folha informativa nº 30-2010 · anuência da junta de freguesia da costa da caparica e da câmara...
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FOLHA INFORMATIVA Nº 30-2010
OS PALHEIROS HISTÓRICOS (“Barracas”) DA COSTA DA CAPARICA
1ª Parte – O alerta para a existência de um valiosíssimo património arquitectónico
O projecto dos Avieiros foi alertado para a existência de casas de madeira assentes nos areais
da Praia da Saúde, na Costa da Caparica, decerto construídas por pescadores no passado.
Fomos alertados para a possibilidade de essas casas poderem vir a ser demolidas muito em
breve por força da aplicação de um Plano de Pormenor do Programa Polis para o Litoral, com a
anuência da Junta de Freguesia da Costa da Caparica e da Câmara Municipal de Almada.
O alerta proveio de muitos moradores dessas habitações, que não aceitam ver o seu
património destruído. Por isso nos deslocámos até à Costa da Caparica e fomos de seguida à
Praia da Saúde. Chegados à Costa da Caparica verificámos por vários sinais que a povoação
teve na sua génese a labuta dos pescadores, o que se torna evidente no magnífico barco de
mar em forma de meia-lua, presente numa das principais artérias da povoação.
O barco meia-lua, por alguns designado como “o mais belo barco do mundo”. Sintomaticamente
encontra-se junto a uma das praças mais movimentadas da Costa da Caparica
O passo seguinte do nosso trabalho foi deslocarmo-nos à Praia da Saúde para nos reunirmos
com os moradores, em casa de um deles, para recolhermos os seus testemunhos, e imagens
das casas que nos tinham identificado
(ver o Anexo 1 desta Folha
Informativa). Assim fizemos, tendo
ouvido as pessoas e as suas razões,
numa das casas de madeira cedidas
para o efeito por um dos proprietários.
Estes são possuidores de
documentação oficial que prova,
legaliza e legitima a posse de cada um
dos palheiros identificados. No
entanto, a partir de 1991 começaram a ver-lhes negadas pelas autoridades a renovação das
licenças legítimas, sob pretextos vários (ver texto em ficheiro anexo a esta Folha).
Passados estes anos sem lhes
autorizarem a renovação das licenças,
foram agora notificados pelas
entidades oficiais que gerem o
Programa Polis da Costa da Caparica,
para removerem as “barracas de
praia” (ver o anexo respectivo), como
aquelas entidades as consideram, de
uma forma que revela a ignorância
daquele valor patrimonial e histórico.
Por total desconhecimento, acreditamos nós, os responsáveis do Programa Polis da Costa da
Caparica consideram afinal como barracas de praia os palheiros dos pescadores da Costa da
Caparica.
Sendo por nós considerados como palheiros, são definidos como casas de madeira,
construídas em tempos atrás por pescadores, de acordo com uma matriz originária da região
da Gândara, particularmente de Ílhavo, de onde este tipo de construção foi trazido pelas
comunidades piscatórias do passado, que se fixaram ao longo da costa e também na Costa da
Caparica (contribuindo para construir a identidade que hoje a povoação possui).
A este propósito, consultámos o site oficial da Junta de Freguesia da Costa de Caparica e,
sintomaticamente, vimos aí que quando se considera a história local, poucas referências são
feitas aos pescadores que contribuíram para cimentar a identidade local, o que ajuda a
entender o distanciamento a que a instituição se encontra relativamente ao reconhecimento
da indiscutível riqueza deste património histórico e cultural.
O elevado número de palheiros actualmente
existentes na Praia da Saúde, na Costa da
Caparica – quarenta e seis – é sem dúvida um
“achado” no contexto da caracterização,
actualmente em curso, do legado histórico -
para a cultura Portuguesa - dos pescadores da
nossa costa ocidental. Em nenhum outro ponto
da nossa costa se pode testemunhar esta ocorrência, porque, como se sabe, em todo o lado
onde existiam, os palheiros foram destruídos para dar lugar a construções de cimento e
urbanizações para o veraneio.
As peripécias que envolvem este
“aparecimento” podem acrescentar-nos muito
em relação ao conhecimento que poderemos
vir a ter da épica dos pescadores da costa
ocidental Portuguesa. Na verdade, sabemos
que estes palheiros se localizavam há mais de
cinquenta anos atrás na Cova do Vapor, e
eventualmente também em Algés e no Dafundo. Sabemos, pela experiência de outros locais,
que os palheiros históricos da costa ocidental Portuguesa foram destruídos depois de as
autarquias terem sucessiva e premeditadamente negado aos proprietários a possibilidade de
lhes renovar as suas licenças, tal como ocorreu por exemplo na Praia de Mira. Essa política
deliberada (não só em Mira mas em toda a costa ocidental) teve como resultado o abandono
das casas de madeira, por falta de condições, e a sua substituição posterior por enormes
massas de urbanizações que nas últimas décadas tudo descaracterizaram e desvalorizaram.
Não é difícil perceber que se está aqui a tentar repetir a mesma dramática experiência.
A Profª Doutora Raquel Soeiro de Brito, que em
1958 publicou a sua tese de licenciatura em
Geografia dedicada à temática dos Palheiros de
Mira, considera hoje – na sua qualidade de
vice-presidente da Academia de Marinha – que
se os decisores tivessem tido o bom senso e a
visão estratégica e cultural necessárias,
poderíamos hoje estar a falar desses mesmos palheiros de Mira como um património da
Unesco. O que se verifica, pelo contrário, é que na Praia de Mira, só para dar este exemplo
paradigmático, dos mais de trezentos palheiros históricos ali existentes há somente 50 anos
atrás, existem hoje pouco mais de três!
Nas VIII Jornadas Culturais da Gândara, realizadas no mês
de Maio de 2010 [na foto ao lado], considerou a Profª
Raquel Soeiro de Brito que “na duna norte da Praia de
Mira, havia construções de palheiros que nunca deveriam
ter sido destruídos, nomeadamente muitos palheiros
sobre estacaria, alguns palheiros de 2 e 3 andares e
outros, tais como armazéns de produtos de pesca ou de
resguardo de animais”.
A este respeito vale a pena transcrever o que foi escrito na
nossa Folha Informativa Nº14-2010, de Junho de 2010: A
partir do séc. XX deu-se o assalto da construção civil ao litoral, com uma enorme densidade de
habitação, indústria e condomínios de luxo (villas), em paisagens muito ricas do ponto de vista
ambiental, mas progressivamente degradadas devido a esse tipo de ocupação.
Se se considerarem os espaços artificializados em 2004, 2/3 da população Portuguesa já estava
localizada no litoral, aí gerando 85% do PIB nacional. Aí também as construções de casas
secundárias, bem como apartamentos residenciais e turísticos, são desenfreadas. No entanto,
se os palheiros tivessem sido conservados, se essas preciosidades tivessem sido preservadas,
poderiam hoje ser propostos e aceites como património da UNESCO. Perdeu-se muito mais com
a sua destruição do que se ganhou.
Sendo construções históricas, a tipologia dos
palheiros encontra-se muito bem estudada e
identificada por investigadores clássicos como
José Leite de Vasconcelos, Ernesto Veiga de
Oliveira, Fernando Galhano, Benjamim Pereira
ou Raquel Soeiro de Brito, dentre vários
outros. O próprio Raul Brandão, que viveu
parte da sua vida na Praia de Mira, aos palheiros se refere de uma forma detalhada.
Assim consideradas, como afirma a Dra. Catarina Manalvo [proprietária de uma dessas casas,
por herança do seu avô – o que revela a posse na família por três gerações] “o património
cultural existente nestes Palheiros, é testemunho vivo da história - e da própria origem
fundacional - da Costa de Caparica”. Tem razão a Dra. Catarina, porque foram os pescadores
da Costa da Caparica que estiveram na origem desta povoação.
Destruir estes palheiros é uma ofensa à memória e ao sacrifício dos que fundaram a Costa da
Caparica – mesmo a intenção de destruir este património valiosíssimo já é, em si mesma, uma
séria ofensa à memória desses homens e mulheres. Demolir os palheiros da Costa da Caparica
é, sem dúvida, um atentado contra o património cultural nacional. É essa destruição que se
deve evitar a todo o custo, em nome da nossa
própria identidade enquanto Portugueses.
Decisores com visão e esclarecimento cultural
não terão dificuldades em verificar que a
manutenção e recuperação exemplar destes
palheiros – transladados entretanto para um
local da praia que seja mais seguro do que o
actual – poderão constituir um enorme contributo para a valorização patrimonial da freguesia
da Costa da Caparica e do concelho de Almada. Afinal, uma praia com o património cultural
que ainda possui, muito ganhará com a possibilidade de ostentar um ícone nacional,
constituído pelo (certamente) único núcleo de palheiros Portugueses que se julgavam
totalmente destruídos.
Quando se fala numa estratégia para o turismo
nacional, como desígnio de desenvolvimento
económico, que melhor atracção se pode ter
do que este maravilhoso conjunto
arquitectónico, provável jóia da arquitectura
popular Portuguesa?
Não seremos ousados se nos anteciparmos ao
futuro, perspectivando que os turistas (mesmo os de hotéis de 4 e 5 estrelas) preferirão mais
as visitas de natureza cultural e histórica do que o simples sol-e-mar. Com isto queremos
significar que a destruição dramaticamente anunciada destes palheiros históricos pode
significar a morte de uma galinha dos ovos de
ouro, figurativamente falando. Afinal, o valor
que está tão próximo de nós acaba por não ser
percebido, porque mais uma vez a excessiva
proximidade nos cega. Cega-nos tanto quanto
a excessiva indiferença em relação ao que de
mais genuíno possuímos no nosso País.
Seremos realistas e objectivos se perspectivarmos que a preservação deste património
também contribuirá para enriquecer o novo destino turístico no nosso país, fluvial e cultural,
que neste momento se está a organizar no rio Tejo, desde a Marina do Parque das Nações até
Valada/Cartaxo, por rio e posteriormente até Constância, por via rodoviária (por questões de
falta de navegabilidade do Tejo a partir de Valada). É possível interligar essa futura Rota
articulando-a com os palheiros da Praia da
Saúde, na Costa da Caparica! Afinal já estamos
a fazer o mesmo actualmente com a Praia de
Vieira de Leiria! Afirmamo-lo devido à matriz
cultural comum dos palheiros e das
construções palafíticas em madeira dos
pescadores Avieiros e dos pescadores da costa.
Que melhor pretexto se poderá oferecer aos turistas, ávidos de conhecimento, do que revelar-
lhes uma cultura de pescadores que tiveram a coragem de enfrentar as adversidades da vida,
que se estabeleceram na costa Portuguesa, e depois no rio Tejo, construindo uma cultura
identitária, única e inimitável, constituída por uma matriz comum, que teve nas suas casas de
madeira, assentes em estacarias, uma das suas mais originais manifestações? Essas casas,
barracas, palhotas ou palheiros, de acordo
com as terminologias dos locais onde
constituíram os seus assentamentos têm afinal
a mesma tipologia de construção. Se
visitarmos o interior de um dos palheiros da
Costa da Caparica, não evitaremos - mesmo
com este conhecimento antecipado - ficar
surpreendidos com o facto de a forma da arquitectura interior e exterior, bem como os
materiais aplicados, serem idênticos aos das barracas dos pescadores do Tejo.
Quem assim visitar estas casas dos pescadores da Costa da Caparica - e do Tejo - não pode
deixar de sentir, como nós o sentimos, um frémito de encantamento e de êxtase pela
elegância, simplicidade e funcionalidade destas construções, valores da arquitectura popular
Portuguesa e sinais fortes do engenho humano na forma como soube afirmar-se perante os
elementos adversos.
2ª Parte – Um pouco de história
De acordo com o que pudemos encontrar nos registos do portal da heráldica portuguesa, os
primórdios da fundação da Costa da Caparica estão intimamente ligados aos pescadores que aí
chegaram e se fixaram no decurso do século XVIII, provenientes da região da Gândara.
Nesse portal, http://www.freguesias.pt/portal/heraldica_freguesia.php?cod=150303, regista-
se que “a história da Costa, no termo de Caparica, esteve durante séculos intimamente ligada
às actividades marítimas, repartidas pela pesca artesanal e por uma agricultura de
subsistência, implantada em pequenas hortas de terrenos dunares, fertilizados durante
gerações com [adubos derivados de] espécies piscícolas de menor valor comercial e nutritivo.
Tanto quanto foi possível apurar, o povoamento da Costa da Caparica verifica-se no decurso
do século XVIII, tendo como origem duas "companhas" de pesca que progressivamente se
fixam no lugar, em casebres construídos sobre as dunas e cobertos por juncos e caniços”.
Procurámos no site da Junta de Freguesia da Costa da Caparica referências históricas à
fundação da localidade mas relativamente pouco ou nada se encontra.
No entanto, no mesmo portal da heráldica portuguesa, na galeria de fotos mais significativas
da Costa da Caparica, encontramos a belíssima casa de madeira que a foto ao lado
testemunha. No site da Junta de Freguesia nada
encontramos que nos possa elucidar sobre a
localização e a origem daquela excepcional
estrutura, porque não existe uma única
referência de contextualização relativa aos
palheiros existentes na praia. No entanto, ao
olhar para a foto, reconhecemos de imediato
tratar-se de uma casa de madeira, típica de veraneio, certamente adaptada a partir de um
modelo de barraca de pescadores, e chegada até hoje num impecável estado de conservação.
Impelidos por um espírito observador, e motivados pela necessidade de encontrar pelo menos
uma referência à raiz histórica dos palheiros,
procurámos imagens dos “casebres construídos
sobre as dunas e cobertos por juncos e caniços”. Era
para nós fundamental compreender a realidade a
partir de sinais que nos pudessem orientar no início
do nosso caminho de pesquisa, como recém-
chegados a um local para nós ainda desconhecido.
Depois de pesquisar, foi possível identificar através de uma foto o tipo de habitação primitiva a
que o texto se refere. Trata-se de um palheiro, identificado como uma barraca de colmo e
tabuado, fotografado e apresentado na página 36 do livro Caparica Doutros Tempos, da
autoria de Salvador Félix Martins, e publicado no ano de 2004, a partir da impressão
tipográfica da Socingraf.
A mesma foto se pode encontrar na página 15 do excelente livro monográfico Tu, Costa Minha
– O Passado e o Presente, da autoria de Mário Silva Neves, e publicado em 2002 a partir da
impressão da Selenova – Artes Gráficas. Na página 181 deste livro poderemos ver retratado
este mesmo tipo de palheiro, incluindo na fotografia a família de Júlio Duarte e identificando o
construtor como sendo “Manuel das Burras”.
Sintomaticamente, nas fotos apresentadas nos livros identificados, os palheiros são
designados como “barracas” – sendo aqui pertinente considerar que os palheiros do Tejo
edificados pelos pescadores Avieiros, são também aí designados por “barracas” em muitas das
suas aldeias, porque se trata de um tipo de construção que obedece a uma raiz matricial e a
nomes muito comuns. Podemos comparar, nas fotos abaixo, os tipos primitivos de coberturas
de colmo - da barraca da Costa da Caparica, à barraca da Aldeia das Mulheres (assentamento
Avieiro da Chamusca, no rio Tejo), em época de cheias.
Júlio Duarte e família junto da sua barraca Barraca Avieira da Chamusca, durante as cheias
De acordo com Veiga de Oliveira et al. (1994), “hoje, na Costa da Caparica, nenhum exemplar
subsiste de tais barracas, e domina inteiramente a casa de tabuado, não só para banhistas,
numa feição cuidada, como também, no velho bairro dos pescadores, estas térreas, de pau a
pique, e tabuado horizontal, virando para a rua a empena, onde se situa a porta; a cobertura
em telha de Marselha é a única diferença sensível entre elas e as barracas descritas por Raul
Brandão (Raul Brandão, «Os Pescadores», 1923, p. 248: «Quatro tábuas e um tecto de colmo
negro»)”.
Também a este propósito escreve José Leite de Vasconcelos: “a Costa da Caparica, com
algumas casas cobertas de colmo, isto é, de telhados de estôrmo, como diz o povo, por
estôrno, a Ammophila arenaria dos botânicos, porque o estôrmo apanha-se no meio das
médas d’areia. Comparam-no, para o efeito, à palha de centeio que se usa no Norte e na Beira.
O telhado faz-se de barrotes de pinheiro, castanheiro, etc., pondo-se-lhe por cima canas
grossas, e sub’las canas («sobre as»), feixes de estôrmo, atado a elas com linha de carreto.
Chamam barracas a estas casas, que vão desaparecendo” (pg. 487).
3ª Parte – O enquadramento arquitectónico (um texto do Arquitecto Luís Morgado)
"O viajante não vê palheiros, sente-se definitivamente logrado mas vai perguntar a um
velhíssimo homem que se entretém a olhar o mar: Faz favor onde são os palheiros?". José
Saramago testemunha assim na sua "Viagem a Portugal" o seu desencontro com o mítico
palheiro do litoral central.
De Espinho a Vieira de Leiria já muito pouco resta das antigas construções em madeira,
designadas pelos pescadores por palheiros. Tendo surgido a partir do século XVIII, os palheiros
marcaram a identidade de vários povoados piscatórios desta região marcada pela "arte da
xávega", como o vulgo passou a designar a actividade da pesca costeira – correctamente
designada simplesmente como “arte”. Mário Neves (2002, pg. 59) descreve a origem desta
comunidade caparicana, que praticava a “arte”, da seguinte forma: (…) os Ílhavos emigraram
para a Costa no Século XVIII, referência que fica reforçada pelo que escreve um responsável da
época. «Até os pescadores são importados como os que aqui vemos, provenientes de Ílhavo.
Trouxeram-nos para que os Ílhavos entrechaçados com os algarvios lhes influíssem aquela
diligência e espírito que eles já tiveram e que ao presente tem amortecidos…»
A partir desse núcleo original de palheiros, outros pólos foram sendo disseminados por toda a
costa e borda-d'água: da acção pioneira de povos migrantes como os ílhavos, varinos,
murtoseiros e avieiros vamos hoje felizmente encontrando vestígios de uma história que
parece ter ainda muito para contar.
O recente despertar para o valor do património edificado que constituem as construções
palafíticas Avieiras ao longo do Tejo coloca-nos a questão: existirão ainda outros pólos de
interesse que nos possam redimir do esquecimento e destruição a que votámos formas de
arquitectura tradicional tão singulares e tão autênticas? Talvez!
Dizemos “talvez”, e felizmente!, porque a sul da Costa da Caparica, na praia da Saúde,
deparámos agora com uma linha de construções em madeira que se prolongam por cerca de 2
Km. Recordamos aqui que Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano descreveram em
1964 uma " (…) linha de casinhas variadas. Erguidas sobre estacas ou no sistema pau a pique,
térreas ou de andar, com torres góticas ou janelas mouriscas, simpáticas na sua modéstia ou
pretensão (...)". O interesse que estes autores encontraram nestas construções justificava-se
por parecerem um prolongamento da "anterior construção em madeira". Ou seja,
reconheciam nelas uma certa continuidade da tradição construtiva em madeira que tinham
vindo a estudar.
Este conjunto hoje existente na Costa da Caparica terá tido origem em 1952 com a deslocação
das construções originais situadas no casario da Cova do Vapor. Tal parece estar de acordo
com José António Cerejo (2002), quando escreve que desde os finais da década de 40,
registaram-se importantes recuos da linha de costa entre a Cova do Vapor e a Costa da
Caparica (somente entre 1947 e 1951 desapareceram 500m).
"Quando o mar começou a comer isto, aqui há uns cinquenta anos, as barracas de madeira que
estavam a um quilómetro do Bugio tiveram de ser arrastadas por juntas de bois. O Manel da
Fruta é que mudava as casas. Umas desmontavam-se, outras vinham inteiras", lembra Hernâni
Pereira, o presidente da Associação de Moradores [da Cova do Vapor]."
Estas casas foram deslocadas sobre rolos de madeira, puxadas por bois, ao longo da costa, há
mais de 50 anos atrás. Segundo alguns testemunhos, algumas casas poderão ter vindo
também do Dafundo transportados por barcas. Oliveira e Galhano identificam-nas como
habitações de veraneio e realçam nelas a expressão da fantasia dos proprietários.
E o que nos resta hoje? O viajante que, como nós, já visitou Esmoriz, Cortegaça, Costa Nova,
Mira, Tocha, Palhota (Cartaxo), Escaroupim (Salvaterra de Magos), Caneiras (Santarém),
Patacão (Alpiarça), e várias outras, tem a sensação de estar em casa. Identificam-se, de
imediato e praticamente por instinto, os parentes de uma grande família cuja árvore
genealógica ainda não está completamente desenhada ou, para sermos mais correctos, pode
começar agora obrigatoriamente a ser rigorosamente desenhada, a bem da salvaguarda do
valiosíssimo património edificado de construções em madeira dos pescadores da costa
ocidental Portuguesa, bem como dos rios Tejo e Sado. Reúnem-se aqui, na Costa da Caparica,
na praia da Saúde, os vários tipos que encontramos noutros lugares: a ligação ao solo em
estacaria, o predominante revestimento de tabuado vertical com matajuntas, as empenas no
alçado principal, o sótão, as paredes com forro interior, as varandas, as escadas exteriores, as
beiradas das empenas salientes... as cores vivas e os muitos pormenores e decorações que
personalizam cada habitação.
Mas outro tipo de viajante, e um olhar distraído, poderão ver o outro lado do cenário:
adulterações na forma e nos materiais, degradação, predomínio da chapa, madeira
apodrecida, incongruências várias, sinais de vandalismo, ilegalidade e desarmonia global, como
consequência, enfim, do inexplicável e inaceitável esquecimento a que foi votado este
conjunto.
É por isso actual o discurso de Veiga de Oliveira e Fernando Galhano (1964):
" (...) e hoje o velho palheiro do litoral, sacrificado ao gosto falseado de quem não sabe nem
sente o que ele representa, agoniza irremediavelmente condenado como uma velharia de que
se tem vergonha (...) e alguns casos ela [a sua morte] é decretada pelos poderes públicos, que
proíbem a reparação dos velhos palheiros. Nesses casos, sem dúvida, a pobreza e a decadência
a que são votados fazem deles uma ruína que confrange."
No âmbito do programa Polis, o Plano de Pormenor das "praias de transição" identifica
claramente que o destino imediato destas construções é a sua demolição sumária (de acordo
com os anexos que apresentamos a este trabalho).
Quando ouvimos os moradores (como agora tivemos o cuidado de os ouvir), quando lemos os
antropólogos, quando percebemos que estas "casinhas de madeira" são usadas como símbolos
de grandes instituições nacionais e internacionais, bem como ícones de promoção turística
internacional, pensamos que algo não está a bater certo. Quando constatamos que o potencial
cénico deste conjunto é explorado continuadamente por reportagens internacionais,
produções de moda [Heidi Klum], sendo até procurado como pano de fundo para séries de
grande audiência da TV, questionamo-nos se a informação que nos chega é verdadeira.
É certo que aquilo que na praia da Saúde ainda resta pode ser apenas uma imagem ténue de
um brilho original já passado. É verdade também que a construção nestas zonas costeiras tem
aspectos muito sensíveis a serem tidos em consideração. Mas quem no seu perfeito juízo iria
destruir um património destes que está aí à espera de ser estudado, potencializado,
reabilitado e acarinhado?
Os poucos exemplares de construção tradicional em madeira em Portugal já foram quase
todos destruídos. Porque não pensar numa solução para estes que ainda permanecem e
resistem (alguns de cabeça erguida) às contrariedades do tempo?
Esperemos no futuro não encontrar pela Praia da Saúde um viajante definitivamente logrado
perguntando: "Faz favor!, onde são as casinhas de madeira da Costa da Caparica?"
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