 mas, repita-se, não poderia ser estabelecida como resultado necessário da atividade probante ou da atividade judicante como um todo.

4.2. PODER PROBATÓRIO DAS PARTES: DISCUSSÕES SOBRE O ÔNUS DA PROVA

Nada do que foi dito anula a existência de interesses específicos das partes na produção da prova, mesmo porque o ônus da prova as incumbe de provar o que foi, por elas, alegado, sob pena de consequências desfavo-ráveis – normalmente identificadas, no extremo, com a sucumbência –, mas pelo menos o reconhecimento da (in)existência de um fato em seu prejuízo.

Nem mesmo seria necessária a positivação de semelhante regra no art. 373 do CPC. No direito alemão, por exemplo, admite-se que o ônus da prova seja inferido do próprio direito material, já que atinente aos fatos constitutivos, extintivos, modificativos ou impeditivos do direito das partes23 – ressalvadas, aqui, as hipóteses de inversão ou modificação, seja por convenção (art. 373, § 3º do CPC), seja em razão da natureza do direito discutido (art. 373, § 1º do CPC), que exija a redistribuição dos ônus para cada uma das partes, como em demandas consumeristas por exemplo.24

Nesse sentido, o ônus da prova atua, sobre as partes, como uma “pres-são” subjetiva para a produção de determinada prova. Essa “pressão”, todavia, mais se relaciona com o interesse subjetivo no acolhimento da pretensão

20. GODINHO, Robson Renault. Negocios processuais sobre o ônus da prova no Novo Codigo de Processo Civil. Op.cit., p.153. CABRAL, Antonio do Passo. Questões processuais no julgamento do mensalão: valoração da prova indiciária e preclusão para o juiz de matérias de ordem pública. Revista de Processo, v.933, jul./2013, p.138. Nesse sentido, compreende-se que entre verdade e prova jamais existiria um vínculo ontológico, mas somente teleológico. KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributario. Op.cit., p.15.

21. Lara Dourado Pereira observa que a verdade permanece como um tabu no Direito, embora já su-perada em outras ciências, presa ao dogma que subordina a aplicação da lei à certeza do juiz sobre os fatos. PEREIRA, Lara Dourado Mapurunga. Negócios jurídicos processuais sobre presunções: uma convenção probatória. Mestrado Acadêmico em Direito, Universidade Federal do Ceará, 2019, p.130. (Há também versão comercial: PEREIRA, Lara Dourado Mapurunga. Negocios jurídicos processuais sobre presuncões. Salvador: Juspodivm, 2020.)

22. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, vol. 2. Processo de conhe-cimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 8ª ed., 2010, p.266.

23. “Aliás, a própria norma contida no art. 333 (atual art. 373) não precisaria da norma de direito material, que requer a presença de certos pressupostos de fato, alguns de interesse daquele que postula a sua atuação e outros daquele que não deseja vê-la efetivada. Recorde-se que o ordenamento alemão não contém norma similar ao art. 333 e, por isso, a doutrina alemã construiu a Normenthe-orie.” MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, vol. 2. Processo de conhecimento. Op.cit., p.274.

24. GODINHO, Robson Renault. Negocios processuais sobre o ônus da prova no Novo Codigo de Processo Civil. Op.cit., p.213-221.

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deduzida do que com um suposto escopo maior – objetivo – de realização da verdade no processo. Como notado por José Carlos Barbosa Moreira, o ônus da prova tem “relevância mais psicológica que jurídica”.25 Na verdade, a perspectiva objetiva do ônus da prova seria a única que importa para o juiz, que, na dúvida, julgaria com base naquelas regras, em sentido contrário à parte que produziu prova insuficiente.

De fato, a vedação ao non liquet exige que o juiz, mesmo em um cenário em que o suporte probatório não seja o mais amplo possível, não venha a se abster de dar uma solução ao caso, o que se manifesta nas normas sobre ônus da prova compreendidas como regras de julgamento (Entscheidungsnormen).26 Essa é uma evidência de que, ao menos em alguma medida, as partes terão objetivos privados, que motivarão o emprego de esforços maiores ou menores na instrução.27 Algumas das provas podem, inclusive, ser favoráveis à posi-ção jurídica da parte contrária, o que justificaria a resistência das partes na ampla produção da prova. Outras vezes, a prova omitida é favorável à parte que a possui, mas nem mesmo a vitória no processo compensaria outras derrotas no mundo da vida que poderiam ser causadas pela revelação de determinada informação que, no processo, lhe geraria a vitória, mas, fora dele, seria excessivamente onerosa.28

Portanto, é necessário analisar a questão com parcimônia. Não se nega a necessidade de um somatório de esforços assim do juiz como das partes, visando à produção da prova necessária a respaldar os fatos narrados em juízo, decorrência lógica do princípio da cooperação (art. 6º do CPC). Por outro lado, o princípio dispositivo em sentido processual, ou princípio do debate (Verhandlungsmaxime),29 não fica de fora da equação, permitindo que as partes tracem as suas próprias estratégias no litígio e não se subordinem a uma verdade que nem mesmo se sabe se efetivamente existe no mundo da

25. BABORSA MOREIRA, José Carlos. Julgamento e ônus da prova in Temas de Direito Processual. Oitava Série. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.75.

26. BABORSA MOREIRA, José Carlos. Julgamento e ônus da prova. Op.cit., p.76. TESHENER, José Maria Rosa; THAMAY, Renan Faria Krüger. Teoria geral do processo em conformidade com o novo CPC. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.11.

27. No ponto, nos distanciamos da visão de Vitor de Paula Ramos, para quem “as partes só não podem ter o direito de ocultar provas, como devem ser gravadas com um dever de produção de provas relevantes”. (RAMOS, Vitor de Paula. O procedimento probatório no novo CPC. Op.cit., p.120-121) Mas a quem prejudicaria a ocultação das provas senão à própria parte a quem incumbe provar o alegado? O interesse público na obtenção da verdade, entidade que o mesmo autor reputa intangível, seria, em litígios privados, justificável?

28. É exatamente o que justifica Vitor de Paula Ramos ao defender a substituição do ônus por situação jurídica passiva, um dever de provar, mais adequado à “busca da verdade”. E arremata: “Mesmo que a prova seja desfavorável, repita-se, a parte não terá opções a não ser levar a juízo a prova que possui. RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2018, p.108.

29. CALAMANDREI, Piero. Direito processual civil, vol. I. Op.cit., p.319-321.

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vida. Deve, assim, ser admitido o poder probatório do juiz com restrições, evitando que suplante o espectro de interesses das partes.

4.3. CONVENÇÕES PROCESSUAIS SOBRE A DELIMITAÇÃO DO FACTUM PROBANDUM

Sendo possível às partes, por acordo, restringir ou substituir a qualifi-cação jurídica, pergunta-se se não seria possível que semelhante raciocínio fosse empregado para as questões de fato.

E, com efeito, um modelo persuasivo-argumentativo de prova caminha nesse sentido. Deixada de lado uma concepção transcendental da “descoberta da verdade”,30 verifica-se que também os fatos conhecidos e descobertos podem ser objeto de convenção entre as partes. Não se faz necessário que o processo corresponda, com exatidão, àquilo que se passou no “mundo lá fora”,31 apenas que haja coerência argumentativa a legitimar os resultados encontrados.32

Um modelo de prova contextual pode ter seu objeto, as alegações de fato, facilmente delimitado pelas próprias partes. Se o art. 357, § 2º do CPC autoriza as partes a convencionarem sobre a delimitação das questões de fato e de direito, equivale a dizer que aquilo que será provado será objeto de acordo. Esse acordo pode ser celebrado em momento anterior ao saneamento processual, já que nem todas as provas serão necessariamente produzidas na fase instrutória – provas documentais pré-constituídas e ainda outras que tiverem sido produzidas antecipadamente. Há, inclusive, a possibilidade de julgamento antecipado quando impertinente a produção de prova que exija dilação mais alargada (art. 355, I do CPC). Dessa forma, é possível que a convenção para delimitar o espectro de fatos a serem provados seja, até mesmo, anterior ao ajuizamento da demanda (ex ante).33

Em um primeiro momento, essa afirmativa poderia soar incongruente, viciados, como estamos, na ordem lógica segundo a qual a produção da prova deve suceder no tempo as alegações de fato. Nessa perspectiva, faria mais sentido defender a delimitação no saneamento, representando um juízo

30. HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. (Trad.: João Vergílio Gallerani Cuter. Revisão da tradução: Sérgio Sérvulo da Cunha.) São Paulo: Martins Fontes, 2012, p.119.

31. De outro lado, Vitor de Paula Ramos é categórico ao aderir a esse posicionamento, evidenciando, em exemplos, a teoria da verdade como correspondência: “A afirmação de que a Terra gira em torno do Sol, nesse sentido, poderá ser verdadeira somente na medida em que for um retrato da realidade, isto é, na medida em que a afirmação corresponder ao Sol, à Terra, e aos seus movimentos que existem, que estão lá fora”. RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da prova no processo civil. Op.cit., p.27.

32. Em sentido contrário, Taruffo entende que semelhante tomada de posição equivaleria a ignorar a função epistêmica das provas. TARUFFO, Michele. O fato e a interpretação. Op.cit., p.93.

33. CABRAL, Antonio do Passo. Convencões processuais. Op.cit., p.83-88.

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sobre quais fatos, entre aqueles suscitados durante a fase postulatória, devem efetivamente ser provados.

Ocorre que, pensada a cognição de maneira flexível e gerenciável (infra, item 5.3), acompanhando a tendente flexibilização do procedimento, é possível que o juiz conheça a prova antes mesmo de conhecer as alegações sobre os fatos. Existindo, portanto, convenção processual ex ante a delimitar o espectro de fatos que poderão ser objeto da prova, esta convenção pro-cessual, conhecida de ofício pelo juiz, poderia impedir a admissão da prova dos fatos excluídos pelo acordo.

4.4. ENTRE AS FUNÇÕES DEMONSTRATIVA E PERSUASIVA DA PROVA

Em doutrina, entre os diversos “modelos” que pretendem explicar o raciocínio sobre a prova, destacam-se as funções, opostas uma à outra, assim chamadas “demonstrativa” e “persuasiva”.

A primeira vertente estabelece como objetivo maior do processo que as narrativas processuais sejam demonstráveis experimentalmente. Significa dizer que, nesse campo, a retórica se torna menos importante, de modo que a versão dos fatos narrada pelas partes cede à pesquisa daquilo que efetiva-mente ocorreu no mundo real.34 A perspectiva demonstrativa, vinculada a uma quase obrigatoriedade de alcance da verdade pelo processo, vê no juiz uma espécie de cientista em seu laboratório, o que justifica a proximidade em relação ao raciocínio experimental.35

Nessa perspectiva, o “outro lado” da espiral hermenêutica é aquele momento quase profético em que o juiz valora a prova das alegações de fato deduzidas em juízo e chega a determinadas conclusões sobre a verdade da vida. No modelo de base silogista, os fatos, enquadrados como premissa menor do raciocínio, não dialogam com o direito dos autos, demonstrados em uma espécie de experimento que busca, ao máximo, aproximar-se daquilo que se passa no mundo real.

Porém, como se sustenta atualmente por muitos, a verdade no pro-cesso tornou-se “verdades”: ora reputada “verdade material”, ora “verdade

34. Nesse sentido, Michele Taruffo critica o narrativismo radical, ao argumento de que um processo que fosse um simples “jogo de narrativas” perderia a razão de ser, de modo que o “narrativismo radical” excluiria qualquer possibilidade de que, eventualmente, as narrativas correspondessem à realidade dos fatos. TARUFFO, Michele. O fato e a interpretação. Op.cit., p.92.

35. CABRAL, Antonio do Passo. Questões processuais no julgamento do mensalão: valoração da prova indiciária e preclusão para o juiz de matérias de ordem pública. Revista de Processo, v.933, jul./2013, p.138.

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formal/processual”.36 Essa pluralidade de adjetivações manifesta a tentativa de compatibilizar a multiplicidade de interesses à falibilidade do juiz e do processo e a busca pela verdade.

Admitidas restrições à busca da verdade, torna-se especialmente im-próprio conceber o que se fala nos autos – as narrativas processuais – como retrato fidedigno da realidade.37 Exemplo bastante claro em nosso ordenamento é a vedação às provas ilícitas, que impõe evidentes limitações jurídicas ao alcance da atividade probatória e, por conseguinte, à busca pela verdade.38

O problema de um paradigma semelhante ao da prova em sentido demonstrativo remonta, mais que tudo, ao artificialismo da separação entre questões de fato e questões de direito: estando o juiz subjetivamente conven-cido dos “experimentos” probatórios, reputar-se-ia concludente e perfeita a

36. Essa é herança do pensamento filosófico que multifacetou a verdade em uma série de sub-conceitos. MANZANO, Luís Fernando de Moraes. Verdade formal versus verdade material. Revista dos Tribunais, vol. 875, set./2008, v. eletrônica, p.2. Para uma abordagem alinhada à teoria da semântica, TARSKI, Alfred. The Semantic Conception of Truth and the foundation of semantics in LINSKY, Leonard (ed.). Semantics and the philosophy of language. Chicago: University of Illinois Press, 1970, p. 341-375.

37. TESHEINER, José Maria. Direito fundamentais, verdade e processo in Colecao Grandes Temas do Novo CPC, vol. 5. Direito Probatorio. Salvador: Juspodivm, 2016, p.60. Susan Haack observa que nem todo enunciado poderia ser qualificado como verdadeiro ou falso. Alguns têm significado excessivamente indeterminado para ter um conteúdo verdadeiro. HAACK, Susan. Truth, truths, “truth” and “truths” in the law. Harvard Journal of Law & Public Policy, vol.26, 2013, p.1.

38. “Limitações probatórias são todas as proibições impostas pelo ordenamento jurídico à proposição ou produção das provas consideradas necessárias ou úteis para investigar a verdade dos fatos que interessam à causa. Essas limitações são de diversas naturezas. Algumas resultam da imposição de prazos e de preclusões pelas normas que regem os diversos procedimentos e a prática dos atos processuais neles inseridos. Outras decorrem da necessidade de assegurar ao processo celeridade e rápida solução, impedindo a produção de provas consideradas inúteis ou procrastinatórias. Outras visam a dar segurança a certas relações jurídicas, mediante a admissibilidade da prova de certos fatos somente por meio de fontes de excepcional qualidade formal, como o registro público, repudiando as demais. Outras, ainda, pretendem impedir que a investigação dos fatos pelo juiz viole preciosos direitos fundamentais da pessoa humana, como a intimidade, a integridade física e a honra, ou preservar o interesse público ao sigilo, o que leva à proibição de provas consideradas ilícitas. E, também em vários casos, a lei ou os costumes impõem limitações à admissibilidade de certas provas que consideram inidôneas, disciplinando a investigação da verdade pelo juiz para que ele não se deixe influenciar por fontes ou por métodos considerados pouco confiáveis ou suspeitos”. GRECO, Leonardo. Limitações probatórias no processo civil. Revista Eletrônica de Direito Processual, v.4, n.4, 2009, p.7. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil, vol.2. Op.cit., p.245. Relativizando o caráter absoluto dessas limitações: “Caberia ao magistrado, exclusivamente, ponderar sobre a necessidade e a conveniência da produção. Se a conclusão for afirmativa, determinaria ele, ex officio, a vinda para os autos da prova obtida ilicita-mente. Evidentemente, o julgador somente poderia utilizar-se desse poder em caráter excepcional, isto é, apenas quando a produção da prova lhe pareça absolutamente imprescindível para que o escopo do processo seja alcançado. E após rigorosa ponderação dos valores que se contrapõem. Assim, apresentando-se essa situação excepcional, o julgador, ao tomar conhecimento da existência de uma prova, determinaria sua produção, ainda que obtida por meio ilegal. A eventual ilicitude não pode afastar por completo o poder instrutório do juiz. No caso em tela, esse poder seria ainda maior, visto que não importaria a parte interessada pretende trazê-la aos autos. Aqui, a iniciativa probatória seria exclusiva do magistrado”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutorios do juiz. Op.cit., 2001, p.146.

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atividade probatória. Confia-se cegamente na certeza do juiz, suficiente para que se diga que está ali descoberta a verdade dos fatos. A prova assumiria função “marginal” de convencer o juiz, subjetivamente, sobre as questões de fato, atribuindo, em momento posterior, qualificação jurídica àquelas que lhe parecessem verdadeiras. Não haveria qualquer parâmetro para o controle desse convencimento.39

É por isso que a hermenêutica redimensiona a análise da postulação e da instrução. Quem haveria de dizer que esse exame judicial solitário repro-duz, por necessário, a verdade da vida? A insegurança seria ainda maior no caso das provas produzidas solitária e supletivamente pelo magistrado, mas omitidas, por vezes propositalmente, pelas partes. Difícil que o juiz, depois de produzir e valorar a prova, pudesse concluir que determinada alegação de fato restou devidamente comprovada, por exemplo, por uma testemunha ou pela realização de uma perícia sequer desejada pela parte interessada. Está aí o primeiro ponto de equívoco.

A teoria da argumentação, aliás, muito contribui para a ruptura de tal paradigma, já que a tópica ensina que a perspectiva importa tanto quanto a realidade, sem que isso signifique que o processo estaria, num modelo per-suasivo, despreocupado com a realidade dos fatos e com a justiça da decisão.

No entanto, a crença de que os fatos poderiam “encaixar” num suposto normativo abstrato é, além de tudo, formalista, porque o raciocínio sobre cada um desses elementos se desenvolveria em plena separação, encontrando-se apenas num momento final de prolação da decisão. Seria um resultado “digno das ciências exatas”,40 incompatível com a cognição do juiz.41

No ponto, Hugo Seiter observou a experiência dos tribunais superiores alemães, concluindo que a separação estanque entre as questões não seria ideal para o sucesso da prestação jurisdicional, e, nem mesmo seria, como observa Hans-Joachim Strauch, analiticamente necessária.42

Haveria alguns fatores responsáveis pela convergência entre essas questões, desde componentes psíquicos – a intuição do juiz e a adesão a máximas de experiência – à possibilidade de descoberta das questões em concreto pelo juiz, em processo circular e simbiótico entre fatos e direito, afastando-se do suposto normativo pré-determinado pelo legislador. Esse raciocínio, na concepção de Seiter, permitiria também que as questões dis-

39. Danilo Knijnik acredita que controle estaria, justamente, na interface prévia com as questões de direito KNIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. Revista da Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v.3, 2001, p.107.

40. LANES, Júlio Cesar Goulart. Fato e direito no processo civil cooperativo. Op.cit., p.36.41. Cf. item 2.2.42. STRAUCH, Hans-Joachim. Methodenlehre des gerichtlichen Erkenntnisverfahrens: Prozesse richterlicher

Kognition. Op.cit., p.549.

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cutidas em um processo singular não perdessem a visão macroscópica, de modo que interesses das partes seriam contemplados e o sistema jurídico estaria muito mais completo. A valoração da prova se daria na interface com a norma jurídica construída no processo, evitando que o juiz reconhecesse a assertividade das proposições fáticas com base na íntima convicção.43 Faz-se necessário, portanto, um modelo de prova em sentido persuasivo, construído intersubjetivamente por todos os sujeitos (partes e juiz).

Não ousaríamos dizer, nesse contexto, que inexiste verdade. Nem aqui desejamos a incursão numa discussão que ultrapassa os muros deste traba-lho e do direito em si. Mas, certamente, seria uma tarefa quase impossível, e incontrolável, afirmar o absoluto desvendamento da verdade pelo juiz.44 Por essa razão, a prova atuaria como justificativa para as teses jurídicas argumentativamente desenvolvidas no processo. Acentua-se, portanto, o componente retórico-persuasivo.45

Dessa forma, em sentido persuasivo, a prova tem a função de convencer o juiz. É, portanto, uma construção argumentativa e intersubjetiva, com base nas alegações trazidas por cada uma das partes. O juiz será convencido de uma ou algumas teses sustentadas em juízo, não porque conheça efetivamente o que ocorreu no mundo real (vertente demonstrativa), mas porque as par-tes, no exercício do contraditório efetivo, fizeram com que formasse a sua convicção em um determinado sentido. Ressalta-se, portanto, a passagem da “lógica das verdades” para a “lógica da argumentação e das probabilidades”,46 expressões que traduzem bem o contraste entre os modelos demonstrativo e persuasivo de prova.

Nota-se, em última análise, que as partes buscam persuadir o juiz atra-vés da produção da prova, mesmo porque o ônus da prova as incumbe de provar o que foi por elas respectivamente alegado, mas não necessariamente desejam reproduzir em juízo precisamente o que ocorreu na realidade. O interesse das partes é, portanto, relativo. Por vezes, para uma das partes, é mais interessante ser sucumbente em um processo específico em que deixa de arrolar determinada testemunha que, na vida real, é sua grande inimi-

43. SEITER, Hugo. Beweisrechtliche Probleme der Tatsachenfeststellung bei richterlicher Rechtsfortbil-dung in GRUSNKY, Wolfgang; STURNER, WALTER, Gerhard; WOLF, Manfred. Festschrift für Fitz Baur. Tubingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1981, p.581-593.

44. CABRAL, Antonio do Passo. Questões processuais no julgamento do mensalão: valoração da prova indiciária e preclusão para o juiz de matérias de ordem pública. Op.cit., p.140.

45. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, vol. 2. Processo de conhe-cimento. Op.cit., p.265. Essas ideias também estão presentes em obra específica dos dois autores sobre o tema: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e conviccao. São Paulo: Revista dos Tribunais, 4ª ed., 2018.

46. CABRAL, Antonio do Passo. Questões processuais no julgamento do mensalão: valoração da prova indiciária e preclusão para o juiz de matérias de ordem pública. Op.cit., p.140.

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ga, mas foi a única que presenciou os fatos discutidos em juízo e poderia favorecê-la (seria essencial para “demonstrar” o que de fato ocorreu). Essa hipótese seria inconcebível para o modelo demonstrativo, que entende a prova como um espelho daquilo que se passou na realidade, tendo o juiz o papel e a missão de trazê-la para o processo, inclusive de ofício e indepen-dentemente da vontade das partes.

Já a persuasão resultante da atividade argumentativa das partes é, de todo modo, uma persuasão racional, que não se confunde com o simples convencimento – daí a necessidade de que o juiz especifique, objetivamente, o itinerário lógico de seu raciocínio ao fundamentar as decisões em que valora e aplica a prova.47

4.5. COMPARTILHAMENTO COGNITIVO: AS DIVERSAS VOZES PRESENTES NA INSTRUÇÃO

Uma das pré-concepções que informam a atividade judicante sobre os fatos é a própria lei, o que soa, ao mesmo tempo, evidente e estranho. A linha tênue que separa fatos e direito torna esses hemisférios, por vezes, confundíveis.48

No ponto, interessante notar que a norma jurídica (oriunda de lei ou de precedente) é mais um elemento a somar e interferir na cognição do juiz sobre os fatos.49 Mais uma vez, rompe-se a repartição estanque entre fato e direito.50 É, como se viu, o que justifica a insustentabilidade do iura novit curia tal como concebido tradicionalmente.

Mas existem ainda outros fatores que limitam o conhecimento do juiz e que, na verdade, demonstram que a atividade cognitiva sobre fatos e direito é apenas uma das atividades de conhecimento possíveis no processo judicial. Em outros termos, há questões que dependerão do conhecimento de outros sujeitos, como é o caso das questões técnico-científicas.

Para Mirjan Damaska, tudo passa pela diversidade da natureza e do grau de cognoscibilidade das questões de fato. Salienta-se que, por vezes, o processo judicial também se vê confrontado com assim chamadas questões “brutas”, que pertenceriam ao conhecimento específico de outras ciências, distintas da ciência jurídica. Isso se refletiria nas demandas que versam

47. Amplamente, TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova: CEDAM, 1975. 48. DAMASKA, Mirjan R. Rational and irrational proof revisited. Op.cit., p.27-28.49. “Quando se pergunta por uma solução jurídica para uma determinada controvérsia, há uma unicidade

problematica que impossibilita pensar-se metodologicamente algo que, como “fato”, se distinguisse absolutamente do ‘direito’.” TRENTO, Simone. As cortes supremas diante da prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p.23.

50. Amplamente: UBERTIS, Giulio. Quaestio facti e quaestio iuris. Revista Internacional sobre Razonamiento Probatorio Quaestio facti, Madrid, 2020, p.67-74.

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questões puramente científicas, resolvidas, através da prova técnica, pelo empréstimo de um raciocínio externo àquele que toma espaço, por exce-lência, no processo.51

De fato, a prova técnica é capaz de provar A + B, o que dispensa o juiz de maiores divagações. Ainda que se advirta que o magistrado não fica necessariamente vinculado às conclusões da análise pericial, dele se exige acentuada fundamentação para delas se afastar, não podendo, por simples ato de vontade, desconsiderá-las.

Nessa ordem de ideias, Damaska questiona a racionalidade das decisões judiciais que afastam a incidência de determinada prova técnica, já que seria uma contradição em termos que o intérprete dos fatos – o juiz –, por lhe faltar expertise na área, se vinculasse a uma opinião técnica que posterior-mente ele mesmo valoraria, inclusive resolvendo conflitos entre os experts convocados em juízo. Em sua opinião, essa lógica, que se pretende racional, comprometeria em elevada medida o almejado alcance da “verdade”.52

O que se vê, sobretudo, é um cenário de compartilhamento cogniti-vo. O juiz não detém, em monopólio, todo o conhecimento necessário ao processo. E a opinião técnica do perito é apenas mais uma das vozes que se apresentarão em juízo. Nesse cenário, a opinião técnica não se vincula à categoria das “questões de fato”, tampouco das “questões de direito”. O expert, por vezes, nem mesmo analisa de forma aprofundada as alegações aduzidas, como no caso de uma perícia contábil, que se limita a apresentar cálculos muito específicos, sem adentrar o horizonte de fatos discutidos.

Dessa forma, o perito não conhece o direito, mas contribui de forma decisiva para o processo, através do compartilhamento de conhecimento científico que só o especialista detém. Em tais casos, o raciocínio experimen-tal, embora tenha como matriz ciência exata ou da natureza, ganha espaço, convivendo com o conhecimento jurídico, próprio das ciências humanas. Não basta dizer que a cognição do juiz será limitada pela atuação desses sujeitos. Mais do que isso, pode-se afirmar que a cognição “global” no processo será compartilhada entre diferentes centros.

4.6. RACIONALIDADE DA COGNIÇÃO SOBRE OS FATOS: COGNIÇÃO INFORMADA POR ORÁCULOS?

No bojo desse debate, está outra discussão – bem mais extensa do que aqui se pretende expor – sobre a racionalidade dos meios de prova. Um modelo que privilegia a prova em sentido persuasivo deve se preocu-

51. TRENTO, Simone. As cortes supremas diante da prova. Op.cit., p.27.52. Idem, p.32.

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par também com a racionalidade dos meios de prova. E a racionalidade da prova, sua razão de ser e os elementos que a tornam legítima não podem se desvencilhar do caso concreto e da discussão quanto ao direito material.

Vale dizer: nem sempre os meios de prova atuais são mais racionais em comparação a mecanismos empreendidos no passado. Basta pensar no exemplo do julgamento lastreado em ordálias, consistentes, basicamente, na crença generalizada no poder de elementos como água e fogo, manipulados por um clérigo-mago por eles informados.

Embora aparentemente “irracionais”, as ordálias guardavam corres-pondência com a realidade sociocultural da época,53 mais verossímil do que a atividade de um juiz que, no mundo contemporâneo – em que, desde o Iluminismo, ressignificado, no século XX, pela virada hermenêutica na filosofia da linguagem, imperam a lógica e a razão – viesse a lançar mão de meios muito mais aleatórios, como a sorte dos dados ou de uma moeda, mas que, com respaldo em eventual fundamento legal cabível, justificassem externamente a sua decisão com um mínimo de racionalidade.54

A questão não é nada simples. Aponta-se, nesse sentido, que os rituais eram justamente o que conferiria racionalidade às ordálias, e lhes retirar o valor seria um traço de supervalorização da cultura moderna em detrimento da cultura medieval e da racionalidade interna de seu sistema de justiça.55 Essa ideia, na verdade, alinha-se com a perspectiva aqui adotada, de um estado interpretativo comunitário, de racionalidade resultante do consenso. A

53. A questão, todavia, é polêmica, e encontra resistência no pensamento filosófico justamente em razão da impossibilidade de controle externo da cognição lastreada em dogmas religiosos ou em intuição: “Perhaps most challenging of all is the general academic-philosophical prejudice against the threatening proximity of intuitive, mystical, or even simply more emotional modes of mind to the cold calculations of pure reason, especially when such calculations appear in principle to be open, democratic, and formally unimpeachable in contrast with the dark and esoteric yearnings expressed in the gnomic pronouncements of initiates.” RAMEY, Joshua. The hermetic Deleuze; Philosophy and Spiritual Ordeal. Durham and London: Duke University Press, 2012, p.6. Em dissertação sobre o tema, Milene Chavez Goffar Majzoub apontar ser comum entre historiadores e juristas considerar as ordálias irracionas: “A partir dos anos de 1970, há uma profusão de estudos sobre o ordálio, especialmente no domínio anglo-saxão. É relevante que a retomada deste tema tenha sido motivada justamente por uma reação contra a história do direito, que como dissemos anteriormente, classifica os ordálios como meio de prova irracional. Desde então, os maiores esforços têm sido no sentido de se rea-valiar a historiografia dos ordálios e qualificá-los como racionais.” MAZJOUB, Milene Chavez Goffar. Juízos de Deus e justiça real no Direito Carolíngio: estudo sobre a aplicação dos ordálios à época de Carlos Magno (768-814). Dissertação de Mestrado em História da Arte e da Cultura apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, 2005, p.19-21.

54. DAMASKA, Mirjan R. Rational and irrational proof revisited. Op.cit., p.31-32. Remete-se, no ponto, à distinção feita entre contexto de descoberta e contexto de justificação no item 2.4.3.

55. É por essa razão que Rebecca V. Colman questiona quais os standards que justificariam uma suposta irracionalidade das ordálias alegada por aqueles que buscam denegrir institutos medievais, baseados, a seu ver, em puro preconceito. COLMAN, Rebecca V. Reason and unreason in Early Medieval Law. Journal of Interdisciplinary History. Spring, vol.4, 1974, p.571.

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ordália seria, nesse cenário, um “instrumento de coesão social”, a promover ambiente propício ao consenso.56 Dessa forma, a cognição informada por ordálias seria de certo modo racional, na medida em que consentida e assim, legitimada internamente pela comunidade que sofreria as consequências daquela atividade cognitiva.

Comparando a prática das ordálias à cognição exercida pelo júri civil nos países anglo-americanos, Bruno Cavallone compreende que o júri, em-bora se possa dizer que também emite “respostas apodíticas e imotivadas”, efetivamente representaria a compreensão e o conhecimento do povo, e este seria seu fator de legitimação; as ordálias, ao contrário, seriam informadas por razões que por definição o povo não poderia conhecer nem compreender. Assim, seu fator de legitimação adviria unicamente da identidade do juiz.57 Isso, porém, não reduziria sua legitimação, dependendo, antes de tudo, do contexto em que inserida. Nessa linha de raciocínio, Cavallone firma posição no sentido de que uma sentença atual amparada em provas científicas não é mais “justa” do que uma decisão proferida em outros contextos sociais e culturais com base nas ordálias de fogo.58

Fica claro, portanto, que o tema da racionalidade está diretamente vinculado ao conhecimento. Para Habermas, a racionalidade teria menos que ver com a posse do conhecimento do que com a forma de aplicá-lo, determinando como os sujeitos capazes de falar e agir empregam o saber.59

A racionalidade não se confunde, de todo modo, com a verdade – conferência objetiva da ocorrência dos fatos –, nem a ela se reduz.60 A ra-

56. “A interpretação de maior repercussão, no caminho aberto por Rebecca V. Colman, foi formulada por Peter Brown. Para o autor, o ordálio consistia em “uma solução satisfatória para algumas dificuldades (...) e neste contexto é racional”. Assim, se o ordálio desempenha uma função em um dado grupo social, não há como negar-lhe – ao menos – uma racionalidade prática. A quais propósitos poderia atender a execução deste procedimento? Para Brown, o ordálio faria sentido como um instrumento de coesão social de pequenos grupos, engajando a participação de todos membros da comunidade em um longo ritual no qual haveria um ambiente favorável à negociação, antes mesmo que a prova física se consumasse. Com isso, sugere Brown que o ordálio seria racional por produzir decisões consensuais, evitando dissensões no grupo. A tese funcionalista de Brown fez fortuna especialmente entre os historiadores da tradição anglo-saxã, tanto em adeptos, quanto em críticos.” MAZJOUB, Milene Chavez Goffar. Juízos de Deus e justiça real no Direito Carolíngio: estudo sobre a aplicação dos ordálios à época de Carlos Magno (768-814). Op.cit., p.22.

57. CAVALLONE, Bruno. En defesa de la verifobia: consideraciones amigablemente polémicas sobre un reciente libro de Michele Taruffo. Op.cit., p.17.

58. CAVALLONE, Bruno. Riflssioni sulla cultura della prova. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, 2008, p.497. WHITMAN, James Q. The origins of reasonable doubt: theological roots of the criminal trial. Londres: Yale University Press, 2008, p.57.

59. HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: racionalidade da acao e racionalizacao social. (Trad.: Paulo Astor Soethe). São Paulo: Martins Fontes, 2012, p.31-32.

60. Problematizando o critério da “objetividade” e sustentando que deveria ceder frente à “relatividade”: “Intentemos imaginar, en efecto, para ayudarnos com um banal ejemplo escolástico, que un juez de edad y de cultura “precopernicanas”, al decidir un caso que se le há confiado, hubiese aplicado como ‘regla de experiencia’ consolidada, aquella según la cual el Sol gira alrededor de la Tierra.

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cionalidade, em perspectiva comunicativa é, de certa forma, cambiante, de modo que sujeitos distintos podem aplicar o mesmo saber de modo diverso. Este saber, argumentativamente, liberta-se por completo de dicotomias como verdadeiro/falso, já que o que importa para a racionalidade do conhecimento é o modo de aplicação do saber, tornando factíveis inconsistências quando aplicados por sujeitos distintos, que, naturalmente, lhe darão aplicação diver-sa.61 Essa é uma boa razão, inclusive, para que o processo, como construção argumentativa, satisfaça-se com outros valores para além da verdade.

Exemplo é o estudo de Oscar Chase sobre uma tribo africana chamada Azande,62 que, para resolver os litígios, dava uma dose de veneno a uma ave e aguardava sua reação, de origem, segundo acreditavam, divina, de modo que a sobrevivência ou não do animal seria manifestação da vontade oracular sobre a resolução da disputa. Essa discussão é bastante extensa. Já se sustentou que os rituais “zande” teriam uma racionalidade própria e que contradições aparentes poderiam ser expurgadas se houvesse a sistemati-zação de seus dogmas e conceitos sobre feitiçaria (qual seria a regra, quais seriam as exceções),63 mantendo-se, portanto, a coerência interna daquele sistema de crenças.

Entendo que o ponto de inflexão é a aceitação de cada comunidade, ou seja, a aceitação interna de cada específico ritual.64 De nada adianta ver a cognição como complexo processo criativo-interpretativo se se vier a defender que, numa sociedade como a tribo Azande, não haveria qualquer legitimi-

Ateniéndose al criterio de “relatividad” enunciado por Taruffo (y por mí), aquel juez habría tomado uma decisión verdadeira y justa. Ateniéndose a su criterio de ‘objetividad’, aquella decisión habría sido, por el contrario, errónea e injusta, dado que ‘el mundo, tal como es’ [provocadoramente quisera decir: como hoy todos estamos convencidos de que es (...)] es lo que gira, pacíficamente, alrededor del Sol.” CAVALLONE, Bruno. En defesa de la verifobia: consideraciones amigablemente polémicas sobre un reciente libro de Michele Taruffo. Op.cit., p.26.

61. HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: racionalidade da acao e racionalizacao social. Op.cit., p.35-36.

62. CHASE, Oscar. Law, culture and ritual: disputing systems in cross-cultural context. New York: New York University Press, 2005, p.17-22. Curiosamente, o mesmo exemplo é apresentado em texto não jurídico sobre a teoria do conhecimento, MOSER, Paul L.; MULDER, Dwayne H.; TROUT J. D. A teoria do conhecimento: uma introducao tematica Op.cit., p.146-147.

63. MOSER, Paul L.; MULDER, Dwayne H.; TROUT J. D. A teoria do conhecimento: uma introducao tematica Op.cit., p.145-147.

64. OSNA, Gustavo. Processo civil, cultura e proporcionalidade: analise crítica da teoria processual. Op.cit., p.52. Nesse sentido a afirmativa de Rebecca V. Colman, contestando a racionalidade de cada um desses sistemas: “(...) any judgment must be directed at the functional relationship between certain legal procedures and their particular social context. We can no longer assume that what is literate, discrete and bureaucratized is ipsto facto rational. If, instead of pursuing the myth of reason trium-phing over unreason, we accept what appears to be perennial factor in observable human societies, namely, a sustaining tension between cognitive and affective processes, the rational and irrational elements in medieval judicial procedures, as in our own, can be treated as constituent parts of one system and explained in terms of their particular social context.” COLMAN, Rebecca V. Reason and unreason in Early Medieval Law. Op.cit., p.571-572.

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dade para os provimentos resultantes desse processo cognitivo racional.65 Justamente por isso, a semelhança entre o nosso processo e aquele é maior do que poderíamos imaginar: lá, um modelo que desconsidera a vontade dos oráculos seria igualmente incomum, por ser a verdade oracular aceita de maneira inquestionável.66 Em um ou em outro contexto, Gustavo Osna explica que o juiz, como um músico, “toca a mesma nota, mas com afinação adaptada ao gosto da plateia”.67 Mais uma vez, a conclusão não varia: o juiz não pode conhecer totalmente sozinho.

Por outro lado, vale observar que a dúvida, a incerteza e o desconhe-cimento são mal administrados no processo. Os mecanismos divinos que informam a cognição têm em comum com o modelo demonstrativo de prova a adoção de esquemas incompatíveis com a falibilidade do juiz68 e do procedimento em si, no anseio por minar a incerteza a todo custo, ou, apenas, aliviar o peso de uma decisão incorreta em caso de dúvida.69

Mesmo porque, superada a teoria de Dworkin segundo a qual para cada conflito existiria uma única resposta correta (one right answer), certo e errado são elementos que nem sempre se coadunam com a cognição do

65. Equívoco comum está na pretensão de universalidade para a racionalidade do direito, mais adequada quando vinculada a determinado sistema, como observou Matthias Klatt: “Essa pretensão de univer-salidade desconsidera que a dimensão autoritativa ocorre de modo diverso em todo o mundo, nos vários países e épocas distintas”. KLATT, Matthias. Argumentação jurídica e devido processo legal (Trad.: Luiza A. B. Borges) in TOLEDO, Cláudia (Org.). O pensamento de Robert Alexy como sistema. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p.69.

66. É a reflexão de Gustavo Osna, que separa o observador interno do observador externo. OSNA, Gustavo. Processo civil, cultura e proporcionalidade: analise crítica da teoria processual. Op.cit., p.52-53. Remetemos a emblemático estudo no campo da antropologia que adota justamente a perspectiva de observador externo sobre a sociedade americana do século XX, narrando seus hábitos e costumes com a mesma estranheza que se costuma empregar para referir às sociedades e grupos indígenas: MINER, Horace. Ritos corporais entre os Nacirema in ROONEY, A. K.; DE VORE, P. L. (Org.). You and the others - Readings in Introductory Anthropology. Cambridge: Erlich, disponível em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/364413/mod_resource/content/0/Nacirema.pdf, acessado em 03/06/2019.

67. OSNA, Gustavo. Processo civil, cultura e proporcionalidade: analise crítica da teoria processual. Op.cit., p.51-52.

68. Outro aspecto relevante sobre as limitações cognitivas que devem ser levadas em conta é a falibilidade da memória do juiz, que, sendo, antes de tudo, humano, está suscetível a esse tipo de “erro” que nem sempre é considerado no modelo demonstrativo de prova, pelo qual a absoluta convicção do juiz equivaleria à descoberta da verdade. SENOR, Thomas D. Epistemological Problems of Memory in ZALTA, Edward N. The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2014 Edition, disponível em https://plato.stanford.edu/archives/fall2014/entries/memory-episprob/, acessado em 15/06/2019.

69. Na aparência, sistemas demonstrativos seriam mais seguros: “Numa demonstração, tudo é dado, quer se trate de um sistema hipotético-dedutivo, quer sejam os axiomas fornecidos pela intuição racional ou sensível. Na argumentação, pelo contrário, as premissas são alteráveis. No decorrer da argumentação, elas podem enriquecer-se; mas são, por outro lado, sempre precárias, a intensidade com que se lhes adere se modifica. A ordem dos argumentos será portanto ditada, em grande parte, pelo desejo de ressaltar novas premissas, de dar presença a certos elementos e de obter certos envolvimentos de parte do interlocutor.” PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentacao: a nova retorica. (Trad.: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão). São Paulo: Martins Fontes, 2ª ed., 2005, p.557.

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juiz – repita-se mais uma vez, essencialmente diferente da cognição do cientista. O medo excessivo da incerteza pode levar a decisões destituídas de racionalidade, divorciando-se de vez de um modelo cognitivo pautado pela retórica e pela interpretação como defendido no capítulo 2.

Por mais incomum que pareça, mesmo na pós-modernidade, haveria espaço para que meios considerados aleatórios viessem a influir quando estivesse o juiz confrontado com um hard case – ou simplesmente incerto das alegações de uma testemunha ou da confiabilidade de determinada prova pericial, ou mesmo em dúvida quanto à interpretação de determinado fato alegado ou quanto ao texto normativo ali incidente –, parecendo-lhe, em alguns casos, menos prejudicial deixar que a sorte por ele decidisse.

Na verdade, a crença nos meios de prova tradicionais ou medievais poderia ter um fator de legitimação até maior do que eventual decisão que, nos dias de hoje, seja externamente justificada na razão. Esses mecanismos tinham como base dogmas intransponíveis, nos quais as partes e os jurados acreditavam piamente, por vezes de forma mais intensa do que hoje em dia os jurisdicionados confiam nas leis.

Num exemplo hipotético, seria possível supor que, na Idade Média, quem faltasse com a verdade ao depor em juízo temia sofrer não as penas da lei, mas castigos divinos, pressão muito maior para que não faltasse com a realidade, aumentando as chances de que a decisão prolatada correspon-desse ao que se passava no “mundo lá fora”. O mesmo temor pressionava o julgador para que fosse assertivo em suas conclusões, mesmo porque sua investidura, ela mesma, guardava justificação divina, razão pela qual o juiz temeria muito mais as consequências caso não correspondesse à vontade suprema que o legitimava.70

Àquele tempo, o temor do castigo divino assombrava os julgadores, o que comprometia a instrução e a cognição. Essa circunstância foi respon-sável por uma série de absolvições plasmadas no receio de eles mesmos serem castigados caso condenassem alguém à morte. Assim se constatava que o juiz não buscava conhecer as provas e reconstruir os fatos, mas, de certo modo, tanto quanto possível, conduzir a conclusões que permitissem a absolvição.71

70. WHITMAN, James Q. The origins of reasonable doubt: theological roots of the criminal trial. Op.cit., p.18. 71. “Premoderns judges were often assailed by anxieties. In consequence, they often were not seeking

factual proof so much as they were seeking moral comfort.” WHITMAN, James Q. The origins of rea-sonable doubt: theological roots of the criminal trial. Op.cit., p.10. Nesse ambiente ocorreu a gênese do standard probatório “além da dúvida razoável”, que, de certo modo, servia de estímulo para que o juiz se sentisse mais à vontade para condenar os réus quando houvesse prova além da dúvida razoável da culpabilidade do réu, sendo suficiente à condenação.”

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Na nossa realidade, a noção mais pura de racionalidade também não prevalece sempre. Basta pensar que as decisões justificadas em ônus da prova são menos fundamentadas e racionais, mas têm um fator de legitimação relevante já que dependem de condutas das próprias partes.

Nota-se, assim, que a vinculação entre cognição e razão nem sempre é perfeita e, principalmente, que o fator legitimante de determinado “contexto de descoberta” do juiz varia através dos séculos, recebendo influxos diretos dos valores que informam a cultura e a sociedade em que ocorre aquela atividade cognitiva.

4.6.1. A coerência do sistema jurídico: racionalidade interna e externa

A legitimação dos mecanismos empreendidos para a formação do conhecimento do juiz tem muito a ver com a noção de coerência. Assim, pretendemos defender a noção de coerência como adequação argumen-tativa,72 na ideia de que existiriam incentivos para a vinculação de deter-minada proposição ou decisão ao sistema jurídico vigente a depender do contexto cultural.

Na explicação de Aleksander Peczenik, a coerência teria uma dimen-são denominada racionalidade substantiva ou sustentadora (“S-rationality”), sendo perfeitamente atendida quando todas as premissas são racionais, de modo que a coerência é precisamente o que dá sustento aos componentes de um todo racional. Se não houver coerência, passa a ser possível modificar individualmente cada um desses elementos, que se sustentam uns nos ou-tros. É o que Peczenik denomina equilíbrio reflexivo, segundo o qual haveria uma relação recíproca entre observação e linguagem e, ainda, reconduzindo à noção de espiral hermenêutica,73 já exposta no capítulo 3 deste trabalho. Assim, um sistema equilibrado – coerente – seria aquele no qual os seus elementos estabelecem relações recíprocas entre si: um é fonte de sustentação para o outro, de tal forma que as partes só podem ser compreendidas com

72. Vislumbrando a diferença entre consistência e coerência “O argumento sistemático visa à consistência e à coerência. Consistência é uma característica formal e consiste na ausência de qualquer contradição lógica entre os elementos de um ordenamento jurídico, a saber, normas, interpretações, precedentes e contribuições doutrinárias (MacCormick, 1984, p.37). Coerência, por outro lado, é uma qualidade material que objetiva a conectividade substancial desses elementos em relação a um todo. Ambos os aspectos do argumento sistemático podem ser muito bem explicados com o auxílio da exposição de Dworkin sobre interpretação jurídica. Ele os combina em sua ideia de interpretar o direito como sistema (“integridade”). Consistência é compreendida pelo elemento “ajuste” de Dworkin: o juiz deve ajustar seus julgamentos ao conjunto de precedentes (Dworkin, 1982, p. 166 ss., 1986, p. 228-232). Em contrapartida, coerência é estabelecida mediante “justificação”, a qual necessariamente implica questões substanciais de moral política.” KLATT, Matthias. Argumentação jurídica e devido processo legal (Trad.: Luiza A. B. Borges) in TOLEDO, Cláudia (Org.). O pensamento de Robert Alexy como sistema. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p.59-60.

73. PECZENIK, Aleksander. On law and reason. Sweden: Springer, 2008, p.105-106.

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a compreensão do todo, mas esse todo só é coerente e completo em razão dessa simbiose.74

Mais do que a simples consistência lógica, a coerência é o que garante a integridade da interpretação, na compreensão do direito como um sistema. Assim, a coerência deve informar a atividade de interpretação em si e, ainda, a externalização da interpretação por meio da justificação.75

Nesse sentido, a teoria da verdade como coerência (the coherence theory of truth) condiciona o conhecimento ao momento histórico, aos rituais vigentes e, mais que tudo, ao conhecimento externo ao processo, a valores que identificam o que é certo, errado, verdadeiro ou falso em determinada sociedade ou contexto.76 Nesse sentido, a realidade seria como uma coleção de crenças (a collection of beliefs), partes de um todo, que deveriam se manter coerentes entre si.77 Por outro lado, só seria possível saber que uma proposição corresponde a um conjunto de crenças e convicções, mas jamais à verdade, aos fatos objetivos que efetivamente ocorreram. Essa inferência contextual, todavia, seria um bom indicativo da correspondência entre a proposição e os fatos.78 Do ponto de vista externo, portanto, a correspondência com a verdade seria inalcançável ou, ao menos, incomprovável, bastando a correspondência entre determinadas proposições e o contexto histórico-cultural existente.

Internamente, porém, a proposição ou a interpretação será reputada coerente se estiver em consonância com o sistema jurídico-normativo vigente – regras, princípios e valores que o informam –, consistindo a coerência, para Strauch, na adequação/vinculação ao sistema jurídico-normativo.79

Mais uma vez, acentua-se a distinção entre os contextos de descoberta e de justificação para a resolução das questões. É impossível precisar o que

74. LUHMANN, Niklas. Operational closure and structural coupling: the differentiation of the legal system. Cardozo Law Review, n.13, 1992, p.1422-1425.

75. PECZENIK, Aleksander. On law and reason. Op.cit., p.105. 76. “Demonstra-se a relatividade da verdade como coerência pois há possibilidade de que o sistema

de crenças se modifique em razão do local onde se situa a sociedade, com o decorrer do tempo e também com o meio analisado. Afirmações que são coerentes para pessoas que vivem no litoral podem ser incoerentes com relação àquelas que vivem no campo, por exemplo.” PEREIRA, Lara Dourado Mapurunga. Negócios jurídicos processuais sobre presunções: uma convenção probatória. Mestrado Acadêmico em Direito, Universidade Federal do Ceará, 2019, p.24. (Há também versão comercial: PEREIRA, Lara Dourado Mapurunga. Negocios jurídicos processuais sobre presuncões. Salvador: Juspodivm, 2020.)

77. Essa compreensão era especialmente comum na vertente metafísica da teoria da coerência que, nos dias de hoje, não encontra tantos adeptos, mas era bastante comum no idealismo filosófico, no pensamento de autores como Spinoza, Kant, Fichte e Hegel. YOUNG, James O. The Coherence Theory of Truth. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Fall 2018 Edition, disponível em https://plato.stanford.edu/archives/fall2018/entries/truth-coherence/, acessado em 05/06/2019.

78. YOUNG, James O. The Coherence Theory of Truth. Op.cit.79. STRAUCH, Hans-Joachim. Methodenlehre des gerichtlichen Erkenntnisverfahrens: Prozesse richterlicher

Kognition. Op.cit., p.594-597.

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se passa no contexto de descoberta do juiz, ou seja, se o juiz está, de fato, intimamente certo e convicto, quais as motivações intimamente adotadas e, principalmente, se os elementos racionais externos da justificação estão ali apenas para mascarar um estado de dúvida irresolúvel que, por força da absoluta vedação ao non liquet – mais uma manifestação da aversão da dogmática processual à dúvida –, deixou a questão à definição de meios aleatórios, religiosos ou quaisquer outros. Foi essa postura, inclusive, respon-sável por um verdadeiro “fetiche pela prova técnica”,80 como a única capaz de conduzir a um estado absoluto de certeza para o juiz.

Impossível saber se fator determinante para o juiz julgar ou simplesmente conhecer em certo sentido foi a intuição, ou um momentâneo sentimento de profunda compaixão pela narrativa de uma das partes. Difícil equacio-nar o conhecimento privado do juiz no processo, ou separar friamente o conhecimento que pertine ao processo e aquele que influenciará realmente a valoração das questões.81

A coerência, por nós chamada de externa, é mais difícil de ser com-provada do que a coerência interna,82 que se baseia no equilíbrio reflexivo entre os elementos do sistema normativo e determinada interpretação. A racionalidade externa, assim como a teoria da verdade como coerência, tem dificuldade de se sustentar, em razão do extremo relativismo a que é susce-tível, porque depende de fatores externos e, até mesmo, do intercâmbio com outros sistemas. É bastante comum que o que é coerente para um sujeito não seja coerente para outro. Isso não só comprometeria a isonomia do sistema, ou seja, abrindo margem para que juízes diferentes decidissem de maneira diferente casos iguais ou muito semelhantes, em razão exclusivamente de experiências pessoais ou visão de mundo; mas, além de tudo, prejudicaria a legitimação das decisões, já que o iter cognitivo adotado nem sempre faria sentido aos olhos das partes. A comunicação entre coerência interna e externa nem sempre é simples ou fácil, porque, se a correção interna não guardar correspondência com a realidade externa, torna-se difícil compro-

80. “Trata-se da compreensão de que uma condenação, no processo, só possa decorrer da “verdade real”, da certeza absoluta do juiz a respeito dos fatos, um mito que produziu, no Judiciário contemporâneo, em muitas partes do mundo, uma preferência dos julgadores pelas provas científicas, periciais (exemplos maiores são, no processo civil, o exame de DNA e, no processo penal, as interceptações telefônicas). Nesse contexto, experts e peritos forenses viraram até astros de filmes e seriados de televisão”. CABRAL, Antonio do Passo. Questões processuais no julgamento do mensalão: valoração da prova indiciária e preclusão para o juiz de matérias de ordem pública. Op.cit., p.138.

81. FERRER BELTRÁN, Jordi; LAGIER, Daniel González. Introducción. Discusiones: prueba, conocimiento y verdad, ano III, n.3, 2003, p.10.

82. Sobre a dificuldade de o observador externo interpretar a coerência interna de um sistema cultural específico, problema que se verificaria quando o processo versasse sobre cultura diversa daquela em que está imerso o intérprete (no caso, o juiz): MOSER, Paul L.; MULDER, Dwayne H.; TROUT J. D. A teoria do conhecimento: uma introducao tematica Op.cit., p.145.

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