frances h. burnett - a princesinha
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A PRINCESINHA
Frances Burnett
SARA
Num desses tristes dias de inverno, em que o nevoeiro, amarelado e
espesso, invade a tal ponto as ruas de Londres, que é preciso conservar acesos
os focos elétricos e as lâmpadas dos estabelecimentos como durante a noite,
uma carruagem avançava lentamente através das espaçosas ruas da grande
cidade, transportando uma pequenina, muito aconchegada ao pai.
Sentada à turca, com os pés sob o corpo, os seus olhos, profundos e
sonhadores, iam contemplando quem passava.
Causava impressão aquele olhar numa criança, como ela era ainda, visto
que Sara Crewe tinha apenas sete anos. Mas, apesar de tão pouca idade, a
vivacidade do seu pensamento era invulgar; sonhava, imaginava coisas
extraordinárias, e a sua cabecinha estava cheia de interrogações que fazia a si
própria, acerca das pessoas crescidas e do vasto mundo que era seu domínio.
No momento em que começa a presente história, recordava ela a
viagem que acabava de fazer, desde Bombaim até Londres, com o pai, o
capitão Crewe. Revia o grande navio, os hindus que iam e vinham
silenciosamente, as crianças que brincavam na ponte e algumas senhoras,
ainda novas, mulheres de oficiais, que haviam procurado fazê-la falar e que se
tinham divertido muito com as suas respostas inesperadas.
Mas, o que Lhe parecia ainda bem mais extraordinário, era pensar que,
depois de ter vivido sob o sol escaldante das Índias e, em seguida, num grande
navio, em pleno oceano, se encontrava, agora, naquela carruagem
desconhecida, que a levava através de ruas onde o dia era tão escuro como a
noite. Isto parecia-lhe um prodígio e, instintivamente, chegava-se ainda mais
ao pai.
- Papá - disse ela, com a sua vozita misteriosa. - Papá!
- Que é, filhinha? - respondeu o capitão Crewe, olhando carinhosamente
para a pequenina, ao mesmo tempo que a aconchegava mais a si. - Em que
pensa a minha Sarinha?
- É aqui o "lugar"? Já chegamos - murmurou Sara, aproximando-se cada
vez mais dele.
- Já, minha filha. Chegamos finalmente.
Pequenina como era, Sara sentiu perfeitamente toda a tristeza que
palpitava na voz do pai.
Parecia-lhe que havia já muitos, muitos anos, que ele começara a falar-
lhe no "lugar” ,como ela dizia sempre. Não conhecera a mãe, que morrera
quando ela tinha nascido, de forma que nunca sentira a sua falta. O pai, só por
si, parecia-lhe ser toda a sua família - aquele papá tão novo, tão belo, que a
animava quanto podia. Gostavam muito um do outro e brincavam
constantemente os dois. Sara sabia que era rico, porque algumas pessoas,
julgando que ela não compreendia, tinham-no dito na sua presença,
acrescentando que, quando fosse crescida, seria, também, rica.
Vivera sempre num magnífico bangalô (1), onde numerosos criados a
saudavam respeitosamente, chamando-lhe "senhora" e deixando-lhe fazer
tudo o que ela queria.
Tivera todos os brinquedos possíveis, animais de toda a espécie, uma
aia (2) que a adorava, e compreendera, pouco a pouco, que ser rica era possuir
tudo aquilo. A palavra riqueza não evocava nada mais para ela.
Durante a sua curta existência apenas uma ligeira nuvem toldara o seu
belo céu; era a idéia do "lugar" para onde o pai a levaria um dia.
O clima da Índia é mau para as crianças e, em geral, mandam-nas, o
mais cedo possível, para a Inglaterra, quase sempre para um colégio.
Sara tinha visto partir outras crianças e ouvira falar nas cartas que elas
escreviam aos pais, lá de muito longe. Sabia que também havia de partir um
dia e, embora algumas vezes se sentisse entusiasmada com as descrições que
o pai costumava fazer-lhe da longa viagem no vapor e do país para onde a
levaria, o seu coração sofria com a idéia de que tinha de separar-se dele.
- E o papá não pode vir para o colégio comigo?
- perguntara, quando tinha cinco anos. - Eu ajudava-o a estudar as suas
lições.
- Mas tu não vais ficar muito tempo separada de mim, Sarinha -
respondia ele sempre. - Irás para uma casa muito bonita, onde encontrarás
outras meninas e brincarás com elas. Mandar-te-ei livros bonitos e tu crescerás
tão depressa, que te parecerá que passou apenas um ano quando te vires tão
crescida e tão sábia, que já possas voltar, para tomar conta do teu papá:
(1) Casa do campo.(2) Ama.
Esta idéia agradava-Lhe imenso. Governar a casa do pai, montar a
cavalo com ele, presidir à mesa quando desses grandes jantares, conversarem
os dois, ler os seus livros, era, para ela, a vida que sonhava. E se, para o
merecer, fosse preciso ir-se embora, para esse "lugar", lá longe, na Inglaterra,
muito bem: partiria. A promessa de encontrar outras meninas deixava-a
indiferente. Os livros consolá-la-iam bem mais que as tais meninas. Preferia os
livros a tudo o mais e passava o tempo a inventar belas histórias que contava a
si própria. Às vezes, contava-as também ao pai, que as achava muito bonitas.
- Então papá, disse com doçura, se já chegamos, temos de nos resignar.
Esta frase, tão estranha na boca de uma criança, fez rir o capitão Crewe,
que beijou a filha. No fundo, embora procurasse cuidadosamente dissimular o
seu desgosto, o capitão não se conformava com a separação. A sua Sarinha,
tão original, tinha sido para ele uma verdadeira companheira e sentia, de
antemão, a sensação de isolamento que experimentaria quando, de regresso à
Índia, entrasse em casa e não encontrasse a sua figurinha gentil, vestida de
branco, para o receber, como dantes. Ao pensar isto, apertou-a mais e mais
contra si, enquanto a carruagem chegava à praça silenciosa, onde se erguia o
edifício que marcava o fim da viagem.
Era uma grande casa cinzenta, exatamente semelhante a todas as
outras casas construídas do mesmo lado, tendo apenas, como nota particular,
sobre a porta de entrada, uma reluzente placa de cobre, onde, em letras
pretas, estava gravada a seguinte inscrição: MISS MINCHIN, COLÉGIO DE
MENINAS.
- Eis-nos chegados, Sara - disse o capitão, o mais alegremente que pôde.
Ajudou-a a descer do carro; em seguida, subiram os degraus de pedra e
ele tocou a campainha.
Muitas vezes, durante os tempos que se seguiram, Sara devia ter dito,
de si para si, que a casa era parecida com a sua proprietária. Tinha um ar
respeitável e estava convenientemente arranjada, mas a habitação era feia e o
mobiliário de um aspecto agressivo; as próprias poltronas pareciam estofadas
com pedras. No vestíbulo tudo era austero, tudo parecia frio à força de reluzir,
mesmo as faces rubicundas da lua- cheia , que servia de mostrador ao grande
relógio. O salão, onde introduziram o capitão e a filha, tinha um tapete com
desenho geométrico e severo; as cadeiras eram todas em ângulos, e um
maciço relógio de mármore esmagava com o seu peso o tampo do fogão, que
era de mármore também.
Sentada numa cadeira de acaju, de costas rígidas, Sara observava, com
olhar penetrante, tudo que a cercava.
- Nada disto me agrada muito, papá - suspirou ela. - Mas estou
convencida de que os soldados, mesmo os mais valentes, não gostam de ir
para a guerra...
O capitão Crewe pôs-se a rir. Era novo, alegre, e nunca se cansava das
reflexões espontâneas da filha.
- Minha querida Sara - disse ele. - Que vai ser de mim, quando não tiver
mais ninguém para me falar com tanto juízo? Porque ninguém é tão ajuizado
como tu.
- Mas porque é que as coisas ajuizadas que eu digo o fazem rir? -
perguntou Sara.
-Porque tu és muito engraçada quando as dizes - respondeu ele,
continuando a rir.
E, de repente, pegou-Lhe ao colo e beijou-a muito, ao mesmo tempo que
deixava de rir e os seus olhos brilhavam como se estivessem cheios de
lágrimas.
Nesse mesmo instante, Miss Minchin entrou. E logo Sara achou que ela
era parecida com a casa: grande, fria, respeitável e feia. Tinha uns grandes
olhos, tão expressivos como os de uma carpa e, nos lábios um sorriso de
comando.
Este sorriso acentuou-se mais quando Miss Minchin viu o capitão e Sara.
A senhora que a tinha posto em comunicação com o capitão Crewe contara-lhe
várias coisas interessantes acerca dele e, entre elas, que era muito rico e
estava disposto a gastar imenso dinheiro com a filha.
- É uma honra para mim ser encarregada da educação de uma tão linda
criança, que logo se vê ser muito inteligente - disse ela, pegando na mão de
Sara e acariciando-a entre as suas. - Lady Meredith falou-me da sua notável
precocidade. Uma criança inteligente é um verdadeiro tesouro numa casa
como a minha.
Sara ficou imóvel, com os olhos fixos em Miss Minchin. Como sempre,
atravessavam-lhe o cérebro mil pensamentos diferentes.
"Porque diz ela que eu sou bonita? - pensava a pequenina. - Eu não sou
bonita. A neta do coronel Grange, a Isabel, é que é bonita: tem as faces cor-de-
rosa, com duas covinhas, e cabelos loiros, compridos. Eu tenho cabelos pretos,
curtos, olhos verdes, e, para mais, sou magra e a minha pele não é branca. Sou
uma das crianças mais feias que tenho visto. Miss Minchin começa por mentir.”
Sara enganava-se, quando imaginava ser feia. Não se parecia,
certamente, com Isabel Grange, mas tinha um encanto estranho muito pessoal.
Delgadinha e leve, alta para a sua idade, possuía uma fisionomia
profundamente expressiva e cheia de vivacidade. Os seus cabelos eram
negros, espessos e encaracolados nas pontas; os olhos, de um cinzento-
esverdeado, eram admiráveis, com longas pestanas negras, cuja cor
desagradava talvez a Sara, mas que muita gente apreciava. Apesar de tudo
isto, estava convencidíssima da sua fealdade, e os elogios de Miss Minchin não
produziram o efeito desejado...
Se eu dissesse que ela é bonita, mentiria, e eu teria a certeza disso -
pensava a pequenina. - Creio mesmo que sou tão feia no meu gênero como ela
o é no seu. Porque mentiu?"
Sara devia ter, mais tarde, a resposta a esta interrogação, ao descobrir
que Miss Minchin repetia exatamente a mesma frase a todos os pais que lhe
confiavam as filhas.
De pé, ao lado do pai, Sara ouvia-o conversar com Miss Minchin. As duas
filhas de Lady Meredith haviam sido educadas naquele colégio, e o capitão
Crewe decidira-se em virtude das boas informações recebidas. Internaria ali a
filha, mas em condições especiais: queria que tivesse um quarto, e uma sala só
para ela, uma carruagem, um poney e uma criada para substituir a aia que
cuidava dela na Índia.
- Quanto à sua instrução, estou tranqüilo - disse o capitão Crewe,
sorrindo. -A grande dificuldade estará em impedir que aprenda demasiado
depressa e tudo ao mesmo tempo. Passa a vida curvada sobre os livros. Não os
lê, devora-os: é uma lobazinha! A sua fome de leitura reclama, sem cessar,
novos livros e são livros para pessoas adultas que ela prefere, livros franceses
ou alemães, tanto como ingleses, história, biografias, poesias, que sei eu! Tire-
lhe esses livros, Miss Minchin, quando ela ler de mais! É preciso que passeie no
parque, montada no poney ou, então, que vá comprar uma boneca nova.
Gostava de a ver brincar mais vezes com bonecas.
- Papá - observou Sara - se eu for comprar uma boneca de dois em dois
ou de três em três dias, acabo por ter tantas, que não posso gostar de todas
quanto devo. As bonecas devem ser como verdadeiras amiguinhas.Emily será
a minha amiga.
O capitão olhou para miss Minchin e miss Minchin olhou para o capitão.
- Quem é Emily - perguntou ela.
- Explica tu quem é, Sara - disse o pai.
Os seus olhos cinzento-esverdeados tinham uma expressão doce e
grave, quando respondeu:
- É uma boneca que eu ainda não tenho, uma boneca que o papá me vai
comprar. Iremos escolhê-la os dois. Chamar-se-á Emily. Será a minha amiga,
quando o papá se for embora; e é para lhe falar dele que eu a quero.
O sorriso parado de Miss Minchin teve, novamente, uma expressão
admirativa.
- Que espírito tão original - disse ela. - Oh que deliciosa criança.
- Sim -- disse o capitão, apertando a filha contra o peito. - É o meu
tesouro. Terá muito cuidado com ela, não é verdade Miss Minchin?
Sara não se separou do pai enquanto ele esteve em Londres. Saíram
juntos, correram as lojas, compraram inúmeras coisas, muitas mais,
certamente, do que precisavam; mas o capitão, novo e inexperiente, queria
que a filha tivesse tudo quanto achava bonito e, também, tudo o que lhe
agradava a ele, de maneira que, entre os dois, compraram um enxoval
muitíssimo mais luxuoso do que era próprio para uma menina de sete anos.
Tinha vestidos de veludo, guarnecidos a pele, vestidos de rendas e outros
todos bordados; chapéus com soberbas penas de avestruz, casacos e golas de
arminho, caixas cheias de luvas, de lenços, de meias de seda, e tudo isto em
tal quantidade que, nos estabelecimentos, as empregadas diziam umas às
outras, em voz baixa, indicando a pequenita de grandes olhos profundos:
-Deve ser uma princesa estrangeira, talvez a filha de algum rajá da
Índia.
E, finalmente, compraram Emily; mas foi preciso ir a muitas lojas de
brinquedos e verem muitas bonecas, antes de a descobrirem.
-Eu queria que ela não se parecesse com uma boneca - explicou Sara. -
Que ela tivesse o ar de me escutar, quando eu lhe falasse. O que é mais
aborrecido, com as bonecas, é que elas nunca dão a idéia de ouvirem o que
lhes dizemos.
Mostraram-lhe bonecas grandes e pequenas; bonecas com os olhos
pretos e olhos azuis, caracóis escuros e longos cabelos doirados; bonecas
vestidas e outras por vestir.
- O papá compreende - dizia Sara - se a compro sem vestidos, levá-la-
emos à casa de uma costureira que lhe fará tudo por medida. Os vestidos
ficam sempre melhor quando são provados.
Depois de muito procurar, decidiram os dois ir a pé para verem melhor
as montras(vitrines}, enquanto a carruagem os seguia lentamente. Haviam já
passado dois ou três estabelecimentos, sem entrar, quando, ao aproximar- se
de uma loja de aparência modesta, Sara estremeceu e apertou o braço do pai.
- Ó papá - exclamou ela - aqui está Emily!
A sua carinha tornára-se muito rosada e seus olhos acinzentados
tiveram a mesma expressão de felicidade que teriam se houvesse reconhecido
uma amiga muito querida.
- Ela está à nossa espera - continuou a pequenina. - Entremos depressa.
- Ó meu Deus - disse o capitão, alegremente
- Quem nos apresentará a Sua Alteza?
- O papá apresenta-me a mim, e eu apresento o papá - disse Sara. - Mas
eu reconheci-a logo à primeira vista, e talvez ela me tivesse reconhecido
também.
A boneca tinha, realmente, um lindo olhar. Era de bom tamanho,
transportava-se com facilidade. Possuía uma soberba cabeleira castanha-
dourada, toda encaracolada, grandes olhos azuis e pestanas espessas, mas
pestanas verdadeiras e não apenas um simples traço de pincel sobre as
pálpebras de porcelana.
- Não há dúvida, papá - disse Sara, que olhava para a boneca, face a
face. - Não há dúvida de que é a Emily!
Emily foi, pois, comprada e, em seguida, levada a uma casa de modas
para crianças, onde encomendaram para ela um guarda-roupa tão suntuoso
como o de Sara: vestidos de veludo e de musselina bordada, roupa guarnecida
de rendas, luvas, peles e meias de seda.
- Quero que ela seja amimada - dizia Sara - porque eu sou sua mãe, ao
mesmo tempo em que ela é a minha amiguinha.
Todas estas compras teriam divertido muito o capitão se não fosse o
triste pensamento que o preocupava cada dia mais: não tardaria a ter de
separar-se da sua querida companheirazinha, a quem tão carinhosamente
amava.
Uma vez, levantou-se a meio da noite e foi, docemente, contemplar
Sara, que dormia com a boneca nos braços. Os seus cabelos negros e os
cabelos doirados de Emily misturavam-se sobre a almofada; ambas possuíam
lindas camisas de dormir, enfeitadas com renda, e admiráveis pestanas que
Lhes ensombravam as faces mimosas. Emily tinha de tal forma o ar de uma
verdadeira criança, que o capitão se sentia feliz de a ver ali, e suspirou
profundamente.
"Ó, minha Sarinha - pensava ele - nem tu imaginas, com certeza, a que
ponto o teu papá vai sentir a tua falta!"
No dia seguinte, Sara foi, definitivamente, confiada a Miss Minchin.
O paquete para a Índia partia no outro dia de manhã. O capitão Crewe
explicou a miss Minchin que os Srs. Barrow e Skipworth, que o representavam
em Inglaterra, estavam à sua disposição no caso de ela precisar de qualquer
esclarecimento ou conselho, e pagariam todas as despesas de Sara. Ele próprio
escreveria duas vezes por semana à filha, a quem desejava que fossem
proporcionados todos os prazeres que lhe apetecesse.
-Sara é muito razoável e nunca pedirá nada que possa ser-lhe prejudicial
- explicou ele.
Depois, conduziu a filha aos seus aposentos e despediram-se. Sentada
sobre os joelhos do pai, Sara segurava-lhe, com as duas mãos, a gola do
casaco e olhava intensamente.
- Parece que queres aprender de cor como eu sou - disse ele,
acariciando-lhe os cabelos.
Ela lançou-se-lhe nos braços e, ao vê-los assim abraçados, dir-se-ia que
não podiam separar-se um do outro.
Quando a carruagem, que levava o capitão, se pôs em andamento, Sara,
sentada no chão, junto da varanda da sua sala particular, com o queixo
apoiado nas mãos, seguiu-a com o olhar até que ela dobrou a esquina da
praça. Emily estava também sentada ao lado da pequenina, que, de vez em
quando, olhava para ela. E, quando Miss Amélia, irmã de Miss Minchin, recebeu
ordem de ir ver o que fazia a nova educanda, encontrou a porta fechada.
- Fechei a porta - explicou lá de dentro uma oz delicada, mas um pouco
nervosa. -Peço o favor de me deixarem ficar completamente só.
Miss Amélia era uma criatura gorducha e baixa, que admirava imenso a
irmã mais velha, de quem sentia certo medo. Tinha melhor coração do que
Miss Minchin, mas por coisa alguma do mundo seria capaz de lhe desobedecer.
Retirou-se agitadíssima e foi dizer à irmã:
- Nunca vi uma criança tão singular! Imagina que se fechou à chave, por
dentro, e que nem se ouve mexer.
- É preferível isso a gritar e a bater o pé no chão, como fazem tantas
outras - replicou Miss Minchin. -Amimada, como é, esperava eu que ela
pusesse a casa em alvoroço. Porque, se há alguma criança que tenha sido
escandalosamente estragada com mimo, é esta!
- Já lhe abri as malas e arrumei todas as suas coisas - disse Miss Amélia.
- Nunca vi nada semelhante: casacos com arminho e zibelina, toda a roupa
guarnecida a rendas... Já viste os vestidos dela? Que te parece?
- Parece-me perfeitamente ridículo - respondeu secamente Miss Minchin.
- Mas tudo isso fará vista, quando Sara marchar à frente das outras alunas, ao
domingo, para ir à missa. Na realidade, fizeram-lhe um enxoval de princesa!
Lá em cima, fechada no quarto, Sara, sentada no chão, com Emily ao
lado, não desfitava o olhar da esquina da praça onde o capitão havia
desaparecido, sempre a enviar- lhe beijos, como se não tivesse coragem de
terminar.
___UMA LIÇÃO DE FRANCÊS
Quando, na manhã seguinte, Sara entrou na aula, firmaram-se nela
muitos olhos curiosos. Todas as outras alunas, desde Lavínia Herbert, que com
quase treze anos se considerava já uma senhora, até Lottie Legh, a benjamina,
que contava apenas quatro, tinham conhecimento da sua chegada. Também
sabiam que, a partir daquele dia, Sara era o ornamento e a glória do Colégio
Minchin.
Uma ou duas pequenas haviam, mesmo, tido a sorte de avistar a criada
particular de Sara, chegada na véspera à noite. Era francesa e chamava-se
Mariette.
Lavínia, que tivera artes de passar em frente do quarto de Sara, quando
a porta estava entreaberta, vira a criada abrir uma caixa que certa loja de
modas enviara.
- Que linda roupa - dizia ela, em voz baixa, à sua amiga Jessie, fingindo
que estava a estudar geografia. -Nunca vi tanta renda! Ouvi a miss Minchin
dizer à irmã que tudo aquilo era disparatado para uma criança. A minha mãe
também me
costuma dizer que as crianças devem vestir-se com simplicidade. Olha
para Sara: as rendas aparecem-lhe por baixo do vestido!
- E tem meias de seda - segredou Jessie, que parecia não levantar o
nariz do atlas. - Que pés tão pequenos! Nunca vi pés assim!
- Oh - respondeu desdenhosamente Lavínia- é por causa do feitio
especial das pantufas que ela usa.
A minha mãe diz que um sapateiro habilidoso pode fazer parecer
pequenos mesmo os pés que sejam grandes. Eu cá não a acho nada bonita.
Tem os olhos de uma cor esquisita.
- Sim, não é bonita como se costuma ser - respondeu Jessie, percorrendo
ràpidamente toda a classe com o olhar.Mas, quando se olha uma vez para ela,
apetece olhar mais... Tem umas pestanas tão compridas E os olhos são quase
verdes!
Sara conservava-se, muito ajuizadamente, no seu lugar, e esperava que
lhe indicassem o que devia fazer. Tinham-na colocado mesmo ao lado de Miss
Minchin. Os olhares que se fitavam nela não a embaraçavam absolutamente
nada. Pelo contrário, divertiam-na e, por sua vez, olhava também para todas
aquelas meninas com interesse.
"Em que pensarão elas - perguntava Sara a si própria. Gostava de saber
se elas gostam de miss Minchin, se as lições lhe agradam e se alguma tem um
papá parecido com o meu... "
Tinha falado muito do pai a Emily, naquela manhã.
- Agora vai ele no mar - dissera ela. - Temos de ser muito boas amigas e
dizer tudo uma à outra. Olha para mim, Emily; nunca vi olhos tão bonitos como
os teus. Mas gostava muito que pudesses falar!
Sara tinha na cabecinha sonhos e idéias, de que seria já uma consolação
convencer-se de que Emily era viva, ouvindo e compreendendo tudo quanto
ela lhe pudesse dizer.
Quando Mariette lhe vestiu o vestido azul-escuro, reservado para as
horas de aula, e lhe pôs nos cabelos uma fita da mesma cor, a pequenina
aproximou-se de Emily, sentou-a numa cadeira de palha e colocou-Lhe, diante,
um livro aberto, dizendo:
- Podes ler durante a minha ausência. E vendo a criada olhar para ela,
surpreendida, Sara explicou-lhe, como se estivesse perfeitamente convencida
do que dizia:
- Eu creio que as bonecas são capazes de fazer muitas coisas, mas não
querem que nós saibamos... É muito possível que Emily leia, fale e ande, mas
só o fará quando estiver sozinha. Tu compreendes, se nós soubéssemos que as
bonecas podem fazer o mesmo que nós, obrigávamo-las a trabalhar. Foi por
isso que elas tomaram, umas com as outras, o compromisso de guardar
segredo... Se tu ficares no meu quarto, Emily não se mexerá donde está; se te
fores embora, ela começará a ler ou irá à janela ver quem passa. Mas, logo que
ouça passos na escada, voltará para a cadeira, para que a encontremos como
a deixamos.
"Que extraordinária criança!" - pensou Mariette. E, quando foi almoçar,
contou às outras criadas tudo o que se passara com Sara. Sentia que se
dedicaria a valer àquela pequenina tão original e inteligente, que a tratava com
tão bonitas maneiras.
Mariette já se encontrara ao serviço de outras crianças que estavam
longe de ser assim delicadas. Sara tinha um modo encantador e meigo de
dizer: "Fazes favor, Mariette. Obrigada, Mariette".
- Agradece-me , explicava a criada às colegas ,como se eu fosse uma
senhora.
E acrescentava:
- Tem o ar de uma princesinha.
Em resumo: Mariette estava encantada com a sua patroa pequena e
contentíssima com o seu novo lugar.
Entretanto, na aula, depois de Sara e as outras alunas se terem
observado à vontade, Miss Minchin bateu na secretária, com ar solene, e disse:
-Meninas: vou apresentar- lhes a sua nova companheira.
Todas as pequenas se levantaram e Sara fez o mesmo.
- Espero - continuou Miss Minchin - que serão amáveis para Sara Crewe;
esta menina vem de muito longe, da Índia. Logo que terminem as aulas,
travarão conhecimento com ela.
As alunas cumprimentaram Sara, cerimoniosamente. Ela fez uma
pequena reverência e em seguida todas retomaram os seus lugares,
recomeçando a observação com o olhar.
- Sara - disse Miss Minchin, em tom doutoral, aproxime-se.
A directora tinha pegado num livro, que ia folheando. A pequenina,
delicadamente, foi até junto dela.
- Como o seu pai escolheu uma criada francesa para o seu serviço
particular - começou Miss Minchin, concluo que ele deseja que a menina estude
o francês, a fundo.
Sara parecia um pouco embaraçada.
-Eu penso que o papá escolheu esta criada porque... julgou que me dava
prazer com isso...
- Receio - interrompeu Miss Minchin, com um sorriso irônico,que a
menina seja amimada de mais e que, por isso, esteja convencida de que tudo e
todos pretendem apenas agradar-lhe. Mas neste caso, a minha convicção é
que seu pai quer que a menina aprenda bem francês.
Se Sara fosse mais velha, e se não estivesse tão habituada a ser,
sempre, escrupulosamente bem educada,teria podido,em poucas
palavras,desiludir Miss Minchin.
Mas a pequenina sentia-se corar: Miss Minchin parecia tão severa e
autoritária, tão convencidda de que Sara não sabia uma palavra de francês,
que ela não ousou contrariá-la: isso parecia-lhe uma grande indelicadeza... E a
verdade, afinal, era que o capitão Crewe, tendo casado com uma francesa,
começara a falar francês com a filha desde muito pequenina, de forma que
esta falava aquela língua com a maior facilidade.
Timidamente, Sara tentou ainda explicar:
- Eu... eu não aprendi, pròpriamente, mas...
Um dos maiores desgostos de Miss Minchin era, exatamente, não saber
falar francês e esforçava-se por dissimular cuidadosamente esta humilhante
lacuna. Por essa razão, não desejava discutir sobre tal assunto, que podia
expô-la a perguntas embaraçosas, feitas pela nova aluna.
- Basta - disse ela, secamente , se não aprendeu, é preciso aprender
imediatamente. O professor, Sr. Dufarge, não tarda aí. Vá folheando este livro
enquanto ele não chega.
Sara sentia as faces escaldarem. Voltou para o seu lugar, abriu o livro,
fitou gravemente a primeira página, muito decidida a não rir, como teria feito
qualquer menina mal educada, mas, em todo o caso, era engraçado ver-se
condenada a soletrar, como qualquer principiante "le père"... "la mère"... "le
fils"... palavras que ela conhecia perfeitamente, havia já tanto tempo.
Miss Minchin não deixava de a observar.
- Parece descontente, Sara - disse ela -, e eu estou aborrecida por ver
que a menina não tem vontade de estudar francês.
- Pelo contrário, minha senhora, tenho vontade, mas... - respondeu Sara,
tentando novamente explicar-se.
-Não diga sempre "mas" quando falam consigo ,exclamou Miss
Minchin,não a deixando concluir. E ordenou:-Pegue no livro.
Sara, com a maior obediência, recomeçou a ler, com aplicação "la fille",
"le frère", "la soeur"...
Ao mesmo tempo ia pensando: "Talvez eu possa explicar-me, quando o
Sr. Dufarge vier...”.
Efetivamente, o professor de francês chegou pouco depois. Já não era
novo; tinha um ar distinto e, mal fixou Sara, compreendeu logo que se tratava
de uma criança invulgar e sentiu, por ela, um vivo interesse.
-Tenho, então, uma nova aluna, não é verdade? - perguntou ele.
-O pai desta menina, o capitão Crewe, tem um grande empenho em que
ela comece a aprender francês - explicou Miss Minchin. Mas eu receio, que, por
um capricho de criança, não esteja disposta a isso.
- É pena - disse o professor, dirigindo-se, gentilmente, à pequenita. E
continuou:-Talvez que eu consiga convencê-la quando principiarmos as lições,
porque o francês é uma bela língua.
Sara foi até junto do Sr. Dufarge. Começava a faltar-lhe a coragem, e
ergueu para ele os seus grandes olhos suplicantes. Tinha a certeza de que o
professor ia compreender imediatamente, e começou, com a maior
simplicidade, a explicar tudo num francês correto e límpido: Miss Minchin não
tinha compreendido; o que ela queria dizer era que não tinha aprendido o
francês nos livros, mas sim com o pai e os amigos do pai, que lhe falavam
sempre nessa língua. Por isso, aprendera a ler e a escrever francês ao mesmo
tempo que aprendera inglês. O pai gostava muito daquela língua porque a sua
querida mamã, que ela não chegara a conhecer, era francesa. Tinha o maior
prazer em aprender tudo o que o Sr. Dufarge entendesse por bem ensinar-lhe,
e o que ela pretendera explicar a Miss Minchin era apenas, que já conhecia
todas as palavras que vinham naquele livro.
Ao dizer isto, Sara mostrou ao professor o livrinho que a diretora lhe
havia dado.
Ao ouvir falar tão corretamente, Miss Minchin estremeceu e pôs-se a
olhar para ela por cima das lunetas, com ar de pessoa quase escandalizada.
Quanto ao Sr. Dufarge, sorria com um sorriso de verdadeira satisfação:
ao escutar aquela voz fresquinha de criança falar nitidamente a sua língua
natal, pareceu-lhe ter sido transportado, de repente, para a sua terra que, por
vezes, nos dias sombrios e brumosos do inverno inglês, lhe parecia tão
distante... Mal a pequenina acabou, tomou-Lhe o livro das mãos e envolveu-a
num olhar de bondade e simpatia. Depois, dirigindo-se a Miss Minchin, disse:
- Pouco terei a ensinar-lhe. Fala francês como uma francesa. Tem uma
pronúncia perfeita!
- Porque foi que a menina não me disse isso?
-exclamou Miss Minchin, envergonhada.
- Eu quis dizer... - respondeu Sara, mas não fui capaz...
Miss Minchin sabia, perfeitamente, que a pequenina tentara explicar
tudo e que, se o não fizera, a culpa fora apenas sua.
Mas vendo que as outras alunas tinham compreendido o que se passara,
sem perder nada daquela cena, e que Lavínia e Jessie sorriam por detrás dos
livros, a diretora sentiu-se irritada ao máximo.
- Silêncio -- gritou, dando uma pancada na secretária. Não quero ouvir
ninguém a rir!
Desde esse dia, nasceu na sua alma um rancor surdo contra a aluna de
quem se mostrara, a principio, tão orgulhosa.
HERMENGARDA
No decorrer daquela manhã tão agitada, Sara reparara numa
condiscípula da sua idade, cujos olhos, de um azul muito pálido, não se
desfitavam dela. Era uma pequena gorda, com aparência de pouco inteligente,
mas que possuía uma boquita redonda, sempre com um jeito de mimo. Usava
os cabelos louros, muito claros, apertados em grossa trança, atada por uma
fita; tinha enrolado a trança em volta do pescoço e com os cotovelos apoiados
sobre a estante, ia mordiscando as pontas da fita, ao mesmo tempo que olhava
para Sara, com espanto e admiração.
Quando o Sr. Dufarge se dirigira a Sara, a pequenina estremecera e
parecia um pouco ansiosa; mas, ao ouvi-la responder-lhe em francês, tornava-
se vermelha de surpresa. Ela, que chorava tantas lágrimas amargas, ao
verificar a inutilidade dos seus esforços para se lembrar da tradução francesa
das palavras mãe ou pai, como não havia de considerar um verdadeiro prodígio
a nova companheira, a quem não somente aquelas palavras como muitas
outras pareciam familiares, e que sabia conjugar os verbos e misturá-los com
os adjetivos, como se se tratasse de um simples passatempo?
Absorvida pela contemplação de Sara, continuava a morder a fita com
tal ardor, que chamou a atenção de Miss Minchin, a qual, satisfeita por ter
encontrado um pretexto para desabafar a sua irritação, lhe ralhou
severamente:
-Que significam esses modos, Miss Saint-John? Tire os cotovelos de cima
da estante, a fita da boca, e ponha-se direita!
A pobre Miss Saint-John estremeceu de novo; Lavínia e Jessie riam
baixinho, olhando para ela, o que a fez corar ainda mais. As lágrimas quase
saltavam dos seus pobres olhos de criança sem defesa. Sara percebeu tudo
imediatamente, pois não podia ver sofrer ninguém sem desejar imediatamente
ir em seu auxílio.
O pai costumava dizer:
"Se Sara fosse um rapaz e houvesse nascido uns anos mais
cedo, teria percorrido o mundo, de espada na mão, para libertar os
oprimidos e castigar os maus.”
Não admira, portanto, que durante toda a manhã ela tivesse seguido
com o olhar aquela sua nova companheira gorducha e triste. Viu logo que a
outra tinha grande dificuldade em aprender as lições e que havia poucas
probabilidades de vir a ser a glória do colégio... A lição de francês, em especial,
foi quase uma tragédia... A pronúncia de miss Saint-John fazia sorrir o Sr.
Dufarge, mesmo sem ele querer, e Lavínia, Jessie e as outras alunas troçavam
ou olhavam-na com desdém. Sara era a única que se mantinha séria. Fazia de
conta que não ouvia a sua desventurada condiscípula que disse: "lé bon pang"
em vez de "le bon paim" e outras coisas neste gênero. Tinha muito amor-
próprio e uma noção muito viva da dignidade pessoal; por isso revoltava-se ao
ouvir as risadas das outras, e ao ver a cara envergonhada e aflita de miss
Saint-John.
"Isto não tem graça nenhuma - pensava ela, debruçando-se sobre o
livro. - Não percebo por que motivo se riem assim".
Depois da aula, quando as alunas se reuniram, em grupos, Sara foi
procurar miss Saint-John. Ao vê-la sozinha e triste, metida no vão de uma
janela, dirigiu-se a ela e procurou um pretexto para conversarem. Disse-lhe
apenas as palavras vulgares que qualquer menina da sua idade diz a outra
naquelas circunstâncias, mas a sua voz possuía um som doce e afetuoso, ao
qual ninguém podia ficar insensível.
- Como se chama? - perguntou.
Para compreender o espanto de miss Saint-John, é preciso não esquecer
que, nos colégios de meninas, uma "nova" é sempre, ao princípio, um ser um
tanto misterioso; que todo o colégio, na véspera, à noite, falara da "nova" e
repetira, a seu respeito, histórias mais ou menos contraditórias, até ao
momento em que o sono fizera calar a curiosidade geral. A chegada de uma
aluna que tem carruagem, um "poney", uma criada particular, e que vem da
Índia, não é um acontecimento banal.
- Chamo-me Hermengarda Saint-John - respondeu a outra.
-E eu Sara Crewe. O seu nome é bonito e parece-se com os que
encontramos nos livros.
- Gosta dele ,balbuciou Hermengarda. Eu... também gosto do seu.
A infelicidade de Miss Saint-John era ter um pai notàvelmente instruído e
inteligente. Às vezes, esse fato parecia ser uma verdadeira calamidade. Um pai
que aprendeu tudo quanto quis, fala sete ou oito línguas e tem uma vasta
biblioteca, a qual se pode dizer que sabe de cor, espera, naturalmente, que a
filha saiba, pelo menos, as suas lições quotidianas,e se lembre,quando mais
não seja,de alguns fatos históricos,ou faça,sem erros,um ponto escrito de
francês.
Hermengarda era, pois, uma grave preocupação para o Sr. Saint-John,
que não podia explicar a si próprio como uma filha sua era tão completamente
desprovida de vivacidade intelectual e incapaz de triunfar fosse em que fosse.
A pobre pequena era, sem contradição possível, a pior aluna do colégio.
- No entanto, é preciso que ela chegue a aprender qualquer coisa! - dizia
o pai a Miss Minchin.
Em conseqüência desta recomendação, Hermengarda passava a maior
parte do tempo a chorar ou a ser castigada. O pior era que, se conseguia
aprender qualquer coisa, esquecia-a cinco minutos depois ou,a maioria dos
casos, ficava sem compreender uma única palavra. Não admira, pois, que ela
contemplasse Sara quase com respeito.
- Fala francês, não é verdade? - perguntou timidamente miss Saint-John.
Sara sentou-se num dos bancos do vão da janela, cruzou as pernas e,
unindo as mãos sobre os joelhos, respondeu:
-Sei alguma coisa de francês porque ouvi sempre falar esta língua à
minha volta. Se a menina estivesse no meu lugar, ter-lhe-ia acontecido a
mesma coisa.
- Oh isso não! Eu não era capaz - exclamou Hermengarda. Nunca
consegui aprender.
- Porquê ? perguntou Sara, com curiosidade.
Hermengarda abanou a cabeça, fazendo saltitar a trança sobre os
ombros, e continuou:
- Não ouviu, há pouco, a minha lição? É sempre assim. Não sou capaz de
pronunciar bem as palavras. São muito difíceis...
Calou-se um momento: depois acrescentou, com um tom de respeito na
voz:
- A menina é muito inteligente, não é?
Sara olhou, através do vidro, a praça umida, onde os pardais
esvoaçavam sobre as grades enferrujadas e os ramos das árvores enegrecidas
pela fuligem. Refletia. Ouvira dizer muitas vezes que era inteligente;
perguntava agora a si própria se era verdade e como tinha isso acontecido...
Por fim, respondeu:
- Não sei. não sou capaz de lhe explicar...
Vendo a expressão desapontada da bondosa carita de faces
rechonchudas, Sara teve vontade de rir e mudou de conversa.
- Gostavas de ver Emily? - perguntou ela à outra, tratando-a
familiarmente.
- Quem é Emily? - interrogou Hermengarda por sua vez.
- Vem ao meu quarto e verás - disse Sara, estendendo-lhe a mão.
Dirigiram-se as duas para a escada e, enquanto atravessavam o
vestíbulo, Hermengarda foi perguntando, já com mais familiaridade:
- É verdade que tu tens uma sala de recreio só para ti?
- É - respondeu Sara. - Meu pai recomendou isso a Miss Minchin porque
eu, para me distrair, invento histórias e conto-as a mim própria; não gosto que
me ouçam. Quando penso que está alguém a escutar, já não sinto prazer
nenhum.
Tinham chegado ao corredor que conduzia ao quarto de Sara. Ao ouvir o
que ela dissera, Hermengarda parou, como que sufocada, e exclamou:
- Tu inventas histórias?! Falas francês e inventas histórias? Isso é
verdade?
Sara olhava para ela, admirada, e apenas disse:
- Mas, inventar uma história é uma coisa muito fácil, que qualquer
pessoa pode fazer. Tu nunca experimentaste?
De súbito, apertou mais a mão da companheira e disse, baixando a voz:
- Aproximemo-nos da porta sem fazer barulho; eu vou abrir de repente...
Talvez a possamos surpreender.
Ao dizer isto, ria, mas lá bem no seu íntimo tinha uma secreta esperança
que lhe fazia brilhar mais os olhos. Embora não fizesse a mais leve idéia do que
se tratava, Hermengarda notou a transformação da sua nova amiguinha e
sentiu-se impressionada. Que seria? Fosse o que fosse, devia ser uma coisa
importantíssima...
Por isso, seguira Sara; andando nos bicos dos pés e toda tremula de
comoção.
Atingiram a porta sem fazer o menor ruído. Sara abriu bruscamente e,
aos olhos das duas pequenas, surgiu o quarto, muito tranqüilo e bem
arrumado, com um bom lume no fogão, a arder serenamente, e uma admirável
boneca sentada a um canto da chaminé, na atitude de quem lia um livro
atentamente.
- Oh! ela voltou para a cadeira antes que nós a pudéssemos ver! - disse
Sara, desapontada. É sempre assim! São mais rápidas do que um
relâmpago...
Os olhos de Hermengarda iam, pasmados, de Sara para a boneca e da
boneca para Sara.
- Ela anda? - perguntou a pequenina, cada vez mais espantada.
- Está claro que sim - respondeu Sara. Pelo menos, estou convencida
disso, ou procuro convencer-me e, nesse caso, para mim é como se fosse
verdade. Tu nunca fizeste assim para acreditares em qualquer coisa?
- Não - declarou Hermengarda. - Explica-me como é.
Miss Saint-John estava de tal forma encantada com Sara, que olhava
para ela sem prestar a menor atenção a Emily, e, no entanto, Emily era a mais
linda boneca que ela até então tinha visto.
- Sentemo-nos - disse Sara - Vou tentar ensinar-te. É tão fácil que, depois
de começar, já não somos capazes de parar e continuamos todos os dias... É
delicioso. Escuta, Emily apresento-te Hermengarda Saint-John. Hermengarda,
apresento-te Emily. Gostarias de lhe pegar um bocadinho ao colo?
- Oh! Gostava muito - disse Hermengarda. Ela é tão bonita!
Sara pôs-lhe a boneca nos braços. Hermengarda nunca julgara poder
viver uma hora tão agradável como a que passou ali, até ao momento em que
a sineta as chamou de novo ao rés-do-chão.
Sara, sentada sobre o tapete, em frente do fogão, com os olhos
brilhantes e as faces coradas, contou-lhe mil coisas maravilhosas. Falou-lhe da
viagem que fizera e da Índia! Mas o que fascinava Hermengarda era tudo
quanto a sua nova amiguinha inventava acerca das bonecas que, afirmava ela,
andavam, falavam, e faziam tudo quanto queriam, quando ficavam sozinhas,
escondendo ciosamente o seu poder e tornando-se imóveis, num abrir e fechar
de olhos, logo que alguém entrava no quarto onde elas se encontravam.
- Compreendes - dizia Sara, com o ar mais sério deste mundo. É uma
espécie de magia.
E de repente, ao contar-lhe como descobrira Emily, Sara mudou de
expressão. Dir-se-ia que uma nuvem viera ensombrar a claridade dos seus
grandes olhos. Soltou um suspiro tão profundo, que mais parecia um gemido;
depois cerrou muito os lábios, como num grande esforço de vontade.
Hermengarda sentiu confusamente que, neste momento, se Sara fosse uma
criança vulgar, teria chorado. Mas tal não sucedeu.
- Estás triste - perguntou timidamente miss Saint-John.
- Estou - respondeu Sara, após um minuto de silêncio.
-E explicou:
- Mas não é no corpo...
Depois, numa voz muito baixa, que ela queria manter firme,perguntou :
- Gostas muito do teu pai?
Os cantos da boca de Hermengarda contrairam-se. Ela compreendia
perfeitamente que a sua dignidade de aluna de um colégio de primeira
categoria não lhe permitia responder a verdade: nunca fizera a si própria
semelhante pergunta e preferia tudo a passar dez minutos junto do pai. A
pobre pequena estava seriamente embaraçada.
- Quase nunca o vejo - murmurou. – Ele assa a vida na biblioteca, a ler.
-Pois eu gosto do meu acima de tudo no undo - disse Sara. - Aqui tens a
razão por que stou triste: é por ele haver partido.
Ao dizer isto, escondeu o rosto entre as mãos e icou imóvel.
"Desta vez, vai chorar...” , pensou Hermengarda, assustada.
Mas não; Sara não verteu uma lágrima.Os Cabelos negros tombavam-lhe
sobre a cara,e ela mantinha-se na mesma imobilidade.Depois ,sem levantar a
cabeça , foi dizendo:
- Prometi-lhe ser corajosa. E hei-de sê-lo! Precisamos sempre de
sofrer qualquer coisa na vida...
Pensa no que sofrem os soldados!O papá é um soldado. Se houver
guerra, tem de suportar a fadiga, a sede e talvez ferimentos graves. Pois
bem, tenho a certeza de que não diria uma única palavra para se lamentar.
Nem uma!
Hermengarda contemplava-a e experimentava or ela um vago
sentimento de adoração. Sara era ão maravilhosamente diferente de todas as
pessoas ue a rodeavam!
Não tardou que erguesse a cabeça e sacudisse os cabelos sorrindo de
forma estranha.Por fim disse:
-Se eu puder falar muito e contar-te tudo quanto passa pela cabeça
fazendo de conta que acredito no que digo, sentir-me-ei mais corajosa.Isto
não faz esquecer, mas dá força.
Sem saber por que, Hermengarda sentiu a garganta apertada e os olhos
úmidos.
- Lavínia e Jessie são amigas íntimas - disse
ela com voz alterada. - Seria tão bom se nós também o fôssemos...
Queres que eu seja tua amiga?
Tu és inteligente e eu sei, perfeitamente, que sou a
aluna mais estúpida do colégio, mas... eu gosto
tanto de ti!
- Ainda bem! Não imaginas como estou contente - exclamou Sara. - Sim,
vamos ser muito amigas. E, queres saber? -
Ao dizer isto a expressão iluminou-se-Lhe. -Vou ajudar-te a estudar as
lições de francês!
LOTTIE
Se Sara fosse uma criança semelhante à maioria, a vida no Colégio de
Miss Minchin, tal como estava organizada, teria sido perigosa para ela.
Era tratada não como uma criança, mas como uma hóspeda de
cerimônia, cuja presença honrava a casa. Se ela fosse caprichosa e altiva,
tanta lisonja e mimo torná-la-iam insuportável. Se tivesse disposição para a
preguiça, não teria feito nem aprendido absolutamente nada. No seu íntimo,
Miss Minchin não gostava dela, mas era suficientemente prudente para fazer
ou dizer qualquer coisa que pudesse desgostar tão preciosa aluna. Porque ela
bem sabia que, se alguma vez Sara mandasse dizer ao pai que o colégio Lhe
desagradava ou que se sentia ali infeliz, o capitão Crewe a viria buscar
imediatamente.
Miss Minchin chegara à conclusão de que a melhor maneira de
conquistar a simpatia de uma criança é satisfazer-lhe todas as vontades, era
elogiá-la e deixá-la fazer tudo quanto ela quiser. Em conseqüência disto, Sara
era constantemente felicitada pela sua aplicação ao estudo, pelas suas boas
maneiras, pela amabilidade com que tratava as condiscípulas e pela
generosidade com que socorria os mendigos que Lhe pediam esmola; o mais
simples dos seus atos era posto na lua, como se costuma dizer, e se ela não
fosse, de seu natural, ajuizada e prudente, tornar-se-ia bem depressa uma
pequena vaidosa e antipática.
Mas no seu cérebrozinho havia os mais sensatos pensamentos, sobre ela
própria e sobre o destino
que lhe coubera neste mundo. De vez em quando
chegava mesmo a falar nisto a Hermengarda.
- É o Destino que prepara tudo na vida - costumava dizer. - Eu,
por exemplo, recebi todas as
boas qualidades: gosto de estudar e aprendo fàcilmente o que
me interessa; tenho um papá bom, belo e inteligente, que me dá tudo
quanto eu quero. É possível, mesmo que, no fundo, eu não seja boa;
mas quando se receberam todos os dons que eu recebi e toda a gente
nos anima, como não havemos também de ser amáveis? Pergunto a
mim própria se sou realmente uma menina gentil ou se, pelo contrário
sou uma criança insuportável. - e, ao dizer isto, a sua fisionomia
tomavaumaexpressão de grande perplexidade.Talvez que eu seja
terrível e nunca ninguém o chegue a saber, simplesmente porque
nunca tive uma contrariedade na vida!
- Lavínia também não tem contrariedades replicou Hermengarda, em
tom insistente - e Deus sabe como ela é desagradável!
Sara coçou a ponta do narizinho com ar de quem reflete, e ficou a
meditar sobre aquele problema.
Por fim, disse:
- Talvez seja por ter crescido...
Ela tinha ouvido dizer a Miss Amélia que o rápido crescimento de Lavínia
afetara a sua saúde , seu gênio e, caridosamente, aproveitara esta benévola
explicação.
A verdade, porém, é que Lavínia tinha imensos ciúmes de Sara. Até à
vinda desta, fora ela a pessoa mais importante do colégio. As condiscípulas
obedeciam-lhe sempre, porque Lavínia era capaz de se mostrar odiosa, se lhe
resistissem. Tiranizava as mais pequeninas e tomava grandes ares para com as
outras da sua idade. Era bonita e as suas "toaletes" eram mais luxuosas do que
as das outras, chamando a atenção quando saíam a passear, até ao momento
em que apareceram os casacos de veludo, os regalos de peles, as plumas de
avestruz de Sara, e em que esta foi colocada, por Miss Minchin, à frente das
outras alunas. Lavinia sofrera com isso uma decepção enorme.
Depois, à medida que o tempo ia passando, tornava-se evidente que
Sara era, na realidade, superior, não porque se mostrasse desagradável mas,
ao contrário, porque nunca o era.
Jessie, sem querer, tinha excitado o furor da sua amiga intima, dizendo:
- É preciso fazer justiça a Sara Crewe. Não é vaidosa, e tem
razão para o ser, como nenhuma de nós. Eu, por mim, penso que não
resistiria à vaidade, se tivesse tantas coisas bonitas e fosse tão
admirada como ela é. Chega a ser vergonha a maneira como Miss
Minchin a põe em evidência quando vêm visitas ao colégio.
"-Sara, tem de vir à sala contar coisas da Índia a M. me Musgrane...” -
disse Lavinia, que imitava maravilhosamente Miss Minchin. E continuou:-"A
nossa Sarinha vai falar francês com Lady Pitcin... Tem boa pronúncia...” A
verdade é que não foi no colégio que ela aprendeu francês. Nem precisou, para
isso, de grande inteligência; ela própria diz que nunca estudou e aprendeu
simplesmente ouvindo conversar o pai. Quanto a este, não acho que o facto de
ser oficial da Índia baste para o tornar notável.
- Mas - disse lentamente Jessie - ele matou tigres. Até matou aquele de
que tiraram a pele que está no quarto de Sara. É por isso que ela a estima
tanto; deita-se-lhe em cima, acariciando a cabeça e fala-lhe, como se falasse a
um gato.
- Sara passa o tempo a fazer maluquices - disse Lavínia, com aspereza. -
A mamã diz que esta mania que ela tem de inventar histórias é ridícula e,
quando for crescida, não passará de uma excêntrica.
Efetivamente, Sara ignorava a vaidade. Tinha uma almazinha afetuosa e
partilhava generosamente com os outros os seus dons e os seus privilégios. As
alunas menores, habituadas a ser censuradas e empurradas pelas mais velhas,
sabiam que a única das suas condiscípulas que as não fazia chorar, era
exatamente a mais invejada de todas. Sara tinha um coração maternal, e
quando alguma caía ou esfolava os joelhos, encontrava sempre, junto dela,
ajuda, consolações e algum bombom ou caramelo que tirava da algibeira do
bibe(espécie de avental para crianças destinado a evitar que os vestidos se
sujem). Nunca as repelia nem fazia alusões trocistas ao fato de serem ainda
pequeninas.
-Quando se tem quatro anos, têm-se quatro anos ,dissera ela,
serenamente a Lavínia, num dia em que esta dera uma bofetada a Lottie (que
feia ação!), chamando-lhe empecilho. E continuara, com um olhar cheio de
convicção - Mas no ano seguinte terá cinco, depois seis e só faltarão catorze
anos para ter vinte!
- Meu Deus - exclamou Lavínia, trocista -, como tu sabes fazer bem
cálculos!
Mas ninguém podia negar que dezasseis e quatro fazem vinte, e vinte
anos era a idade com que as alunas mais audaciosas do Colégio Minchin
sonhavam.
Assim, as pequeninas adoravam Sara. Muitas vezes haviam já sido
convidadas - elas que eram sempre desdenhadas! - a tomar chá no seu quarto,
a brincar com Emily, a lanchar, utilizando o serviço de chá de Emily, um de
flores azuis e cujas
chávenas continham uma respeitável quantidade de chá muito doce.
Nunca nenhuma das petizas vira um serviço de chá de boneca tão bonito.
E, a partir desse dia, Sara foi considerada como uma rainha ou uma
deusa, por todas as alunas da classe infantil.
Lottie Legh adorava-a a tal ponto que, se Sara não tivesse um coração
maternal, ter-se-ia irritado com tantas manifestações de carinho.
Lottie fora internada ali por um pai ainda muito novo e frívolo, que
achara ser aquela a melhor solução para a pequenina. A mãe morrera e, como
desde a primeira hora da sua vida, fora considerada apenas como um bonito
brinquedo, como um macaquinho ou um cãozinho de luxo, tornara-se uma
criatura intolerável. Quando ela queria ou não queria qualquer coisa, punha-se
a berrar, e como apetecia sempre o que não podia ter, e não queria, nunca, o
que lhe convinha, era raro que a sua voz estrídula não se ouvisse em qualquer
canto da casa.
Esta pobre criança descobrira, não se sabe como
- ou ouvira, sem dúvida, dizê-lo a seu pai - que uma menina que não
tem mãe, deve ser lamentada e amimada. Fizera desta descoberta uma arma
de que se servia a propósito de tudo.
A primeira vez que Sara se ocupou dela, foi certa manhã em que,
passando em frente de um quarto, ouvira Miss Minchin e Miss Amélia
esforçando-se por fazer cessar a gritaria da criança, que, percebia-se
perfeitamente, se recusava a ceder. E recusava-se tão enérgicamente, que
Miss Minchin era obrigada a gritar também, num tom severo e autoritário, para
se fazer ouvir.
- Porque chora ela? - perguntava Miss Minchin.
- Oh Oh Oh - foi a resposta. - Não tenho mãezinha!
- Vamos, Lottie - dizia, já impaciente, Miss Amélia. - Cala-te. Não chores
mais, não chores mais!
- Oh! Oh! Oh - recomeçava Lottie, com toda a força dos seus pulmões. -
Eu já não tenho mãezinha!
- O que ela precisava era de chicote - exclamou Miss Minchin. -Vais
apanhar, demônio!
Ao ouvir isto, Lottie gritou com mais força do que nunca. Miss Amélia
sentiu lágrimas nos olhos. A voz de Miss Minchin tornou-se terrível.
De repente, a diretora, impotente e indignada, saiu do quarto, deixando
Miss Amélia a contas com a indisciplinada pequena.
Sara parou no vestíbulo e perguntava a si própria se devia entrar;
conhecia Lottie havia pouco tempo mas, apesar disso, pensava que talvez
conseguisse consolá-la.
Ao sair do quarto, Miss Minchin viu Sara e ficou um pouco contrariada
com a idéia de que gritara talvez demasiadamente e fora bastante áspera, com
prejuízo da sua própria autoridade.
- Ah! A menina Sara está aqui - exclamou com um sorriso que pretendia
ser amável.
- Parei - explicou Sara ~- porque reconheci a voz de Lottie e pensei que,
talvez, não tenho a certeza, eu pudesse acalmá-la. Dá licença que
experimente, Miss Minchin?
- Se for capaz disso, será quase um milagre... Mas duvido respondeu
secamente Miss Minchin, repuxando os lábios.
Depois, vendo que Sara ficara um pouco admirada com aquele
acolhimento tão frio, mudou imediatamente de atitude e disse, num tom
amável:
- É verdade que a menina tem habilidade para tudo! Tenho a certeza de
que será bem sucedida. Entre!
E afastou-se para deixá-la passar.
Quando Sara entrou no quarto, Lottie, deitada no chão, gritava e batia
com os pés no sobrado, com quanta força tinha. Junto dela, estava ajoelhada
Miss Amélia, vermelha, a transpirar, como se fosse a própria estátua da
consternação. Procurava por todos os meios fazer com que a pequena
sossegasse e passava, sem transição, da doçura à severidade.
- Pobre criança!- dizia ela. - Eu bem sei que não tens mãe...
Logo a seguir, em tom diferente, ordenava:
-Se não te calas, Lottie, és castigada! Pobre anjinho... Vamos, vamos...
És feia, e má! Vais apanhar... Tu verás!
Sara aproximou-se tranquilamente. Não sabia ainda o que faria, mas
estava convencida de que era preferível não dizer assim, ao acaso, tantas
coisas contraditórias.
- Miss Amélia - disse ela, em voz baixa. Miss Minchin deu-me licença
para eu ver se sou capaz de acalmá-la... Posso experimentar?
Miss Amélia lançou-lhe um olhar desesperado e balbuciou:
-Julga que será capaz?
- Eu não sei - murmurou Sara. - Mas vou tentar, mesmo assim...
Miss Amélia levantou-se, ofegante; as perninhas de Lottie continuavam a
agitar-se violentamente.
- Vá-se embora, devagarzinho - pediu Sara. Ficarei ao pé dela.
- Oh Sara - choramingava Miss Amélia - Nunca tivemos uma aluna tão
difícil de aturar. Não podemos continuar a tê-la aqui.
Mas, ao mesmo tempo em que falava, ia-se esquivando, satisfeita por
ter encontrado uma boa desculpa para o fazer.
Sara, de pé, junto da pequena fúria, olhou para ela durante alguns
momentos, sem falar. Depois, sentou-se no chão, ao lado da outra, e esperou.
Além dos gritos raivosos de Lottie, não se ouvia mais nada no quarto. E a
pequenina, habituada a ouvir as pessoas crescidas suplicarem-lhe que se
calasse, ou ralharem-Lhe severamente durante os seus ataques de mau gênio,
ameaçando-a e acarinhando-a, assustadas com os seus caprichos, não
compreendia... Gritar com todas as suas forças, bater com os pés no chão e
verificar que a única pessoa presente parecia não lhe ligar a menor
importância, era um fenômeno digno da sua atenção!
Entreabriu os olhos, até então muito fechados, e viu quem estava junto
dela: era apenas outra criança, exatamente aquela pequena que era dona de
Emily e de tantas outras coisas lindas. Essa outra criança olhava para Lottie e
parecia refletir profundamente.
Lottie quis recomeçar a sua gritaria, mas a calma que reinava na sala e
a serenidade da fisionomia de Sara impressionaram-na, e o seu primeiro grito
não teve força nem convicção.
- Eu-não-te-nho-mãe-zinha - recomeçou ela, numa voz bastante mais
baixa.
Sara continuou a olhar fixamente para Lottie, mas nos seus olhos havia
uma expressão de simpatia.
- Eu também não tenho mãe - disse ela.
Esta resposta espantou a outra. Cessou de agitar as pernas e ficou
imóvel, a olhar para Sara. Uma idéia nova basta, algumas vezes, para fazer
calar uma criança que chora e que coisa alguma pudera até então acalmar.
Deve dizer-se também que se Lottie detestava a autoritária Miss Minchin
e a indulgente Miss Amélia, tinha, em compensação, um "fraco" por Sara,
apesar de conhecê-la pouco.
Não queria, ainda, ceder, mas os seus pensamentos tomavam um novo
rumo e, depois de um soluço amuado, perguntou:
- Onde está a tua mãe?
Sara não respondeu logo. Haviam-lhe dito que a mãe estava no Céu;
meditara bastante sobre esse assunto e acabara por formar uma opinião muito
sua.
- Está no Céu - disse, por fim. - Mas tenho a certeza que ela desce
algumas vezes à Terra para me vir ver; eu é que não a vejo. Deve suceder o
mesmo com a tua. Quem sabe se a tua mãe e a minha nos estão a ver neste
momento? Talvez se encontrem aqui as duas, neste quarto...
Lottie ergueu-se bruscamente e olhou em volta de si. Era uma bonita
criança de cabelos encaracolados e olhos redondos, que lembravam miosótis
orvalhados.
Mas, se a sua mamã ali estivera durante a meia hora que acabava de
decorrer, não a tinha comparado a um anjo do Céu, com certeza...
Sara continuava a falar, e fazia-o com tal convicção, que Lottie escutava-
a atentamente, mesmo sem querer.
Haviam-lhe explicado que a mãe tinha umas grandes asas, e mostrado
estampas onde se viam umas senhoras vestidas de branco, a quem chamavam
anjos. Mas o que Sara contava parecia ser uma coisa verdadeira, como se
falasse de um belo país onde viviam pessoas a valer.
- Lá em cima há muitos campos, todos em flor
- dizia ela, abandonando-se à sua imaginação e falando como se
sonhasse. - São campos de lírios, e, quando passa sobre eles a brisa, esta fica
toda perfumada. E, como a brisa sopra constantemente, respira-se sempre
aquele delicioso perfume. As crianças brincam nos campos e colhem ramos de
lírios para fazer coroas. Todos os caminhos deste país brilham. E depois,
ninguém se fatiga, mesmo que tenha andado muito, Quem quiser, pode voar.
Há muros de pérolas e ouro em toda a volta da cidade, mas são baixinhos, que
é para nos podermos debruçar, olhar para a Terra, cá em baixo, e enviar
sorrisos e mensagens carinhosas às pessoas que estimamos.
Fosse qual fosse a história que Sara tivesse começado, Lottie,
certamente, não gritaria mais, e ter-se-ia deixado prender pelo encanto da
narrativa, mas não se pode negar que esta história era mais bonita do que as
outras. Entretanto, Lottie aproximara-se mais de Sara,ouviu-a até ao fim, sem
perder uma só palavra. Quando acabou, pareceu-lhe que tinha sido muito
pequena, e fez uma cara pouco tranqüilizadora.
- Eu quero ir para esse país - gritou ela. Eu... não tenho mamã neste
colégio !...
Sara sentiu o perigo e saiu do seu sonho. Pegou na mão gorducha de
Lottie e puxou a pequenina para si, sorrindo-lhe carinhosamente.
- Serei eu a tua mamã - disse ela. - Vamos divertir- nos a dizer que tu és
minha filha. E Emily será tua irmã.
Reapareceram nas faces de Lottie as suas engraçadas covinhas.
- É verdade ? - perguntou.
- Com certeza - respondeu Sara, pondo-se de pé, num salto. -Vamos
prevenir Emily. Em seguida vou lavar-te a cara e pentear-te.
Lottie concordou, alegremente, e pôs-se a pular ao lado de Sara, sem se
lembrar já de que o "drama" que acabava de passar, começara, exatamente,
porque ela recusara deixar-se lavar e pentear para o almoço, tornando-se
forçoso recorrer à autoridade da majestosa Miss Minchin.
A partir daquele dia, Sara passou a ser mãe adotiva.
BECKY
O maior prestigio de Sara estava no dom que possuía de contar histórias
e dar a tudo quanto dizia uma aparência de descrição maravilhosa.
Era isto, mais ainda do que o seu luxo e a sua riqueza, que atraía para
ela as condiscípulas; e era isto mesmo que mais inveja causava a Lavínia e a
algumas outras pequenas, que não conseguiam, apesar de tudo, deixar de
sentir o encanto do extraordinário talento de Sara.
As pessoas que na infância tiveram alguém que lhes contasse, assim,
histórias fantásticas, recordam durante toda a vida essas horas de
deslumbramento, em que escutavam a voz que lhes ia falando de fadas,
encantos e aventuras espantosas, que transportavam a sua imaginação infantil
a um mundo maravilhoso.
E evocava, muitas vezes, os grupos que formavam com outras crianças,
conservando-se, durante horas, quietas e caladas, de olhos fitos na pessoa que
contava.
Sara, não somente sabia contar histórias, como
gostava muito de o fazer. Quando, sentada no meio
das condiscípulas, começava a inventar coisas maravilhosas, os seus
olhos verdes pareciam maiores e
mais brilhantes; as faces tornavam-se-lhe coradas e insensivelmente,
começava a acompanhar com gestos
as suas palavras. A voz, ora doce, ora forte, o corpo
flexível, os movimentos expressivos das suas mãos tudo contribuía para
dar relevo às passagens dramáticas ou românticas do seu conto.
Por vezes,esquecia- se de que falava com outras
crianças; via realmente fadas, vivia com os reis, as
rainhas e as formosas castelãs de quem ia contando
as aventuras. Acontecia chegar ao fim da narrativa ofegante,
exausta. Então, colocava a mãozinha no
peito, sobre o coração, e sorria, como se estivesse troçando de si
própria.
- Quando vos conto tudo isso - dizia ela parece-me que é verdade, que
aconteceu assim, e
esqueço-me do colégio, da aula e até de que me
estão ouvindo. Chego a convencer-me de que sou eu própria, cada
uma das personagens da história.
É extraordinário!
Havia cerca de dois anos que Sara estava no
colégio de Miss Minchin.
Num dia de Inverno, enevoado e triste, quando
descia da carruagem, toda embrulhada no seu casaco
de veludo guarnecido de peles, viu, debaixo da
escada da cave, o vulto de uma pequenina, mal arranjada, que
espreitava para fora, através das grades, com o pescoço estendido
e os olhos dilatados. A sua
carinha suja possuía uma expressão ao mesmo tempo
ardente e tímida, que chamou a atenção de Sara.
E ela sorriu à criança, como sorria sempre a toda
a gente.
Mas a outra julgava, com certeza, que não
lhe era permitido olhar para a aluna mais rica do colégio. A sua cabeça
desgrenhada desapareceu, como a de um diabinho que recolhe à sua caixa, e
fugiu para a cozinha com tal precipitação, que, se não tivesse um ar tão
miserável, Sara teria rido com vontade.
Nesse mesmo dia, à noite, enquanto Sara contava uma das suas
histórias, rodeada por um auditório atento, o mesmo vulto, pequeno e triste,
entrou na aula, transportando um balde de carvão demasiadamente pesado
para as suas forças, e ajoelhou junto do fogão, para encher a fornalha e varrer
as cinzas. Estava mais asseada do que à tarde, mas mostrava o mesmo ar
assustado. Via-se que tinha medo de escutar ou olhar em volta de si. Colocou o
carvão, bocado a bocado, com as mãos, para não fazer barulho, e sacudiu
cuidadosamente as tenazes. Mas Sara compreendeu logo que aquilo que se
estava passando na sala interessava vivamente a criadinha e que ela cumpria
a sua obrigação devagar, na esperança de apanhar algumas palavras, aqui e
acolá, da história que estava contando. Por isso, Sara levantou a voz e
esforçou-se por falar bem distintamente:
"- As sereias nadavam docemente naquela água verde e clara como o
cristal, levando atrás de si uma rede de pesca tecida com pérolas.” A princesa
estava sentada sobre um rochedo todo branco e olhava para elas.
Era a história maravilhosa de uma princesa amada por um tritão(nome
de divindades marinhas) e que fora viver com ele nas deslumbrantes cavernas
submarinas.
A criadinha, de joelhos diante do fogão, varrera o chão uma vez, outra
vez, e recomeçava a varrê-lo de novo, mas estava de tal forma absorvida a
ouvir, que perdeu a noção da realidade. E, sem saber como, encontrou-se
sentada sobre os calcanhares com a vassoura imóvel nas mãos. A voz de Sara
transportava-se
às grutas todas iluminadas de um azul muito pálido, com o chão coberto
de areia dourada. Parecia-Lhe que, à sua volta, se balouçavam exóticas flores e
ressoavam longínquos e estranhos concertos.
A vassoura escapou-se-Lhe dos dedos calejados pelo trabalho e Lavínia
Herbert voltou a cabeça.
- Esta rapariga está a ouvir a história... disse ela.
A pequena apanhou a vassoura e pôs-se em pé. Depois, pegando no
balde do chão, fugiu, como uma lebre assustada.
Sara sentiu dentro de si uma surda irritação e respondeu:
- Eu bem sabia que ela estava a ouvir. Mas que mal havia nisso?
Lavínia levantou a cabeça com uma impertinência elegante, e replicou:
- Não sei se a tua mãe gostaria de te ver contar histórias às criadas. A
minha, sei eu, com certeza, que não gostava.
- À minha mãe - exclamou Sara, com um olhar estranho. -Estou certa de
que isso lhe seria indiferente. Ela sabe, tão bem como eu, que as histórias são
para ser contadas a toda a gente.
- Eu julgava - continuou Lavínia, num tom severo - que a tua mãe tinha
morrido.
- Então tu pensas que, pelo fato de ter morrido, ela já não se preocupa
comigo? - respondeu secamente Sara, que sabia dar à sua voz um tom grave,
quando queria.
- A mamã de Sara sabe tudo - murmurou Lottie - e a minha também. Não
falo de Sara, que é a minha mamã no colégio de Miss Minchin, mas da outra...
Lá, onde ela está, há caminhos reluzentes e campos de lírios, que toda a gente
pode colher.
- Sim, senhora! É muito bonito - exclamou
Lavinia, escandalizada. - Então também inventas histórias acerca do
Paraíso?
-Como sabes tu que as minhas histórias não são verdadeiras? -
perguntou Sara. - O que eu te posso afirmar - continuou ela, com uma
veemência que não tinha nada de angelical - é que tu nunca o conseguirás
saber, se não te tornares mais caridosa do que és agora. Vem comigo, Lottie.
Ao dizer isto, saiu da sala, na esperança de encontrar ainda a criadinha,
mas ela desaparecera sem deixar traço.
-Quem é a pequenina que trata do fogão ?
-perguntou ela, nessa mesma noite, a Mariette. Mariette deu-lhe muitas
explicações. Quem era aquela pequena? Ah! bem podia Miss Sara fazer essa
pergunta a quem quisesse. Era uma pobre abandonada que haviam admitido
como ajudante de cozinheira, mas, na verdade, ela trabalhava em toda a parte,
menos na cozinha. Era ela quem engraxava o calçado, limpava os fogões, subia
e descia as escadas com grandes baldes de carvão, lavava o sobrado e os
vidros, enfim, era o "pau mandado" de toda a gente.
Tinha catorze anos, mas estava tão raquítica, que parecia ter apenas
doze. Na verdade, a própria Mariette confessava ter pena dela. A pobre criança
era de tal forma tímida que, se por acaso alguém se lhe dirigia, os olhos
pareciam querer saltar-lhe das órbitas, tão grande era o medo que sentia.
- Como se chama? - perguntou Sara que, sentada junto da mesa, com o
queixo apoiado nas mãos, não perdia uma única palavra de Mariette.
Devia chamar-se Becky. Mariette ouvia todo o Pessoal dizer, "Vai fazer
isto, vem cá, Becky, mais de cem vezes ao dia.
Sara ficou muito tempo a olhar para o lume e a pensar em Becky,
mesmo depois de a criada se ter retirado, e inventou logo uma história, cuja
heroína desgraçada era ela. Parecia-lhe que a pobrezinha nunca
conseguira matar inteiramente a fome. Desejava
ardentemente tornar a encontrá-la. Depois disso avistou-a várias vezes,
mas Becky mostrava-se sempre tão assustada e desejosa de não ser vista, que
era verdadeiramente impossível falar-lhe.
Mas, algumas semanas mais tarde, numa outra
tarde igualmente brumosa, Sara, ao entrar na sua
sala particular, encontrou-se em frente de um quadro
comovedor. Na sua poltrona favorita, junto do lume
que brilhava, Becky, com o nariz mascarrado, o
avental sujo, a touca ao lado, caída sobre uma orelha, e um grande
balde vazio a seu lado, dormia profundamente, vencida pela fadiga, que
ultrapassara
os limites de resistência das suas forças infantis.
Tinham-na mandado preparar os quartos para
a noite. Eram muitos, e ela andara o dia todo de um
lado para outro, sem parar. Deixara para o fim os
aposentos de Sara, tão diferentes dos outros quartos simples e nus,
onde havia apenas o estritamente
necessário, considerado suficiente para as alunas vulgares.
Aos olhos da pobre criada, a sala de Sara era
um salão luxuoso, quando, na realidade, não era
mais do que uma divisão clara e alegre.
Mas havia ali gravuras, livros, objetos curiosos
trazidos da Índia e, além disso, um sofá e uma cadeira estofada. Havia
também um bom lume, os
cobres da chaminé a reluzir e, no meio de tudo isto, sentada numa
cadeira proporcionada ao seu tamanho, Emily, como se fosse a deusa daquele
lugar.
Becky costumava guardar o quarto de Sara para
o fim do seu dia de trabalho, porque a vista de todas
aquelas coisas tão bonitas repousava-a, e também
porque esperava sempre poder sentar-se, durante
alguns minutos, na bela poltrona, olhar para tudo o
que a rodeava e pensar no maravilhoso destino daquela menina a quem
tudo aquilo pertencia e que
pelos dias de geada, passava embrulhada em soberbos casacos, que as
pobres deserdadas da sorte, como ela, procuravam, ao menos, ver de longe,
através
das grades da cave.
No referido dia, as suas pobres pernas fatigadas haviam experimentado
um alívio tão grande, quando se sentara, que uma sensação de bem-estar a
invadira inteiramente; entorpecida pelo reconfortante calor do fogão, com os
olhos fixos nas brasas avermelhadas, e um vago sorriso nos lábios, a cabeça
inclinara-se-lhe pouco a pouco, sem ela própria dar por isso, as pálpebras
foram-se- lhe cerrando e, no fim, adormecera.
Não havia ainda dez minutos que tinha adormecido, quando Sara entrou.
O seu sono era tão profundo como o da "Bela Adormecida no Bosque!
simplesmente, a pobre Becky estava longe de se parecer com a princesa do
conto, pobre, feia, cansada como estava!
Ao lado dela, Sara parecia uma criatura vinda de um mundo diferente.
Regressava de uma lição de dança e, embora houvesse essa lição todas
as semanas, o dia em que vinha o professor de baile era, para todas as alunas,
um dia de contentamento.
Exibiam-se, nessa ocasião, os vestidos mais bonitos, e como Sara
dançava invulgarmente bem, dispensavam-lhe especial atenção, e Mariette
recebera ordem de a vestir com a máxima elegância possível.
Naquele dia trazia um vestido cor-de-rosa; Mariette comprara botões de
rosas naturais e fizera uma coroa que entrelaçara nos seus cabelos negros e
encaracolados.
Sara acabava de aprender uma dança encantadora, no decorrer da qual
parecia uma grande borboleta a esvoaçar pela sala e, por isso, trazia o rosto
afogueado de animação e prazer.
Entrava no aposento, esboçando ainda alguns
passos de dança, quando avistou Becky a dormir como um justo, com a
touca tombada sobre a orelha...
- Oh! - exclamou Sara. - Pobre pequena !
Não teve um minuto, sequer, de irritação, ao ver a sua cómoda poltrona
ocupada por aquela pessoa enfarruscada. Pelo contrário, estava encantada por
encontrar a heroína da história que inventara e por ter, finalmente, ocasião de
Lhe falar.
Aproximou-se docemente e contemplou-a. Becky ressonava levemente.
"Gostava que ela acordasse sòzinha - pensava Sara. - Contraria-me ter
de a acordar; mas, se por acaso Miss Minchin a surpreende aqui, fica furiosa.
Vou esperar um momentinho. "
Sentou-se na borda da mesa, balouçando as pernas, tão esbeltas nas
suas meias de seda cor-de-rosa, e perguntou a si própria o que devia fazer.
Miss Amélia podia, muito bem, entrar de um momento para o outro, e Becky
seria severamente repreendida.
"Mas ela está tão fatigada! - -pensava Sara.
- Tão terrivelmente fatigada!"Um bocado de carvão que caiu da fornalha,
veio pôr fim à perplexidade de Sara. Becky estremeceu e abriu os olhos com
um suspiro de pavor. Não dera por ter adormecido; havia apenas alguns
instantes que estava ali - pensava... e eis que, de repente, se encontrava,
confundida, na presença daquela maravilhosa menina, que parecia uma fada
cor-de-rosa, e olhava para ela com interesse, lá do alto da mesa onde se
empoleirara.
Pôs-se de pé, num pulo, e esforçou-se por colocar a touca direita, na
cabeça. As mãos tremiam- lhe. O que ela fizera! Deixar-se adormecer
descaradamente na poltrona de uma das meninas do colégio! Iam pô-la na rua,
sem Lhe pagar a soldada! E a pobre rapariga começou a soluçar.
- Oh miss, miss, Peço-lhe perdão - balbuciava ela - Perdoe, miss!
Sara saltou para o chão e veio até ao pé dela, dizendo-lhe, tão
gentilmente como se falasse a uma das suas condiscípulas:
- Não tenhas medo. Isto não tem importância.
- Eu não fazia tenção, juro, miss - protestava Becky. - A culpa foi do calor
do fogão e, também, porque eu estava muito cansada... Não foi por
atrevimento!
Sara sorriu, amigàvelmente, e pôs a mão sobre o ombro da criadita.
-Como não querias tu dormir se estavas tão fatigada? - disse ela. - Tu
ainda não estás bem acordada!
A pobre Becky devorava Sara com os olhos. Nunca ninguém lhe falara
com tanta doçura. Estava habituada a ouvir ralhar, a ser mandada e até,
muitas vezes, a receber pontapés. E, afinal, aquela menina, linda como os
anjos, vestida de cor-de-rosa, dizia-Lhe que ela também tinha o direito de estar
fatigada e, mesmo, de se deixar adormecer! A mão, tão delicada de Sara,
pousava sobre o ombro de Becky, o que Lhe parecia verdadeiramente incrível.
-A menina não está zangada? Não vai contar à senhora?
-Não direi nada, podes estar tranqüila! O coração de Sara sofria, ao
verificar o terror que se estampara na cara mascarrada da criadita.
Teve, mesmo, uma sensação de desgosto intolerável. Então, uma idéia,
como só ela era capaz de ter, atravessou-lhe o espírito. E acariciou as faces de
Becky.
- Na realidade; nós somos semelhantes! - exclamou Sara. -Foi só por um
puro acidente que tu não nasceste no meu lugar e eu no teu!
Becky não compreendia. Estas considerações eram demasiado elevadas
para o seu espírito; e depois
para ela, a palavra "acidente" significava, apenas, uma terrível
calamidade, tal como: ser atropelada por uma carruagem, cair de uma escada
e ser levada ao hospital.
- Um acidente, miss - murmurou ela, respeitosamente. - Acha?
- Acho, sim - respondeu Sara, que a fitava com olhos sonhadores.
Depois, vendo que Becky não a compreendia, disse-Lhe noutro tom:
- Já acabaste o teu trabalho? Podes ficar aqui mais um bocadinho?
Becky sentiu-se, mais uma vez, sufocada, e perguntou:
- Eu Aqui?
Sara foi abrir a porta e espreitou para o corredor, deixando passar uns
momentos para certificar-se se via ou ouvia qualquer coisa.
- Não anda por aqui ninguém - explicou ela. -Tu já arranjaste todos os
quartos, talvez possas
demorar-te um pouco. Tenho a certeza de que havias de gostar de
comer um bolo...
Os minutos que se seguiram foram, para Becky, como um sonho. Sara
abriu um baú e deu-lhe uma grossa fatia de bolo, regalando-se de ver a pobre
criada devorá-lo com avidez. Falou com ela, fez-lhe perguntas, e tudo isto com
um ar tão alegre, que o pavor de Becky começou a acalmar-se a ponto
de a pequenina se atrever - ela, a miserável Becky - a fazer perguntas a
Sara.
- Esse vestido... - começou ela, olhando o vestido cor-de-rosa com uma
espécie de inveja - é o mais bonito que a menina tem?
- É um dos vestidos que eu costumo vestir para dançar - respondeu
Sara. - Gosto muito dele. E tu?
Becky conservou-se, durante alguns instantes, muda de admiração.
Depois, respondeu em voz
baixa, com respeito:
- Uma vez, vi uma princesa. Eu estava na rua tal, com muita gente
que tinha ido ver as pessoas ricas
entrarem na Ópera. Havia uma senhora para quem
todos olhavam mais do que para os outros. E diziam: “É a princesa”. Era
uma menina crescida toda de cor-de-rosa: casaco, vestido, flores, tudo!
Quando vi a miss sentada na mesa, julguei que era
a princesa, porque é muito parecida com ela.
- Tenho pensado muitas vezes - disse Sara com a sua voz
musical - que gostava imenso de ser
princesa. Queria saber o que elas pensam, o que elas
sentem. Agora, vou imaginar que sou uma princesa.
Becky continuava a não compreender as palavras de Sara, mas olhava
para ela com os olhos fixos numa espécie de adoração.
Sara saiu do seu sonho e fez uma nova pergunta a Becky:
-Estiveste a ouvir-me, naquela noite, lá em
baixo, na aula?
- Estive - confessou a pequena, novamente
dominada por um vago terror. - Eu bem sei que não
devia, mas era tão bonito! Não fui capaz de me
dominar...
- Até gostei que ouvisses - declarou Sara. -
Quando contamos histórias ficamos sempre contentes se percebemos
que gostam de nos ouvir. Querias
saber a continuação?
Becky sentiu, outra vez, que Lhe faltava a respiração, e exclamou:
- Eu? Tal qual como se fosse uma aluna do
colégio? A linda história do príncipe e das sereias
pequeninas que nadavam, a rir, com estrelas nos
cabelos!...
Sara fez um sinal afirmativo, com a cabeça.
Depois disse:
- Hoje, receio bem que já não tenhas tempo.
Mas diz-me a que horas vens arrumar o meu quarto que eu procurarei
estar aqui e contar-te-ei um bocadinho
todos os dias, até que a história acabe. É uma história muito comprida e
muito bonita. E eu acrescento-lhe sempre qualquer coisa.
Ai - suspirou Becky, com convicção. - Bem me importa, a mim, que o
balde de carvão seja pesado ou que a cozinheira me atormente, quando eu
puder pensar na história durante todo o dia!
- Podes muito bem fazer isso. Contar-te-ei a história do princípio ao fim -
disse Sara.
Quando Becky voltou para a cozinha, não era a mesma que havia subido
a escada, ajoujada sob o peso do carvão. Tinha uma fatia de bolo, na algibeira,
vinha quentinha e refeita das canseiras do dia; mas não foram apenas o calor
do lume e o bolo que lhe haviam dado forças: fora, também, a presença de
Sara.
Depois de ela ter saído, Sara voltou para o seu lugar favorito, no canto
da mesa. Pousou os pés numa cadeira, pôs os cotovelos nos joelhos e o queixo
encostado às mãos.
"Se eu fosse princesa...” uma verdadeira princesa - pensava ela
- poderia ser muito generosa
para os pobres; mas, mesmo sendo princesa apenas na minha
imaginação, posso inventar pequenas coisas que lhes dêem prazer,
como fiz há bocado com
Becky. Ela sentia-se tão feliz como se eu lhe tivesse dado uma
grande esmola. Vou passar a imaginar também que, fazer coisas
pequenas, com intenção de tornar os pobres felizes, é ser generosa.
Hoje fui muito generosa. “
AS MINAS DE DIAMANTES
Pouco tempo depois do que acabamos de contar, Sara recebeu notícias
que excitaram não somente a sua curiosidade como a de todo o colégio,
tornando-se o assunto de todas as conversas durante muitas semanas.
O capitão Crewe contava, numa das suas cartas, uma história
interessante:
Acabava de receber a visita inesperada de um dos seus antigos
condiscípulos, que possuíam na Índia grandes terrenos, nos quais haviam sido
descobertos diamantes. O proprietário desses terrenos fizera a viagem para
organizar a exploração das preciosas minas.
Se tudo corresse bem, como era natural, estavam na posse de uma
riqueza tão considerável, que só pensar nela lhe causava vertigens. E como
tinha uma grande estima pelo capitão Crewe, seu amigo de infância, queria
proporcionar-lhe maneira de aumentar também a sua fortuna, tornando-o seu
associado.
Foi isto, pelo menos, o que Sara compreendeu, ao ler a carta do pai.
Evidentemente, tanto ela como as condiscípulas teriam mostrado muito
menos interesse se se tratasse de qualquer outro objeto de negócios, por mais
vantajoso que fosse. Mas, isto de "minas de diamantes" parecia-se tanto com
as "Mil e Uma Noites" que ninguém podia ficar indiferente.
Sara, encantada, fez logo a descrição dos túneis em labirinto, que
desciam ao centro da terra, e de cavernas com as paredes, o teto e o solo
coberto de gemas refulgentes, onde trabalhavam indígenas de pele bronzeada,
munidos de pesadas picaretas. Hermengarda e Lottie escutavam-na,
deslumbradas, e exigiam que a descrição recomeçasse toda a noite.
Tudo isto irritava prodigiosamente Lavínia, que logo começou a dizer a
Jessie, em segredo, que não acreditava nas tais minas de diamantes.
- A minha mãe tem um anel com um diamante, que custou muito caro.
E, no entanto, esse diamante não é muito grande. Já vês que, se essas minas
existissem, os donos seriam tão ricos, que se tornariam ridículos!
- É talvez a sorte que espera Sara... respondeu a outra, com um riso
trocista.
-Ela não precisa de ser mais rica para ser ridícula!observou Lavínia em
tom de desprezo.
- Tu não a podes ver. - disse Jessie.
- Não é isso - replicou Lavínia com azedume - mas não creio em minas
cheias de diamantes.
-A verdade é que a alguma parte os hão-de ir buscar - respondeu Jessie
e perguntou - Sabes o que Gertrudes me contou?
- Não, nem me interessa, se, por acaso, é qualquer coisa a propósito
dessa celebérrima Sara!
-Pois é, justamente, acerca dela! Uma das suas novas manias é
imaginar que é princesa: Não pensa noutra coisa, mesmo durante as
aulas; diz que aquela idéia a ajuda a estudar melhor as lições. E quis
persuadir Hermengarda a fazer o mesmo; mas a Hermengarda acha
que é gorda de mais para ser princesa...
- Hermengarda é muito gorda, e Sara é muito magra... - disse
Lavínia.
Jessie riu novamente, com malícia, e continuou:
- Sara diz que, para ser princesa, não tem importância ser bonita
ou feia, rica ou pobre. O que importa são os nossos pensamentos e as
nossas ações.
-Naturalmente, ela imagina que poderia ser princesa mesmo que
andasse a pedir esmola pelas
ruas - respondeu Lavínia. - Nesse caso vamos tratá-la por Vossa Alteza.
As aulas tinham terminado, naquele dia, e as duas amigas estavam
sentadas na sala de estudo, em frente do fogão, gozando a hora mais
agradável para todas as alunas - aquela em que dão por findos os seus
trabalhos.
Miss Minchin e Miss Amélia preparavam-se para tomar chá na sua
salinha particular. Era o momento em que as alunas podiam conversar à
vontade e fazer confidências, principalmente quando as mais pequenas se
conservavam tranqüilas, em vez de questionarem e correrem ruidosamente de
um lado para o outro, como costumavam fazer. Quando o barulho era maior as
mais velhas intervinham, ralhavam, e davam- lhes o seu sopapo; porque
estavam incumbidas de mantê-las na ordem e, se não o fizessem, miss Minchin
e miss Amélia não tardariam a aparecer encurtando assim aquela deliciosa
hora de liberdade.
Lavinia falava ainda quando a porta se abriu e Sara entrou com Lottie,
que se habituara a segui-la
por toda a parte, como um cãozinho.
- Aí está èla, com essa insuportável garota - murmurou Lavínia. - Visto
que gosta tanto dela, porque a não guarda no seu quarto? Não tarda cinco
minutos que a petiza não comece a gritar por qualquer coisa...
Lottie tivera, de repente, o desejo de ir brincar para a sala de estudo, e
pedira a sua "mãe adotiva" que a acompanhasse. Correu a juntar-se a um
grupo de petizas da sua idade, que brincava a um canto, e Sara acomodou-se
num banco que estava no vão da janela, disposta a ler um livro que trouxera.
Era uma história da Revolução Francesa, e não tardou que a descrição horrível
dos prisioneiros da Bastilha - esses homens tanto tempo metidos em
masmorras que, ao serem libertados, pareciam fantasmas, com a barba e o
cabelo a esconder-lhes inteiramente o rosto - a absorvesse inteiramente.
A imaginação de Sara levou- a tão ràpidamente para longe do Colégio
Minchin, que Lhe foi deveras desagradável ser chamada à realidade por um
grito agudo de Lottie.
Nada era mais difícil para ela do que dominar a sua irritação, quando
alguém a interrompia durante as horas da leitura. Todos aqueles que gostam
de ler, decerto compreendem isto.
-É tal qual como se recebesse uma bofetada e sentisse um desejo
invencível de dar outra em paga... - tinha Sara dito, um dia, a Hermengarda.
-É preciso que eu me domine ràpidamente, para não dizer palavras
desagradáveis.
Teve, na realidade, que fazer um grande e rápido esforço sobre si
própria, quando, naquele dia, fechou o livro e saltou para o chão.
Lottie divertia-se a escorregar sobre o pavimento encerado da sala e,
depois de ter enervado Lavínia e Jessie com o barulho que fazia, acabara por
cair, magoando-se num joelho. Agora, gritava e esperneava no meio de um
grupo de amigas e adversárias acarinhadas por umas e repreendida por outras.
- Cala-te, chorona! Cala-te imediatamente!- ordenou, Lavinia.
- Eu não sou chorona - soluçava Lottie. Sara! Sara!
- Se ela não se cala, Miss Minchin ouve-a, com certeza! - exclamou
Jessie. - Vamos, Cala-te, Lottiezinha, se queres um "penny"(moeda inglesa)
novinho em folha.
- Não quero o teu "penny", - replicou Lottie. E como, ao olhar para o
joelho, visse uma gota de sangue, recomeçou a chorar com toda a força.
Sara precipitou-se na sala e ajoelhou ao pé da pequenina, passando-lhe
os braços em volta do pescoço.
- Vamos, Lottie, vamos - disse ela. - Que prometeste à tua Sara?
- Chamaram-me chorona - gritava Lottie, lavada em lágrimas.
Sara acariciava-a, mas falava-lhe num tom sério, que Lottie conhecia
muito bem:
- E é verdade, minha querida Lottie, se continuares. Que me prometeste
tu? Que foi?
Lottie sabia perfeitamente o que tinha prometido. Por isso, preferia
mudar de assunto.
- Eu não tenho mãezinha - começou ela. Não tenho mãezinha nenhuma!
- Tens, sim. Tens uma mãezinha - disse Sara, alegremente. - Esqueces-te
de que Sara é tua mamã? Já não queres que a Sara seja tua mamã?
Lottie chegou-se muito para ela, a murmurar baixinho, palavras que
ninguém entendia, com ar de consolação.
-Vem sentar-te no banco da janela, ao pé de mim - continuou Sara - e
contar-te-ei uma história.
- Contas - disse Lottie, com voz de mimo. Contas-me a história das minas
de diamantes?
- As minas de diamantes - interrompeu Lavínia. -Insuportável piegas! A
minha vontade era dar-lhe uma bofetada!
Sara ergueu-se, de um salto. É preciso não
esquecer que ela fora bruscamente arrancada à leitura da história
impressionante da Bastilha, e que lhe
fora necessária uma forte dose de força de vontade
para vir tomar o seu lugar junto da sua "filha adotiva". Sara não era um
anjo e não tinha a menor
simpatia por Lavínia.
- Pois bem - exclamou ela com veemência. O meu desejo era dar-te
uma bofetada, a ti. Mas
não o farei - continuou dominando-se. - Ou antes,
gostaria de te bater, mas não o quero fazer. Nós
não somos duas garotas da rua e já temos idade para
nos sabermos conduzir.
A ocasião era ótima, e Lavínia não a quis perder. Por isso, respondeu:
- Ora essa, Alteza! Nós somos princesas, creio eu. Pelo menos, uma de
nós duas. Que glória para Miss Minchin contar uma princesa entre as suas
alunas!
Sara deu um passo para Lavínia, como se quisesse esbofeteá-la, e talvez
esse pensamento lhe atravessasse o cérebro. A sua inocente mania de
imaginar os mais extraordinários sonhos, era a sua felicidade. Nunca falara
nisso às companheiras de quem
não gostava.
Aquela recente idéia de se imaginar princesa era um ponto delicado, no
qual ela não queria que
ninguém tocasse. Guardava ciosamente o seu segredo, e eis que Lavínia
troçava dele diante de todo o colégio... Sara sentiu o sangue subir-lhe ao rosto.
Mas conseguiu vencer-se. Quando se é princesa, não
é próprio deixar-se dominar pela cólera. A sua mão
tombou e ela ficou imóvel durante alguns segundos. Depois, começou a
falar numa voz novamente
firme e segura; levantou um pouco a cabeça e todas as outras pequenas
escutaram:
- É verdade: às vezes, imagino que sou uma princesa, a fim de chegar a
conduzir-me como se o fosse realmente.
Lavínia não sabia que dizer. Muitas vezes já verificara que Lhe faltavam
os argumentos quando discutia com Sara. A verdadeira razão disto era as
alunas tomarem sempre uma atitude de aprovação, quando a outra falava.
Naquela tarde, Lavínia viu todas olharem para Sara com um interesse
enorme. Gostavam de histórias de princesas e esperavam que ela lhes
contasse uma; como se obedecessem todas ao mesmo desejo, aproximaram-
se dela. Por isso, o último comentário ne Lavinia não teve o melhor êxito...
- Espero - disse ela - que não te esqueças de nós quando subires ao
trono...
- Com certeza que não - respondeu Sara. E sem acrescentar mais nada,
ficou imóvel, olhando fixamente para Lavínia, até que a outra resolveu retirar-
se, pelo braço de Jessie.
A partir desse dia, as alunas que invejavam Sara, começaram a chamar-
lhe "Princesa", quando queriam metê-la a ridículo; ao passo que as outras, que
a estimavam, lhe davam esse tratamento como prova de afeição.
As admiradoras de Sara estavam encantadas com o esplendor daquele
título e com a originalidade que lhe dera causa; até Miss Minchin, que fora
posta ao corrente do que se passava, contava aquela anedota às visitas que
recebia, como se estivesse persuadida de que tal fato dava um certo brilho
aristocrático ao seu colégio.
Quanto a Becky, achava este título de princesa o mais natural possível.
As suas relações com Sara, iniciadas naquele dia de chuva e frio, em que
Becky se deixara adormecer na poltrona do seu quarto, tinham progredido
muito. Diga-se, desde já, que Miss Minchin e Miss Amélia não estavam
perfeitamente
informadas disso... Tinham notado que Sara se mostrava extremamente
bondosa para com a criadita mas ignoravam totalmente os minutos
encantadores
e, ao mesmo tempo, arriscados, em que Becky, depois
de ter preparado os quartos com surpreendente rapidez, chegava à
salinha de Sara e punha no chão com um suspiro de alivio, o balde de carvão.
Então
Sara contava-Lhe um capítulo de alguma história
maravilhosa; certos produtos alimentares, dos mais
apetitosos, saíam do seu baú, e Becky fazia-lhes
honra... ou metia-os na algibeira, para se regalar
com eles, mais tarde, na solidão das águas-furtadas
onde dormia.
- Mas tenho que ter cautela, quando como...
dissera ela, um dia-, porque, se deixo cair migalhas, as ratazanas vêm
apanhá-las...
- As ratazanas!- exclamou Sara, horrorizada.
- No teu quarto há ratazanas?
- Um regimento delas... - respondeu Becky, com a maior calma. - Há
sempre ratazanas e ratos
nos sótãos. A gente acostuma-se depressa ao barulho que eles fazem, a
correr de um lado para o
outro. Eu já estou de tal forma habituada, que só
dou por isso quando passam por cima do meu travesseiro.
- Ui!- exclamou Sara.
- Nós habituamo-nos a tudo... - replicou Becky.
- Se a menina tivesse nascido como eu, sucedia-lhe
o mesmo. Gosto mais dos ratos que das pessoas
fingidas...
-Também eu - concordou Sara - por que
julgo que os ratos sempre se podem apanhar, enquanto que uma pessoa
hipócrita não me parece
fácil...
Havia dias em que Becky não se atrevia a ficar
mais do que uns breves minutos naquele lindo quarto
tão quentinho; nesses dias as duas amigas trocavam apenas algumas
palavras e metiam ràpidamente um pacotinho na algibeira, à moda antiga, que
Becky usava debaixo do vestido, presa à cintura por um nastro(fita estreita de
algodão ou de linho) vermelho.
Sara descobrira, assim, mais um interesse na sua existência: procurar e
descobrir coisas boas, alimentares e saborosas, que pudessem meter-se num
pequeno pacote. Sempre que saía a pé ou de carruagem, inspecionava, com o
olhar, todas as montras de restaurantes e pastelarias. No dia em que teve a
idéia de trazer dois ou três pastéis de carne, sentiu que fizera uma verdadeira
descoberta. Os olhos de Becky brilharam, à vista dos pastéis.
- Oh, miss - murmurou ela. - Isto é bom e alimenta. O que alimenta é
melhor. Os bolos são deliciosos, isso é verdade, mas derretem-se na boca, não
se sentem passar... A menina compreende? Ao passo que isto, enche o
estômago.
- Meu Deus - disse Sara, lentamente. - Eu penso que ter o estômago
cheio de mais não é lá muito bom, mas acredito que te dê satisfação.
Becky ficou, efetivamente, contentíssima com os pastéis de carne e bem
assim com os sanduíches de fiambre e os pãezinhos com mortadela que Sara
lhe passara a comprar, regularmente. Pouco a pouco, a criadita começou a
sentir-se menos fatigada e a não ter fome, e o balde do carvão parecia-lhe
menos pesado.
De resto, o balde podia pesar muito ou pouco; a cozinheira podia estar
de péssimo humor; o trabalho podia ser penoso e excessivo; a idéia dos
momentos que passaria junto de Sara, na sua confortável salinha, dava
coragem a Becky para suportar tudo.
Na realidade, a presença de Sara, mesmo sem as gulodices que
costumava dar-lhe, bastava para reconfortar a pobre pequena. Quando tinham
apenas o tempo indispensável para trocar algumas palavras eram sempre
palavras carinhosas, que aqueciam o coração; e quando era possível Becky
demorar- se mais, havia sempre uma história, ou uma conversa divertida, que
ela recordava depois, ao serão, e revivia na memória, quando estava deitada,
lá em cima, nas águas-furtadas. Sara, que obedecia apenas às suas
tendências, porque era naturalmente boa e generosa, estava longe de supor o
que representava para Becky o papel de fada benéfica que desempenhava
junto da pobrezita. Quando se é dotada de uma alma terna e
compadecida, as mãos abrem-se, por si, e o coração também. E se
algumas vezes as mãos estão vazias, o coração, se é inesgotável e
pode dar sempre coisas belas, boas e doces: consolações, conforto,
alegria - e a alegria é, muitas vezes, o mais eficaz
de todos os dons.
Becky nunca, na sua breve e miserável existência, soubera o que era rir.
Foi Sara quem a ensinou, e ria também com ela. E, sem que o suspeitasse,
uma gargalhada espontânea fazia tão bem a Becky como um bolo ou um
pastel de carne.
Algum tempo antes de Sara completar onze anos, recebeu ela uma
carta do pai, que não parecia
escrita com a boa disposição habitual. Dizia que estava fatigado e que
se sentia esmagado pelo trabalho e pelas preocupações que lhe causavam as
famosas e grandes minas de diamantes.
"Vê tu, minha Sarinha - dizia ele -, o teu papá não é, positivamente, um
homem de negócios; os planos, os relatórios e o resto dão-lhe cabo da
cabeça.” O teu papá não percebe nada disto e tudo Lhe parece fantástico.
Tenho febre e passo uma parte da noite às voltas, e a outra parte a debater-
me com pesadelos.
"Se a "minha senhorazinha" aqui estivesse, tenho a certeza de que ela
me daria, com o seu ar grave, um bom conselho. Não é verdade, minha
senhora?"
Uma das brincadeiras favoritas do capitão Crewe era chamar
"senhorazinha" à filha, por causa do seu ar sério, que lhe dava o aspecto de
uma criança de outro tempo.
Nessa carta contava-lhe também o pai tudo o que preparava para
festejar o aniversário do nascimento da sua querida menina. Entre outras
coisas encomendara, em Paris, uma nova boneca, cujo enxoval seria uma
verdadeira maravilha.
A resposta de Sara a esta carta, em que o pai lhe perguntava se a
boneca seria bem recebida, era uma obra-prima de diplomacia.
"Começo a estar muito crescida “- escreveu ela
- e não terei, nunca mais, outra boneca. Esta será a última, e esta idéia é
muito grave. Se eu soubesse fazer versos, estou certa de que um poema, sobre
"a última boneca", seria lindo. Mas não sou capaz de compor poesia!
experimentei e ri com vontade! O que escrevi não se parecia absolutamente
nada com Coleridge ou Shakespeare... Ninguém tomará, nunca, o lugar de
Emily, mas serei muito amiga da "nova boneca" e tenho a certeza de que todo
o colégio rejubilará com ela. As alunas gostam todas de bonecas, embora as
"grandes" (as que vão quase nos quinze anos) afirmem que já não têm idade
para isso. “
O capitão Crewe tinha uma terrível dor de cabeça quando leu esta carta,
lá longe, na sua casa de campo. Diante dele, sobre a mesa, amontoavam-se
cartas e papéis, que o enchiam de receio e ansiedade; apesar disso, riu como
há muito tempo não ria.
"Oh - pensava ele - à medida que vai crescendo, a minha Sara vai-se
tornando ainda mais espirituosa. Permita Deus que este negócio se faça e me
deixe livre, para ir beijá-la! Quanto daria eu, meu Deus, para ter os seus
bracinhos em volta do meu pescoço, neste momento!"
O aniversário de Sara devia ser celebrado com
uma grande festa no colégio. A sala de estudo seria
suntuosamente decorada. Ali se abririam, com
grande solenidade, as caixas que continham os presentes. No salão de
miss Minchin, servir-se-ia
um lanche magnífico.
Quando o grande dia chegou, todas as alunas
estavam numa agitação indescritível. A manhã passou-se sem elas
próprias saberem como, tantos eram
os preparativos.
Ornamentaram a sala de estudo com festões de
azevinho, tiraram as estantes e os bancos vermelhos foram dispostos
em volta da sala, encostados
à parede, e dissimulados com cobertas vermelhas.
Quando Sara entrou na sua sala particular
encontrou em cima da mesa um estranho pacote; mal feito,
embrulhado num papel cinzento, grosseiro. Compreendeu que se tratava de
um presente
e adivinhou imediatamente donde vinha. Abriu o
embrulho com ternura: continha uma pregadeira
para alfinetes, feita de flanela vermelha, já um pouco
desbotada, e sobre a almofada, desenhada por alfinnetes de cabeça
preta, havia estas palavras: "Um
aniversário feliz"
- Oh!- exclamou Sara, comovida. - Que trabalho que ela teve! Estou tão
contente... que tenho quase, vontade de chorar.
De repente, a sua fisionomia teve uma expressão de profunda surpresa.
Debaixo da pregadeira
havia um cartão de visita com um nome impresso
em caracteres bem legíveis: "Miss Amélia Minchin".
Sara voltava e tornava a voltar o cartão, entre
os dedos nervosos.
"Miss Amélia - pensava ela. - Que quer isto
dizer?"
Mas, naquele instante, ouviu a porta abrir-se
docemente e viu a cabeça de Becky a espreitar: No
seu rosto havia um sorriso bom, feliz, e ela entrou arrastando os pés e
torcendo nervosamente as mãos.
- Gostou, Miss Sara - perguntou ela.
- Gostei muito - respondeu Sára. - Querida Becky, que fez sozinha esta
linda pregadeira!
Becky fungou, alegremente; os seus olhos estavam brilhantes de
felicidade.
- Só tem a flanela, e a flanela já não é nova; mas eu queria oferecer-lhe
qualquer coisa e lá consegui fazer isto, às escondidas, de noite. Eu bem sabia
que seria difícil a menina imaginar que era uma pregadeira de cetim cor-de-
rosa, com alfinetes de diamantes... Eu própria quis acreditar que era assim,
enquanto a ia fazendo. O cartão de visita...
- acrescentou ela, com hesitação - creio que não fiz mal em tirá-lo do
cesto dos papéis. Acha... Miss Amélia tinha-o deitado fora. Eu não tenho
cartões com o meu nome e não é próprio oferecer um presente sem lhe juntar
um cartão. Foi por isso que pus o de Miss Amélia.
Sara saltou-Lhe ao pescoço e beijou-a nas duas faces. Sem saber bem
por que, sentia a garganta apertada.
- Oh Becky - exclamou, com um riso tremulo. - Gosto muito de ti, sabes?
Gosto muito de ti!
- Oh Miss Sara - murmurou Becky. - Mil vezes obrigada, mas isto não tem
importância: a flanela... a flanela até já está um pouco usada...
AINDA A MINA DE DIAMANTES
Foi com toda a solenidade que Sara entrou na aula ornamentada com
azevinho.
Miss Minchin, ostentando o seu melhor vestido de seda, conduziu-a pela
mão. Seguiu-se um criado com uma caixa que continha a última boneca ; uma
criada de quarto vinha logo após, carregada com uma segunda caixa, e Becky,
com um avental lavado e uma touca nova, fechava a marcha com um terceiro
pacote.
Sara teria preferido mil vezes entrar com simplicidade, mas Miss Minchin
chamara-a a sua sala particular e comunicara-lhe o seu desejo.
- É um grande dia - declarou ela - e deve ser celebrado como convém.
De maneira que Sara fez a sua aparição à frente de uma espécie de
cortejo, sentindo-se confusa ao ver as alunas mais crescidas tocarem nos
braços umas das outras, e as menores agitarem-se alegremente nas cadeiras.
- Silêncio, meninas - disse Miss Minchin, porque se levantara um
murmúrio geral. - James, ponha a outra caixa numa cadeira. Becky!
Este último nome foi pronunciado de uma forma breve e severa, porque
Becky, contagiada pela agitação geral, esquecera-se completamente do que
fazia, e sorria para Lottie, que saltitava de alegria, impaciente.
A dura voz de Miss Minchin surpreendeu-a a tal ponto que, por pouco,
não deixou cair o embrulho. Para pedir desculpa, fez uma pequena reverência,
tão desajeitada, que Lavínia e Jessie começaram a rir baixinho.
- Tu não estás aqui para olhar para estas meninas - continuou Miss
Minchin. - Que esperas? Vamos, põe aí a caixa!
Becky obedeceu com uma precipitação angustiosa, e dirigiu-se
apressadamente para a porta.
- Podem retirar-se - ordenou Miss Minchin aos criados, com um gesto
breve.
Becky desviou-se respeitosamente, para que os outros passassem. Mas
não pôde deixar de lançar um olhar de pena para a caixa que estava em cima
da mesa. Via-se um bocado de cetim entre as dobras do papel de seda.
- Miss Minchin - disse, sùbitamente, Sara. Becky não pode ficar?
Era preciso ter audácia para fazer semelhante pergunta a Miss Minchin.
A diretora estremeceu. Depois, pôs a luneta e olhou para a sua
"brilhante aluna" com ar de reprovação.
- Becky - exclamou ela. - Oh! Minha querida Sara
A pequena deu um passo na direção de Miss Minchin, e disse:
-Desejo que fique, porque também há de gostar de ver os meus
presentes. Ela também é criança.
Miss Minchin estava sufocada. Os seus olhos iam de Sara para a criadita
e desta para Sara.
- Minha querida menina - continuou ela.
Becky é ajudante de cozinheira. As ajudantes de cozinheira... claro...
não são Crianças.
Evidentemente que nunca lhe tinha ocorrido semelhante idéia.
As ajudantes de cozinheira eram, para ela, máquinas de lavar louça e de
deitar carvão na fornalha, nada mais.
- Mas Becky é uma criança - afirmou Sara, tranquilamente. - Eu sei que
isto a divertirá. Tenha a bondade de permitir que ela fique, em honra do meu
aniversário.
Miss Minchin logo respondeu, com ar muito digno:
- Visto que me faz esse pedido como um favor pessoal, pode ficar.
Rebeca, agradece a miss Sara a sua bondade.
Becky tinha-se concentrado, no limiar da porta torcendo a ponta do
avental, ao mesmo tempo ansiosa e encantada.
Avançou fazendo uma reverência; e, enquanto agradecia, em frases
curtas e hesitantes, os seus olhos trocaram com os de Sara um longo olhar
carinhoso.
- Oh! Mil vezes obrigada, miss! Estou-lhe muito reconhecida, miss! Eu
tinha um grande desejo de ver a boneca, miss, isso é verdade! Muito obrigada,
miss! E também muito obrigada à senhora - disse, com uma reverência
assustada; e, dirigindo-se a miss Minchin, acrescentou - Muito obrigada por me
ter permitido aqui ficar.
Miss Minchin fez, de novo, com a mão, um gesto breve, desta vez na
direção do canto mais próximo da porta.
- Fica ali - ordenou ela. - Não te ponhas muito perto das meninas.
Becky obedeceu, com o coração a pulsar de alegria. Pouco lhe importava
o lugar que lhe destinavam, desde o momento que lhe permitiam ficar ali,
durante a festa que ia realizar-se.Nem sequer ficou perturbada quando Miss
Minchin, depois de
tossir ruidosamente, retomou a palavra:
- Meninas - anunciou ela. - Tenho uma coisa
para lhes dizer.
- Vai fazer um discurso - murmurou uma das
mais crescidas. -Quem me dera já que ela chegue
ao fim.
Sara sentiu-se pouco à vontade. Visto que era
a sua festa, Miss Mínchin ia, com certeza, falar dela.
E era agora muito desagradável estar ali, de pé numa
aula, a ouvir um discurso em sua honra.
- Todas sabem que a nossa querida Sara faz
hoje onze anos - começou ela.
- Oh, querida Sara - murmurou Lavinia ironicamente.
- Muitas das meninas também já fizeram onze
anos; mas os dias do aniversário de Sara são um
pouco diferentes dos das outras meninas. Quando
ela for crescida herdará uma grande fortuna, que
será seu dever gastar útil e generosamente.
- As minas de diamantes - troçou Jessie em
voz baixa.
Sara não a ouviu; mas, enquanto os seus olhos
verdes não se desfitavam de Miss Minchin, sentia as faces tornarem-
se-lhe vermelhas. Todas as vezes
que Miss Minchin falava de dinheiro, Sara experimentava por ela um
verdadeiro sentimento de aversão; e toda a gente sabe que detestar as
pessoas crescidas é uma falta de respeito.
- Quando o seu excelente pai, o capitão Crewe,
ma confiou - prosseguiu Miss Minchin - disse-me, em ar de
brincadeira: "Receio que a minha filha
venha a ser, um dia, terrivelmente rica...”. E eu
respondi-Lhe: "Ela receberá, na minha casa, uma
educação, digna da menina mais rica do mundo!”.
Ora, Sara tornou-se a nossa aluna mais brilhante;
a maneira como ela fala francês e dança honra o
colégio. Tem maneiras tão delicadas, que vós mesmas lhe chamais
"Princesa Sara". Oferecendo-vos esta recepção, Sara dá-vos uma prova de
grande amabilidade. Espero que saibais apreciar a sua generosidade, dizendo
alto, todas ao mesmo tempo: "Obrigada, Sara".
As alunas levantaram-se imediatamente, e, como no dia longínquo da
chegada de miss Crewe ao colégio, disseram todas a uma:
- Obrigada, Sara!
Lottie saltava e mexia-se sem parar, no seu banquinho. Sara parecia
intimidada: Fez uma reverência graciosa às condiscípulas e disse:
-Eu é que lhes agradeço o terem vindo à minha festa.
- Muito bem! Muito bem, Sara - aprovou miss Minchin. - É o que fazem as
verdadeiras princesas, quando o seu povo as aclama. Lavinia (e isto foi dito
num tom glacial), parece-me que a menina fez troça. Se tem ciúmes da sua
condiscípula, podia, ao menos, exprimir os seus sentimentos de uma forma
mais elegante... Agora, minhas filhas, vou deixá-las, para que se divirtam à sua
vontade.
Apenas Miss Minchin saiu da aula, toda a disciplina e boa compostura,
mantidas até então, desapareceram. Os bancos foram abandonados em
tumulto, e todas as alunas, grandes e pequenas, se precipitaram para os
presentes. Sara inclinou-se sobre uma das caixas, com ar de quem está
maravilhada.
- São livros, tenho a certeza! - disse ela. E, levantou-se um murmúrio de
desapontamento, e Hermengarda parecia consternada.
- Então o teu papá manda-te livros como presente de aniversário? Nesse
caso é tão terrível como o meu. Não os abras, Sara.
- Eu adoro os livros - respondeu Sara, rindo. Mas a sua atenção voltou-se
para a caixa maior.
Quando de lá tirou a "Última Boneca", foi uma
aparição tão bela, que todas as outras alunas soltaram gritos de alegria
e recuaram, contendo a respiração, para melhor admirarem aquela maravilha.
- É quase do tamanho da Lottie - murmurou
uma.
Lottie batia as palmas, saltava e ria.
-Tem um vestido de baile e um abafo(agasalho) de
noite forrado de arminho - observou Lavinia.
- Aqui está a mala da roupa - declarou Sara.
- Vamos abri-la para ver o enxoval.
Sentou-se no chão e deu volta à chave. As
outras pequenas comprimiam-se à sua roda, soltando
exclamações, enquanto ela examinava, um a um, os vários
compartimentos da mala, e retirava o seu
conteúdo. Nunca houvera, no colégio, uma excitação assim.
Sara ia mostrando: golas de renda e meias de
seda; um cofre com um colar e um diadema que
pareciam feitos de brilhantes verdadeiros; um casaco
de lontra e um regalo igual; vestidos de baile, de
passeio, de visitas; chapéus, roupões e leques.
Lavínia e Jessie esqueceram-se de que já eram
muito crescidas para se interessarem por bonecas e
soltavam, como as outras, gritos de entusiasmo, pegando nos objetos
para melhor os examinarem.
- Imaginemos - disse Sara, enquanto punha
um grande chapéu de veludo , sorridente e impassível proprietária de
todas aquelas riquezas , imaginemos que ela compreende o que nós dizemos e
que está toda contente por se sentir admirada.
- Tu estás sempre disposta a imaginar qualquer
coisa - exclamou Lavínia, com ar superior.
- Bem sei - replicou Sara, serenamente. - Mas
isso distrai-me. Não há nada mais agradável do que
fazer suposições. Tem-se, quase, a impressão de se
ser uma fada. Quando se acredita em qualquer
coisa com todas as nossas forças, é como se fosse
verdade.
-É muito bom sonhar assim, quando se tem tudo o que tu tens - disse
ainda Lavinia. - Mas poderias, por acaso, fazer o mesmo, se fosses uma pobre
mendiga e vivesses num sótão?
Sara deixou de arranjar as plumas do chapéu e tomou uma atitude
pensativa.
- Creio que podia - respondeu ela, por fim.
- É, sobretudo, quando se é pobre, que se tem necessidade de inventar e
imaginar constantemente qualquer coisa... Mas, na realidade, talvez seja
menos fácil...
Mais tarde, Sara devia pensar muitas vezes que
- coisa estranha! - foi justamente no momento em que ela acabava de
pronunciar aquela frase, que Miss Amélia entrou na sala.
- Sara!- disse a irmã da diretora. - O procurador de seu pai, Sr. Barrow,
pede para falar com Miss Minchin, e como deseja que a conversa seja
particular e o lanche está preparado na nossa sala, era preferível as meninas
irem lanchar já, a fim de que a minha irmã possa receber aqui a visita.
Um lanche é uma coisa que nunca se recusa, e muitos olhos brilharam
mais intensamente ao ouvir estas palavras.
Miss Amélia mandou que se colocassem em forma e tomou a dianteira
do cortejo, levando Sara pela mão. A soberba boneca ficou sozinha, em cima
da poltrona, com os seus esplendores dispersos em volta: vestidos, casacos e
roupa espalhados sobre os móveis.
Becky, que não era admitida ao lanche, cometeu a grande indiscrição de
se demorar ainda meio minuto, para lançar um derradeiro olhar a todas
aquelas maravilhas.
Miss Amélia ordenara-lhe que voltasse ao seu trabalho, mas ela ficou
para levantar do chão, primeiro, um regalo, depois um casaquinho, e enquanto
contemplava aqueles objetos com verdadeiro respeito,
ouviu a voz de miss Minchin, no vestíbulo.
Cheia de terror, com a idéia de ser apanhada em
flagrante delito de desobediência, precipitou-se para
debaixo da mesa, que estava coberta por um grande
pano, que chegava quase ao chão.
Miss Minchin entrou, seguida por um senhor
baixinho, seco, e nariz pontiagudo, que se mostrava
um tanto perturbado. A própria Miss Minchin parecia ansiosa e olhava
para o senhor baixinho com
ar intrigado.
Sentou-se, digna e hirta, indicando-lhe, com a
mão, uma cadeira.
- Sente-se, Sr. Barrow - disse ela.
O Sr. Barrow não obedeceu imediatamente a
esta intimação. A sua atenção estava presa à
uma Boneca e às magnificências espalhadas à sua volta.
Pôs a luneta e contemplou tudo com evidente reprovação. A boneca,
muito direita na sua cadeira, parecia fitá-lo com desdenhosa indiferença.
- Quando se pensa no que tudo isto deve ter
custado - observou brevemente o Sr. Barrow. Tecidos esplêndidos,
um enxoval encomendado a uma
modista de Paris! Este homem esbanja o dinheiro...
Miss Minchin sentiu-se ofendida com aquela
crítica severa, feita ao seu melhor cliente. Na verdade, ninguém, nem
mesmo o procurador do capitão tinha o direito de se permitir semelhante
atrevimento.
- Desculpe-me - disse ela, secamente -, mas
não compreendo o que quer dizer.
- Semelhantes presentes - prosseguiu Barrow no mesmo tom - para uma
criança de onze anos
é pura extravagância!
A atitude de Miss Minchin tornou-se ainda mais
rígida.
- O capitão Crewe é imensamente rico - tornou ela. - Só as minas de
diamantes...
Barrow voltou-se bruscamente para ela e exclamou:
- As minas de diamantes não existem! Nunca existiram!
- Como? Que significam essas palavras.
- Pelo menos - respondeu ele, secamente - era melhor que nunca as
tivesse tido!
- Não tem minas de diamantes - proferiu Miss Minchin, encostando- se
ao espaldar da cadeira, com a sensação de que um sonho maravilhoso
acabava de se desfazer...
-Ah! As minas de diamantes são, na maioria dos casos, uma origen de
ruína e não de riqueza
- declarou Barrow. - Quando um homem não sabe nada de negócios
devia defender-se, como do fogo, das minas de diamantes, de ouro, ou de
qualquer outra coisa, a que os amigos, que se dizem íntimos pretendem
associá-lo. O defunto capitão Crewe...
Miss Minchin soltou um grito.
- O defunto capitão Crewe - articulou, com dificuldade. - O defunto! O
senhor não veio anunciar-me que o capitão...
O capitão Crewe morreu, minha senhora - respondeu Barrow, com a voz
brusca ,e eu estou aqui para lhe participar. Foi vitimado pelas febres e pelos
tormentos que passava por causa dos negócios. As febres não o teriam, talvez,
aniquilado, se não estivesse tão esgotado de energias, e os cuidados não o
teriam, talvez, morto, sem as febres... Mas, enfim, morreu e eu fui encarregado
de lhe participar a sua morte.
Miss Minchin recaiu sobre a cadeira, esmagada por um surdo pavor.
- Donde lhe vinham os cuidados - perguntou ela.
- Da famosa mina de diamantes - replicou Barrow -, do "excelente"
amigo que o arrastou para esse negócio e para a ruína que se lhe seguiu.
Miss Minchin estava lívida.
- A ruína! - pronunciou ela, com esforço.
- Perdeu tudo. O capitão Crewe era muito rico.
O tal amigo, que tinha comprometido na mina toda
a sua fortuna pessoal, persuadiu-o a fazer o mesmo.
Depois, naturalmente, este "excelente amigo", um
dia, desapareceu. O capitão Crewe já estava doente
quando recebeu a notícia desse desaparecimento.
O golpe foi demasiado forte para ele. Morreu em
pleno delírio, chamando pela filha, a quem não deixa
um centavo.
Miss Minchin compreendia, finalmente. nunca
experimentara tão terrível decepção. A sua mais
brilhante aluna, o seu cliente mais rico - tudo perdido! Parecia-lhe ser
vítima de um roubo, como se
a explorassem, e que o capitão, Sara e Barrow eram
todos igualmente culpados.
- Quer, então, convencer-me - exclamou ela
- de que Sara não herdará nada e que, em vez de
uma herdeira rica, eu tenho, agora, no meu colégio, uma menina
pobre?
Barrow, cheio de sagacidade, compreendeu que
era prudente salvar, ali mesmo, a sua responsabilidade.
- assim mesmo - afirmou ele. - Sara fica
sem recursos. Já nos informamos: não lhe conhecemos um parente
nem um único amigo íntimo. É a
senhora, quem terá de ocupar-se dela.
Miss Minchin correu para a porta. Dir-se-ia que
o seu primeiro movimento foi ir suspender a festa cujos ecos alegres e
bastante ruidosos chegavam até ali.
- É monstruoso! - exclamou. - Neste mesmo
instante, está ela na minha sala, vestida de sedas e
rendas, dando uma recepção à minha custa!
- À sua custa, sem dúvida, minha senhora repetiu tranquilamente
Barrow. - O Banco Baron e Skipworth não tem nada mais que ver com este
assunto. Nunca houve ruína mais rápida e completa. O capitão Crewe morreu
sem liquidar a nossa última conta, que era das mais importantes.
Miss Minchin voltou para trás. A sua indignação era cada vez maior. A
situação tornava-se ainda pior do que ela imaginava.
- E dizer - gritou - que eu tinha tanta confiança nele, a ponto de fazer
toda a espécie de despesas, verdadeiramente loucas, com esta garota! Fui eu
quem pagou esta ridícula boneca e o seu extravagante enxoval. O capitão
queria que todos os desejos da filha fossem satisfeitos. Tem uma carruagem
alugada ao mês, uma criada de quarto, e fui eu quem pagou tudo isso, depois
que recebi o último cheque.
Barrow não tinha nenhum motivo que o levasse a prolongar a sua visita
para ouvir as recriminações de Miss Minchin. Fizera a comunicação de que
estava encarregado, salvaguardara a responsabilidade da sua casa e, além
disso, não sentia a menor simpatia por aquela diretora de colégio transformada
em fúria.
- Que hei de fazer agora? - continuava Miss Minchin, que parecia esperar
que Barrow a livrasse de dificuldades. - Que hei de fazer agora?
- Não há nada a fazer - disse ele, guardando a luneta na algibeira. - O
capitão Crewe morreu, a filha ficou sem família e sem fortuna. A senhora é a
única pessoa que tem responsabilidade desta criança.
- Ela não me é nada, e eu recuso-me, absolutamente, a assumir essa
responsabilidade.
Miss Minchin estava lívida de furor.
Barrow dirigiu-se para a porta.
- Não posso remediar coisa alguma - disse ele, ainda, com indiferença. -
E repetiu - A nossa casa fica absolutamente alheia a este triste caso, que nós
lamentamos mais do que é possível dizer.
- Se o senhor imagina que vai lançar-me, assim sem mais nem menos,
esta criança nos braços, engana-se - declarou miss Minchin, com a voz abafada
pela raiva. - Fui roubada, explorada! pô-la-ei na rua!
Se ela não tivesse perdido completamente o domínio sobre si própria, a
sua hipocrisia habitual tê-la-ia impedido de pronunciar semelhante frase. Mas
vendo-se com o encargo de tomar conta de uma pequena amimada, por quem
sentira, sempre, certa antipatia, não se pudera conter.
Barrow, sem se perturbar, continuava a aproximar-se da porta.
- No seu lugar, eu não faria nada disso, minha
senhora - disse ele, com grande fleuma. - Isso não
causará bom efeito. Não faltarão logo as más línguas a censurar o seu
colégio. Toda a gente dirá que
a senhora abandonou uma das suas alunas por ela ter
ficado sem família e sem dinheiro.
Ele bem sabia o que dizia... E também sabia
que miss Minchin era muito interesseira e bastante
esperta para compreender que o bom senso lhe não
permitia cometer uma ação que lançaria publicamente sobre ela, uma
acusação de desumanidade.
- Fará muito melhor se a conservar consigo e
lhe arranjar uma ocupação - acrescentou. - Parece
que ela é muito inteligente. Poderá, quando crescer, prestar-lhe serviços
preciosos.
- Não é preciso crescer. Poderá prestar-mos
imediatamente - exclamou miss Minchin.
- Estou certo de que a senhora saberá tirar da
situação todo o partido possível - disse Barrow, com
um sorriso irônico. - Não tenho dúvida alguma
sobre isso! Até à vista, minha senhora!
Cumprimentou e saiu. Miss Minchin ficou, durante alguns segundos, a
olhar furiosamente para
a porta. .
O que ele dissera era a pura verdade, ela bem o sabia. Não lhe restava
outro recurso. A aluna que fora a glória do colégio, passara a não ser mais do
que uma indigente. E todo o dinheiro que Miss Minchin adiantara estava
perdido para sempre.
Enquanto ela estava ali, acabrunhada com a idéia da injustiça que a
viera ferir, um ruído de vozes chegava até aos seus ouvidos. A isso, pelo
menos, podia ela pôr termo imediatamente.
Mas naquele mesmo instante, a porta abriu-se e apareceu Miss Amélia,
que recuou, ao ver a fisionomia alterada da irmã.
- Que aconteceu - perguntou ela.
Com uma voz cheia de furor concentrado, Miss Minchin respondeu com
outra pergunta:
- Onde está Sara Crewe?
- Sara - balbuciou Miss Amélia, desconcertada. - Mas... naturalmente...
está na tua sala, com as outras alunas.
- Tem ela, por acaso, um vestido preto no seu suntuoso guarda-roupa -
perguntou Miss Minchin, com ironia.
- Um vestido preto - balbuciou, de novo, miss Amélia. - Um vestido
preto?
-Ela tem vestidos de todas as cores. Pergunto-te se não tem um preto.
Miss Amélia começou a fazer-se pálida e disse:
- Não... quero dizer, sim mas está muito curto. É um vestido velho, de
veludo, e ela cresceu tanto, que já o não pode vestir.
-Vai dizer-lhe que tire esse absurdo vestido de seda cor-de-rosa, e que
vista o preto, esteja ele como estiver. O veludo e os enfeites acabaram para
ela.
Era de mais. Miss Amélia levantou as mãos ao céu e Começou a
choramingar:
- Oh minha irmã! Oh minha irmã! Mas que sucedeu
Miss Minchin não esteve com rodeios. Disse
secamente:
-O capitão Crewe morreu, sem deixar um
centavo. E nós temos de ficar com esta pequena
caprichosa e adulada a nosso cargo.
Miss Amélia deixou-se cair pesadamente sobre
a cadeira mais próxima.
-Gastamos, para lhe satisfazer todas as fantasias, somas enormes, de
que nunca mais seremos
reembolsadas. Manda parar, imediatamente, esta ridícula festa, e diz a
Sara que mude de vestido, sem
demora.
- Eu - exclamou Miss Amélia, sufocada. É indispensável... que eu...
vá...
- Neste mesmo instante! Ou queres ficar aqui a olhar para mim, como
uma parva? Vai...
A pobre Miss Amélia estava habituada a ser tratada assim. Reconhecia
que a sua inteligência era
das mais medíocres, e que as pessoas da sua espécie são, em geral,
encarregadas de todas as missões
desagradáveis, tal como entrar numa sala repleta de
raparigas que se divertem, a dizer à rainha da festa
que, de repente, passou a ser uma pobre pequena
sem família e sem dinheiro, e que deve, sem tardar, ir vestir um vestido
preto, usado e curto.
Mas era forçoso executar a ordem que recebera, visto o momento não
ser, evidentemente, propício a objeções.
Enxugou os olhos, esfregando-os a ponto de
ficarem vermelhos, depois saiu da sala sem dizer
mais uma palavra. Quando a irmã estava naquele
estado de irritação, o mais prudente era obedecer sem abrir a boca.
Miss Minchin ia e vinha através do quarto falando sozinha sem mesmo
dar por isso. Durante o
ano que acabava de decorrer, fizera, a propósito
daquelas minas de diamantes, os mais extraordinários projetos. Não é
proibido às diretoras de colégio fazerem fortuna, comprando ações, com a
ajuda e conselho de um proprietário de minas... E agora, em vez de lucros, ela
tinha de suportar uma importante perda, sem compensação possível.
- A princesa Sara - dizia ela. - Sim, não há dúvida, a princesa! Como uma
rainha é que ela foi adulada...
Passava, nesse momento, junto da mesa e, de repente, estremeceu: dir-
se-ia que debaixo da cobertura vinha um prolongado soluço.
- Quem está aí? - perguntou ela, numa voz irritada.
Ouvindo um segundo soluço, miss Minchin baixou-se e levantou a ponta
do pano.
- Que audácia - gritou ela. - Como te atreveste tu? Sai daqui
imediatamente!
A pobre Becky apareceu e pôs-se a andar de gatas, com a touca à banda
e a cara vermelha, congestionada à força de deter os soluços.
-Desculpe, minha senhora! Não é ninguém, sou eu... - explicou ela. -
Bem sei que não devia ter ficado aqui, mas estava a olhar para a boneca e,
quando a minha senhora entrou, eu tive tanto medo, que me escondi debaixo
da mesa.
- E deixaste-te ficar lá, a escutar! - disse severamente Miss Minchin.
- Oh não, minha senhora - protestou Becky, multiplicando as
reverências. - Eu não queria escutar, minha senhora, mas não podia deixar de
ouvir...
Parecia que, naquele momento, Becky chegara a esquecer a presença
de tão terrível patroa. E desatou a chorar.
- Oh minha senhora - soluçava ela -, eu bem sei que vou ser despedida,
mas tenho tanta pena da menina Sara... tenho tanta pena!
- Sai daqui - ordenou miss Minchin. Becky, com o rosto lavado em
lágrimas, fez mais uma reverência.
-Sim, minha senhora, saio imediatamente - disse ela a tremer -, mas...
eu queria só perguntar à minha senhora: que vai agora fazer a menina Sara,
sem criada? Ela sempre foi rica, está habituada a ter quem a sirva... Se... oh!
minha senhora... se me desse licença, eu fazia o serviço dela, depois de
arrumar a cozinha... Trabalharei com todas as minhas forças, se a minha
senhora me deixar ajudá-la, agora que ela é pobre. Oh! (e as lágrimas eram
cada vez mais abundantes) pobre menina Sara, a quem chamavam princesa!
Miss Minchin sentiu-se novamente dominada pela cólera. Só lhe faltava
que aquela reles ajudante de cozinheira se pusesse ao lado da outra, daquela
Sara que, no seu íntimo, ela sempre detestara - sentia-o agora mais do que
nunca. Era de mais! E bateu com o pé no chão.
- Não! Mil vezes não - respondeu ela. Sara há-de servir-se a si própria e
às outras. Sai daqui, e cala-te, senão ponho-te na rua.
Becky pôs o avental na cabeça e fugiu. Desceu a quatro e quatro as
escadas de serviço, para a cozinha, e lá, sentada entre cadeiras e panelas,
chorou como se lhe arrancassem o coração.
- É como nas histórias - soluçava ela - a pobre princesa foi abandonada,
sozinha, na rua.
Miss Minchin nunca fora tão fria e tão cruel, como quando Sara, que
mandara chamar, entrou no seu escritório, algumas horas mais tarde.
A pobre pequena tinha a impressão de que a festa do seu aniversário
não passara de um sonho, em que ela tomara parte, no lugar de outra criança,
havia já muito tempo.
Todos os traços da festa tinham desaparecido; os festões de azevinho
haviam sido tirados; os bancos e as estantes estavam de novo no seu lugar
habitual. Todos os vestígios do belo lanche haviam sido cuidadosamente
retirados da sala de Miss Minchin,
e a própria Miss Minchin vestira o seu vestido de todos os dias. As alunas
receberam ordem de fazer o mesmo, e estavam agora reunidas na sala de
estudo, formando grupos excitados e falando todas ao mesmo tempo.
- Diz a Sara que venha falar-me - ordenou Miss Minchin à irmã. - E faz-
lhe compreender que não quero lágrimas nem cenas desagradáveis.
- Tu não fazes idéia!- respondeu Miss Amélia. - É a criança mais singular
que eu tenho conhecido. Não soltou um grito! Lembras-te que sucedeu o
mesmo, quando o pai se foi embora? Pois bem: quando, há pouco, eu Lhe disse
o que tinha acontecido, ficou imóvel, a olhar para mim, sem dizer uma única
palavra. Apenas os olhos pareciam maiores e a carinha se lhe tornou muito
pálida. Quando acabei, ficou com o olhar fixo, durante alguns segundos, depois
o queixo começou a tremer-lhe e fugiu para a escada. A maior parte das outras
alunas principiou a chorar, mas ela parecia não as ouvir e mostrava-se
indiferente a tudo, menos ao que eu dizia. Não posso explicar-te a impressão
que este silêncio me fez! Quando se anunciam estas coisas, esperamos sempre
que nos digam, ao menos, uma palavra, seja ela qual for.
Mas ninguém, além de Sara, soube, nunca, o que se passou no seu
quarto, depois que ela ali entrou e se fechou à chave, por dentro. Na realidade,
a própria Sara nunca conseguia recordar-se bem do que se passara. Lembrava-
se apenas de ter andado para trás e para diante, repetindo, sem parar, com
uma voz que não parecia a sua:
- O meu papá morreu! O meu papá morreu!
Uma das vezes, parou diante da cadeira onde estava Emily e gritou,
desesperadamente:
- Ouves bem, Emily! Ouves? O meu papá morreu! Morreu lá longe, muito
longe, na Índia!
Quando Sara entrou no escritório de miss Minchin,
estava desfigurada, com grandes olheiras rochas,
pisadas, e os lábios muito cerrados, como se não quisesse deixar
adivinhar a ninguém a sua dor. Não
era, já, a linda borboleta cor-de-rosa, que ia de um
presente para o outro, na sala de estudo, toda decorada com verdura.
Era uma pequena aparição estranha
e dolorosa.
Enfiara o vestido preto, velho, que já tinha
posto de parte, sem o auxílio de Mariette. Esse vestido era muito
curto e muito estreito. As pernas de
Sara pareciam, assim, mais altas e extremamente
magras. Como não tinha fita preta, os cabelos espessos e curtos caíam-
lhe sobre o rosto, fazendo ressaltar ainda mais a sua palidez. Trazia debaixo
do
braço a sua querida Emily a quem envolvera num
bocado de tule preto.
- Ponha a boneca em qualquer parte - disse
Miss Minchin. - Que necessidade tinha de a trazer para aqui?
- Não - respondeu Sara. - Conservá-la-ei
comigo. É tudo o que me resta. E foi o papá quem
ma deu.
Miss Minchin experimentava sempre uma espécie de timidez quando
falava com Sara; e, sem saber
explicar porquê, sentiu-se pouco à vontade. Sara
falara-lhe com uma dignidade glacial e Miss Minchin não encontrou
palavras para lhe responder.
Talvez a consciência a acusasse de estar procedendo com
uma crueldade revoltante.
- Não terá tempo para brincar com bonecas!
observou ela. - Tem de trabalhar e aprender a
tornar-se útil.
Sara, com os seus grandes olhos fixos na diretora, não respondeu uma
só palavra.
- Tudo mudou - continuou Miss Minchin. Creio que Miss Amélia Lhe
explicou...
- Sim- respondeu Sara. - Sei que o meu pai
morreu, que não deixou dinheiro, e que sou muito
pobre.
- Pior do que isso! A menina não tem nada, absolutamente nada, nem
parentes, nem casa, nem ninguém que se preocupe consigo! - disse Miss
Minchin, que se encolerizava cada vez mais, à medida que ia falando.
Um estremecimento percorreu a carinha magra e pálida de Sara, mas
nem uma única palavra saiu dos seus lábios.
-Então?! Porque está a menina a olhar para mim dessa maneira? -
exclamou àsperamente Miss Minchin. É tão estúpida, que não me compreende?
Digo-lhe que está absolutamente só no mundo e que ninguém está disposto a
fazer qualquer coisa por si a não ser que eu consinta em conservá-la aqui por
caridade.
- Compreendi muito bem - respondeu Sara, baixinho. - Compreendi tudo.
Adivinhava-se que a pobre rapariga procurava, com toda a sua
energia, sufocar os soluços.
- Esta boneca - gritou Miss Minchin, fitando o magnífico brinquedo que
estava junto dela -, Esta ridícula boneca, com o seu extravagante enxoval, fui
eu que a paguei com o meu dinheiro.
Sara voltou a cabeça naquela direção. A "Última Boneca" - murmurou
ela. - A "última Boneca"... "
Sentia-se na sua vozita uma profunda e inexprimível tristeza.
- A "Última" bem o pode dizer - afirmou Miss Minchin. - já não é sua, não
lhe pertence, como, de resto, tudo quanto era seu:
- Está muito bem. Pode guardá-la - respondeu Sara. - Não tenho nenhum
empenho nela.
Se a pequenina chorasse e soluçasse, se ela se
tivesse mostrado aterrorizada, Miss Minchin ter-se-ia mostrado, talvez,
mais conciliadora. Mas, gostando
acima de tudo, de dominar, sentia-se desafiada por aquele rostozinho
pálido e por aquela voz fina, mas altiva.
- Não tome os seus grandes ares - replicou ela. - Os tempos mudaram. O
papel de princesa acabou. Não se trata mais de carruagem, nem de criada
particular. Vou suprimir tudo isso. A menina usará os vestidos velhos, porque
os outros são luxuosos de mais para a atual situação. Presentemente, não é
mais do que Becky. Precisa de trabalhar para ganhar a vida.
Com grande surpresa sua, Miss Minchin viu brilhar um rápido clarão nos
olhos da pequenina, um clarão de alívio.
- Poderei trabalhar? - perguntou ela. - Nesse caso, se posso trabalhar,
será menos doloroso. Que devo eu fazer?
- Tudo o que lhe mandem - respondeu a diretora. - A menina é
inteligente e compreende ràpidamente o que lhe explicam. Se conseguir
tornar-se útil, consentirei que fique no colégio. Como fala bem francês, pode
dar lição às alunas mais novas.
- Que bom! - exclamou Sara. - Não desejo outra coisa! Deixe-me ensinar
as pequeninas! Gosto tanto delas e elas gostam tanto de mim...
- Não diga disparates! Pouco importa que elas gostem de si ou não -
interrompeu Miss Minchin. E continuou - Terá, além disso, outras ocupações.
fará as compras, trabalhará tanto na cozinha como na classe infantil. E se eu
não estiver satisfeita, mandá-la-ei embora. Não se esqueça! Agora pode retirar-
se.
Sara não se mexeu. No seu cérebro agitavam-se graves e singulares
pensamentos. Por fim, dirigiu-se para a porta.
- Então? - exclamou Miss Minchin. - É assim que me agradece?
Sara parou. Os pensamentos afluíam-lhe, cada vez mais tumultuosos.
- Que tenho eu que agradecer-lhe? - perguntou ela, lentamente.
- A bondade com que a trato - respondeu miss Minchin. - O lar que
lhe ofereço!
Sara deu uns passos para a diretora. O seu peito magrinho ergueu-se, e
a sua voz deixou de ser a voz de uma criança, quando disse, com profunda
amargura:
-A senhora não é bondosa! Nem a sua casa é um lar!
E saiu da sala, enquanto Miss Minchin, muda de raiva, a seguia com o
olhar.
Sara subiu as escadas lentamente; estava ofegante, e apertava Emily de
encontro ao coração, com quanta força tinha.
"Quem me dera que Emily pudesse falar! - dizia ela consigo própria. -
Oh! se ela falasse!"
Pensava em refugiar-se no seu quarto e deitar-se sobre a pele do tigre,
encostar a carinha à grande cabeça da fera e contemplar o lume, entregando-
se aos seus pensamentos dolorosos. Mas, no momento em que chegava ao
patamar, Miss Amélia saiu do quarto, puxou a porta e parou, com ar
embaraçado. No fundo estava envergonhada com as ordens que a irmã tinha
dado.
- Não pode entrar mais aqui - disse ela.
- Não posso entrar? - repetiu Sara, recuando, ligeiramente.
- Já não é o seu quarto - explicou Miss Amélia, tornando-se corada.
Sùbitamente, fez-se luz no espírito de Sara: era o inicio da mudança
anunciada por Miss Minchin.
- Onde é o meu quarto - perguntou ela, pedindo a Deus, interiormente,
que a sua voz não tremesse.
- Dormirá nas águas-furtadas, ao lado de Becky.
Sara compreendeu. Becky tinha-Lhe explicado onde dormia.
Voltou-se e subiu mais dois andares. O último era estreito, íngreme, e
estava coberto por um tapete ordinário, todo esburacado.
Sara teve a impressão de deixar, para sempre, o mundo onde vivera
aquela outra pequena adulada e amimada que ela fora, e na qual se não
reconhecia. A criança vestida de veludo preto, já coçado, que subia a escada
do sótão, não tinha nada de comum com a outra, bafejada pela sorte.
Quando abriu a porta, teve uma rápida e dolorosa sensação de pavor.
Depois entrou, fechou a porta, encostou-se à parede e olhou em volta de si.
Sim, na verdade era outro mundo!
O sótão, caiado de branco, tinha o teto em desvão. As paredes, sujas e
úmidas, estavam esburacadas. Havia uma grade ferrugenta no fogão, um
velho leito de ferro, com um colchão duro e um cobertor desbotado. Como
mobiliário, todos os móveis partidos ou fora de uso que havia em casa. Sob a
trapeira, que deixava apenas ver um pequeno retângulo de céu cinzento e
triste, via-se um banco estofado, muito velho. Sara sentou-se ali. Não chorava.
Pôs Emily nos joelhos, encostou a cara à da boneca, passou-lhe os braços em
volta do corpo e ficou assim, com a cabeça confundida com o véu negro da sua
insensível companheira sem dizer uma palavra nem fazer um movimento.
E eis que, no meio daquele silêncio mortal, alguém bateu à porta, umas
pancadas tão humildes e tímidas, que Sara não as ouviu. A sua atenção só
despertou quando, espreitando pela porta que entreabrira, apareceu uma cara,
toda suja de lágrimas e pó de carvão. Era Becky, que, à força de chorar e de
limpar o rosto com o avental de linhagem, se tornara irreconhecível.
- Oh! Miss - murmurou ela. - Dá licença...
quer que eu entre e fique um bocadinho ao pé de si?. .
Sara ergueu a cabeça e olhou para Becky. Queria sorrir-lhe, mas não
podia. E de repente, graças à carinhosa piedade de que os olhos de Becky
estavam cheios, o seu coração desoprimiu-se, a sua carinha de criança
prematuramente envelhecida desanuviou-se. Sara levou as mãos aos olhos e
deixou escapar um soluço.
- Oh Becky - disse ela. - Eu disse-te um dia que nós éramos semelhantes,
que éramos duas crianças, nada mais que duas crianças. Vês agora que é
verdade? Não há nenhuma diferença. A princesa já não existe.
Becky correu para ela, pegou-lhe na mão e, apertando-a de encontro ao
peito, ajoelhou junto de Sara, a chorar de ternura e compaixão.
- Sim, existe sempre uma diferença - exclamou ela, com voz
entrecortada de soluços. -Aconteça o que acontecer, seja o que for, a menina
será sempre uma princesa. Nada, ninguém neste mundo poderá fazê-la
diferente.
NO Sótão
Sara nunca mais poderia esquecer a primeira noite que passou no sótão.
Viveu ali horas de dor e desespero grandes de mais para a sua idade, e das
quais nunca falou a ninguém. Nenhuma das pessoas que, então, a cercavam, a
compreendeu. Felizmente para ela, durante essa noite horrível, enquanto os
seus grandes olhos se conservavam muito abertos na escuridão, o seu espírito
distraía-se, de quando em quando, apesar de tudo, impressionado pelo que
havia de estranho naquele lugar, ao mesmo tempo que uma espécie de
angústia física Lhe recordava o mundo exterior.
Sem isso, a sua alminha não teria suportado tão horrível sofrimento.
Enquanto as horas passavam lentamente, ela esquecia que tinha fome,
que tinha frio, esquecia pelo menos a implacável realidade:
- O meu papá morreu - repetiu ela, baixinho. - O meu papá morreu!
Só muito mais tarde é que ela deu conta de se ter voltado e tornado a
voltar, em vão, no péssimo colchão, para ver se encontrava um sitio um pouco
menos duro; a escuridão parecia-Lhe medonha, o vento uivava no telhado,
dando-lhe a impressão de uma voz que se lamentava alto.
Mas havia ainda uma coisa pior: certos ruídos, corridas, gritinhos que
sentia, no teto e no rodapé. Graças à explicação de Becky, sabia o que era: os
ratos e ratazanas que lutavam e se perseguiam. Uma ou duas vezes mesmo,
ouviu patas pequenas, arranhadas de unhas, correrem no sobrado e, muito
tempo depois, ao recordar esta noite pavorosa, lembrava-se de se ter sentado
no leito, ao ouvir o primeiro ruído, e de, em seguida, esconder a cabeça
debaixo do cobertor, a tremer de medo.
De um momento para o outro, sem transição, a sua vida transformara-se
completamente.
- De que servem meias palavras! - dissera Miss Minchin à irmã. -É
preciso que ela saiba imediatamente o que a espera.
Mariette partira no dia seguinte. Quando Sara ao passar em frente da
sua antiga sala, lançou, pela porta, um rápido olhar, viu que não estava ali
nada do que lhe pertencera, e que um leito, colocado ao fundo, transformara a
sala num quarto para outra aluna.
Ao descer para o primeiro almoço, verificou que o seu lugar, ao lado de
Miss Minchin, estava ocupado por Lavínia. Miss Minchin disse-lhe, friamente:
- Para começar, Sara, vigie o almoço das menores. Faça com que elas se
portem convenientemente e não estraguem a comida. Devia ter chegado mais
cedo. Olhe a Lottie já entornou a chávena...
Era apenas o principio... Depois, cada dia trazia a Sara um pouco mais
de trabalho. Ensinava francês às mais novinhas, fazia-lhes repetir as lições, e
era esta a parte mais fácil da sua tarefa. Bem depressa
perceberam que podiam utilizá-la para tudo, obrigá-la a fazer recados a
qualquer hora e por qualquer tempo, encarregá-la de todo o trabalho que as
outras não faziam. A cozinheira e as criadas de quartos regularam a sua
atitude pela de Miss Minchin, experimentando, no fundo, certa satisfação em
se fazerem servir pela "pequena" diante da qual, durante tanto tempo, toda a
gente se inclinara. Eram criaturas vulgares, que não possuíam bom caráter e
achavam cômodo ter alguém a quem mandar, e sobre quem pudessem lançar
a culpa de todas as faltas e negligências.
Durante os dois primeiros meses, Sara esperou que a boa vontade e
aplicação que mostrava, o silêncio com que ouvia todas as reprimendas, ainda
as mais injustas, acabariam por tornar menos ásperos àqueles que tão
duramente a tratavam. No íntimo da sua alminha altiva e nobre, queria provar-
lhes que procurava ganhar a vida e que não aceitava esmolas. Mas o tempo
passava e ninguém se humanizava; quanto mais ela trabalhava, mais as
criadas de quarto se tornavam autoritárias e exigentes, e mais a cozinheira,
sempre rabugenta, lhe ralhava.
Se ela não fosse tão novinha, Miss Minchin confiar-Lhe-ia uma das aulas,
o que lhe teria permitido suprimir um dos professores e realizar, assim, uma
apreciável economia. Mas, enquanto Sara fosse e parecesse uma criança, era
preferível empregá-la como uma espécie de rapariga de recados ou criada para
todo o serviço. Um "groom" vulgar não seria tão inteligente nem tão
merecedor de confiança. Ao passo que Sara podia encarregar-se de recados
difíceis e, mesmo, delicados.
Era ela quem ia pagar as contas e, ao mesmo tempo, varria e limpava o
pó na perfeição, e sabia arrumar tudo cuidadosamente.
Ninguém se preocupou mais com os seus estudos. Ninguém Lhe ensinou
mais nada. Apenas, ao serão, depois de longos e fatigantes dias cheios de
trabalho, de idas e vindas, a autorizavam - quase com pena! - a entrar numa
das aulas desertas, escolher alguns livros e estudar sozinha, conforme podia,
antes de se deitar.
"Se não recordo tudo o que aprendi - pensava ela -, acabarei por não
saber nada. Sou quase uma criada e, se me torno uma criada ignorante, serei
como a pobre Becky. Quem sabe se eu não acabarei por esquecer tudo, falar
incorretamente e não me lembrar, sequer, do nome das seis mulheres de
Henrique VIII!"
Um dos aspectos mais curiosos da sua nova existência era a mudança
de situação, em relação às suas antigas condiscipulas. Fora quase uma
soberana e, agora, era como se não existisse...
Absorvida pelo trabalho, Sara mal tinha ocasião de lhes falar, mas
compreendera que miss Minchin preferia que ela vivesse inteiramente à parte
das pensionistas.
- É inútil que se misture com as alunas - dissera miss Minchin. - As
raparigas deixam-se sempre impressionar pelas situações patéticas, e se Sara
começa a imaginar um romance, de que seria heroína, podiam tomá-la como
vítima e isso causaria má impressão entre a nossa clientela. É melhor que viva,
à parte, uma vida mais em conformidade com a sua situação atual. Ofereci-lhe
um abrigo, e já fiz muito, porque não tenho obrigação alguma para com ela.
Sara era bastante orgulhosa para tentar manter relações com as
companheiras que, muito abertamente, se mostravam embaraçadas, quando
lhe falavam. A maior parte das alunas de Miss Minchin não sabia o que era
generosidade. Estavam habituadas à riqueza, à vida despreocupada, ao
conforto. E como os vestidos de Sara se iam estragando e ficavam fora de
moda; como os seus sapatos iam ficando rotos e ela ia fazer recados, a correr,
à
mercearia e onde calhava, com uma cesta no braço, quando a cozinheira
tinha pressa, parecia àquelas
meninas que, ao falar à sua antiga condiscípula, se dirigiam a uma
criada de primeira categoria.
- Quando me lembro de que ela era a princesa da mina de diamantes -
dizia Lavínia. - Agora tem o ar de um espantalho de pardais! Cada vez está
mais esquisita! Nunca gostei dela, mas acho inadmissível a maneira como olha
para nós, como se quisesse adivinhar os nossos pensamentos.
- É assim mesmo - observou Sara, sem hesitar, quando lhe foram contar
isto. - A minha intenção, quando olho para certas pessoas, é justamente
adivinhar o que elas pensam e refletir, em seguida, sobre aquilo que descobri...
Para dizer a verdade, vigiando Lavínia, evitara, mais de uma vez, ter
grandes aborrecimentos, porque aquela procurava, por todas as formas, fazer
partidas a toda a gente e ficaria radiante se pudesse fazer passar um mau
bocado à ex-glória do colégio.
Sara, pelo contrário, não fazia partidas a ninguém nem se metia na vida
dos outros. Trabalhava como uma escrava, indo aonde a mandavam, mesmo
debaixo de chuva, carregada de embrulhos e cestos; lutava contra a preguiça e
a distração das pequeninas, durante a lição de francês. O aspecto do seu
vestuário era cada vez mais miserável, a ponto de, um dia, Miss Minchin lhe
dizer que, dali em diante, comeria na cozinha.
Ninguém se preocupava com ela; o seu coração sofria mais, mas a sua
altivez não cedia e ninguém lhe ouvia, nunca, uma lamentação, por mais
pequena que fosse.
"Os soldados não se lamentam - dizia ela, de si para si, com os dentes
muito cerrados. - Eu também nunca me lamentarei. Imaginarei que estou na
guerra.”
Apesar de todo o seu heroísmo, esta criança teria sucumbido sob o peso
do abandono atroz em que vivia, se não tivesse três amigas a ampará-la
moralmente.
A primeira - diga-se desde já - era Becky. Durante a primeira noite
passada no sótão, Sara sentira um grande conforto ao pensar que, do outro
lado da parede, estava uma criança, pequena e desprezada como ela, a quem
os ratos também assustavam. Este sentimento aumentou ainda mais nas
noites seguintes.
Becky e ela não tinham ocasião de falar uma com a outra durante o dia.
Cada uma tinha o seu trabalho e seriam acusadas de empregar mal o tempo se
fossem surpreendidas em flagrante delito de conversa...
- Não faça caso - dissera- Lhe Becky, na primeira manhã. -Não faça caso,
se eu não for bastante delicada para com a menina. É que, se o fosse,
ralhariam comigo. “Mas a menina bem sabe que eu estou sempre pronta a
dizer-lhe “muito obrigada”, “se faz favor” e desculpe-me”. O que não posso é
perder tempo...
De manhã cedo, Becky entrava no quarto de Sara; abotoava-lhe o
vestido e ajudava-a em tudo o que podia, antes de ir acender o lume. E à noite,
Sara ouvia sempre, na sua porta, as pancadinhas tímidas com que a sua
"criada de quarto" anunciava que estava pronta a prestar-lhe todos os serviços
possíveis.
Durante as primeiras semanas do seu grande desgosto, Sara sentia-se
demasiadamente abatida para poder conversar, e as duas pequenas viram-se
poucas vezes. O coração delicado de Becky compreendia que, quando se é
infeliz, é agradável estar só.
O número dois do trio era Hermengarda. Mas passou algum tempo antes
que ela cumprisse a sua missão.
Quando Sara retomou, a pouco e pouco, o gosto pela vida, percebeu que
se esquecera completamente de Hermengarda. Haviam sido boas amigas, nas
Sara tivera sempre a impressão de ser muito mais velha do que a sua
companheira.
Hermengarda era, sem dúvida, uma boa pequena, mas de inteligência
acanhada. Dedicara-se a Sara como uma pobre criatura que tem necessidade
de ser amparada; pedia-lhe que lhe explicasse as lições e bebia as suas
palavras, não se cansando de a ouvir contar histórias. Mas, ela, coitadinha, era
incapaz de contar fosse o que fosse; ignorava tudo, tinha horror aos livros. Era
uma daquelas pessoas insignificantes, que se esquecem nas horas de grande
sofrimento e Sara tinha-se esquecido dela mais fàcilmente ainda pelo fato de
Hermengarda, no momento da catástrofe, se encontrar em casa, onde
permaneceu durante algumas semanas.
Foi apenas pouco depois do seu regresso ao colégio que Hermengarda
encontrou Sara, quando esta se dirigia à rouparia com os braços carregados de
roupa pois já a tinham ensinado a coser e a remendar. Sara estava pálida - não
parecia a mesma e trazia um vestido velho que mal lhe cobria as pernas muito
magras.
Hermengarda não foi capaz de lhe dizer uma só palavra. Não ignorava
nada do que sucedera, mas nunca imaginava ver Sara assim tão pobre, tão
diferente, transformada quase em criada. Ficou impressionadíssima , apesar
disso não soube fazer mais nada senão dar uma gargalhada nervosa e dizer,
maquinalmente:
- Oh Sara, és tu?
- Certamente, sou eu - respondeu Sara. De súbito, atravessou-lhe o
cérebro um pensamento que a fez corar. Trazia uma grande rima de roupa nos
braços e apoiava o queixo sobre ela, para segurá-la melhor. Nos seus grandes
olhos, tão tristes,
passou uma sombra, que fez perder a cabeça à pobre Hermengarda.
Pareceu-lhe que Sara era uma outra criança, que ela nunca tinha conhecido.
Estava comovidíssima com uma tão grande desgraça e pelo fato de Sara ser
obrigada a trabalhar, tal como Becky.
- Oh - balbuciou ela. - Como estás tu?
- Vou vivendo - respondeu Sara. - E tu?
- Mas... eu estou boa... - respondeu Hermengarda, muito embaraçada. E,
nervosamente, procurou uma frase um pouco afetuosa. - Tu... tu és muito
infeliz ? - perguntou ela, ofegante.
Naquele instante Sara foi injusta. Seu coração ferido revoltou-se, e ela
pensou que era preferível deixarem-na em paz a dizerem-lhe semelhantes
disparates.
-Julgas então que eu não posso ser muito feliz - replicou ela.
E, sem acrescentar uma palavra, afastou-se de Hermengarda.
Mais tarde, Sara devia pensar que a sua desgraça lhe fizera perder a
memória, pois só assim ela se esquecera de que a gorducha Hermengarda não
era responsável pelas tolices que dizia. A pobre pequena sempre fora
desastrada e, quando o não queria ser, ainda era pior...
Sara, entretanto, com o coração a sangrar, pensava:
" Hermengarda não é melhor do que as outras... Não tinha nenhum
desejo de me falar. Ela sabe que ninguém me fala. "
Assim se ergueu entre elas uma barreira invisível. Quando, por acaso, se
encontravam, Sara voltava a cabeça e Hermengarda sentia-se tão
comprometida, que não era capaz de falar.
Às vezes trocavam um rápido sinal de cabeça e nada mais. Mas, quase
sempre, faziam de conta que não se conheciam.
"Se ela prefere não me falar - pensava Sara ,eu por mim, nada lhe direi;
é isto mesmo que Miss
Minchin deseja."
Efetivamente, esta atitude correspondia em
absoluto ao que Miss Minchin desejava, e as duas
crianças acabaram por não se ver mais. Durante
esse período, todos verificaram que Hermengarda
estava mais parvinha do que nunca, e tinha um ar
triste e desgraçado.
Passava horas no vão de uma janela, a olhar
vagamente para a rua, sem proferir palavra.
Jessie, um dia, parou junto dela, a olhar, surpreendida.
- Porque choras tu, Hermengarda? - perguntou ela.
- Eu não estou a chorar - respondeu a outra
em voz sumida.
-Não estás a chorar? Então de quem é essa
grande lágrima que te vem a rebolar pelo nariz?
não querem lá ver - exclamou Jessie.
- Pois bem, é verdade - confessou Hermengarda - tenho um desgosto...
mas ninguém tem nada
com isso.
E, voltando as costas a Jessie, tirou o lenço
da algibeira, sem disfarce, e cobriu a cara com ele.
Na noite desse mesmo dia, Sara foi para o
quarto mais tarde do que era costume. Tivera muito
que fazer, ainda depois da hora das alunas se deitarem, e em seguida
estivera a estudar na aula deserta. Ao chegar ao patamar; ficou surpreendida
por ver a luz brilhar por debaixo da porta.
"Ninguém aqui vem a não ser eu” - pensava
ela. - Quem teria acendido a luz? “Efetivamente, alguém entrara no
quarto, com
uma vela acesa.
Com uma camisa de noite vestida, e embrulhada
no xale vermelho, esse alguém estava sentado no
velho banco desbotado: Sara reconheceu Hermengarda.
- Hermengarda - exclamou ela, quase assustada. - Vais ser castigada!
Hermengarda levantou-se, cambaleando, por que
tinha calçado pantufas muito largas. Os seus
olhos e as suas faces estavam vermelhos e inchados.
- Bem sei, mas não me importo - respondeu
ela. - Oh Sara! Peço-te que digas que mal te fiz
eu? Porque não és já minha amiga?
As suas palavras eram tão afetuosas, tão simples, faziam lembrar tanto
a Hermengarda de outro
tempo, quando ela lhe propusera serem "amigas
íntimas", que Sara sentiu a garganta apertar-se-lhe
um pouco.
Com aquelas palavras, Hermengarda desfazia
toda a aparência de crueldade da sua atitude.
- Gosto muito de ti - disse Sara. - Mas eu
julgava... tu compreendes, tudo mudou tanto para
mim... que eu julgava que tu também já não eras
a mesma.
Hermengarda abriu muito os olhos ainda cheios
de lágrimas.
- Mas... tu é que não és a mesma - exclamou
ela. -Não me querias falar. Eu não sabia o que
havia de fazer. Tu é que estavas diferente, quando
eu voltei.
Sara refletiu um momento e compreendeu o
seu erro.
- Eu mudei, é certo - explicou ela - mas não
no sentido em que tu julgas. Miss Minchin não quer
que eu fale com as alunas, e a maior parte delas
não tem vontade nenhuma de me falar. Pensei que
tu eras como elas e, por isso, procurei evitar-te.
- Oh Sara - gemeu Hermengarda, num tom
de censura.
Depois, olharam-se e lançaram-se nos braços
uma da outra. A cabeça de cabelos pretos demorou-se
um pouco sobre o ombro coberto pelo xale vermelho. A verdade é que,
ao julgar que também Hermengarda a abandonava, Sara sentira-se mais só do
que nunca.
Em seguida, sentaram-se no chão, ao lado uma da outra: Sara com os
braços em volta dos joelhos, Hermengarda embrulhada no seu xale.
Hermengarda fitava a carinha original e os grandes olhos da amiga, com
uma espécie de adoração.
- Eu não podia mais - disse ela. - Tenho a certeza, Sara, de que tu podes
muito bem passar sem mim; mas eu é que não posso passar sem ti. Sentia que
ia morrer. Hoje, quando estava a chorar, com a a cabeça debaixo da roupa,
lembrei-me, de repente, de subir até ao teu quarto, para te pedir que tornemos
a ser boas amigas.
- Vales mais do que eu - disse Sara. - Eu teria sido demasiado orgulhosa
para fazer isso. Vê, Hermengarda, chegou para mim o tempo da provação, e
tem-me mostrado que eu não sou boa nem generosa... Eu tinha a certeza...
Talvez fosse por isso - disse ela, curvando a cabeça - que a provação me foi
enviada...
-Eu cá não vejo onde possa estar a utilidade das provações - afirmou
Hermengarda com energia.
- Para falar francamente, eu também não - concordou Sara. - Mas penso
que tudo tem um lado bom, mesmo quando nós o não vemos. A própria Miss
Minchin... (aqui a voz de Sara perdeu a convicção)... Sim, a própria Miss
Minchin talvez tenha o seu lado bom!
Hermengarda inspecionava o quarto com o olhar. Estava cheia de
curiosidade tímida.
- Sara! - perguntou ela. - Julgas que podes habituar-te a viver aqui?
Sara olhou também.
- Se eu conseguir convencer-me de que isto é muito melhor do que
parece, sou capaz - respondeu ela. - Ou, então, se eu imaginar que isto é um
lugar histórico.
Falava lentamente. A sua imaginação despertava de um longo sono,
porque depois da sua grande infelicidade, sentira-se incapaz de imaginar ou
inventar fosse o que fosse.
- Muitas pessoas - continuou ela - viveram em lugares piores do que
este. Lembras-te do conde de Monte Cristo nas masmorras do castelo D’If? E
os prisioneiros da Bastilha?
- A Bastilha - repetiu Hermengarda, como que fascinada.
Lembrava-se das histórias da Revolução Francesa que, contadas por
Sara, com uma grande expressão dramática, se tinham fixado na sua memória.
Ninguém, além de Sara, conseguira, nunca, semelhante prodígio...
Pouco a pouco, brilhava nos olhos de Sara o antigo ardor.
- Sim - disse ela, como se falasse consigo própria. - Este sótão é perfeito
para imaginar um romance. Eu sou um dos prisioneiros da Bastilha. Há anos
que estou encarcerada aqui; toda a gente me esqueceu. Miss Minchin é o
carcereiro, e Becky... (os olhos brilharam-lhe mais), Becky é o prisioneiro da
cela vizinha.
Olhou para Hermengarda; a verdadeira Sara reaparecia.
- Aqui está o que eu vou imaginar - continuou ela - e será uma grande
consolação.
Hermengarda sentiu-se, ao mesmo tempo, contente e um pouco
assustada.
- Hás de contar-me tudo, sim? - pediu ela. Dás-me licença que eu venha
ter contigo, à noite, quando todos estiverem deitados? Dir-me-ás o que
tiveres inventado durante o dia, e nós seremos ainda mais amigas
íntimas do que dantes.
- Pois sim - aprovou Sara. - É na adversidade que se conhecem os
amigos: a minha infelicidade provou-me quanto tu és boa!
RODILARD
Lottie era o terceiro membro do trio consolador. Era ainda muito
pequena para compreender o que é a desgraça, e a transformação da vida da
sua "mamã adotiva" lançara-a na mais profunda perplexidade. Haviam-lhe dito
que Sara tivera grandes infelicidades, mas ela não podia explicar a si própria
por que razão Sara mudara tanto, e porque usava um vestido preto, velho, feio,
e por que motivo tomava conta das mais novinhas, em vez de ocupar o melhor
lugar na sala de estudos, como antigamente.
As mais pequeninas tinham ficado espantadas e não se fartavam de
dizer segredinhos, ao descobrir que Sara não ocupava já o quarto, onde,
durante tanto tempo, reinara Emily. Mas o que atormentava principalmente
Lottie eram as respostas breves de Sara, sempre que ela lhe perguntava
qualquer coisa. Quando se tem sete anos, é preciso que os mistérios sejam
claramente explicados, para que possam ser compreendidos.
- Então, tu agora és muito pobre, Sara - perguntava Lottie, baixinho, a
primeira vez que a sua grande amiga foi dar lição à classe infantil. - És
tão pobre como os mendigos da rua?
E, ao dizer isto, metia a mãozinha gorda entre
os dedos esguios de Sara, e os olhos tornavam-se-lhe maiores, cheios de
lágrimas.
- Eu não quero que tu sejas pobrezinha como
os mendigos...
Estava quase a chorar, e Sara apressou-se a consolá-la, dizendo-lhe,
corajosamente:
-Os mendigos não têm casa para se abrigar! e tu bem vês que eu tenho
uma.
- Onde moras tu? - continuou Lottie. - Está
uma nova aluna no teu quarto, e o quarto, agora,
já não é tão bonito...
- Deram-me outro - respondeu Sara.
- Também é bonito? - insistiu Lottie. - Eu
queria vê-lo...
- Cala-te - ordenou Sara -, Miss Minchin está
a olhar para nós e ela vai ralhar-me se tu continuas
a falar comigo.
Já tinha compreendido que a tornava responsável
por todas as desobediências ao regulamento. Se as
petizas estavam distraídas, faladoras ou irrequietas, Sara era sempre a
culpada...
Mas Lottie era uma pessoazinha muito decidida.
Sara não queria dizer onde era o seu quarto? Pois
bem! Ela saberia descobri-lo sozinha.
Falou nisto às amigas, andou em volta das
"grandes" a ver se surpreendia as suas conversas;
e, depois de ouvir algumas frases que elas, inconscientemente, tinham
deixado escapar, Lottie decidiu-se, um dia, a partir para uma viagem de
exploração... E, depois de ter subido umas escadas, de
cuja existência nunca suspeitara, chegou, finalmente ao sótão. Lá,
encontrou duas portas, próximas uma
da outra e, ao abrir uma ao acaso, descobriu a sua
querida Sara, em pé, em cima de uma velha mesa! a espreitar para fora,
por uma trapeira.
- Sara - gritou ela, consternada. - Mamã Sara!
Não podia acreditar: o sótão era tão feio e parecia tão longe de tudo,
que Lottie tinha a impressão de haver subido centenas de degraus.
Ao ouvir a sua voz, Sara voltou-se e ficou, por sua vez, consternada
também. Que iria acontecer, Santo Deus... Se Lottie começava a chorar e
alguém a ouvia, estavam perdidas, as duas. Sara saltou abaixo da mesa e
precipitou-se para a criança.
- Não chores, Lottie não faças barulho - suplicou ela - se não ralham
comigo, e eu já ouvi ralhar muito durante todo o dia. Isto não é um quarto feio,
Lottie.
- Achas? - disse Lottie, com dificuldade. E, olhando em redor de si, a
pequenina mordia os lábios. Era chorona e cheia de mimo, mas gostava tanto
de Sara que, por ternura por ela, estava disposta a fazer o possível para não
chorar... E depois, refletindo melhor, pensou que podia muito bem ser que
todos os lugares fossem bonitos, desde que Sara lá vivesse.
- E porque é que não é feio ? - perguntou ela, em voz baixa.
Sara apertou-a muito ao peito e tentou rir. Sentia um grande conforto no
contato daquele corpinho de criança doce e quente. O dia fora mau. Era com
olhos vermelhos e ardentes que ela espreitava pela janela.
-Daqui vê-se muita coisa que não se pode ver lá de baixo - explicou ela.
- Que coisas - perguntou Lottie, com aquela curiosidade que Sara sabia
tão bem excitar, mesmo nas pessoas muito mais velhas.
-As chaminés, com o fumo, tão bonito, que sobe para o céu fazendo
caracóis e grinaldas; os pardalitos que saltitam, conversando uns com os
outros, como se fossem pessoas; as janelas dos outros sótãos, onde aparecem,
a todo o instante, cabeças de pessoas
que não conhecemos, de forma que podemos
divertir-nos a adivinhar de quem serão. Sentimo-nos
tão alto, tão alto, que chegamos a convencer-nos
de que habitamos um mundo diferente.
- Oh! Eu gostava tanto de ver- implorou Lottie. - Ajuda-me a subir, se
fazes favor!
Sara pegou-lhe ao colo e as duas, empoleiradas na velha mesa e
encostadas à trapeira, olharam para fora.
Quem nunca lançou um olhar sobre os telhados não faz a menor idéia do
espetáculo que
eles ofereciam às duas crianças.
Em toda a volta, os telhados de ardósia desciam
suavemente, alongando-se até às goteiras.
Os pardais, sentindo-se em sua casa, saltavam
e pipilavam sem o menor receio. Dois vieram pousar
na chaminé vizinha e, ali, tiveram uma forte questão... Até que um deu
ao outro uma valente bicada, obrigando-o a levantar vôo. A janela do sótão
mais
próximo estava fechada, porque a casa não era
habitada.
-Eu gostava que houvesse alguém naquela
casa - disse Sara - porque, se vivesse outra criança
naquele sótão, poderíamos, conversar de janela para
janela e, mesmo, com alguma coragem, passar pelo
telhado e visitarmo-nos uma à outra.
O céu parecia muito mais perto do que visto
da rua, a tal ponto que Lottie estava encantada.
Ali naquela fresta, rodeada de canos de chaminés,
tudo o que se passava lá em baixo parecia irreal.
Esqueciam a existência de Miss Minchin, de Miss
Amélia, das aulas, dos livros... e o rodar das carruagens da praça parecia
um ruído vindo do outro
mundo.
- Oh Sara ! - exclamou Lottie, aconchegando-se muito ao braço protetor
da sua grande amiga.
- Eu gosto muito deste sótão, imenso! É bem mais
bonito do que lá em baixo!
- Olha para aquele passarito - murmurou Sara.
-Que pena não ter migalhinhas para lhe deitar!
- Mas tenho eu - respondeu Lottie, com um gritinho de alegria. - Tenho
no meu bolso um bocadinho de pão doce, que comprei ontem com o meu
dinheiro.
Ao vê-las atirar-lhe com migalhas, o pardalito voou para uma chaminé.
Evidentemente, não tinha nenhum amigo ali, nos telhados, e aquelas
migalhas inesperadas não lhe inspiravam confiança... Mas vendo que Lottie
não fazia um movimento e que Sara o chamava imitando o seu pipilar, como se
ela própria fosse um passarinho, pensou que se enganara e que não se tratava
de uma armadilha, mas sim de um amável convite. Curvou a cabecita, lá do
alto do seu poleiro, e olhou para as migalhinhas de pão com os olhos brilhantes
e espertos. Lottie dificilmente se conservava quieta.
- Virá? Não virá? Que dizes?... - murmurou ela, muito baixo.
- Parece que tem um grande desejo de vir...
- respondeu Sara, ainda mais baixo. - Está a ver se atreve-se ou não...
Sim... vai decidir-se... Lá vem ele.
O pardalito descera da chaminé e vinha aproximando-se aos
pulinhos,mas, a três passos das migalhas, parou e tornou a pôr a cabecita de
lado, como se perguntasse a si próprio se Sara e Lottie não iriam transformar-
se em grandes gatos, que saltariam sobre ele. Por fim, convencido de que as
duas meninas eram menos terríveis do que podiam parecer, avançou mais e
mais, aos pulinhos tímidos, até que, tendo apanhado com o bico, mais rápido
do que um relâmpago, uma grande migalha, voou, levando consigo o belo
petisco, e foi refugiar-se do outro lado da chaminé.
- Agora já perdeu o medo - disse Sara. Não tarda a vir buscar mais...
O pardalito não só voltou, como trouxe um
amigo. O amigo, por sua vez, foi buscar o pai, e os
três comeram regaladamente, soltando muitos pios
alegres, e parando, de instante a instante, para observarem Lottie e
Sara.
O contentamento de Lottie era tão grande, que a
ave a fez esquecer a deplorável impressão que o quarto
de Sara lhe havia causado. A tal ponto que, ao descerem da mesa, Sara
pôde mostrar-Lhe todas as belezas do seu novo domicílio, e das quais nem
sequer
ela própria tinha ainda suspeitado a existência.
- Vês? - dizia Sara. - Este quarto é, ao mesmo
tempo, tão pequeno e tão alto, que parece um ninho
colocado numa árvore. O teto, que desce muito de
lado, é engraçado! Quando estamos deste lado, mal
podemos ficar de pé! Quando amanhece, vejo
o céu do meu leito, através da janela quadrada, aberta
no teto: é tal qual como se fosse a própria luz
encaixilhada. Se está um dia de sol, vejo flutuar
nuvenzinhas cor-de-rosa e parece-me que posso, até toca-las com os
dedos. Quando chove, ouve-se
o ruído que fazem as gotas de chuva a cair: dir-se-ia
que conversam gentilmente conosco. À noite, há as
estrelas; podemos entreter-nos a contar quantas se
vêem pelo quadrado da janela. Não fazes idéia da
quantidade que é. E, olha agora para esta grade, um
pouco ferrugenta, do fogão. Se estivesse bem limpa
e reluzente, e houvesse lá dentro um bom lume, como
seria agradável... Vês? É um belo quartozinho, este.
Sara ia e vinha, no pequeno espaço do aposento com Lottie pela mão e
acompanhando cada palavra
com um gesto, à medida que descrevia todas as
maravilhas que ia descobrindo para si própria e
para Lottie. Esta acreditava sempre em tudo quanto
Sara lhe contava.
- Vês? - continuava Sara. - Podia-se cobrir
o sobrado com um tapete da Índia, espesso e macio, de linda cor azul;
neste canto, ficaria um pequeno divã com muitas almofadas, para nos
recostarmos: por cima uma prateleira de livros, que estariam ali, mesmo à
mão. Diante do fogão, um tapetezinho de pele; e nas paredes, panos preciosos
e quadros; era preciso que fossem pequenos, mas isso não impedia que
fossem bonitos. Aqui, instalar-se-ia um candeeiro com quebra-luz cor-de-rosa;
no meio do quarto, uma mesa com um serviço de chá; em chaleira de cobre
redonda e reluzente, cantaria a água, sobre o lume. Quanto ao leito, seria
inteiramente diferente: um bom colchão, uma linda colcha de seda
adamascada... Enfim, seria soberbo. E talvez nós conseguíssemos que os
passarinhos fossem tão nossos amigos, que viessem bater com o bico na
vidraça, para lhes abrirmos a janela e eles entrarem...
- Oh Sara! - exclamou Lottie. - Como eu gostava de morar aqui!
Quando Sara, depois de convencer Lottie a ir-se embora e de tê-la
acompanhado até à escada, entrou novamente no quarto, parou no meio do
cubículo onde dormia, e olhou em volta. A sua imaginação tinha-se acalmado;
o seu entusiasmo desaparecera. O leito apareceu-lhe tal como era: duro e
coberto com um miserável cobertor.
O gesso das paredes caía aos bocados; nem um farrapo de tapete
dissimulava o sobrado ordinário e para se sentar, tinha ùnicamente o velho
banco desconjuntado e sem um pé. Sara sentou-se e deixou tombar a cabeça
nas mãos. A curta visita de Lottie conseguira, apenas, tornar-lhe a solidão mais
amarga-tal como sucede aos prisioneiros, que sentem mais vivamente o peso
do cativeiro quando a porta da prisão se fecha sobre os visitantes.
"Estou num canto perdido... - disse ela consigo mesma. - O canto mais
triste do Universo.”
Estava ela entregue a estas reflexões quando lhe
pareceu ouvir um pequeno ruído. Ergueu a cabeça
e valeu-lhe não ser medrosa pois, de contrário, teria
dado um salto no banco.
Não longe dela, encontrava-se um grande rato
sentado nas patas traseiras, farejando o ar com muito
interesse.
Alguns bocaditos do pão doce que Lottie trouxera tinham caído no chão,
e o rato, atraído por
aquele maná inesperado, saira do seu buraco.
Parecia-se de tal maneira com um gnomo de
bigodes grisalhos, que Sara ficou imóvel, sem saber
o que fazia. O rato olhava para ela com olhos brilhantes, tal como uma
pessoa que fizesse uma pergunta e esperasse a resposta. Evidentemente, o
animalzito não estava certo de ser bem recebido, e a
sua atitude fez nascer no espírito de Sara mil pensamentos como só ela
tinha.
"Na realidade, é muito triste ser rato” - pensava. -Toda a gente detesta
os ratos e, quando
algum aparece, todos fogem e gritam: -"Que horrível bicho ! " Eu, por
mim, não gostaria nada que ao ver-me, alguém gritasse: - "Que horrível Sara!"
ou que me preparassem ratoeiras, disfarçadas num
petisco. Ser passarinho é muito diferente. Mas ninguém se lembrou de
perguntar a este rato, quando
nasceu, se preferia ser pássaro. Ninguém lhe perguntou: "Que preferes
tu ser?"
Continuava tão quieta, que o rato ia tomando
coragem. Tinha medo, mas tal como fizera o pardal dizia lá consigo que
Sara não era um animal pronto
a saltar sobre ele. O pobre rato tinha muita fome.
A sua família, composta da senhora rata e de numerosa ninhada, vivia
na parede e andava com pouca
sorte, naqueles últimos tempos: não havia maneira de
encontrar nada para comer nem para roer. Os ratinhos choravam, e o
pai sentia-se disposto a arriscar
a vida por aquelas apetitosas migalhas de pão doce.
Resolveu-se, finalmente, a pôr as quatro patas no chão.
- Vem, vem - dizia-lhe Sara. - Eu não sou uma ratoeira. Vem comer o
pão, pobre bichinho. Os prisioneiros da Bastilha tornaram-se amigos dos ratos
da prisão. E se eu tentasse tornar-te meu amigo?
Compreenderão os animais o que Lhes dizem? Ninguém sabe, mas há
uma coisa certa: é que entendem muita coisa. Talvez exista uma linguagem
universal que não é feita de palavras e que é compreendida por todos os seres
que vivem no vasto mundo. Talvez haja, na Natureza, uma voz que fala sem
fazer o menor ruído...
Seja como for, o rato, a partir daquele minuto, compreendeu que se
encontrava em segurança. Adivinhou que aquela menina, sentada no banco
vermelho, não procuraria afugentá-lo com gritos selvagens, não lhe atiraria
terríveis objetos que o assustariam ou fariam com que regressasse ao seu
buraco mutilado e coxo. E ele era, na realidade, um belo rato, que não tinha a
menor má intenção.
Ao erguer-se nas patas traseiras, com os olhos fixos em Sara, esperava
que ela o compreendesse e não começasse imediatamente a detestá-lo. E
quando a voz misteriosa da Natureza o tranqüilizou, aproximou-se
devagarzinho das migalhas e começou a comer. Olhava sempre para Sara,
exatamente como os pardais haviam feito, com uma expressão tão suplicante,
que a pequenina sentiu-se entristecer.
Observava-a sem fazer o menor movimento. Havia uma migalha muito
maior do que as outras, um verdadeiro bocado de pão, que tentava o pobre
animal; mas era preciso aproximar-se muito do banco, e mestre rato sentiu-se
ainda um pouco intimidado.
"Ele quer levar aquele bocado à família - pensava Sara. - Não me
mexerei. Talvez seja capaz de vi-lo buscar. "
Estava de tal maneira imóvel, que nem respirava.
O rato, insensivelmente, tinha-se aproximado, comendo os bocadinhos
mais pequeninos; depois, parou, farejou o ar com seu focinho pontiagudo,
sempre a olhar para Sara, e depois, com a mesma rapidez do pardal, correu
para o bocado de pão, apanhou-o e desapareceu, como um relâmpago, numa
pequena fenda da parede.
-Eu tinha a certeza de que o bicho queria levar aquele bocado aos filhos
- disse Sara em voz alta. - Creio que vou arranjar um amigo.
Cerca de oito dias depois, uma noite em que Hermengarda pudera ir, de
fugida, até ao sótão, ficou surpreendida ao ver que Sara não respondia,
imediatamente, à pancadinha discreta com que era seu costume anunciar-se.
O silêncio era mesmo tão absoluto, que Hermengarda julgou que a sua amiga
já estivesse a dormir. Mas, com grande surpresa, a pequena ouviu Sara rir-se
baixinho, ao mesmo tempo em que parecia falar afetuosamente a alguém.
- Toma - dizia ela. – Pega-lhe depressa e volta a correr, para casa,
Rodilard! Vai depressa ter com a tua mulher!
Quase ao mesmo tempo, Sara abriu a porta e deu com Hermengarda,
muito assustada.
- Com quem falavas tu, Sara? - balbuciou Hermengarda.
Sara fê-la entrar, cautelosamente, mas tinha o ar de quem acabava de
passar uns momentos agradáveis.
-Dir-te-ei, se me prometeres não ter medo e
não gritar - respondeu ela.
Hermengarda por pouco não soltou imediatamente um grito, mas
conseguiu dominar-se.
Percorreu o quarto com o olhar e não viu ninguém. Mas Sara falara a
uma pessoa, com certeza.
Uma vaga ideia de fantasmas atravessou-lhe o espírito.
- É alguma coisa que me vai assustar? - perguntou ela, com hesitação.
- Há pessoas que têm medo - respondeu Sara.
- Eu própria assustei-me, a primeira vez, mas agora já não.
- Não é... um fantasma - disse Hermengarda com os dentes a bater.
- Oh, não - exclamou Sara, soltando uma gargalhada. - É o meu rato.
Hermengarda precipitou-se sobre o leito, puxando a camisa para os pés
e escondendo os braços no xale. Não gritava, mas estava sufocada de medo.
- Oh Oh - dizia ela, com voz estrangulada.
- Um rato! Um rato!
- Eu bem sabia que terias medo - replicou Sara. - Mas não é motivo para
isso. Estou quase a domesticá-lo. Ele começa a conhecer-me e vem quando eu
o chamo. Tens medo de o ver?
Depois do seu primeiro encontro com o rato, e graças aos restos que
trazia da cozinha, esta estranha amizade tinha feito grandes progressos, e Sara
acabara por esquecer, a pouco e pouco, o verdadeiro estado civil do seu
companheiro.
Primeiro, Hermengarda só pensou em se aninhar sobre o leito e
esconder os pés, cuidadosamente, sob o cobertor. Mas a história do primeiro
encontro de Sara com Rodilard excitou a tal ponto a sua curiosidade, que ela
acabou por se debruçar nos pés do leito, para ver melhor a amiga, ajoelhada
muito perto da fenda do rodapé.
- Ele... não vai sair de repente e saltar sobre a cama? - perguntou.
- Que ideia - respondeu Sara. - É tão bem educado como nós. É tal qual
uma pessoa. Vais ver.
Pôs-se então a assobiar muito baixinho; para ouvi-la, era necessário que
o silêncio fosse absoluto. Sara estava tão absorvida como se quisesse fazer um
feitiço ou pronunciasse palavras mágicas. Por fim ,respondendo ao
chamamento, apareceu no buraco uma cabecinha de olhos muito vivos e
grandes bigodes. Sara tinha na mão umas côdeas de pão, que deixou cair, e
Rodilard saiu tranquilamente e veio comê-las. Depois, avistando um bocado
maior do que os outros, pegou-lhe com os dentes e levou-o para casa, com um
ar de pessoa muito ocupada.
- Vê como é gentil - exclamou Sara. - Come os bocadinhos pequenos e
leva os maiores à mulher e aos filhos. Muitas vezes ouço-os soltar gritinhos de
alegria. Cada um tem uma forma diferente de gritar. Sei reconhecer, muito
bem, se é o pai, a mãe ou os pequeninos.
Hermengarda pôs-se a rir.
- Oh! Sara! - disse ela. - Tu és extraordinária Mas és boa!
- Bem sei que sou extraordinária - respondeu Sara, alegremente. - E
também sei que procuro ser boa.
Esfregou a testa com a sua mãozinha morena, e os olhos encheram-se-
lhe de ternura.
- O papá estava sempre a fazer-me arreliar - continuou ela - mas eu
gostava tanto! Chamava-me original, mas ficava encantado quando eu
inventava as coisas mais extravagantes... Não posso deixar de imaginar e
inventar... Estou mesmo convencida de que, sem isso, não poderia viver...
Calou-se um instante, e olhou em volta. Depois concluiu, em voz baixa:
-Não poderia viver... principalmente aqui.
Hermengarda estava, como sempre, suspensa das palavras de Sara.
- Quando tu falas - disse ela - parece que tudo quanto contas é verdade.
Falas de Rodilard como se ele fosse uma pessoa a valer.
- Mas é, realmente, uma pessoa - respondeu Sara. - Tem fome, tem
medo, tal como nós. Têm família, como os homens. Quem nos diz que não
pensa como nós pensamos? Os seus olhos são inteligentes. Foi por isso que lhe
dei um nome.
Sara sentara-se no chão, na sua atitude favorita, com os braços em volta
dos joelhos.
- Para mais - continuou ela - é um rato da Bastilha, que me foi enviado
para que eu tenha um amigo. Não me custa nada arranjar pão seco, porque a
cozinheira deita muito fora. E o Rodilard não precisa de mais nada.
- Então, continuamos na Bastilha? - disse Hermengarda, com vivacidade.
-Ainda imaginas que estás lá?
- Imagino - respondeu Sara. - Às vezes quero imaginar que estou noutro
lugar, mas é mais fácil supor que estou na Bastilha, principalmente quando faz
frio.
Naquele momento, Hermengarda saltou para o chão, assustada com um
ruido que acabava de ouvir. Dir-se-iam duas pancadas muito nitidas, dadas do
outro lado da parede.
- Que é isto - exclamou ela.
Sara respondeu, num tom dramático:
- É o prisioneiro da cela vizinha...
- Becky! - disse Hermengarda, contentíssima.
- Exatamente!- respondeu Sara. – Escuta.As duas pancadas querem
dizer: "Estás lá, prisioneiro»?"
Sara, por sua vez, bateu três pancadas na parede, como se respondesse.
- Isto - explicou ela - significa "Estou cá e tudo corre bem".
Quatro pancadas soaram do lado de lá.
- E isto - continuou Sara - traduz-se assim "Nesse caso, companheiro de
desgraça, durmamos tranqüilos! Boa noite!"
A carinha de Hermengarda tinha uma expressão radiante.
- Oh Sara - disse ela. - É como nas histórias.
- Mas é, realmente, uma história - respondeu Sara. - A vida de toda a
gente é uma história a tua, a minha, a de Miss Minchin...
E, tornando a sentar-se, continuou a dar livre curso à sua imaginação, de
tal maneira que Hermengarda esqueceu que estava fora do regulamento e foi
preciso que Sara Lhe lembrasse a urgência de deixar a Bastilha e voltar, com
passos cautelosos, para o quarto donde desertara havia tanto tempo.
O CAVALHEIRO DA ÍNDIA
As peregrinações de Hermengarda e Lottie ao sótão eram muito
arriscadas. Nunca tinham a certeza de encontrar Sara no seu quarto, e podia
muito bem acontecer encontrarem Miss Amélia, numa das rondas silenciosas,
quando já eram horas de todas dormirem. Por isso, as suas visitas eram raras e
a vida de Sara cada vez mais triste. Sentia-se ainda mais só quando estava no
rés-do-chão do que no sótão. Lá em baixo ninguém lhe dirigia a palavra e,
quando ia pelas ruas, carregada de embrulhos ou de cestos, quando lutava,
contra o vento, que lhe arrancava o velho chapéu, ou sentia a chuva repassar,
lentamente, os sapatos rotos, sentia-se mais abandonada ainda, no meio de
desconhecidos que passavam por ela indiferentes.
No tempo em que era a princesa Sara e saía de carruagem,
acompanhada por Mariette, com a sua carinha tão bonita e original, os seus
abafos suntuosos e chapéus elegantes, chamava, muitas vezes, a atenção dos
transeuntes.
Uma menina bonita, bem vestida, desperta sempre interesse e
admiração. Mas as pequeninas mal vestidas passam despercebidas e ninguém
pensa em sorrir-lhes.
Assim, já não olhavam para Sara, agora que ela percorria
apressadamente as ruas cheias de gente.
Crescera muito e, como do seu riquíssimo enxoval apenas lhe havia
deixado os vestidos mais usados, Sara compreendia que devia ter um aspecto
lamentável, com as roupas justas e as saias muito curtas.
Miss Minchin tinha disposto, como entendera,de todo o seu vestuário, e
contava que Sara usasse até ao último fio as pobres roupas que ela
"generosamente" lhe concedera.
Algumas vezes, Sara parava diante das montras com espelhos, e ria alto,
ao ver a sua figura;outras vezes,porém corava até à raiz dos cabelos e mordia
os lábios, voltando-se rapidamente.
À noite, quando passava em frente de janelas bem iluminadas, gostava
de olhar para dentro das casas aquecidas e confortáveis, e inventava histórias
acerca dos seus habitantes, que ela via agrupados junto do fogão ou sentados
em redor da mesa.
Isto a divertia muito. Havia, assim, na praça onde ficava o colégio de
Miss Minchin, várias famílias de quem ela fizera, pela imaginação, verdadeiros
amigos.
Uma delas agradava-lhe particularmente. Chamava-lhe a "Grande
Família", não porque as pessoas que a compunham fossem exageradamente
altas, mas porque eram muito numerosas. Nesta "Grande Família" havia oito
crianças, um papá esbelto e vigoroso, uma mamã fresca e robusta, uma avó de
cabelos brancos e faces rosadas e um grande número de criados. Agora, via os
pequeninos sair com criadas bem vestidas; logo, subiam para a carruagem,
com a mãe; mais tarde, quando o pai chegava, vinham todos esperá-lo,
precipitando-se para o beijar, tirar-lhe o sobretudo e esvaziar-lhe as algibeiras;
ou, então, juntavam-se ao pé das janelas da "nursery"(aposentos reservados às
crianças) e empurravam-se, alegremente, a fim de olhar para fora. Numa
palavra, pareciam sempre agradàvelmente ocupados, como sucede, em geral,
numa grande família.
Sara gostava muito deles e batizara-os, a todos, com nomes românticos,
tirados dos seus livros preferidos: elas eram Eldelberta, Violeta, Liliana,
Rosalinda e Verónica; aos rapazes chamava Vivian, Guy e Heitor. Uma vez por
outra, em lugar de dizer a "Grande Família", chamava-lhes "os Montmorency".
Certa noite, aconteceu uma coisa muito engraçada, embora, pensando
bem, não houvesse motivo para rir.
Alguns dos Montmorency deviam ir a um baile infantil e, justamente
quando Sara passava em frente da porta, saiam eles para entrar na
carruagem. Verónica e Rosalinda, com vestidos de tule bordado, subiram
primeiro, e Guy, que tinha cinco anos, subiu depois. Era um amor o rapazinho,
corado, de olhos azuis e com uma linda cabecinha redonda, toda encaracolada.
Sara esqueceu-se do cesto que transportava, do casaco velho que a cobria e
de tudo o mais, para parar e admirar, durante um minuto, aquela criança
encantadora.
A festa do Natal estava próxima, e tinham contado aos pequenos
Montmorency muitas histórias de crianças pobres que, não tendo mãe nem pai
para acarinhá-las, nunca recebiam presentes e sofriam frio e fome. Em todas
estas histórias havia sempre meninos e meninas felizes e amimados, que
encontravam, por acaso, as crianças pobres, e se apressavam a dividir com
elas o seu dinheiro e os seus brinquedos. Às vezes levavam-nas, mesmo, a
jantar com eles nas suas casas.
Naquela tarde, Guy tinha-se comovido até às lágrimas com uma história
deste gênero e ardia em desejos de encontrar uma daquelas crianças
desgraçadas, para lhe dar um xelim (Moeda inglesa) novinho que possuía;
estava convencido de que, com um xelim tão reluzente, a criança pobre nunca
mais precisaria de nada. Quando saiu com as irmãs, para o baile, levava a bela
moeda de prata no bolso das calças à maruja e,justamente ao chegar à
carruagem, viu Sara com o seu vestido muito usado e o cesto já velho, parada
no passeio úmido, a olhar para ele com uma espécie de avidez.
Guy pensou logo que ela talvez não comesse havia muito tempo. Era
pequenino de mais para compreender a dor que feria o coração de Sara, ao
pensar na doce vida familiar daquela criança, e a alegria que sentiria se o
pudesse abraçar e beijar com todas as suas forças. Só viu uma coisa: que era
muito magra, tinha os olhos pisados e um vestido feio.
Meteu imediatamente a mão na algibeira, tirou o xelim e aproximou-se
de Sara com um sorriso gentil.
- Toma, pobre pequena! - disse ele. – Aqui tens o meu xelim novo. É para
ti!
Sara estremeceu e, pela primeira vez, compreendeu que se parecia
realmente com as crianças pobres que, noutro tempo, paravam para a ver
descer da carruagem. Então, era ela quem distribuía moedas.
Corou e empalideceu violentamente e, durante um segundo, julgou que
não teria coragem de aceitar o xelim de Guy.
- Oh Não ! - exclamou ela. – Não! Muito obrigada! Não posso aceitar.
A sua voz parecia-se tão pouco com a dos pequenos mendigos vulgares,
e a sua atitude era tão perfeitamente a de uma criança bem educada, que
Verónica (que na realidade se chamava Janet) e Rosalinda (cujo verdadeiro
nome era Nora) se debruçaram para escutar.
Mas Guy não queria desistir de ser generoso. Colocou a moeda na mão
de Sara.
-Sim, minha pobre menina, deve aceitar - disse ele, com energia. Poderá
pagar o jantar, porque o xelim está inteiro!
Havia tanta candura e bondade no seu rostozinho honesto, e era tão
fácil adivinhar que uma recusa o deixaria desolado, que Sara compreendeu que
era preciso aceitar, sob pena de ser cruel. Dominando o seu orgulho, com as
faces em fogo, disse:
-Muito obrigada. O menino é bom, muito bom e gentil!E enquanto ele
subia, contentíssimo, para a carruagem, ela afastou-se, procurando sorrir,
embora o coração lhe batesse desordenadamente e os seus olhos estivessem
rasos de lágrimas. Sabia muito bem que estava pobremente vestida mas, até
então, nunca pensara que a pudessem tomar por uma mendiga!
A carruagem dos Montmorency pôs-se em andamento e, já dentro, as
três crianças que a ocupavam conversavam animadamente.
- Oh! Donald (era este o verdadeiro nome de Guy), porque deste tu o teu
xelim a esta pequenina?- perguntou Janet, num tom de censura. - Tenho a
certeza de que não é uma pedinte.
-É possível que seja, mas, na verdade, não tem o ar nem as maneiras
dos mendigos - disse Nora.
- E depois, ela não pediu nada - continuou Janet. - Eu até estava com
medo que ela se zangasse. Tu compreendes, Donald, ninguém gosta de ser
tomado como pedinte, quando não é.
- Ela não ficou zangada - retorquiu Donald um pouco perturbado, mas
não convencido. Riu-se para mim e disse que era um menino muito bom e
gentil. E é verdade! - concluiu ele, com vigor:Dei o meu xelim novinho, todo
inteiro.Janet e Nora trocaram um olhar.
- Uma verdadeira mendiga não teria falado assim - afirmou Janet.Teria
dito "Muito obrigada; meu bom senhor...e teria feito uma reverência.”
Sem que Sara pudesse suspeitar, os membros da "Grande Família", a
partir desse dia, começaram a dispensar-lhe o mesmo interesse que ela lhes
dispensava a eles. As cortinas das janelas levantavam-se, quando ela passava,
e à noite, junto do fogão, discutia-se a seu respeito.
- Serve de criada no Colégio de Miss Minchin- dizia Janet.Deve ser órfã.
Ninguém parece ocupar-se dela. Mas, embora use vestidos rotos, não é uma
mendiga.
Em consequência disto, Sara passou a ser conhecida, entre as crianças,
pela "pequenina que não é mendiga" - nome bastante longo e que os mais
novinhos pronunciavam a seu modo, de uma forma pitoresca.
Sara conseguiu furar o xelim de um lado ao outro, mesmo ao meio;
enfiou-lhe um bocado de fita estreita e trazia-o pendurado ao pescoço. A sua
afeição pela "Grande Família" tornou-se maior depois deste incidente como, de
resto, sucedia com tudo, fosse o que fosse a que pudesse afeiçoar-se. Estimava
Becky cada vez mais, e esperava, com impaciência, as duas manhãs de cada
semana em que dava lição de francês às alunas mais novinhas. As pequeninas
gostavam muito de Sara; todas queriam estar mais perto dela e dar-lhe a mão.
Senti-las muito perto de si, confortava o coração da pobre criança. Tinha
conseguido domesticar de tal maneira os pardais, que, mal subia à mesa e
aparecia na trapeira,assobiando docemente, ouvia logo um rumor de asas e
um pipilar alegre. Um bando de passarinhos precipitava-se para o telhado, para
vir "conversar" com a sua amiguinha e fazer honra às migalhas que ela lhes
deitava.
Quanto a Rodilard, tinha tanta confiança nela que, de tempos a tempos,
fazia-se acompanhar da esposa e por um ou dois dos filhos. Sara falava-lhe,
qualquer pessoa iria jurar que ele a compreendia.
Sara experimentava agora um sentimento um tanto complexo por Emily
que, insensível a todas as suas vicissitudes, fitava sempre as pessoas e as
coisas com o mesmo olhar indiferente. Esse sentimento nascera numa hora de
grande desespero. Sara tinha querido acreditar, ou, pelo menos, fingia
acreditar, que Emily a compreendia e partilhava os seus desgostos. Custava-
lhe confessar a si própria que a sua única companheira não sentia nem ouvia
coisa alguma. De tempos a tempos, colocava a boneca em cima da mesa,
sentava-se no banco, em frente dela, e imaginava tantas coisas, que, a pouco
e pouco, a sua fisionomia exprimia uma espécie de pavor, principalmente
quando, ao anoitecer, o silêncio era apenas perturbado pelos guinchos e
corridas da família Rodilard.
Sara queria persuadir-se de que Emily era uma espécie de fada benéfica
que velava por ela. Algumas vezes, quando a sua imaginação estava mais
excitada, a pequenina falava à boneca quase com a certeza de que ela ia
responder-lhe. Mas Emily ficava sempre impassível.
- Apesar de tudo - dizia Sara, para se consolar - eu própria não respondo,
muitas vezes, quando me falam. Quando as pessoas dizem disparates, o
melhor que há a fazer é não responder nem uma palavra e olhar para elas,
enquanto fazemos, intimamente, reflexões. É um bom sistema, que exaspera
Miss Minchin e que assusta um pouco Miss Amélia e a todas as "grandes".
Quando não nos encolerizamos, os outros compreendem logo que somos os
mais fortes, visto que conseguimos dominar-nos, ao passo que eles não, e
dizem coisas estúpidas de que se arrependem em seguida. A cólera é uma
grande força; mas o sentimento que ajuda a dominar-nos, é ainda mais forte.
Nada é melhor do que não responder aos nossos inimigos. Eu quase nunca lhes
respondo. Pode ser que Emily vá ainda mais longe... Não responde nem mesmo
aos amigos. Guarda tudo no coração!
Mas, apesar de toda a boa vontade de Sara, estes argumentos não a
satisfaziam inteiramente. Quando, depois de um longo dia de trabalho,
passado a correr de um lado para o outro, à chuva e ao frio, ela entrava, toda
molhada, com fome, o corpo transido e as pernas trôpegas; quando não havia
recebido como agradecimento senão más palavras e maus olhares; quando a
cozinheira tinha sido grosseira e Miss Minchin detestável, e as alunas riam,
disfarçadamente, ao ver o seu vestido muito curto e os sapatos rotos, então, o
coração torturado e desolado de Sara recusava deixar-se consolar diante do
rosto impassível de Emily.
- Eu morro, tenho a certeza - murmurava ela. Os grandes olhos de Emily
fitavam a parede, vagamente.
- Não posso suportar mais esta vida - dizia a pobre criança, toda
tremula. Tenho frio, estou encharcada, morro de fome. Andei todo o dia sem
parar e ralharam-me desde manhã à noite. E porque não foi possível encontrar
o que a cozinheira queria, privaram-me de jantar. Na rua, riem-se de mim
porque os meus sapatos estão tão velhos, que me fazem escorregar e cair.
Fiquei toda coberta de lama. E riem-se! Ouves-me?
Olhava sempre para os olhos de vidro e para a cara de porcelana. O
desespero apoderou-se dela. Com uma pancada seca da sua mãozinha
empurrou Emily; Emily caiu no chão e Sara, que nunca chorava, rompeu num
aflitivo soluçar.
- Não passas de uma boneca - gritava ela
nervosamente. - Não ouves, não tens coração, não
snntes nada! Não passas de uma boneca!
-Emily estava no chão, com as pernas dobradas sobre a cabeça, mas
conservava-se calma e imperturbável. Sara escondeu a cabeça nos braços. Na
parede os ratos perseguiam-se, a chiar: certamente Rodilard estava castigando
algum dos filhos.
Pouco a pouco, as lágrimas de Sara secaram.
Era tão pouco extraordinário abandonar-se assim que ela própria estava
surpreendida. Não tardou a erguer a cabeça e a olhar para Emily, que parecia
olhá-la também e, na realidade, Sara julgou ver uma expressão de simpatia
nos seus olhos azuis.
Cheia de remorsos, levantou a boneca. Os seus lábios sorriram...
- Tu não podes ser de outra maneira - murmurou ela, com um suspiro de
resignação - tal como Lavínia e Jessie não podem mudar o seu estúpido
cérebro. Nós não somos todos iguais!
E, depois de ter beijado a boneca e de lhe haver arranjado as roupas, foi
colocá-la na cadeira.
-Sara desejava ardentemente que a casa vizinha tivesse habitantes. A
trapeira do sótão dessa casa ficava muito perto da sua, e parecia-lhe que seria
uma grande consolação para si, ver, um dia, aquela janela abrir-se e aparecer
uma cabeça na estreita abertura.
"Se fosse uma cara bondosa e sorridente “- pensava ela - eu poderia
dizer-Lhe "Bons dias...”
E, depois disso, aconteceriam, talvez, muitas coisas agradáveis... Mas é
provável que ali ficassem apenas instalados os criados.”
Certa manhã em que regressava a casa o mais depressa que podia,
depois de ter corrido, da mercearia para o talho, do talho para a padaria e da
padaria para outros sítios onde a mandaram, ela viu, com grande satisfação,
que, durante a sua ausência uma carroça de mudanças tinha parado em frente
da casa pegada. As grandes portas de entrada estavam abertas de par em par,
e alguns homens, de mangas arregaçadas, iam e vinham carregados de
móveis e grandes embrulhos.
"Até que enfim!” - disse ela para consigo. A casa foi alugada! Agora,
espero que hei-de ver, muito brevemente, uma cara simpática na trapeira
vizinha da minha!"
Sentia, quase, desejo de se juntar ao grupo de espectadores que se
entretinham a observar os homens que faziam a mudança. Parecia-lhe que, se
pudesse lançar um olhar sobre o mobiliário, faria mais fàcilmente uma idéia
dos novos locatários.
"As mesas e as cadeiras de Miss Minchm parecem-se com ela - pensara
Sara. - Isso me deu logo na vista, quando cheguei, e, no entanto, era ainda
bem pequena! Disse-o ao papá e ele riu, mas era de minha opinião. Tenho a
certeza de que a "Grande Família" tem boas poltronas, sofás confortáveis, e já
notei que o papel das paredes, com flores cor-de-rosa, se harmoniza
maravilhosamente com o seu caráter tão alegre. Tudo o que está naquela casa
é atraente e agradável como eles."
No mesmo dia, um pouco mais tarde, tornou a sair para ir buscar salsa,
e, ao chegar à rua, o coração bateu-lhe com mais força. No passeio estavam
alguns móveis e, entre eles, uma mesa de madeira de teca( nome de um
gênero de árvores da Índia), admiràvelmente esculpida, com duas cadeiras
iguais e um biombo coberto com um rico bordado oriental. A vista daqueles
objetos quase fez desfalecer a pobre criança.
Na casa paterna, lá longe, na Índia, havia móveis idênticos! E entre as
coisas de que Miss Minchin se tinha apoderado, havia, justamente, uma
secretária de teca oferecida a Sara pelo pai.
"São belos móveis!” - pensou ela. - Móveis suntuosos. Devem pertencer
a uma família rica e distinta.
As carroças de mudança sucederam-se sem interrupção, durante todo o
dia, e Sara teve, por várias vezes, ocasião de ver o que elas transportavam.
Pôde assim, convencer-se de que não se enganava, ao supor que os seus
novos vizinhos eram muito ricos. Todo o mobiliário era soberbo e a maior parte
dos móveis orientais. Sara viu sair das carroças tapetes espessos e, por fim,
um magnífico Buda, num nicho de incomparável beleza.
- Certamente - observou Sara - alguns dos membros desta família
viveram na Índia. Gostam das lindas coisas orientais. Estou bem contente...
Pensarei que são meus amigos, mesmo que não veja ninguém na trapeira.
À noite, à hora em que recebia o leite (pois nenhuma tarefa lhe era
poupada), Sara ficou ainda mais satisfeita. O papá da "Grande Família"
atravessou a praça e subiu os degraus da entrada do palacete novamente
aberto, com o à-vontade de alguém que está em sua casa e tenciona subir
muitas vezes aquelas escadas. Demorou-se lá dentro muito tempo e, de vez
em quando, vinha dar ordens aos homens da mudança. Evidentemente, devia
ser amigo íntimo dos novos locatários.
"Se houver crianças - calculou Sara - as da " "Grande Família" virão
brincar com elas, e quem sabe se não subirão ao sótão, para se divertirem?”
Naquela noite, Becky, depois de acabar a sua tarefa, veio ter com a sua
companheira de infortúnio e deu-Lhe notícias:É um senhor indiano que vem
viver aqui para o lado - disse ela. - Não sei se é preto ou amarelo, mas é
mesmo hindu, muito rico e decente; o papá da "Grande Família" é o seu
procurador. O tal senhor teve toda a sorte de desgostos e, por isso, é que está
doente e triste. Oh miss, ele adora ídolos! É, com certeza, um pagão. Eu vi um
deus de madeira dourada, que levaram lá para casa. É preciso que alguém lhe
leve um livro de orações.Sara não pôde deixar de rir.
- Becky - explicou ela - o senhor aqui do lado com certeza que não adora
essa estátua. Muitas pessoas têm outras semelhantes porque são objetos de
arte. O meu pai tinha uma magnífica, e posso afirmar-te que não a adorava.
Mas Becky preferia pensar que o novo vizinho era pagão; era mais
palpitante do que se ele fosse prosaicamente à igreja próxima, como toda a
gente.
Nessa noite, Sara ficou, durante muito tempo, a imaginar como seria o
famoso vizinho, a mulher, se por acaso a tinha, e os filhos se existissem.
Compreendeu que Becky desejava que fossem todos pretos, com
grandes turbantes e, principalmente, pagãos.
- Nunca vivi perto dos pagãos - confessara a criadita. - Gostava de saber
como eles vivem.
Passaram-se bastantes semanas sem que a sua curiosidade fosse
satisfeita; souberam, então que o novo habitante da casa vizinha não possuía
mulher, nem filhos, nem família; que era muito doente e tinha um desgosto
misterioso que parecia matá-lo lentamente.
Um dia, parou uma carruagem diante da casa; o pai da "Grande Família"
apeou-se, seguido por uma enfermeira, com a sua bata branca. Dois criados
aproximaram-se, e viu-se sair da carruagem, amparado por eles, um homem
de pele amarelada, olhos desvairados, e cujo corpo, de esquelética magreza,
desaparecia sob os abafos de peles. Os criados levaram-no quase em braços
até a casa, onde o chefe da "Grande-Família" o seguiu com ar ansioso. Pouco
depois, chegou o carro do médico, e este, por sua vez, entrou também.
- Sara, há um senhor amarelo que habita aqui ao lado - murmurou Lottie,
durante a lição de francês. - Parece-te que seja chinês? Dizem que os Chineses
têm a pele amarela.
- Não, não é chinês - respondeu Sara, brevemente. - É um senhor que
está muito doente. Vamos, Lottie, voltemos ao tema. Como se diz: Não, senhor,
eu não tenho o canivete do meu irmão!
E Foi assim que o cavalheiro da Índia apareceu no horizonte de Sara.
RAM DASS
Embora fosse muito sombria e triste, a praça onde estava situado o
Colégio Minchin tinha, por vezes, lindos poentes. Viam-se apenas parcialmente
por entre chaminés, sobre os telhados. Da cozinha não se via nada, além de
uma claridade dourada ou rosada, que aquecia as paredes durante alguns
segundos, ou um reflexo esbraseado nos vidros da janela. Entretanto, havia no
colégio um único lugar donde se podia admirar à vontade todo o esplendor do
pôr-do-sol - as grandes nuvens de ouro que apareciam no poente e outras de
púrpura, bordadas a prata, ou ainda aquelas, muito pequeninas, que, às vezes,
atravessavam o céu, como se fosse um bando de pombas. Esse lugar donde se
podiam contemplar todas estas maravilhas e respirar um ar mais fresco, era a
janela do sótão.
Quando a praça começava a escurecer e as árvores se transformavam
como por encanto, Sara sabia que se preparava a magia celeste; e se lhe era
possível sair da cozinha nesse momento, subia as escadas, a correr, trepava
para a mesa e debruçando-se tanto quanto podia na trapeira, aspirava
amplamente o ar e olhava em volta de si.
Era como se o céu e a paisagem dos telhados lhe pertencessem; a maior
parte das outras janelas estavam fechadas, e se algumas estavam semiabertas
para deixar entrar o ar, não aparecia lá ninguém.
Ela ficava ali, admirando ora a bela cúpula azul, que parecia tão
próxima, ora a maravilha do poente e das nuvens que se aglomeravam e se
dissolviam passando do carmim ao cor-de-rosa, do lilás ao cinzento, ou
formando cadeias de montanhas, separadas por lagos cor de turquesa, de jade
ou de âmbar. Promontórios sombrios avançando em mares luminosos e pontes
lançadas sobre margens mágicas.
Sara chegava a convencer-se de que, por um pouco, poderia atingir
aquelas regiões encantadas e passear ali até ao momento em que as nuvens a
envolvessem e a levassem... Nunca vira nada tão bonito como o quadro que
contemplava na sua trapeira enquanto os passarinhos saltitavam à sua volta,
nas ardósias dos telhados. E tinha a certeza de que naqueles momentos, eles
próprios, subjugados pelo esplendor do espetáculo, punham maior doçura no
seu pipilar.
Poucos dias depois do cavalheiro da Índia se ter instalado na sua nova
habitação, houve um desses fins de dias maravilhosos; e como, por feliz
coincidência, o trabalho estava feito e ninguém a encarregara de qualquer
tarefa ou recado urgente, Sara pôde escapar-se mais cedo que de costume e
subir ao seu quarto.
Trepou à mesa e pôs-se à janela. Era deslumbrante. Havia no poente
uma verdadeira maré alta de ouro em fusão; e as silhuetas pequeninas dos
pardais recortavam-se, escuras, sobre um céu de topázio líquido.
- É o mais belo dos crepúsculos – murmurou ela. - É tão belo, que chego,
quase, a ter medo, como se estivesse para acontecer alguma coisa
extraordinária... Sinto-me sempre assustada... quando o céu tem um tal
esplendor...
Voltou a cabeça, bruscamente; parecia-lhe ter ouvido um ruído ali
mesmo ao pé - um ruído estranho, como se fosse um gritinho agudo e tremulo,
que dava a impressão de vir da trapeira vizinha. Sara viu, então, que não era
só ela a admirar o céu! Uma cabeça e uns ombros haviam surgido na outra
janela, mas não pertenciam nem a outra menina, nem a uma criada; e Sara,
com o coração a bater fortemente, reconheceu a tez morena, os olhos
brilhantes e o turbante de imaculada brancura dos indígenas do Industão.
"Um "lascar!”(marinheiro indígena)pensou ela imediatamente. O grito
que chamara a sua atenção fora dado por um macaquinho que o índio
segurava nos braços, com mil cautelas, e que se aconchegava carinhosamente
a ele.
O índio, por sua vez, olhava para Sara, e ela teve a impressão de que os
seus olhos estavam tristes e que o afastamento do país natal o fazia sofrer
cruelmente. Ele devia ter sede de luz e calor, e fora essa razão por que viera,
como ela, admirar o sol, que tão raramente via na brumosa Inglaterra. Sara
olhou para o índio durante um minuto, depois lhe sorriu. Sabia, por experiência
própria, como um sorriso, mesmo vindo de um desconhecido, pode ser
reconfortante.
O sorriso de Sara reconfortou-o, incontestavelmente, porque a sua
fisionomia animou-se e, por sua vez, ele respondeu-lhe com um tão belo
sorriso, que os seus dentes, muito brancos, iluminaram-lhe o rosto como um
clarão.
Os olhos de Sara, tão cheios de simpatia, aqueciam sempre a alma dos
que se sentiam cansados e tristes.
Foi, sem dúvida, nesse momento, que o índio largou o macaquinho. Este,
malicioso como todos os da sua espécie e, provàvelmente, excitado pela
própria vista de Sara, fugiu ao dono, abalou pelo telhado que atravessou numa
corrida, saltou para o ombro da pequenina e de lá para o sótão. Uma
gargalhada de Sara acolheu este alto feito. Mas era preciso entregar o fugitivo
ao dono. Como havia de ser? O macaco deixar-se-ia apanhar por Sara, ou
procuraria fugir, perdendo-se no labirinto dos telhados? Isso é que era
aborrecido...
O animal pertencia, certamente, ao cavalheiro da Índia, que devia gostar
muito dele!
Sara voltou-se para o "lasca", encantada com a idéia de se lembrar
ainda do dialeto hindu, que aprendera com o pai. Podia, assim, fazer-se
compreender.
- Parece-lhe que ele se deixará apanhar? - perguntou ela.
Uma expressão de espanto e, ao mesmo tempo, de satisfação, se
estampou no rosto trigueiro; parecia, ao pobre homem, que os seus deuses
intervinham, em pessoa, e que aquela voz tão doce, descia diretamente do
céu. Sara compreendeu que ele já convivera com europeus.
O índio desfez-se em agradecimentos respeitosos: o macaquinho era
muito gentil e nunca mordia, mas dificilmente deixava alguém aproximar-se
dele. Saltava de um lado para outro, mais rápido que um relâmpago. Era muito
desobediente. Conhecia-o como se ele fosse seu filho e conseguia, algumas
vezes, fazer-se obedecer, mas não sempre. Se a jovem senhora lho permitisse,
Ram Dass atravessava o telhado, entrava pela janela e agarraria o atrevido
animalzinho... Mas aquele pedido era uma grande audácia da sua parte e,
naturalmente, a jovem senhora recusaria...
Sara, porém, consentiu imediatamente.
- Não se demore - disse ela. - O macaco salta de um lado para outro,
como se tivesse medo.
Ram Dass, com a agilidade de um gato, passou ràpidamente de uma
janela para a outra. Escorregou na trapeira e caiu de pé, sem fazer o menor
barulho; saudou profundamente Sara e depois, tendo fechado a janela, como
precaução, começou a perseguir o fugitivo. A perseguição não demorou muito
tempo. O macaco, que parecia muito divertido, não tardou a saltar para o
ombro de Ram Dass; uma vez empoleirado ali, sentou-se a guinchar, e passou
o bracinho magro em volta do pescoço do seu guarda.
Ram Dass agradeceu respeitosamente a Sara. Ela bem tinha
compreendido que o índio notara, logo à primeira vista, o aspecto miserável do
quarto, mas fazia de conta que não vira coisa alguma e continuava a falar-lhe
como se ela fosse a filha de um rajá. Os poucos minutos que durou ainda a sua
visita, depois de ter apanhado o macaquito, foram consagrados a exprimir a
Sara o seu reconhecimento e dedicação. Aquele maroto - dizia ele, acariciando
o macaco - não era tão mau como parecia, e o dono, que estava doente,
divertia-se com ele algumas vezes. Ficaria contrariadíssimo se o seu animal
favorito se perdesse. Depois, Ram Dass fez ainda uma reverência e foi-se
embora, pela janela e pelo telhado, com a mesma ligeireza que o próprio
macaco.
Quando ele partiu, Sara ficou algum tempo a sonhar, de pé, no meio do
quarto. A vista do vestuário do índio, as suas maneiras respeitosas, tudo
acordara nela recordações muito queridas e dolorosas.
Como era estranho pensar que ela própria, Sara, a "vitima expiatória, a
quem a cozinheira dirigira palavras grosseiras uma hora antes, vivia, há poucos
anos ainda, rodeada por servidores semelhantes a Ram Dass que a saudavam
quando ela passava e cujas frontes se inclinavam quase até ao chão, quando
ela lhes falava. Era verdadeiramente um sonho; um sonho lindo, que não
recomeçaria mais... Como fora possível produzir-se na sua vida tal
transformação? Adivinhava perfeitamente o futuro que Miss Minchin lhe
preparava. Enquanto não tivesse a idade necessária para ser professora,
utilizá-la-iam como criada, exigindo-lhe, ao mesmo tempo, que não esquecesse
nada do que tinha aprendido e que, milagrosamente, aumentasse ainda os
seus conhecimentos. Passava a maior parte dos serões a estudar e, de longe
em longe, submetiam-na a uma espécie de exame; se este não fosse
inteiramente satisfatório, isso lhe valeria ser severamente repreendida. No
fundo, Miss Minchin sabia muito bem que Sara tinha um tão grande desejo de
se instruir, que era inútil dar-Lhe mestres: os livros bastavam; tinha a certeza
de que ela assimilaria todo o seu conteúdo e que, dentro de alguns anos,
poderia começar a ensinar. E, então, encarregá-la-iam de todos os trabalhos da
aula, como a encarregavam, agora, de todo o serviço da casa. Dar-lhe-iam
vestuário um pouco mais decente, mas Sara sabia que seria sempre feio e que
ela teria sempre o ar de uma criada. Eis o que a esperava no futuro, e Sara
pensava em tudo isto, de pé e silenciosa, no meio da sua água-furtada.
Depois veio-lhe um pensamento, que lhe fez corar um pouco as faces e
brilhar mais os olhos.O seu corpinho delgado endireitou-se e ergueu a cabeça.
"Suceda o que suceder - pensou -, há qualquer coisa que não pode
mudar. Eu ando esfarrapada, coberta de andrajos, mas na minha alma e no
meu coração sou sempre uma princesa. Não teria grande merecimento em
proceder como uma princesa, se andasse vestida de ouro; tenho muito mais,
sendo como sou atualmente. Maria Antonieta, por exemplo,quando estava na
prisão, com um pobre vestido preto, remendado, e os cabelos todos brancos
quando todos a insultavam e lhe chamavam a viúva, era ainda mais rainha do
que no tempo em que vivia feliz e alegre no meio da sua corte. É nesse tempo
de martírio que eu mais a admiro. As multidões que rugiam, não lhe faziam
medo; ela era mais forte que toda essa gente, mesmo quando lhe cortaram a
cabeça. "
Este pensamento não era novo para Sara e já a havia consolado muitas
vezes; nesses dias, a pequenina ia e vinha pela casa, com um ar misterioso
que Miss Minchin não sabia explicar e que a irritava, por que tinha a impressão
de que Sara vivia, interiormente, uma vida que a elevava acima de todos os
que a cercavam. Dir-se-ia que, nessas ocasiões a pequena não ouvia as más
palavras que lhe dirigiam ou, pelo menos, que essas palavras não a
impressionavam. Por vezes, no meio de uma repreensão dura e cruel, Miss
Minchin sentia fixar-se nela aquele olhar que não era de uma criança e parecia
iluminado por um sorriso de altivez. Miss Minchin estava longe de imaginar
que, nesses momentos, Sara dizia consigo própria:
"Tu ignoras que insultas uma princesa e que, se eu quisesse, podia
mandar-te para o cadafalso com um simples gesto da minha mão. Mas eu
poupo-te, unicamente porque sou uma princesa e tu... tu não passas de uma
pobre criatura estúpida, vulgar e má, incapaz de proceder de outra forma."
Esta dupla existência imaginária era, para Sara, não somente uma
distração, mas também um verdadeiro conforto e, mesmo, um preservativo
moral, porque, enquanto o seu espírito estava assim ocupado, a baixeza e
maldade dos que a rodeavam não exerciam nela influência alguma.
- Uma princesa é sempre bem educada.
E quando as criadas, regulando o seu procedimento pelo de Miss
Minchim, lhe davam ordens insolentemente, Sara erguia a cabeça e respondia-
lhes com uma cortesia singular, a tal ponto, que elas, esquecendo as suas
próprias palavras, grosseiras e más, calavam-se e ficavam a olhar, sem
compreender.
- Tem uns ares e umas maneiras como se chegasse agora mesmo de
Buckingham Palace (palácio real de Londres), esta garota - dizia, às vezes, a
cozinheira, em voz baixa.
- Eu não a poupo, mas reconheço que ela é sempre bem educada. Nunca
se esquece de dizer: "Se faz favor...”, "Quer ter a bondade?...”,"Peço-lhe
desculpa...”, "Não a incomodo?...”. E diz, estas bonitas frases a propósito de
tudo, na cozinha, como se lhe não custasse nada!
No dia seguinte àquele em que travara conhecimento com Ram Dass,
estava Sara na aula, com as suas alunas. A lição terminara e ela reunia os
livros de exercícios de francês, pensando nos vários trabalhos que muitas
pessoas de sangue real tinham sido forçadas a fazer, escondidas sob qualquer
disfarce: Alfredo, o Grande, entre outros, que deixou queimar os bolos e
recebeu uma bofetada da mulher do vaqueiro. Que susto devia ter tido esta
mulher, quando soube quem era a pessoa que ela esbofeteara! E Miss Minchin,
que pensaria ela, se descobrisse que a pobre Sara, cujos pés andavam quase
de fora, era uma princesa verdadeira?... A esta idéia, os olhos da pequena
brilhavam com um fulgor estranho, que exasperava a diretora. Era de mais;
Miss Minchin não pôde conter-se e, como estava muito perto de Sara, fez, sem
o saber, o mesmo que a mulher do vaqueiro: esbofeteou-a. Sara estremeceu; a
bofetada fê-la despertar do sonho e, durante um segundo, o seu coração
deixou de bater. Depois, involuntáriamente, soltou uma gargalhada breve.
- De que te ris, impertinente - exclamou Miss Minchin.
Foram precisos alguns momentos para Sara se dominar e lembrar-se de
que era uma princesa. As suas faces estavam vermelhas e ela sentia como que
uma queimadura no lugar onde lhe tinham batido.
- Estou a refletir! - respondeu ela.
- Pede-me perdão imediatamente - ordenou Miss Minchin.
Sara teve um segundo de hesitação.
-Peço-lhe perdão de ter rido, porque foi, talvez, uma indelicadeza -
respondeu ela , mas não me desculparei de refletir.
- Como te atreves tu a refletir?! - interrogou Miss Minchin. - Em que
refletes tu?
Jessie sufocou uma gargalhada e tocou no braço de Lavínia. Todas as
alunas tinham levantado a cabeça; divertiam-se sempre quando Miss Minchin
ralhava com Sara, porque esta nunca mostrava medo e as suas respostas eram
sempre extraordinárias. E naquele dia, também não parecia assustada, embora
estivesse vermelha e os olhos lhe brilhassem mais do que nunca.
- Pensava - respondeu Sara, delicadamente - no que aconteceria se eu
fosse uma princesa e a senhora me tivesse esbofeteado. Pensava também que,
se eu o fosse, na realidade, poderia dizer e fazer não importa o quê, porque a
senhora não se atreveria a levantar, para mim, nem a ponta de um dedo. E
imaginava que surpresa e que susto a senhora teria, se descobrisse de
repente...
Sara vivia tão completamente o seu sonho e falava com tal convicção,
que a própria Miss Minchin se sentiu impressionada. Aquela mulher de
inteligência acanhada acabava de perguntar a si própria se a ingênua Sara não
escondia algum poder misterioso.
- O quê? - gritou ela. - Se eu descobrisse o quê?
- Que eu sou realmente uma princesa - disse
Sara com a maior calma - e que posso fazer tudo quanto quiser.
Os cinqüenta pares de olhos fixos nesta cena abriram-se
desmedidamente.Lavinia debruçou-se sobre a estante para não perder nada.
- Sobe imediatamente para o teu quarto - exclamou Miss Minchin, quase
sem poder falar. Saiam da aula vamos, meninas, continuem a estudar!
Sara fez uma pequena reverência.
- Desculpe-me ter rido, se fui incorreta disse ela.Depois saiu, deixando
Miss Minchin a debater-se contra uma fúria impotente, e as alunas a segredar
por detrás dos cadernos.
-Viram a cara dela? Viram aquela fisionomia extraordinária?-disse Jessie,
incapaz de se dominar por mais tempo. -Pois bem, Eu não ficaria surpreendida
se ela fosse uma pessoa importante.E imaginem, se fosse verdade...
DO OUTRO LADO DA PAREDE
Quando se habita uma casa, metida entre outras casas, é engraçado
procurar adivinhar o que fazem e o que dizem os vizinhos, que se encontram
tão perto, do outro lado da parede. Sara gostava muito desta distração e
perguntava frequentemente a si própria o que lhe esconderia a parede que
separava o colégio de Miss Minchin da casa do cavalheiro da Índia. Sabia que a
sala de estudo ficava ao lado da biblioteca do misterioso vizinho e desejava, às
vezes, que a parede fosse bem espessa, para que o barulho que as alunas
faziam depois das aulas não o incomodasse demasiado.
- Interessa-me cada vez mais - dizia ela a Hermengarda. - Contraria-me a
idéia de que o nosso barulho o fatiga. Decidi que ele será meu amigo. Não é
impossível, embora nunca nos falemos. Sonho com ele, penso nele, tenho pena
dele e, assim, tornamo-nos quase parentes. Afirmo-te que estou inquieta
quando vejo o médico vir duas vezes por dia.
- Eu não tenho muitos parentes - observou Hermengarda, com ar
pensativo - e estou bem contente por isso, porque os que tenho não me
agradam. As minhas duas tias só sabem dizer-me: "Meu Deus, Hermengarda ,
como estás gorda! Comes doces de mais!" Quanto ao meu tio, esse passa o
tempo a perguntar-me: "Em que data subiu ao trono Eduardo III?” ou então
"Quem foi que morreu com uma indigestão de lampreia?".Sara começou a rir.
-As pessoas com quem nunca falamos não podem fazer-nos perguntas
dessas - disse ela. Mas tenho a certeza de que o cavalheiro da Índia, mesmo
que te conhecesse intimamente, não te perguntaria nada disso. Eu, por mim,
gosto muito dele.
Sara sentia-se ligada aos membros da "Grande Família” porque eles
pareciam muito felizes; mas o que a atraia para o cavalheiro da Índia era o seu
ar triste e sofredor. Via-se que não estava ainda refeito de uma grave doença.
Na cozinha, onde, como é costume, as criadas conseguiam saber tudo por
meios ocultos, o novo vizinho era muito discutido. Não era hindu, mas sim
inglês, e vivera muito tempo nas Índias. Tivera um tão grande revés de
fortuna, que se julgava arruinado e desonrado para sempre. O abalo fora tão
forte, que ia morrendo de uma febre cerebral. Depois disso nunca mais tivera
saúde nem alegria, embora a roda caprichosa da fortuna desandasse, e a
grande riqueza que julgava perdida, voltasse intacta ao seu poder. A causa de
tantos desgostos tinham sido umas minas.
- Parece que eram minas de diamantes - contava a cozinheira. -As minas
são pouco seguras, principalmente as de diamantes... - e, ao falar assim,
olhava de lado para Sara, acrescentando - Sobre isto já tivemos provas...
"Ele sofreu como o pai? - pensava Sara. -Esteve doente como ele, mas
não morreu...”
Tudo isto a fazia interessar cada vez mais pelo vizinho. Quando ia fazer
compras, ao cair da noite sentia-se feliz porque dizia, de si para si: - “Talvez os
cortinados ainda não estejam corridos e eu possa avistar o meu amigo...”
Quando a praça se encontrava deserta, parava em frente da casa e, encostada
às grades, dizia-lhe baixinho " Boa noite".
"Como não pode ouvir-me - imaginava ela - talvez possa, ao menos,
sentir que penso nele. Quem sabe se os pensamentos afetuosos atravessam as
paredes, as portas e as janelas! Pode ser que tu, meu amigo da Índia, te sintas
um pouco reconfortado, sem saber por que, enquanto eu estou aqui, ao frio, a
desejar-te boa noite e melhoras para a tua saúde. Tenho tanta pena de ti -
Falava com uma voz muito doce e profunda. - Gostava que tivesses uma
"senhorazinha" para te acarinhar, como eu acarinhava o papá quando ele tinha
dor de cabeça. Gostaria de ser eu mesma a tua "senhorazinha", meu pobre
amigo... Boa noite! Boa noite! Deus te guarde" Afastava-se, sentindo-se, ela
própria, consolada. Sara estava convencida de que a sua ardente simpatia
chegaria, de uma forma ou de outra, até ao doente, quando ele estava sozinho,
sentado na sua cômoda poltrona, junto do lume, todo envolvido num longo
roupão e quase sempre com a cabeça apoiada na mão, olhando vagamente
para as chamas. A pequena tinha a impressão de que os sofrimentos daquele
homem eram causados não somente pelas provações já passadas, mas
também por um grande desgosto atual.
"Se não fosse assim - pensava ela - não estaria tão abatido e triste, visto
ter recuperado toda a sua fortuna e saber que se curará de todo, com o tempo.
Tenho a certeza de que há qualquer outra coisa".
Se havia, realmente, outra coisa - e sobre esse ponto as criadas não
tinham conseguido saber nada, Sara estava persuadida de que o pai da
"Grande-Familia" (o Sr. Montmorency, como ela lhe chamava) sabia tudo. O
Sr.Montmorency vinha visitar muitas vezes o cavalheiro da Índia, e a
Sra.Montmorency e as crianças também, embora menos frequentemente. O
doente parecia ter predileção pelas duas mais velhas, Janet e Nora, aquelas
que se tinham indignado quando o seu irmãozinho Donald dera o xelim a Sara.
Era evidente que ele gostava muito de crianças e talvez, particularmente, das
meninas.
Janet e Nora retribuiram-lhe a afeição e esperavam sempre com
impaciência as tardes em que lhes era permitido atravessar a praça e ir visitar
o seu velho amigo, como duas meninas bem educadas. Estas visitas eram
sempre curtas, como verdadeiras visitas de cerimônia, porque ele estava
doente.
- Coitado! - explicava Janet. - Diz sempre que o alegramos. Nós
procuramos alegrá-lo suavemente.
Janet era a mais velha e dirigia o ranchinho de irmãos e irmãs. Era ela
quem decidia se podiam pedir ao cavalheiro da Índia que lhes contasse alguma
história bonita do país das florestas e dos tigres; era ela quem dava conta do
momento preciso em que ele começava a sentir-se fatigado, ou compreendia
ter chegado o momento de se retirarem na ponta dos pés e irem dizer a Ram
Dass que voltasse para junto do patrão. Todas as irmãzinhas adoravam Ram
Dass e lamentavam vivamente que a sua absoluta ignorância da língua inglesa
as privasse de tantas histórias maravilhosas que ele poderia contar-lhes.
O cavalheiro da Índia chamava-se, na realidade, Carrisford; e Janet tinha
contado ao Sr. Carrisford o seu encontro com a "pequena que não era
mendiga". Esta história interessara-o imenso, e o seu interesse aumentara
ainda quando ele teve conhecimento, pelo fiel Ram Dass, da fuga do seu
macaco favorito. Ram Dass fizera-lhe uma descrição impressionante do sótão
miserável, das paredes esburacadas, da grelha do fogão, toda ferrugenta, e do
catre que fazia as vezes de leito.
- Carmichael - dissera o Sr. Carrisford ao pai da "Grande Família",
pergunto a mim próprio quantas mansardas semelhantes se encontrarão nas
casas desta praça, e quantas desgraçadas criaditas, ainda crianças, dormem
em camas como aquela, enquanto eu me volto, e torno a voltar, sobre as
minhas almofadas de sumaúma, esmagado pelo peso desta fortuna, que, na
sua maior parte, me não pertence.
- Meu caro amigo - respondeu alegremente Carmichael-, quanto mais
depressa deixar de se atormentar assim, mais depressa melhorará. Mesmo que
possuísse todos os tesouros da Índia não poderia remediar todas as misérias
deste mundo e, admitindo mesmo que chegava a mobiliar confortàvelmente
todas as mansardas desta praça, isso não passaria de uma gota de água no
oceano.
Carrisford, com os olhos fixos no belo fogo que ardia no fogão, mordeu
os dedos, nervosamente.
- Parece-lhe - disse ele, lentamente , parece-lhe possível que a outra
criança em que eu penso de noite e dia, esteja reduzida a uma existência tão
miserável como a dessa pobre pequenina aqui ao lado?
Carmichael olhava para ele com pena; sabia que não havia nada pior
para a saúde física e moral do seu amigo do que principiar a encarar sob esse
novo aspecto aquele assunto, muito íntimo, em que falava sempre com ele.
-Se a pequena pensionista de Madame Pascal, em Paris, é a criança que
procura - disse ele com calma, parece ter sido confiada a pessoas capazes de a
tratarem e amimarem; adotaram-na por ela ter sido a companheira querida da
filhinha que perderam. Não têm mais filhos, e Madame Pascal disse-me que
eram uns russos muito ricos.
- E a miserável nem sequer sabia para onde a levaram! - exclamou
Carrisford.
Carmichael ergueu ligeiramente os ombros e respondeu:
- É uma mulher superficial, mas honesta, que está encantada com a
idéia de se desembaraçar, assim, da criança a quem a morte do pai deixara
totalmente sem recursos. As mulheres deste gênero não se preocupam com o
futuro das pobres crianças que poderiam vir a ser, para elas, um pesado fardo.
Quanto aos pais adotivos, devem ter partido sem deixar vestígios.
- Mas o senhor diz sempre: "se a criança é a que eu procuro...” Não tem
a certeza. Creio que havia uma diferença de nome...
Madame Pascal pronunciou Carewe, em lugar de Crewe, mas talvez
fosse simples engano. Todos os outros sinais condiziam exatamente: uma
menina sem mãe, internada no colégio pelo pai, oficial da Índia, morto
sùbitamente, depois de ficar arruinado.
Carmichael parou, de repente, como se uma nova idéia lhe atravessasse
o espírito.
- Tem a certeza de que a criança foi internada num colégio em Paris?
Julga, realmente, que foi em Paris?
-Não tenho a certeza de coisa alguma, meu amigo! Não conheci a
criança nem a mãe. Ralph Crewe e eu fomos excelentes condiscipulos, mas
nunca mais nos vimos desde a nossa saída do colégio, até ao dia em que nos
encontramos novamente na Índia. Eu estava muito absorvido por este negócio
das minas; ele, também, sentiu-se tentado, desde o primeiro momento, e o
futuro parecia-nos tão brilhante, que perdemos um pouco a cabeça. Não
falávamos de outra coisa! Eu apenas sabia que a filha de Ralph estava num
colégio, em qualquer parte, e já nem me recordo a propósito de que foi que ele
me falou nisso.
Excitava-se, ao falar, como lhe sucedia sempre que revolvia a lembrança
da catástrofe passada. Carniichael olhava para ele com ansiedade; queria
fazer-lhe algumas perguntas indispensáveis mas, para isso, era preciso muita
calma e prudência.
-Tem razões para supor que o colégio era em Paris e não em qualquer
outra parte? - perguntou ele.
-Tenho. A mãe da pequenina era francesa e ouvi dizer que ela desejara
sempre que a filha fosse educada em Paris. Parece-me, portanto, verossímil
que a levassem para lá.
- Efetivamente-aprovou Carmichael- é mais que provável.
O cavalheiro da Índia curvou-se e bateu na testa com a mão esguia e
magra.
- Carmichael! - exclamou ele. - É preciso que eu a encontre. Se é viva,
está, com certeza, em qualquer parte. Se não tem família nem fortuna, é por
minha culpa. Como quer o senhor que eu me cure, com semelhante peso na
consciência? Esta surpresa teatral do negócio das minas realizou os nossos
sonhos mais insensatos... e a filha do pobre Ralph anda talvez a pedir esmola
pelas ruas!
- Não! Não - disse Carmichael. - Acalme-se e console-se com a idéia de
que no dia em que a encontrar, terá uma fortuna principesca para lhe entregar.
- Porque não tive a coragem de reagir quando o horizonte se nublou -
prosseguiu Carrisford, com nervosismo crescente. - Estou certo de que teria
tido mais sangue-frio se fosse só o meu dinheiro e não o de outrem que
estivesse em perigo. Aquele pobre Crewe tinha comprometido tudo quanto
possuía,até ao último "penny". Confiava em mim e era-me muito dedicado.
Morreu convencido de que eu, Tom Carrisford, o tinha arruinado... eu que
jogava o críquete com ele em Eton. Como me deve ter desprezado!
- O senhor é muito severo para consigo próprio.
-Eu não me acuso pelo fato de a empresa ter estado prestes a falir, mas
sim por ter perdido a coragem. Fugir como um ladrão, como um escroque,
porque não me atrevia a aparecer diante do meu amigo e dizer-lhe que o tinha
arruinado, a ele e à filha!
O bom Carmichael passou afetuosamente a mão sobre oombro do
doente.
- O senhor fugiu porque a razão se lhe perturbou momentâneamente,
em conseqüência das torturas morais que sofreu. Se não fosse isso, teria feito
face, corajosamente, à má fortuna. Dois dias após a sua fuga, o senhor estava
num hospital, amarrado ao leito por meio de correias, com uma febre cerebral
violentíssima, em pleno delírio. Não se esqueça disto.
Carrisford deixou pender a cabeça nas mãos.
- Ah Grande Deus, é verdade - murmurou ele. - Estava louco de
vergonha e horror. Na noite em que fugi de casa, parecia-me estar cercado de
monstros que rugiam e me apontavam com a mão.
- Isso explica tudo - disse Carmichael. - Um homem que está nesse
estado não pode raciocinar normalmente.
Carrisford abanou a cabeça:
-Quando eu tive novamente consciência dos meus atos, o pobre Crewe
estava morto e enterrado.
E eu tinha esquecido tudo, até a filha dele! Só mais tarde é que a
lembrança dessa criança surgiu na minha memória, mas de forma indistinta
como envolta em nevoeiro.
Parou e, passando a mão pela fronte, prosseguiu:
- Mesmo presentemente, a impressão que tenho é ainda vaga, quando
tento recordar-me de tudo o que sabia acerca dela. Certamente, Crewe disse-
me em que colégio a internara. Não lhe parece?
-Pode ser que ele não lhe tenha dito nada de concreto. Julgo até que o
senhor ignora o nome exato da pequena.
-Ele tratava-a sempre por um curioso nome que lhe havia dado. Quando
falava da filha, dizia: a "senhorazinha". Mas aquelas malditas minas tinham-se
apoderado de nós a tal ponto, que não falávamos de outra coisa. Se ele
nomeou o colégio... esqueci-me. E nunca mais me lembrarei...
- Vamos! Vamos - disse Carmichael. - Verá que havemos de encontrar
essa criança. Continuaremos a procurar os bons russos de madame Pascal. Ela
tinha uma vaga idéia de que habitavam em Moscovo. É talvez uma pista
interessante. Irei a Moscovo.
-Ah! Se eu pudesse viajar, acompanhá-lo-ia!- exclamou Carrisford. - Mas
não presto para mais nada senão para viver envolto em peles e a contemplar o
lume. Quando olho para ele um momento, julgo logo ver surgir a fisionomia tão
alegre de Crewe; olha para mim, como se quisesse perguntar-me qualquer
coisa. As vezes sonho com ele enquanto durmo e, então, faz-me uma pergunta,
mas em voz alta. Sabe que pergunta é, Carmichael?
- Meu Deus! Como hei-de saber? - respondeu Carmichael, comovido.
- Diz-me sempre: "Tom, velho camarada Tom, onde está a
"senhorazinha"?
Carrisford calou-se bruscamente e apertou a mão de Carmichael.
- Quero poder responder-lhe finalmente. Quero! Ajude-me a procurá-la.
Suplico-lhe: procure-a!
Ora, nessa mesma noite, do outro lado da parede, Sara conversava com
Rodilard, que tinha vindo buscar a ceia da família.
-Na verdade, é muito difícil, hoje, ser princesa - dizia ela. - Mais difícil do
que habitualmente! À medida que o tempo vai arrefecendo e as ruas estão
mais lamacentas, é cada vez mais difícil. Quando Lavínia troçou do meu
vestido cheio de nódoas, no momento em que eu atravessava a sala, veio-me
aos lábios uma boa resposta, mas dominei-me a tempo. Não se responde a
semelhante gente, quando se é uma princesa... Mas é preciso morder a
língua... e eu mordi a minha, asseguro-te! Fazia bastante frio, esta tarde,
Rodilard. E a noite vai ser mais fria ainda.
Bruscamente, Sara escondeu a cabeça entre os braços, como costumava
fazer nas suas horas de isolamento.
- Oh! Papá - murmurou ela. - Como vai longe o tempo em que eu era a
tua "senhorazinha"!
... E aqui está o que se passou, naquela noite, de cada lado da parede...
UMA VAGABUNDA
Naquele ano, o Inverno foi muito rigoroso. Em certos dias Sara
enterrava-se na neve até aos artelhos, quando ia fazer recados. Outras vezes -
o que ainda era pior- a neve, derretendo-se, misturava-se com a lama,
formando um horrível lodo, viscoso e glacial; ou então o nevoeiro era tão
cerrado, que os candeeiros das ruas ficavam acesos durante todo o dia, e
Londres tinha o aspecto daquela tarde, já longínqua, em que Sara atravessara,
de carruagem, as grandes ruas da cidade, com a cabeça apoiada no ombro do
pai.
Nesses dias, a casa da "Grande Família" parecia, mais do que nunca,
confortável e acolhedora e, pela janela da biblioteca, onde se encontrava o
cavalheiro da Índia, distinguia-se o clarão da chaminé, avivando ainda mais as
magníficas cores dos panos que recobriam as paredes. O quarto de Sara era
também mais frio e lúgubre do que nunca. Tinham acabado as madrugadas
radiosas, os poentes maravilhosos, e as próprias estrelas dir-se-ia que haviam
desaparecido para sempre. Grossas nuvens cinzentas ou amareladas
passavam tão baixo, que pareciam tocar a trapeira, desfazendo-se, muitas
vezes, em chuva torrencial. Às quatro horas, mesmo quando não havia
nevoeiro, era noite. Se, por acaso, Sara tinha de subir ao sótão, era preciso
acender uma vela. Aquele tempo influíra na disposição das criadas e Becky era
maltratada como uma verdadeira escrava.
- Sem a menina -- dizia ela a Sara, com a voz rouca, uma noite em que
entrara no quarto da sua companheira-, sem a menina e sem tudo o que
costuma contar-me, tenho a certeza de que morreria. Não acha que as
histórias da Bastilha parecem cada vez mais verdadeiras? A senhora parece-se
cada vez mais com o chefe dos carcereiros; chego a julgar que lhe vejo as
grandes chaves, de que a menina costuma falar, penduradas à cinta. Quanto à
cozinheira é perfeitamente um carcereiro. Conte-me qualquer coisa: por
exemplo, fale- me da passagem subterrânea que devemos abrir nas paredes
da prisão.
-Vou contar-te outra coisa que nos reconfortará mais - respondeu Sara,
com os dentes a bater de frio. -Vai buscar o teu cobertor, embrulha-te nele,
que eu farei o mesmo; encostar-nos-emos muito uma à outra, em cima da
minha cama, e eu falar-te-ei da floresta tropical, donde veio o macaco do
cavalheiro da Índia.
"Quando o vejo sentado em cima da mesa, junto da janela, olhando para
fora com uns olhos muito tristes, tenho a certeza de que ele pensa na floresta,
onde saltava de coqueiro em coqueiro, pendurando-se pela cauda. Gostava de
saber quem o apanhou e se deixou lá longe uma família que sustentava, com
os cocos que apanhava.”
- Tem razão; esta história é mais reconfortante- disse Becky,
agradecida , mas a própria Bastilha reconforta, quando é a menina que fala
nela. Porque nos faz mudar de pensamentos - observou Sara, muito
embrulhada no velho cobertor, só com a carinha de fora. - Já notei isto: quando
o corpo sofre, é preciso forçar o espírito a ocupar-se de qualquer outra coisa.
- E a menina consegue isso?-murmurou Beckv, olhando-a com
admiração.
Sara franziu as sobrancelhas durante um momento, depois respondeu
corajosamente:
- Algumas vezes, sim, outras não. Mas quando o consigo, sinto-me
imediatamente melhor. E creio que se pode conseguir sempre, se quisermos.
Tenho-me exercitado muito nestes últimos dias e começa a parecer-me mais
fácil. Quando tudo corre mal, horrivelmente mal, persuado-me, mais do que
nunca, de que sou uma princesa. E digo comigo própria: "Sou uma princesa e,
mais ainda, uma princesa-fada; e, visto ser uma fada, nada pode ferir-me ou
fazer-me sofrer". Tu não imaginas, Becky, quanto isto me ajuda a esquecer -
concluiu ela, rindo.
A pobre pequena tinha muitas ocasiões para se convencer de que era
uma princesa... Mas a mais notável dessas ocasiões ofereceu-se-lhe certo dia,
particularmente lúgubre, que jamais devia apagar-se da sua memória.
Chovera sem parar, durante toda a semana; um nevoeiro frio invadira as
ruas, que estavam escorregadias; havia lama por toda a parte - a lama
amarela e pegajosa de Londres - e toda a cidade estava envolta num cortinado
de bruma de chuva miudinha.
Quis o azar que, naquele dia, Sara tivesse de fazer muitos recados,
distantes e fatigantes, passou a tarde fora e acabou por ficar com a roupa
inteiramente encharcada. A pluma do seu velho chapéu era grotesca e os
sapatos estavam de tal forma repassados de água, que já não podiam absorver
mais. Acrescentemos a isso que Sara fora privada da refeição do meio-dia,
porque Miss Minchin decretara que ela merecia ser castigada. A pobre pequena
tinha tanto frio e tanta fome, sentia-se tão fatigada, que o seu rosto estava
roxo e, de vez em quando, alguns transeuntes de alma caridosa lançavam-lhe
um olhar de compaixão. Mas ela não dava por isso. Andava o mais depressa
que podia, esforçando-se por "pensar noutra coisa". E bem precisava, porque
os seus sonhos, as suas suposições eram a única consolação que lhe restava. E
ainda assim, nesse dia, teve, por duas ou três vezes, a sensação de que a sua
fome aumentava em vez de diminuir, com as fantasias da sua imaginação. Mas
não queria sucumbir e, enquanto os sapatos pingavam água lamacenta e o
vento fazia inchar o seu pobre casaco, ia falando baixinho, sem mesmo mexer
os lábios.
"Suponhamos que tenho roupa enxuta - pensava ela - bons sapatos, um
casaco grosso, meias de lã e um guarda-chuva novo. Suponhamos, também,
que, perto de um padeiro, onde se vendem "bunsn"(pãezinhos com passas de
uva,em forma de bolo) quentes, encontro uma moeda de seis "pence" que
alguém tivesse perdido, que não pertença a ninguém. E suponhamos,
finalmente, que entro na padaria e compro, com aquela moeda, meia dúzia de
"bunsn” acabados de sair do forno, e os como todos seis a seguir sem parar".
Acontecem, às vezes, neste mundo, coisas bem extraordinárias. Nesse
dia, aconteceu uma a Sara.
No momento em que ela acabava de imaginar os "bunsn" fumegantes,
teve de atravessar a rua. Uma lama horrivelmente espessa cobria a calçada.
Sara, que se esforçava por escolher o sitio onde punha os pés, avançava
lentamente, com os olhos fixos no chão, quando viu uma coisa luzir na lama.
Era uma moeda, uma moeda verdadeira, que ainda brilhava um pouco,
apesar da porcaria de que estava coberta. Não era uma moeda de seis
"pence", mas uma sua irmã mais nova: uma moeda de quatro "pence".
Em menos de um segundo estava na sua mãozinha roxa de frio.
- Oh - balbuciou Sara. - É uma moeda, uma moeda verdadeira!
Olhou então para a loja que estava em frente. Era uma padaria e, lá
dentro, uma mulher fresca, robusta, com ar maternal, preparava-se,
exatamente, para colocar na montra um cesto de "buns" redondos, dourados,
apetitosos, cheios de uvas-passas.
A surpresa do achado, a vista dos "buns", o cheiro delicioso do pão
quente que saía pelo ventilador da padaria, tudo isto impressionara tanto a
pobre Sara, que, durante alguns segundos, sentiu-se desfalecer. Mas nem um
só instante hesitou em se apropriar da pequena moeda; era evidente que ela
estava caída na lama havia algum tempo e que o seu legítimo proprietário
devia já encontrar-se muito longe, perdido na multidão dos transeuntes que
iam e vinham durante o dia.
"Em todo o caso, vou perguntar à padeira se não foi ela quem a perdeu"
- pensou Sara, numa surda agonia.
No momento em que, tendo atravessado o passeio, punha o pé na porta
da padaria, parou sùbitamente: acabava de ver uma pequenita, que parecia
ainda mais abandonada e pobre do que ela, uma verdadeira trouxa de
farrapos, onde não se distinguia nada além de dois pezinhos descalços, roxos
de frio e cobertos de lama, uma cabeça desgrenhada e uma carinha suja, com
dois olhos dilatados pela fome.
Sara compreendeu o olhar daqueles olhos e o coração encheu-se-lhe de
simpatia pela pequena.
"É uma criança filha de gente pobre - pensou ela,suspirando - e ainda
deve ter mais fome do que eu.”
A criança, a "filha de gente pobre", olhou para Sara e recuou um pouco
para deixá-la passar. Estava habituada a deixar passar os outros: ela bem
sabia que, se por acaso aparecesse um polícia, a mandaria "circular".
Sara apertava nervosamente na mão a preciosa moeda. Depois de uma
ligeira hesitação, dirigiu-se à outra pequenina.
- Tens fome - perguntou ela.
A criança pareceu encolher- se ainda mais nos seus andrajos.
- Se tenho fome? - disse ela numa voz sumida.
- Ainda precisa de mo perguntar?
- Não comeste nada ao jantar? - inquiriu Sara.
- Nem ao jantar, nem ao almoço, nem à ceia...
- respondeu a outra, com a voz ainda mais rouca...
- Não comi nada.
- Desde quando - perguntou Sara.
- Sei lá! Ainda hoje não me deram nada. Eu bem pedi, mas não recebi
fosse o que fosse.
Só de olhar para aquela pobrezinha, Sara sentiu-se novamente prestes a
desfalecer. Mas já o seu cérebro trabalhava e Sara dizia baixinho, a si própria,
embora o coração quase lhe parasse no peito: "Eu sou uma princesa, e as
princesas expulsas do seu trono e privadas de todos os seus bens, dividem
sempre o que lhes resta com as pessoas mais pobres do que elas. Dividem
tudo!Os "buns" custam um "penny" cada um. Com uma moeda de seis "pence"
eu poderia ter comido seis. O que eu tenho não é o suficiente nem para ela
nem para mim, mas sempre é melhor do que coisa nenhuma".
- Espera um pouco - disse ela à pobrezinha. Entrou na loja. Lá dentro
havia um calor bom e um cheiro apetitoso. A padeira ia, justamente, pôr novos
"bunsn", quentinhos, na montra. Sara dirigiu-se-lhe
-Dá-me licença? A senhora não perdeu, por acaso, uma moeda de quatro
"pence"?
E estendeu-lhe a moeda enlameada. A padeira olhou para a moeda, e
depois para Sara, para o seu rosto expressivo, para o seu vestuário miserável
que, no entanto, deixava ainda adivinhar a antiga elegância.
- Não perdi, com certeza - respondeu ela. Foi agora que a encontraste?
- Foi - confirmou Sara. - Encontrei-a na lama.
- Guarda-a para ti - aconselhou a padeira. Talvez já lá estivesse há mais
de uma semana. Sabe Deus quem a perdeu!
- Eu também pensei isso - disse Sara -, mas quis perguntar-lhe...
- Poucas, no teu lugar, teriam esse cuidado - continuou a mulher, cujo
rosto exprimia, ao mesmo tempo, espanto, interesse e simpatia. - Queres
comprar qualquer coisa? - acrescentou ela, vendo Sara olhar para os "buns".
- Quatro "buns", se faz favor - disse a pequena-, desses que custam um
"penny" cada.
A mulher aproximou-se da montra e meteu alguns "buns" num saco de
papel. Sara notou que eram seis.
- Tenha a bondade... eu disse quatro - explicou ela. - Só tenho uma
moeda de quatro "pence".
- Os outros dois são para completar o peso - disse a padeira, com um
sorriso bom. - Tenho a certeza de que não ficam por comer... Não tens fome?
Passou uma sombra nos olhos de Sara.
- É verdade - confessou ela. - Tenho muita fome, agradeço-lhe muito a
sua bondade e...
Ia a acrescentar: "Está lá fora alguém que ainda tem mais fome do que
eu". Mas, exatamente naquele instante, entraram dois ou três clientes, todos
com ar apressado, de maneira que Sara só pôde renovar os seus
agradecimentos e sair da loja.
A pequena mendiga estava ainda encolhida ao canto da porta. Fazia
impressão vê-la embrulhada naquela farrapagem suja. Olhava para diante de si
com um olhar espantado pelo sofrimento, e Sara viu-a, de repente, passar a
mão enegrecida pelos olhos, para enxugar as lágrimas que corriam mesmo
sem ela querer.
Sara abriu o saco de papel e tirou um dos "buns" quentes, que já Lhe
tinham aquecido um pouco as mãos enregeladas.
- Vês - disse ela, pondo o "bun" sobre o vestido esfarrapado. - É bom e é
quente. Come, deve fazer-te bem.
A criança olhou; dir-se-ia que aquela boa sorte, que lhe caía do Céu, a
assustava. Depois, arrancou o "bun" das mãos de Sara e comeu-o àvidamente,
como se fosse um lobo esfaimado.
- Oh! Meu Deus Como é bom - dizia, com a voz rouca - Oh Meu Deus!
Sara tirou do saco mais três "buns" e pô-los sobre os joelhos da
pequenita. O timbre daquela voz faminta fazia-lhe mal.
"Ela ainda tinha comido menos do que eu - pensava ela. - Está morta de
fome"
Mas a mão tremeu-lhe ao largar o quarto "bun".
- Eu... eu não estou a morrer de fome - acrescentou ela.
E deu também o quinto "bun".
A mendiga devorava ainda os bolos, como uma selvagem voraz, quando
Sara se afastou. Tinha tanta fome, que nem pensou em dizer - "Obrigada",
mesmo que tivesse a mais leve noção de delicadeza. Não passava de um pobre
animal errante.
- Até à vista - disse Sara.
Quando atravessou a rua, voltou-se. A pequena tinha um "bun" em cada
mão, mas parara de comer e ficara, com a boca cheia, a olhar para Sara. Esta
fez-lhe um sinal com a cabeça; a criança, depois de um longo e singular olhar,
sacudiu a cabecita,desgrenhada, como se respondesse, e, enquanto pôde ver
Sara, ficou imóvel, sem mesmo engolir o que tinha na boca.
Justamente nesse momento, a padeira olhou para a rua.
- Oh! Não querem ver? - exclamou ela. Estou convencida de que a
pequena deu os “buns"a uma mendiga. Não foi porque ela própria não tivesse
vontade, porque eu vi que ela tinha fome...Gostava de saber porque foi que ela
os deu!Ficou um momento a refletir, por detrás da montra; depois, vencida
pela curiosidade, abriu a porta e perguntou à pobrezinha:
- Quem te deu esses "buns"?
A criança, com um gesto de cabeça, indicou Sara que já ia longe.
- Que te disse ela? - continuou a padeira.
- Perguntou-me se eu tinha fome – respondeu a voz rouca da petiza.
- E que Lhe respondeste tu?
- Disse que sim.
- E ela veio logo comprar uns "buns" e deu-tos, não foi?
A criança respondeu que sim com a cabeça.
- Quantos te deu?
- Cinco.
A boa mulher refletiu um momento."Só guardou um!-murmurou ela, em
voz baixa.E era capaz de comer os seis! Bem o vi nos seus olhos!"
Olhou ao longe onde se distinguia ainda a pequena silhueta, mal vestida,
de Sara, e, apesar de ser habitualmente calma, a padeira sentiu-se perturbada,
como havia muito tempo não lhe sucedia.
"Tenho pena de que ela se tivesse ido embora tão depressa - pensou a
mulher. - Juro que era capaz de Lhe dar uma dúzia de "buns".
Depois, voltando-se para a mendiga, perguntou-lhe:
- Ainda tens fome?
- Tenho sempre fome - foi a resposta , mas já não é tanta como antes...
- Entra - disse a padeira, abrindo a porta da loja.A criança levantou-se e
avançou, arrastando os pés. Ser, assim, convidada a entrar num lugar
quentinho e cheio de pão! Parecia-lhe que estava a sonhar! Não sabia o
que Lhe ia acontecer mas também, isso pouco lhe importava!
- Vai aquecer-te - disse a padeira, indicando-lhe o interior da loja, onde
ardia um bom lume - escuta-me! Quando precisares de um bocado de pão, não
tens mais nada a fazer senão vires pedir-mo e podes ter a certeza de que
nunca to negarei, em lembrança daquela pequena que se foi agora embora.
Sara encontrou uma certa consolação em comer o seu último "bun".
Estava muito quente e era melhor que nada. Ao longo do caminho foi-o
partindo em bocados pequenos e comeu-o lentamente, para fazê-lo durar mais
tempo.
"Suponhamos que é um "bun" mágico -- pensava ela. -Cada bocadinho
representa uma refeição completa. Se fosse verdade, era capaz de comer de
mais...”
Era já noite, quando chegou à praça onde se encontrava o Colégio
Minchin. Todas as casas estavam iluminadas. As persianas ainda não se
encontravam descidas na sala onde Sara costumava avistar, quase sempre, os
membros da "Grande Família". Muitas vezes àquela hora, estava o Sr.
Montmorency sentado numa grande poltrona, cercado pelos filhos, os quais,
uns empoleirados sobre os braços do móvel, outros sentados nos joelhos do
pai, riam e falavam todos ao mesmo tempo. Naquela noite permaneciam em
redor do pai, mas este não estava sentado, e todos pareciam agitados.
O Sr. Montmorency ia partir para uma viagem demorada. Em frente da
porta via-se uma carruagem, onde tinham acabado de colocar uma grande
mala. As crianças corriam de todos os lados e agarravam-se ao pai. A mãe, tão
bonita, fresca e rosada, estava também ao pé dele e parecia pedir-lhe as
últimas instruções. Sara parou, um minuto, para ver o Sr. Montmorency
levantar nos braços o filho menor e beijá-lo, enquanto os mais velhos lhe
saltavam ao pescoço.
"A sua ausência será longa? - perguntava Sara a si própria. - A mala é
grande. Oh! Como a família deve aborrecer-se sem ele! A mim também me vai
fazer falta... embora ignore que eu existo.”
Ao abrirem a porta, ela afastou-se, mas viu a silhueta do viajante
recortar-se na claridade que vinha de dentro, e os filhos mais velhos reunidos à
sua volta.
- Haverá muita neve em Moscou - perguntou Janet. - Estará tudo gelado?
- O papá vai andar de "droschy"?(carruagem usada na Rússia) perguntou
uma das outras pequenas. - O pai vai ver o kzar? Contarei tudo nas minhas
cartas - respondeu o pai, rindo. - E mandarei fotografias de "mujiks"(homem do
povo, na Rússia) e de muitas outras coisas. Entrem depressa;esta umidade é
terrível. Gostava bem mais de ficar aqui do que ir para Moscou. Boa noite! Boa
noite, meus filhos! Deus fique convosco!
Desceu rápidamente os degraus e saltou para a carruagem.
-Se encontrar a menina, dê- lhe cumprimentos nossos gritou Guy, aos
pulos sobre o capacho.
Voltaram todos para dentro e fecharam a porta.
- Viste a "pequena que não é mendiga"?
- Ia a passar em frente da nossa casa. Estava toda molhada e parecia ter
frio. Voltou a cabeça para não olhar para nós. A mamã diz que os vestidos dela
têm o aspecto de lhe terem sido dados por uma pessoa muito rica, que já os
não usasse por estarem velhos.
-A dona do Colégio manda-a sempre fazer recados nos dias e nas noites
em que o tempo está pior!
Sara atravessava a praça para se dirigir à escada da cave. Tremia e
sentia a cabeça andar à roda.
"Quem será esta menina que ele vai procurar?"- pensava ela.
E desceu a escada, segurando o cesto que lhe parecia ainda mais
pesado do que habitualmente, enquanto o papá da "Grande Família" se
apressava a ir tomar o comboio que devia levá-lo a Moscou, onde ia empregar
todos os meios possíveis para encontrar a filha do capitão Crewe.
O QUE RODILARD VIU E OUVIU
Durante aquela mesma tarde, passou-se no quarto de Sara um fato bem
singular. Só Rodilard pôde ver e ouvir... Mas, tomado de espanto, meteu-se
apressadamente no seu buraco, e foi a tremer que se atreveu, apenas, a pôr a
ponta do focinho de fora, para saber o que se passava.
Desde a hora matinal em que Sara dali saíra, reinava na mansarda a
mais completa calma. O silêncio era apenas perturbado pelo ruído da chuva
caindo sobre as ardósias do telhado e as vidraças da trapeira.
Rodilard achava o dia triste; quando deixou de se ouvir o barulho
monótono da chuva, decidiu partir em exploração, embora soubesse, por
experiência, que o regresso de Sara ainda demoraria. Depois de ter farejado
um pouco por todos os cantos, acabava de descobrir, inesperadamente, uma
soberba migalha, que ficara esquecida, certamente, desde a véspera, quando
um ruído que vinha do telhado lhe chamou a atenção. Parou, com o coração a
bater com mais força, porque o tal ruído dava a impressão de que qualquer
coisa se arrastava sobre as ardósias, aproximando-se da janela. Não tardou
que as vidraças se erguessem misteriosamente.
Primeiro apareceu uma cara bronzeada; depois surgiu outra cara, e as
duas olharam cautelosamente para dentro. Estavam dois homens sobre o
telhado e preparavam-se para entrar, sem fazer ruído. Um deles era Ram Dass;
o outro era um homem novo, que desempenhava a função de secretário do
cavalheiro da Índia. Mas Rodilard ignorava tudo isso. Sabia apenas uma coisa:
era que os dois homens violavam a tranqüilidade e o silêncio da sua mansarda.
E quando aquele que tinha o rosto bronzeado se deixou escorregar pela
trapeira com tanta agilidade e jeito que não fez o mais leve ruído, Rodilard
voltou- se bruscamente e meteu-se para dentro. Estava aterrado. Havia já
muito tempo que não tinha medo de Sara. Sabia que ela só lhe dava migalhas
saborosas e apenas assobiava devagarzinho. Mas aqueles desconhecidos
eram, sem dúvida, muito perigosos. Rodilard, encolhido lá ao fundo do seu
esconderijo, contentava-se em espreitar por uma fresta da parede, com os
olhos brilhantes e ansiosos. Que julgou ele que se passava? Não é possível
dizê-lo. Mas, ainda que tivesse podido compreender, nem por isso deixaria de
ficar assustado.
O secretário, que era ainda muito novo, desceu pela janela quase com
tanta agilidade como Ram Dass; e no momento em que pousava os pés no
chão, avistou a ponta da cauda de Rodilard, que fugia.
- É um rato? - perguntou ele, em voz baixa, a Ram Dass.
- É, sim, "sahib,"(patrão,senhor) - respondeu Ram Dass, no mesmo
tom.As paredes estão cheias deles.
-Que horror! - exclamou o secretário. - É extraordinário que a pequena
não tenha medo deles.
Ram Dass fez um gesto com a mão e sorriu respeitosamente. Parecia-lhe
ser, ali, o representante de Sara, apesar de só lhe ter falado uma única vez.
- Esta criança ama e compreende tudo, "sahib"- respondeu ele. - Não se
parece com as outras crianças. Vejo-a sem que ela me veja; escorrego
silenciosamente no telhado e venho, muitas vezes, velar o seu repouso.
Observo-a da minha janela, sem ela dar por isso. Costuma subir para a mesa e
contemplar o céu, como se ouvisse uma voz. Os passarinhos aproximam-se
dela sem receio. Domesticou e sustenta o rato que "sahib" avistou agora. A
pobre criadita, verdadeiro burrinho de carga da casa, vem junto dela procurar
consolação. Há uma pequena, muito novinha, que a visita, às escondidas, e
outra mais crescida, que parece adorá-la e nunca se cansa de ouvi-la. Vi e
descobri tudo isso, aproximando-me da trapeira sem fazer barulho. A dona
desta casa, que é uma mulher má, trata-a como a uma pária, mas a pequena
ergue a cabeça com altivez, como se tivesse no corpo sangue real!
- Vejo que estás bem elucidado a seu respeito - observou o outro.
- Conheço a sua vida dia a dia - respondeu Ram Dass - a hora a que ela
sai, a hora a que ela entra; a sua grande tristeza e as suas pobres alegrias; sei
que tem frio e fome. Tenho-a visto estudar nos seus livros, sozinha, até à meia-
noite; vi as amigas virem, às escondidas, e o prazer com que ela conversa
baixinho com elas (porque as crianças, mesmo as mais pobres, podem ter
instantes de felicidade). Se estivesse doente, eu sabê-lo-ia e viria tratá-la, se
fosse possível.
-Tens a certeza de que ninguém, a não ser ela, entra aqui, e que não
virá surpreender-nos?
-A pobre pequena ficaria assustada, e o projeto do "sahib" Carrisford
seria irrealizável.Ram Dass foi até junto da porta, com passos de lobo.
- Só costuma voltar aqui à noite, senhor - disse ele. - Vi-a partir, com o
seu cesto. Não deve voltar tão depressa. Ficarei ao pé da porta e ouvi-la-ei
subir a escada muito antes de ela chegar cá acima.
O secretário tirou da algibeira um bloco de papel e um lápis.
- Presta atenção - recomendou-o. E começou a ir e vir, de um lado para o
outro, no miserável quarto, tomando notas.
Foi até ao leito, apalpou a enxerga e soltou uma exclamação:
- É mais duro do que pedras! É preciso substituí-lo, num dia em que ela
esteja ausente durante algumas horas. É necessário uma ocasião especial...
Não pode ser hoje.
Levantou a colcha e examinou o travesseiro. - Um edredão velhíssimo,
um cobertor esburacado e lençóis rotos - continuou ele.Que cama, para uma
criança, num estabelecimento de ensino que goza de tão boa reputação!
Desde quando se não acende aqui o fogão - acrescentou ele, lançando um
olhar para a grelha toda enferrujada.
- Nunca o vi aceso - disse Ram Dass. A dona da casa é daquelas que se
esquecem de que os outros podem ter frio.
O secretário escrevia rápidamente. Por fim, arrancou uma folha do bloco
e guardou-a na algibeira.
-A verdade é que nós vamos realizar qualquer coisa extraordinária... -
disse ele. - Quem teve a ideia?
Ram Dass inclinou-se modestamente.
-Fui eu quem primeiro pensou nisso, "sahib"- disse ele - e, a princípio, foi
apenas uma fantasia.
Dediquei-me a esta criança: nós somos, ela e eu, dois isolados. Ela
costuma contar, em voz alta, aos seus humildes amigos, tudo quanto nasce da
sua imaginação. Uma noite em que estava muito triste, escutei-a; ela explicava
o que seria este miserável quarto, se o tornassem mais belo e mais
confortável. Dir-se-ia que via o que estava descrevendo, e a sua face animava-
se, os olhos tornavam-se-lhe mais alegres. No dia seguinte, o "sahib" estava
doente e, para o distrair, contei-lhe o que tinha ouvido. A história agradou-lhe
muito e ele começou a interessar-se pela criança e a fazer-me perguntas. E
veio-lhe a idéia de transformar o sonho da pequena em realidade.
-Achas que podemos conseguir isso enquanto ela dorme? E se ela
acorda? - observou o secretário.
Era, porém, evidente, que, tal como o "sahib" Carrisford, o secretário
estava encantado com o projecto.
- Eu sou capaz de andar como se os meus pés fossem de veludo -
respondeu Ram Dass. - E as crianças dormem profundamente, mesmo as que
são desgraçadas. Sou capaz de entrar muitas vezes neste quarto sem que ela
se volte, sequer, sobre o travesseiro. Se alguém me der objetos pela janela,
arranjarei tudo sem que dê por coisa alguma. Ao acordar, julgará que passou
por aqui um feiticeiro.
Ram Dass sorriu, com um sorriso radioso, como se o coração se lhe
dilatasse; o secretário sorriu também e disse:
- Um verdadeiro conto das "Mil e Uma Noites". Semelhante idéia nunca
poderia ter nascido nos nevoeiros de Londres; só um oriental a poderia ter tido.
A visita não se prolongou muito, com grande alívio de Rodilard que, não
compreendendo nada da conversa, achava aqueles murmúrios, aquelas idas e
vindas bem estranhos. O jovem secretário, cada vez mais interessado, tomou
notas acerca da chaminé, o sobrado, o banco desbotado, a velha mesa e,
enfim, acerca das paredes, que apalpou com a mão parecendo ficar satisfeito
por descobrir ali um certo número de pregos pregados um pouco ao acaso.
- Poderemos suspender aqui muitos objetos observou ele.
Ram Dass sorriu misteriosamente.
- Ontem, enquanto ela estava ausente, vim espetar pregos miudinhos e
pontiagudos, que não necessitam de martelo. Coloquei-os nos sítios onde serão
necessários. Aí os tem.
O secretário meteu o bloco no bolso, olhando mais uma vez em redor.
- Creio que tomei nota de tudo - disse ele. Podemos partir. O "sahib"
Carrisford tem um grande coração. Que pena,que ele não tenha encontrado a
criança desaparecida!
-Se chega a encontrá-la, as forças voltar-lhe-ão -respondeu Ram Dass. -
O seu Deus pode ainda entregar-lha.Desapareceram pela trapeira, com tão
pouco ruído como tinham chegado.
Quando Rodilard se convenceu de que eles não voltariam, atreveu-se a
pôr o narizito de fora e não tardou a correr, de novo, pelo quarto, na esperança
de que aqueles seres inquietantes pudessem trazer nas algibeiras, apesar de
tudo, excelentes migalhas e algumas tivessem caído no chão, por mera
casualidade, para felicidade dos humildes ratinhos...
MAGIA
Quando Sara passou em frente da casa do cavalheiro da Índia, avistou
Ram Dass que fechava as janelas, e lançou um rápido olhar para a suntuosa
biblioteca.
"Há quanto tempo eu não entro numa sala tão bonita como aquela" -
pensou a pobre pequena.
Distinguia-se, como sempre, o fogão aceso e o cavalheiro da Índia
sentado ao canto da chaminé, com a cabeça apoiada à mão e um ar mais
solitário e triste do que nunca.
"Pobre homem - murmurou Sara. - Gostava bem de saber se ele
"imagina" qualquer coisa...”
Naquele mesmo instante, o doente pensava: "Imaginemos mesmo que
Carmichael encontra os russos em Moscou. Imaginemos que a pequenina que
eles levaram a casa de Madame Pascal não é a que eu procuro. Onde poderei
eu continuar a procurá-la?".
Sara, ao entrar, encontrou Miss Minchin mesmo frente a frente. A
diretora tinha descido à cave para ralhar com a cozinheira. Ao ver a pequena,
perguntou-lhe:Por onde tens andado a perder tempo? Há não sei quantas horas
que andas por fora.
-A lama é tão espessa, que tenho muita dificuldade em caminhar com
estes sapatos, porque, como estão muito velhos, fazem-me escorregar.
-É inútil arranjares desculpas e dizer mentiras! - interrompeu Miss
Minchin.
Sara entrou na cozinha. A cozinheira, que tinha sido repreendida, estava
de péssimo humor. Precisava de desabafar o seu mau gênio com alguém, e
Sara chegava a tempo...
-Porque não ficaste tu lá fora toda a noite?-perguntou ela, com
aspereza.Sara colocou os embrulhos em cima da mesa, e respondeu:
-Aqui estão as compras.
A cozinheira olhou para os pacotes, a resmungar. Estava furiosa.
- Posso comer qualquer coisa? - pediu Sara, com a voz a tremer.
- Já tomaram o chá há muito tempo! - foi a resposta. -Julgas talvez que o
guardei para ti?!
Sara ficou um momento, silenciosa.
- Não me deram almoço... - disse ela, baixando cada vez mais a voz,
para que não a sentissem tremer.
- Há pão na despensa - respondeu a cozinheira. - Por hoje chega...
Sara foi buscar o pão. Era seco e duro. A cozinheira estava tão irritada,
que era inútil pedir-lhe mais qualquer coisa e arriscava-se, ainda a aturar maus
modos.
A pobrezinha teve dificuldade em subir os três altos lanços de escada
que levavam ao sótão! Afiguravam-se-lhe sempre longos, quando estava
fatigada; mas, naquela noite, pareceu-lhe que não tinham fim.
Teve de parar várias vezes, para repousar. Quando chegou ao último
patamar ficou contente por ver um fiozinho de luz filtrar-se pelas gretas da
porta. Isso queria dizer que Hermengarda viera, em segredo, fazer-lhe uma
visita. Este pensamento reconfortou-a. Ao menos, o quarto não estaria tão
vazio e desolador; bastava a presença da boa e gorducha Hermengarda,
embrulhada no seu xale vermelho, para aquecer um pouco o ambiente.
Sim, Hermengarda encontrava-se lá, sentada no leito, com os pés
escondidos sob o vestido. Estava, já, em muito boas relações com a família
Rodilard, mas no fundo tinha sempre algum receio... Por isso, preferia instalar-
se em cima da cama, quando chegava à mansarda antes de Sara. Desta vez
tinha razão para estar nervosa; Rodilard saía constante mente do buraco, a
farejar o ar e, uma das vezes, pusera-se de pé, sobre as patas traseiras e
fitara-a com uma insistência que a assustara ainda mais. Hermengarda por
pouco não soltou um grito!
- Oh Sara! - exclamou ela -ainda bem que chegaste. Rodilard anda a
cheirar tudo. Tentei, com muito bom modo, mandá-lo para o seu buraco, mas
ele não fez caso. Gosto muito dele, acredita, mas assusta-me quando começa a
fungar, voltando a cabeça para o meu lado. Julgas que ele era capaz de saltar
para cima de mim?
- Que idéia! - respondeu Sara.
Hermengarda estendeu-se sobre o leito para ver melhor a amiga.
- Tens um ar muito fatigado, Sara - disse ela. - Estás muito pálida...
- Efetivamente, estou muito cansada - respondeu Sara, deixando-se cair
sobre o banco velho. Oh, lá está Rodilard! Vem buscar a ceia.
Com efeito, Rodilard acabava de aparecer, como se tivesse reconhecido
os passos de Sara. Avançou com ar confiante, enquanto ela metia e tornava a
meter a mão na algibeira, abanando a cabeça.
- Tenho muita pena - disse ela - mas não encontro nem uma migalha de
pão. Volta para a tua casa, Rodilard, e diz à tua família que hoje não há nada
na minha algibeira, porque a cozinheira e Miss Minchin estavam de péssimo
humor.Rodilard pareceu compreender. Retirou-se a passos lentos e com um ar,
senão contente, pelo menos resignado.
- Não esperava ver-te hoje, Garda - - disse Sara.
- Miss Amélia foi passar a noite à casa de uma tia velha. Ninguém, a não
ser ela, vem inspecionar os quartos, depois de estarmos deitadas. Posso ficar
aqui até de manhã.Depois de dizer isto, Hermengarda apontou para uma
quantidade de volumes que estavam sobre amesa e nos quais não tinha
reparado, ao entrar. Com um gesto de desânimo, Hermengarda continuou:O
papá mandou-me mais livros, Sara. São esses.Sara pôs-se de pé num abrir e
fechar de olhos.Correu para a mesa, pegou num volume e folheou-o
rápidamente. Já nem se lembrava das suas desditas!
- Ah! - exclamou ela. - Que bom! A "História da Revolução Francesa", de
Carlyle. Sempre desejei tanto lê-la!
- Pois, eu não - confessou Hermengarda. E o papá vai ficar furioso, se eu
a não ler. Ele espera que estude tudo isso antes das férias. Que hei-de eu
fazer, meu Deus?
Sara parara de folhear o livro e olhava para a amiga com as faces
coradas e os olhos brilhantes.
- Escuta - disse ela. Se tu quiseres emprestar-me os livros, eu leio-os e,
em seguida, contar-te-ei e explicar-te-ei tudo tão bem, que tu não te
esquecerás mais.
- Será possível! - exclamou Hermengarda. Parece-te que serei capaz?
- Tenho a certeza - afirmou Sara. - As pequeninas da classe infantil
lembram-se sempre de tudo o que eu lhes ensino.
- Ouve, Sara - disse Hermengarda com uma expressão radiante de
esperança na carinha bochechuda , se tu conseguires, realmente, ajudar- me a
compreender e a não me esquecer do que aprendo, eu...eu dou-te o que tu
quiseres!
- Não preciso que me dês seja o que for - replicou Sara. - Apenas desejo
ler os teus livros! Tenho tanta vontade!
Ao dizer isto, os olhos tornavam-se-lhe maiores e o peito erguia-se-lhe
numa respiração profunda.
- Aqui os tens - respondeu Hermengarda. - Quem me dera gostar tanto
de ler como tu, mas é escusado tentar! Não sou inteligente, mas meu pai é, e
quer, por força, que eu também o seja.
Sara ia abrindo os livros uns após outros.
- Que vais tu dizer ao teu pai?- perguntou ela, em voz um pouco
perplexa.
- Oh! Não é preciso dizer-lhe nada -- replicou Hermengarda. - Ele julgará
que os li.
Sara fechou o livro que tinha nas mãos e abanou a cabeça.
- Seria quase mentir - disse ela. - E mentir, repara bem, não só é uma
ação má, como é, também, vulgar. Às vezes - e ela falava como se olhasse
para dentro de si própria -penso que podia fazer qualquer coisa muito má por
exemplo, matar Miss Minchin, num acesso de raiva. Tu compreendes: quando
ela me maltrata... Mas o que eu não podia era ser vulgar. Porque não dizes tu a
teu pai que fui eu quem os leu?
- É porque ele quer que eu os leia - disse Hermengarda, um pouco
despeitada com o caminho inesperado que a conversa ia tomando.
-O que ele quer, principalmente, é que tu saibas o que eles contêm -
replicou Sara. - E se eu puder explicar-te bem claramente tudo, de forma que
tu não te esqueças mais, tenho a certeza de que ele ficará satisfeito.
- Oh! O que ele quer é que eu aprenda, seja lá de que maneira for -
respondeu Hermengarda, com voz desanimada.Se tu estivesses no lugar dele,
fazias o mesmo.
- Tu não tens culpa... - começou Sara. Mas calou-se a tempo, antes de
concluir - de seres curta de entendimento.
- Não tenho culpa de quê - perguntou Hermengarda.
-De não seres capaz de aprender rápidamente- emendou Sara. - Se tu
não podes, é porque não podes E se eu posso, muito bem! É porque posso
nada mais.
Sara era sempre indulgente para com Hermengarda e esforçava-se por
não lhe fazer sentir a diferença que há entre uma pessoa que aprende tudo
ràpidamente, e outra que é incapaz de aprender seja o que for. Enquanto
olhava para o rosto redondo da companheira, ocorreu-lhe um daqueles
pensamentos sensatos que Lhe eram habituais.
-Talvez, mesmo, a inteligência não seja tudo, neste mundo - disse ela. -
A bondade é um dom ainda mais precioso. Se Miss Minchin soubesse tudo
quanto há, mas continuasse a ser tão má como é, a sua sabedoria não a
impedia de ser uma criatura má, merecendo o ódio de toda a gente. Muitos
homens de grande inteligência fizeram mal e foram odiados.
Por exemplo, Robespierre...
Calou-se e olhou para Hermengarda, cuja fisionomia exprimia uma
profunda consternação.
- Não te lembras - Contei-te a sua história não há muito tempo. Parece-
me que já te esqueceste!
- Sim, em parte... - concordou Hermengarda.
- Pois bem; espera um momento - disse Sara.
- Vou despir esta roupa, que está encharcada, e
embrulhar-me no cobertor. Depois conto-te outra vez a história de
Robespierre.
Tirou o chapéu e o casaco, pendurando-os, num prego, e substituiu os
sapatos, todos embebidos em água, por umas velhas pantufas. Em seguida,
saltou para o leito e, lançando o cobertor sobre os ombros, passou os braços
em volta dos joelhos, como costumava.
-Agora, escuta com atenção! - disse ela.
Começou, então, a fazer tais descrições da sangrenta Revolução
Francesa, que os olhos de Hermengarda se dilataram, assustados. Mas, apesar
do pavor que sentia, escutava Sara, deslumbrada.
Agora tinha a certeza de não se esquecer mais de Robespierre e de não
se enganar acerca da princesa de Lamballe.
-Lembra-te que Lhe espetaram a cabeça num ferro e dançaram em volta
- continuou Sara:Ela tinha uns lindos cabelos louros, encaracolados. Quando
penso nela, nunca lhe vejo a cabeça sobre o corpo, mas sim espetada no ferro,
com a população, furiosa, a gritar e a dançar em redor.
Combinaram, então, que o Sr. Saint-John - o pai de Hermengarda- seria
posto ao corrente do plano que elas haviam traçado, e que os livros ficariam no
quarto de Sara.
- Falemos, agora, de outra coisa - disse Sara.
- Como vais tu nas lições de francês?
-Muito melhor, desde a última vez que aqui vim e tu me explicaste as
conjugações. Miss Minchin ficou admirada por eu ter feito tão bem o tema, no
dia seguinte.
Sara sorriu com bondade, apertando mais os braços em volta dos
joelhos.
-Miss Minchin também não compreende a razão por que Lottie apresenta
as contas de somar certas - diz ela - é porque vem ter comigo às escondidas e
eu ajudo-a.
Enquanto falava, olhou em redor de si.
- Esta mansarda seria agradável... se não fosse tão feia! - continuou ela,
a rir. - Presta-se, admiravelmente, a todos os sonhos e a todas as suposições
possíveis.
A verdade, porém, é que Hermengarda não fazia a menor ideia da vida,
por vezes, miserável, que Sara levava, e a sua imaginação estava tão
profundamente adormecida, que não era capaz de supor fosse o que fosse.
Durante as suas raras visitas, via apenas o lado pitoresco daquela
situação, distraída com as descrições e as invenções da amiga. As idas de
Hermengarda ao sótão eram, para ela, aventuras divertidas e, se algumas
vezes, a palidez de Sara era maior e a sua magreza mais evidente, a altiva
pequena nunca se lamentava. Jamais quisera confessar que, em certos
momentos, como, por exemplo, naquela noite, quase morria de inanição.
Crescera ràpidamente, e os eternos recados de que a incumbiam abrir-lhe-iam
o apetite, mesmo que ela tivesse refeições regulares e abundantes, muito
superiores aos pratos mal cozinhados e pouco apetitosos que lhe davam de vez
em quando, conforme os caprichos da cozinheira. Sara, pouco a pouco, tinha-
se habituado às contínuas "reclamações” do seu pobre estômago.
- Penso que os soldados são como eu, quando fazem uma marcha longa
e fatigante - repetia ela muitas vezes.
Gostava desta frase: "uma marcha longa e fatigante". Tinha a
impressão, quando a dizia, de ser ela própria um desses pobres soldados.
Estava absolutamente compenetrada do papel de dona de casa, quando
recebia a visita das amigas no quarto, e pensava:
"Suponhamos que habito um castelo e Hermengarda outro”, ela viria
ver- me com uma escolta de cavaleiros, escudeiros e vassalos, e estandartes
flutuando ao vento. Quando eu ouvisse as trombetas tocar em frente da ponte
levadiça, desceria para recebê-la e conduzi-la-ia a um grande festim servido no
salão nobre; depois mandaria entrar os menestréis para que eles cantassem e
se acompanhassem com o alaúde, e nos recitassem versos. Quando
Hermengarda vem visitar-me, não posso oferecer-lhe banquetes, mas posso
contar-lhe histórias e não lhe deixar adivinhar os meus desgostos. Tenho a
certeza de que os pobres castelões faziam o mesmo, quando havia fome e o
seu domínio fora devastado pelos inimigos.
Sara era, sem dúvida, uma altiva e corajosa castelã, que distribuía
generosamente a única riqueza que lhe restava: os seus sonhos, as suas
visões, tudo o que, afinal, constituía para ela a única possibilidade de alegria e
consolação. E era tanto assim que, naquela noite, Hermengarda estava longe
de supor que Sara se sentia exausta de cansaço e fraqueza, perguntando a si
própria se a fome devoradora que a atormentava Lhe permitiria adormecer,
quando a amiga se fosse embora. Nunca tive tanta fome!
-Gostava de ser magrinha como tu, Sara- disse, de repente,
Hermengarda. - Parece que agora ainda és mais magra do que dantes; os teus
olhos estão enormes e vêem-se-te perfeitamente todos os ossos do cotovelo!
Sara, tranquilamente, baixou as mangas, que estavam arregaçadas.
- Sempre fui bastante magra - replicou ela, corajosamente - e sempre
tive grandes olhos verdes.
- Gosto muito dos teus olhos - disse Hermengarda, fitando-a com
afetuosa admiração. -Dir-se-ia que eles vêem muito longe, muito longe, muito
mais longe do que os da outra gente! Gosto deles e gosto da sua cor verde,
embora, muitas vezes, pareçam pretos.
- São olhos de gato - disse Sara a rir. Mas apesar disso não vejo de
noite... Já tentei! Mas não consegui ver nada. E tenho pena!Precisamente
naquele momento passava-se na trapeira qualquer coisa que escapou às duas
pequenas. Se uma delas, por acaso, se tivesse voltado, teria ficado assustada
ao ver um rosto bronzeado que lançava, ràpidamente, um imprudente olhar
para a mansarda e desaparecia tão depressa como havia vindo. Tão depressa
mas, talvez, menos silenciosamente, porque Sara, que tinha esplêndido ouvido,
voltou-se, de súbito, a olhar para o teto.
- Não é Rodilard - disse ela. - Ele faz maisbarulho, com as unhas.
- Então quem é - perguntou Hermengarda, um pouco sobressaltada.
- Não ouviste nada? - interrogou Sara.
- Não... não... - balbuciou Hermengarda. E tu?
- Não tenho a certeza - respondeu Sara. Pareceu-me qualquer coisa a
arrastar-se pelo telhado.
- Meu Deus! -exclamou Hermengarda. - E se fossem ladrões?
- Podes estar tranquila - retorquiu alegremente Sara. - Não há nada para
roubar, e...
Interrompeu-se. Vinha da escada, e era a voz irritada de Miss Minchin.
Sara saltou abaixo do leito e apagou a vela.
- Está a ralhar com Becky - murmurou ela, na escuridão. - Já a fez
chorar...
- É capaz também de vir aqui... - disse Hermengarda, apavorada.
- Não. Ela julga que eu estou deitada. Não te mexas...
Era muito raro Miss Minchin subir ao último andar. Sara apenas se
lembrava de tê-la lá visto uma vez. Mas, naquela noite, parecia furiosa e dava
a impressão de ir subindo,empurrando Becky à sua frente.
- Atrevida! Ladra! - ouviram as duas amigas. - A cozinheira disse-me que
lhe faltam coisas, constantemente.
- Não sou eu, minha senhora - soluçava Becky. - Tenho fome, mas nunca
tirei nada, nunca!
- Merecias que eu te mandasse prender - prosseguia a voz furiosa. -
Roubar metade de uma empada! Que desaforo!
- Não fui eu - dizia Becky, sempre a chorar. - Era capaz de comer uma
inteira, mas nem sequer lhe toquei com um dedo.
Miss Minchin não podia mais: a cólera e a subida das escadas tinham-na
deixado esfalfada. A malfadada empada fora guardada especialmente para
ela... E Becky recebeu um par de bofetadas.
- É inútil mentir - disse Miss Minchin. - Vai imediatamente para o teu
quarto!
Sara e Hermengarda haviam escutado tudo: depois ouviram os passos
de Becky correndo para o quarto e a porta fechar-se. Perceberam que a pobre
rapariga se atirara para cima da cama.
-Tenho fome que chegava para duas empadas- soluçava ela. - E nunca
tirei uma migalha fosse do que fosse. A cozinheira deu-a ao sargento que
costuma visitá-la.
Sara, de pé na obscuridade, cerrava os dentes e cruzava e descruzava
febrilmente as mãos. Não podia dominar-se mais; esperou, porém, que Miss
Minchin descesse e que todo o ruído cessasse. Então, explodiu:
- Má! Desumana! É ela quem rouba e depois acusa Becky! Não é
verdade! Ela mente! Pobre Becky, às vezes tem tanta fome, que vai apanhar
as cascas que estão misturadas com as cinzas.Escondendo a cabeça nas mãos,
rompeu em soluços aflitivos que consternaram Hermengarda.Sara,a
intrépida,Sara, chorava... Que era aquilo? Custava- lhe a acreditar.
Uma idéia terrível surgiu, lentamente, no cérebro um tanto obtuso da
Hermengarda. Levantou-se, por sua vez, aproximou-se da mesa, riscou um
fósforo e acendeu a vela. Depois se debruçou para Sara, com um olhar de
verdadeira angústia.
- Sara - murmurou ela, com voz trêmula -tu... tu tens... Tu nunca dizias
nada, eu não queria magoar-te, mas... Costumas ter fome?Era a gota de água
que faz trasbordar a taça. Sara levantou a cabeça.
- É, verdade - disse ela com ardor. - Sim, tenho fome. Tenho tanta fome,
hoje, que comeria fosse o que fosse. E ainda me custa mais depois de ter
ouvido a pobre Becky, porque ela ainda está mais esfomeada do que eu!
- Oh! Oh! - exclamou Hermengarda, numa aflição. - E eu que não sabia
nada!
- Eu não queria dizer-to - respondeu Sara. ! Se o fizesse, dava-me a
impressão de ser uma mendiga... Eu sei, de resto, que tenho todo o aspecto...
- Não, não - interrompeu Hermengarda. - Os teus vestidos estão velhos e
sujos, é verdade, mas não pareces uma mendiga. Nunca parecerás!
-Um dia, um petizinho deu- me um xelim - disse Sara- e não pôde deixar
de sorrir. – Está aqui.E, ao dizer isto, tirou a fita que trazia ao pescoço.Se eu
não tivesse o ar de uma pessoa que passa necessidade, com certeza que ele
não mo teria dado.
A vista da tocante recordação distraiu as duas crianças que principiaram
a rir, com os olhos cheios de lágrimas.
- Quem era esse pequenito - perguntou Hermengarda, olhando a moeda
com uma espécie de respeito.
- Era lindo e devia ir a qualquer festa. É uma das crianças da "Grande
Família", aquele petiz de perninhas muito gordas e a quem eu chamo Guy. A
minha idéia é que eles têm muitos brinquedos, caixas de bombons e bolos com
fartura, e compreendeu que eu não tinha nada...
Hermengarda estremeceu. As últimas palavras de Sara fizeram nascer
no seu cérebro uma súbita inspiração.
- Oh! Sara - exclamou ela. - Como eu sou estúpida por não ter pensado
nisto mais cedo!
-Pensar em quê?
- Oh! Uma idéia esplêndida - continuou Hermengarda, muito
excitada.Recebi hoje mesmo uma grande caixa que a mais gentil das minhas
tias me mandou. Está cheia de coisas boas. Ainda nem a abri porque comi
tanto pudim, ao meio-dia... E depois, os livros do papá atormentavam-me...
Mas eu sei o que a caixa contém - continuou ela, gaguejando, tanta era a
pressa com que falava. - Tem uplum-cake"(bolo inglês empadinhas, tortas de
doce, laranjas, figos, chocolate! Vou buscá-la, trago-a, sem fazer barulho e
comeremos tudo!
Sara sentia a cabeça andar um pouco à roda; a enumeração de tantas
coisas boas aumentava o seu mal-estar.
Apertou o braço de Hermengarda e perguntou:
- Achas que poderemos?
- Tenho a certeza - replicou Hermengarda. E, correndo para a porta,
abriu-a sem ruído e ficou de ouvido à escuta, durante um segundo.
- Todas as luzes estão apagadas - murmurou ela. - Está toda a gente
deitada. Vou descer devagarzinho e ninguém sentirá nada.Esta perspectiva era
tão deliciosa, que as duas amigas apertaram a mão uma da outra, e os olhos
de Sara iluminaram-se.
- Garda - disse ela. - Imaginemns qualquer coisa, suponhamos que eu
dou uma festa! Achas bem que convidemos o prisioneiro da cela vizinha?
- Mas naturalmente que sim! Bate na muralha; o carcereiro não ouvirá.
Sara aproximou-se da parede e ouviu a pobre Becky, que ainda chorava.
Bateu quatro pancadas.
- Isto significa: "Vem ter comigo, tenho uma coisa para te dizer" -
explicou ela.
Responderam-lhe cinco pancadas rápidas.
- Vem já - disse Sara.
A porta abriu-se imediatamente, e Becky apareceu. Tinha os olhos
vermelhos e, ao ver Hermengarda, limpou nervosamente a cara com o avental.
- Não te preocupes comigo, Becky... - disse-lhe Hermengarda.
- És convidada de miss Hermengarda - explicou Sara. - Ela vai trazer-nos
uma caixa de guloseimas que recebeu hoje.
A touca de Becky escorregou para trás; não podia acreditar no que
ouvia!
- São coisas... coisas boas para comer? - perguntou ela.
- Naturalmente - respondeu Sara - e nós faremos de conta que damos
uma grande recepção.
- E vocês comerão tudo o que quiserem - interrompeu Hermengarda. -
Vou buscar a caixa num instante.
Saiu com tanta pressa, na ponta dos pés, que o xale vermelho lhe caiu
dos ombros, sem ela dar por isso. Ninguém reparou. Becky estava sufocada
com aquela boa surpresa.
- Oh miss Sara, eu sei que foi a menina quem lhe pediu que me
convidasse! Estou quase a chorar de alegria - exclamou Becky.E aproximou-se
muito de Sara, olhando para ela com adoração. Mas já a imaginação de Sara
começara a trabalhar, transformando e embelezando tudo o que acabava de
suceder. Apesar da pobreza do quarto e do frio que fazia lá fora; apesar das
suas caminhadas estafantes pelas ruas lamacentas e da lembrança dolorosa
dos olhos espavoridos da pequena mendiga, Sara via, na idéia de
Hermengarda, qualquer coisa de sobrenatural. E suspirou profundamente.
- É quando tudo corre pior que acontece sempre o que menos se espera!
Dir-se-ia que passa por nós um Feiticeiro. Não devemos esquecer que nunca se
é infeliz até ao fim.
E bateu, alegremente, no ombro de Becky, exclamando:
- Não! Não! Hoje não se chora mais. Vamos pôr a mesa, depressa!
- Pôr a mesa - perguntou Becky, perplexa, percorrendo a mansarda com
o olhar. -Com quê?
Sara olhou também.
- Efetivamente, não temos nada - disse ela, sorrindo.
Mas, naquele momento, avistou um objecto sobre o qual se precipitou:
era o xale vermelho de Hermengarda, que tinha caído há pouco no chão.
-Tenho a certeza de que Hermengarda não dirá nada - exclamou ela. -
Este xale dará uma esplêndida toalha encarnada.
Puxaram a velha mesa e cobriram-na com ele. O vermelho é uma cor
maravilhosa: imediatamente o quarto deixou de parecer tão nu.
- Um tapete encarnado no chão, eis o que nos falta. Façamos de conta
que temos um - disse Sara.
E olhou para o chão esburacado, com grande alegria.
- Vê como é macio - continuou ela, num tom de grande convicção.
Levantava e baixava o pé, delicadamente, como se o enterrasse em
qualquer coisa muito espessa.
- É verdade!- respondeu Becky, que a contemplava gravemente.Becky,
mesmo nos momentos de felicidade, estava sempre séria.
- E agora, que mais é preciso - disse Sara, pondo as mãos sobre os olhos.
- Pensemos um pouco! O feiticeiro me inspirará - acrescentou ela, com uma
voz muito doce.
Porque Sara estava persuadida - era uma das suas invenções favoritas -
de que há, espalhadas no ar, idéias à disposição de quem precisa delas. Becky
tinha-a visto, muitas vezes, esconder assim o rosto nas mãos e levantá- lo,
depois, com uma expressão feliz e inspirada.
Foi o que sucedeu naquela noite. Pronto! – exclamou-Já tive uma
idéia,vou procurar na mala que me pertencia quando era rica!Dirigiu-se ao
canto onde estava a referida mala. Havia-na-na levado para o sótão, não para
comodidade de Sara, mas porque não tinham outro sítio onde a pudessem
meter. Lá dentro só havia velharias sem valor; mas Sara estava convencida de
que ia fazer belas descobertas... O feiticeiro lá estava, para transformar tudo.
Num canto da mala via-se um embrulhinho tão pequeno que, com
certeza, havia escapado ao olhar investigador de Miss Minchin. Sara guardara-o
como recordação. Continha uma dúzia de lencinhos brancos, muito finos. Sara
pegou neles e, voltando para junto da mesa, começou a dispô-los
elegantemente, com a rendinha muito bem esticada.
- Os pratos - dizia ela - são de ouro maciço. E aqui estão os guardanapos,
guarnecidos de rendas caras, feitas em conventos de Espanha.
- Isso é verdade - murmurou Becky, cheia de admiração.
- O que é preciso é imaginar que é verdade!Afirmou Sara. - Se
acreditares firmemente, verás rendas preciosas.
- Sim, rendas - respondeu Becky, docilmente. E, enquanto Sara voltava à
mala, ela fez todos os esforços possíveis para chegar àquela conclusão.
Sara viu-a, de repente, com os olhos fechados, a cara estranhamente
convulsionada e as mãos crispadas; dir-se-ia que procurava levantar um peso
enorme.
- Que sucedeu, Becky - exclamou ela. – Que estás tu a fazer?Becky
estremeceu e abriu os olhos.
-Estava a ver se era capaz de acreditar!Respondeu ela, um pouco
confusa.Procurava ver as coisas bonitas que a menina vê - E estava quase...-
concluiu a pobre pequena. - Mas não é fácil!
- É porque tu não estás habituada - disse Sara, afetuosamente. No teu
lugar não me esforçaria tanto no começo. É uma coisa que vem a pouco e
pouco. Repara bem: vou explicar-te tudo.
Sara tinha na mão um chapéu velho, de palha, guarnecido com uma
grinalda de flores, que encontrara no fundo da mala. Arrancou-Lhe a grinalda, e
disse, com ênfase:
-Aqui estão as flores para a sala do banquete. O seu perfume
embalsama o ar. Oh Becky, dá-me o jarro da água e também a saboneteira,
que fará um magnífico centro de mesa.
Becky, respeitosamente, foi buscar os objetos designados.
- Que representa isto agora? - perguntou ela.
- Isto é um gomil cinzelado - explicou Sara, colocando um ramo de
folhagem em volta do jarro da água. -E isto é uma taça de alabastro,
incrustada
de pedras preciosas - disse ela, enchendo a saboneteira com as rosas do
chapéu velho.
- Muito bem! Creio que é muito bonito - suspirou Becky.
-Precisamos de qualquer coisa para pôr os bombons - murmurou Sara. –
Pronto, já sei (e correu para a mala). Vi aqui uma coisa que nos serve.
Era apenas um bocado de tecido embrulhado em papel de seda branco e
vermelho: Mas, com aquele papel, Sara fez uns pratinhos e, depois, misturando
os bocados que sobejaram com as flores que ainda tinha, ornamentou o
castiçal que fazia as vezes de candeeiro. Só o Feiticeiro seria capaz de ver em
tudo aquilo outra coisa que não fosse uma mesa velha e sem um pé, coberta
com um xale e ornamentada com trapos. Mas, para Sara, era uma mesa
suntuosa; e Becky abria os olhos, falando o mais que podia.
- Ainda estamos na Bastilha - perguntou ela, olhando em volta de si. -Ou
a Bastilha também foi transformada?
- Oh Com certeza - respondeu Sara. - É tudo diferente! Estamos na sala
do banquete.
- Do quê? Meu Deus - exclamou Becky, absolutamente confundida.
- Na sala do ban-que-te - explicou Sara. Quer dizer: uma grande sala
para refeições de cerimônia, com um teto alto, em abóbada, uma galeria para
os músicos, uma grande chaminé cheia de troncos de árvore a arder, e
inúmeras velas de cera que cintilam de todos os lados.
- Palavra... - murmurou novamente Becky. Naquele momento, a porta
abriu-se e Hermengarda entrou, vergada ao peso da caixa. Soltou uma
exclamação de alegria, à vista dos brilhantes preparativos para o festim, que
contrastavam com a glacial escuridão da escada.
- Oh! Sara - disse ela. - Tu és a pessoa mais inteligente que eu tenho
conhecido!
- Não é verdade que é bonito – respondeu Sara.Tudo isto saiu da minha
mala velha. Foi o Feiticeiro que me inspirou.
-Oh Miss Hermengarda, é preciso saber o que tudo isto representa...
Explique-lhe, Miss Sara! - pediu Becky.
Então, Sara, ajudada, sem dúvida, pelo Feiticeiro, descreveu tão bem os
magníficos preparativos, que as suas duas companheiras viam, quase, os
pratos de ouro, os troncos a arder, as velas a cintilar.
E quando retiraram da caixa, uns após outros, os bolos cobertos de
açúcar, as tortas, os frutos, os chocolates e o xarope, então a mesa do
banquete tornou-se, verdadeiramente, uma maravilha.
- É um jantar completo! - exclamou Hermengarda.
- Dir-se-ia a mesa de um rei! – murmurou Becky.
Hermengarda teve, sùbitamente, uma brilhante inspiração.
- Ouve, Sara - disse ela. - Imaginemos que tu és uma princesa e que isto
é um banquete real.
- Mas és tu que ofereces o banquete ,objetou Sara. Serás tu a princesa e
nós as tuas damas de honor.
- Oh! Eu não posso ser princesa – respondeu Hermengarda. - Sou muito
gorda. E, além disso, não sei como hei-de fazer. Tu sabes muito melhor.
- Nesse caso, aceito, visto que tu queres -disse Sara.
Mas, uma nova idéia fê-la correr para a grelha enferrujada do fogão.
- Está cheia de lixo e papéis velhos ! - exclamou ela. - Deitemos-Lhe
fogo. Fará, durante alguns minutos, uma linda chama, e imaginaremos que
temos na realidade, o fogão aceso.
Pegando num fósforo, juntou a ação às palavras e a mansarda ficou toda
iluminada.
- Quando os papéis acabarem de arder - disse Sara - esqueceremos que
foi um simulacro de fogueira. (Enquanto falava, conservava-se sorridente junto
das chamas). Parece mesmo que é verdade, não parece? perguntou ela. Agora
vamos dar começo à festa.
Com um gesto gracioso, indicou a mesa, com a mão, a Hermengarda e a
Becky. Vivia, cada vez mais, o seu sonho.
- Aproximai-vos, gentis damas - disse ela - e tomai lugar na mesa do
banquete. O rei, meu nobre pai, que partiu para uma longa viagem, ordenou-
me que o substituísse junto de vós.
E, voltando a cabeça para o fundo da mansarda, continuou:
-Que os menestréis façam ressoar violas e oboés... As princesas -
explicou ela, ràpidamente, às companheiras - tinham sempre músicos que
tocavam durante as refeições. Imaginemos que há ali uma galeria cheia de
menestréis.
Ainda mal tinham comido, cada uma, um bocado de bolo, quando as três
empalideceram e se levantaram, de ouvido atento na direção da porta.
Não havia engano. Alguém subia a escada. As três crianças
reconheceram os passos que tanto temiam e compreenderam que chegara o
fim do seu lindo sonho.
- Lá vem a senhora - disse Becky, com a voz estrangulada e deixando
cair o bolo.
- Sim - confirmou Sara, em cujo rosto pálido se distinguia apenas dois
olhos imensos. - Miss Minchin ouviu-nos.
Com um gesto brusco, miss Minchin abriu a porta. Também ela estava
pálida, mas de cólera, e o seu -olhar ia dos três rostos apavorados para a mesa
do banquete e da mesa para a última labareda do papel que acabava de arder
no fogão.
- Eu já suspeitava... - gritava ela - mas nunca poderia acreditar em
semelhante audácia. Lavínia tinha razão!
Assim, fora Lavínia quem descobrira o segredo e as atraiçoara! Miss
Minchin dirigiu-se a Becky e pela segunda vez, esbofeteou a pobrezinha.
- Atrevida - disse ela. - Sairás desta casa amanhã de manhã!
Sara conservava-se imóvel e branca como mármore. Hermengarda
começou a chorar.
- Oh! Não a despeça, miss Minchin - suplicou-a. - A minha tia mandou-me
um presente e nós fizemos uma festa...
- Bem vejo - respondeu a diretora, com glacial ironia. - E a princesa Sara
presidia à mesa.
Ao dizer isto, voltou-se, furiosa, para Sara, gritando:
-A culpa é toda tua! Hermengarda nunca teria semelhante idéia. Foste tu
quem decorou o quarto com todas estas porcarias!
E voltando-se de novo para Becky:
- Volta imediatamente para o teu quarto.
Becky fugiu, com a cabeça escondida debaixo do avental.
- Quanto a ti - continuou Miss Minchin, dirigindo-se a Sara - ficará privada
de almoço, jantar e ceia.
- Já hoje não almocei, não jantei, nem ceei - Miss Minchin - disse Sara,
com a voz muito sumida.
-Tanto melhor! Não te esquecerás tão depressa... Não fiquem a olhar
para mim. Metam tudo dentro da caixa.
Ao dizer estas palavras, deu com os olhos nos livros de Hermengarda.
- A menina atreveu-se a trazer os seus magníficos livros para esta
mansarda... Pegue neles, já! e vá para a cama. Amanhã não sairá do quarto, e
vou escrever ao seu pai. Que diria ele se soubesse onde a menina veio este
serão!
O olhar profundo e singular de Sara fê-la interromper.
- Em que estás a pensar? - perguntou Miss Minchin, ásperamente. -
Porque olhas assim para mim?
- Estou a refletir! - respondeu Sara, como já fizera uma vez na sala de
estudo.
- Em quê? Diz!
Parecia a repetição da mesma cena. Não havia a menor insolência na
voz de Sara. Era calma e triste.
- Perguntava a mim própria - disse ela, lentamente -, no que diria o meu
pai se soubesse onde eu estou, este serão...
Como no dia da famosa cena, Miss Minchin perdeu o domínio de si
própria. Agarrou a pequena pelos ombros e sacudiu-a com brutalidade!
- Insolente! -gritou ela. - Como te atreves tu... Atirou com os livros e os
bolos, tudo misturado, para dentro da caixa, e pô-la sobre os braços de
Hermengarda, ao mesmo tempo que dizia a Sara:
- Deixo-te com as tuas reflexões. Deita-te imediatamente.
Empurrando a pobre Hermengarda, fechou a porta e Sara ficou sozinha.
O sonho, tão lindo, acabara. Na grelha não havia senão papel queimado;
a baixela, os guardanapos de renda e as grinaldas tinham voltado a ser lenços
usados, papel de seda branco e vermelho, e velhas flores artificiais que
juncavam o chão; os menestréis haviam desaparecido e o som das violas
extinguira-se. Restava apenas Emily, sentada junto da parede; tinha o ar de
ver qualquer coisa estranha, com os seus grandes olhos redondos. Sara
reparou nela e, com as mãos tremulas, pegou-Lhe.
-Acabou-se o banquete, Emily, e acabaram-se as princesas. Só ficaram
os prisioneiros da Bastilha.
Sentando-se no velho banco, escondeu a cabeça entre os braços.
... Que teria acontecido se, em vez de tapar os olhos, ela os tivesse
levantado para a trapeira, justamente nesse momento? Ninguém sabe. Talvez
que o fim deste capítulo fosse diferente... Porque se Sara tivesse erguido os
olhos, teria visto, através da vidraça, o mesmo rosto bronzeado que já, ao
começo da noite, a estivera contemplando e a Hermengarda, enquanto
conversavam.
Mas Sara não se movia. Ficou muito tempo com a cabecinha morena
deitada sobre os joelhos, como fazia sempre que procurava suportar
corajosamente uma nova provação. Por fim, levantou-se e aproximou-se
lentamente da cama.
- Hoje não posso imaginar mais nada - murmurou ela. - É inútil tentar.
Talvez, se eu adormecer, venha algum sonho "imaginar" por mim...
Sentia-se, sùbitamente, tão cansada - talvez por não ter comido durante
todo o dia, que quase tombou, desfalecida, sobre o leito.
- Suponhamos - recomeçou ela, entretanto, suponhamos que há um bom
lume no fogão, com muitas labaredazinhas azuis, que dançam; suponhamos
que, em frente do lume, se encontra uma mesinha sobre a qual... Sobre a qual
está servida uma ceia bem quente. E suponhamos - continuou a pobre
pequena, embrulhando-se no velho cobertor , suponhamos que eu estou
deitada numa caminha macia, com espessos cobertores e grandes almofadas
de sumaúma. Suponhamos... Suponhamos...
E aquela grande e súbita fadiga transformou-se, quase, num benefício,
porque os olhos fecharam-se-lhe e ela adormeceu profundamente.
Quanto tempo dormiu? Não podia fazer a menor idéia. Mas dormia tão
pesadamente, que toda a família Rodilard, pais, filhos e filhas, correndo e
galopando através da mansarda, não teriam sido capazes de despertá-la do
seu profundo sono.
Quando acordou, quase de repente, não teve a impressão de haver sido
despertada por qualquer coisa. E, no entanto, fora um ruído verdadeiro que a
chamara à realidade - o ruído seco feito pela janela que se fechava, depois de
ter deixado passar uma forma branca e silenciosa que, apenas se encontrou no
telhado, se alongou, sem ruído, sobre as ardósias, bastante próximo, para ver
o que se passava no interior da mansarda, mas não tanto que pudesse ser
visto por Sara.
Sara não abriu logo os olhos. Ainda tinha sono e, coisa curiosa,
experimentava uma doce impressão de calor, uma impressão tão boa, que não
podia acreditar que estivesse realmente acordada: um sonho, só um sonho
podia dar-lhe tal sensação de completo bem-estar.
- Que bom sonho -- balbuciou ela. - Estou tão quentinha! Eu... Eu
queria... Não acordar.
Evidentemente, só podia ser um sonho. Parecia-lhe que os cobertores
que a agasalhavam eram leves e quentes. Na verdade, ela estendeu as mãos e
os seus dedos apalparam qualquer coisa como um edredon de sumaúma,
forrado de cetim... Ficaria muito quieta para não quebrar o encanto...
Mas era mais forte do que ela; havia no quarto qualquer coisa que a
forçava a abrir os olhos: uma sensação luminosa e um ruído - o mesmo ruído
que faria um lume crepitante.
"Oh! Estou a acordar - pensava ela, com desespero". - E não posso
impedir que isso aconteça!” Os olhos abriram-se ,apesar de ela não querer. E.
então, sorriu, porque viu o que nunca tinha visto no sótão, e o que não tornaria
mais a ver.
- Não estou acordada - murmurou, erguendo-se sobre o cotovelo e
olhando para todos os lados. - O sonho continua.
Tinha a certeza de estar sonhando: o que ela julgava ver não podia
existir na realidade.
Eis o que via: - Na grelha ardia um belo lume vermelho e, sobre esse
lume, estava uma pequena vasilha de cobre, onde a água fervia, a cantar;
sobre o sobrado, um espesso tapete vermelho; em frente do lume uma
poltrona articulada, aberta e cheia de almofadas; junto da poltrona uma
mesinha também articulada, coberta com uma toalha branca, e sobre a qual se
encontravam pratinhos com as suas tampas, uma chávena com o seu pires e
um bule; sobre o leito estavam cobertores novos e quentes, assim como um
edredon de cetim; ao pé da cama havia um curioso roupão de seda
acolchoada, um par de pantufas forradas de pele e alguns livros. O miserável
quarto tornara-se um lugar maravilhoso e uma claridade iluminava tudo,
porque em cima da mesa havia um bonito candeeiro, com um quebra-luz cor-
de-rosa.
Sara olhava, sempre apoiada no cotovelo; o coração batia-lhe
desordenadamente.
- A visão não desaparece - dizia ela, ofegante. - Oh! Nunca tive um
sonho tão bonito como este!
Não se atrevia a mexer-se; mas, por fim, afastando a roupa, pôs um pé
no chão.
- Estou a sonhar que me levanto - ouviu ela dizer a sua própria voz.
E quando, já de pé, olhava lentamente à sua volta, foi dizendo:
- Estou a sonhar que o meu sonho continua; sonho que é verdade. Estou
enfeitiçada! Imagino que vejo tudo isto...
Falava cada vez mais depressa.
- Se eu puder continuar a crer que é verdade, pouco me importa que
seja um sonho... Não é verdade! Não pode ser verdade. Mas, meu
Deus! Como tudo isto parece verdadeiro.
O lume atraiu-a.Ajoelhou em frente da grelha e estendeu as mãos tão
perto, que o calor intenso fê-la recuar.
- Um fogo de sonho não me queimaria – disse ela em voz alta.
Levantou-se e foi tocar na mesa, no tapete, no bule. Tocou nos
cobertores, pegou no roupão acolchoado e encostou-o à cara.
- É quente! É macio - dizia ela, com lágrimas na voz. É verdade! Tudo
isto é verdade!Pôs o roupão sobre os ombros e enfiou os pés nas pantufas.
- Tudo isto é real! Eu... Eu não sonho! exclamou.
Quase a cambalear, dirigiu-se para os livros e abriu o que estava ao de
cima.Na primeira página estava escrito: "Para a menina da mansarda. Da parte
de um amigo".
Ao ler isto, Sara escondeu o rosto entre as folhas do volume e rompeu
em soluços.
- Não sei quem é - dizia ela. - Mas alguém pensa em mim! Tenho um
amigo!
Pegou no castiçal e, em bicos de pés, foi ter com Becky. Junto do leito
parou, chamando, nervosamente.
- Becky! Becky! Acorda!
Quando Becky, com a cara ainda toda suja de lágrimas, abriu os olhos,
viu diante de si uma pequena silhueta envolta num luxuoso e bonito roupão
carmesim. Um lindo rosto resplandecente olhava para ela: a princesa Sara
estava a seu lado, com o castiçal na mão.
-Vem - dizia-lhe ela. – Oh! Becky, despacha-te!
Becky estava tão espantada, que não podia falar. Levantou-se e, com os
olhos dilatados e a boca aberta, seguiu Sara, sem dizer palavra.
Quando entraram no quarto de Sara, esta fechou a porta devagarzinho
e, afetuosamente, levou a companheira até junto de todas aquelas maravilhas,
diante das quais ela própria sentia o coração palpitar e a cabeça andar à roda,
e disse-Lhe:
-Tudo isto é verdadeiro! Não é um sonho. Toquei em tudo. Tudo é tão
real como nós. O Feiticeiro veio, Becky, e trabalhou enquanto nós dormíamos:
o Feiticeiro que nunca permite que sejamos infelizes até ao fim.
O VISITANTE
Agora, imaginemos, se é possível, o que foi o resto da noite. Imaginemos
as duas crianças sentadas sobre o tapete, em frente do lume que enchia de
fulgor a triste grelha, toda enferrujada. Pensemos na sua alegria quando, ao
levantar as tampas dos pratinhos, descobriram um bom caldo, ainda
fumegante, sanduíches, torradas com manteiga e bolos em quantidade
suficiente para as duas. A velha campainha que estava em cima da cômoda
serviu de chávena a Becky, e o chá estava tão bom, que era perfeitamente
escusado "supor" fosse o que fosse ao bebê-lo. As duas amigas, bem
quentinhas, sentiam-se reconfortadas; estavam contentíssimas; e Sara,
convencida, finalmente, de que o seu sonho era realidade, abandonava-se ao
prazer de gozar completamente aquele bem- estar.
À força de viver sempre num mundo imaginário, chegava a considerar
naturais os acontecimentos mais incompreensíveis, e a deixar de ver neles o
que quer que fosse de misterioso.
-Não conheço ninguém que pudesse fazer-me semelhante surpresa;
mas, enfim, esse alguém existe. Porque, eis-nos sentadas junto do lume... E
esse lume arde e aquece! Em todo o caso, Becky, eu tenho um amigo. Há
alguém, neste mundo, que é meu amigo.
Continuando sempre a aquecer-se e a fazer honra à substancial e
saborosa refeição, as duas pequenas olhavam uma para a outra, com ar de
interrogação, e a maravilha que as rodeava fazia nascer nas suas alminhas
uma espécie de deslumbramento quase assustado.
- Não acha - murmurou Becky, com voz tremula - que tudo pode muito
bem desaparecer, e que nós faríamos melhor se nos despachássemos?
E, juntando a ação às palavras, meteu metade de um sanduíche na
boca.
"Palavra - pensava ela - se não é mais do que um sonho, podemos muito
bem pôr de parte as cerimônias... "
- Não - respondeu Sara -, nada desaparecerá. Eu como este bolo, a valer,
saboreio-lhe o gosto. Nos sonhos nunca se come a valer. Além disso, já me
queimei umas poucas vezes, de propósito, e agora mesmo toquei numa brasa.
Asseguro-te que a senti...
O sono reparador, que as ia dominando pouco a pouco, dava-Lhes
também uma sensação agradabilíssima. Era o doce entorpecimento que se
apodera das crianças felizes, bem alimentadas e amimadas. Ficaram assim,
todas penetradas de bem-estar, até ao momento em que Sara se surpreendeu
a olhar para o lado do seu leito transformado. Havia bastantes cobertores para
dividir com Becky, que teve, nessa noite, uma cama como nunca tivera.
Ao deixar o quarto de Sara, Becky olhou longamente para todos aqueles
esplendores.
- Se amanhã de manhã não encontrarmos nada disto aqui, tivemos, ao
menos, o prazer deste serão, que eu nunca esquecerei - disse ela.
Olhava para cada objeto, um após outro, como para fixar para sempre,
na memória, a sua imagem.
- O bom lume - enumerava ela , a mesa em frente, o bonito candeeiro
cor-de-rosa; o edredon de cetim em cima da cama, o tapete no chão, todas
estas coisas tão boas...
E, ao dizer isto, punha a mão sobre o estômago, num gesto eloqüente.
- A magnífica sopa, as sanduíches, os bolos... tudo isto era verdadeiro...
E bem convencida, desta vez, de que também ela vivera o seu sonho,
foi-se embora.
Graças à telegrafia misteriosa que funciona entre as alunas do colégio e
os criados da mesma casa, toda a gente, no Colégio Minchin, sabia, logo na
manhã seguinte, que Sara Crewe estava em plena desgraça, que Hermengarda
fora condenada a ficar fechada no quarto e que Becky teria sido despedida,
logo de madrugada, se tivessem podido substituí-la imediatamente. Os criados
compreenderam que Miss Minchin a conservava porque lhe seria impossível
encontrar uma criança tão só e abandonada, que trabalhasse como uma
escrava, com um ordenado miserável. E as "grandes" diziam umas às outras,
baixinho, que, se Miss Minchin não punha Sara na rua, era porque lhe convinha
mais conservá-la.
-Ela cresce ràpidamente e aprende tudo com tanta facilidade - explicou
Jessie a Lavínia , que poderão confiar-lhe uma classe daqui a pouco tempo, e
nem sequer terão de Lhe pagar. Mesmo assim, Lavínia, foi mal feito da tua
parte ires denunciá-la, só porque ela se distraía um pouco lá no sótão. Como o
soubeste tu?
- Foi Lottie quem mo disse; ela é tão pequenina, que nem percebeu o
que eu a obrigara a contar.
Não vejo mal algum em ter ido prevenir Miss Minchin. Senti que era o
meu dever - acrescentou Lavínia num tom convicto.Porque Sara enganava Miss
Minchin. E ela é ridícula, com os seus ares importantes, mal vestida e quase
descalça como anda!
-Que faziam elas, três, quando Miss Minchin entrou?
- Oh! Tinham inventado não sei que estupidez como de costume.
Hermengarda levara um cesto com guloseimas para dividir com Sara e Becky.
A nós, nunca nos oferece nada... Para mim, isso é indiferente, mas acho
bastante vulgar ir misturar-se, assim, com as criadas, no sótão. Fiquei
surpreendida por Miss Minchin não ter expulsado Sara, embora perdesse,
assim, uma boa professôra.
- Para onde iria ela, se a expulsassem - perguntou Jessie, um pouco
inquieta.
- Sei lá - respondeu àsperamente Lavínia. Penso que ela deve ter um ar
comprometido, daqui a bocado, quando entrar na aula. Parece que, ontem, não
lhe deram de jantar e que será privada de comer hoje durante todo o dia.
Jessie era bastante superficial mas, no fundo, não era má. Pegou nos
livros, com gesto nervoso, e disse:
- É horrível! Miss Minchin não tem o direito de matá-la à fome!
Quando Sara entrou na cozinha, as crianças olharam-na de alto; mas ela
não deu nenhuma atenção. Ela e Becky haviam acordado um pouco tarde, e as
duas, sem trocar uma palavra, tinham-se apressado a descer.
Sara entrou na copa. Encontrou lá Becky, a esfregar vigorosamente uma
cafeteira e a cantarolar baixinho uma canção. Olhou para Sara com uma cara
satisfeitíssima.
-O cobertor ainda lá estava, quando eu me levantei - murmurou ela,
muito excitada. - Tal como ontem!
- Os meus também - respondeu Sara. - Não me falta nada. Enquanto me
vestia fui comendo um dos bocados de bolo que tinham sobejado.
- Oh meu Deus - exclamou Becky, com uma espécie de voluptuosidade.
Depois, bruscamente, baixou o nariz sobre a cafeteira, porque a
cozinheira acabava de chegar.
Tal como Lavínia, Miss Minchin esperava ver Sara muito deprimida.
Aquela pequena fora sempre um enigma, e um enigma irritante, porque a
severidade parecia não ter sobre ela a menor influência. Se lhe ralhavam,
escutava delicadamente, com um ar muito sério; se a castigavam, ou deixava
de jantar, não se lamentava nem mostrava exteriormente o menor sinal de
revolta. Miss Minchin achava que o facto de ela não responder, nem sequer
com uma palavra insolente, era, em si mesmo, uma insolência. Mas, desta vez,
depois da cena violenta da noite anterior e da perspectiva de passar todo o dia
em jejum, Sara acabaria por ceder... Decerto, ia aparecer muito pálida, de
olhos vermelhos, com um ar humilde e desgraçado.
Miss Minchin viu-a entrar na aula, para a lição de francês às pequeninas.
Caminhava com passo vivo; tinha boas cores e quase um sorriso nos lábios. A
diretora não podia acreditar no que via; sentiu como um choque desagradável.
De que espécie era esta criança? Fez-lhe sinal para se aproximar dela, e disse-
lhe:
-Parece ter-se esquecido de que está de castigo! Estará definitivamente
insensível?
Quando se é ainda criança, se comeu uma boa ceia e se dormiu muito
agasalhadinha; quando um bom sonho se tornou realidade, é muito difícil ter
um ar desgraçado e impedir os olhos de brilhar.
Miss Minchin ficou muda, quando Sara, olhando para ela, lhe deu esta
resposta, perfeitamente correta:
- Peço-lhe desculpa, Miss Minchin; eu sei realmente que fui castigada.
- Recomendo-lhe que o não esqueça e que não tome um ar triunfante,
absolutamente fora de propósito. E lembre-se, também, de que está privada de
comer durante o dia de hoje.
- Sei isso bem, Miss Minchin - respondeu Sara. E, ao voltar para o seu
lugar, o coração apertou-se-Lhe, ao recordar o dia da véspera.
"Se o Feiticeiro não tivesse vindo em meu socorro - pensava ela - hoje
seria terrível...”
- Não tem ar de ter fome - segredou Lavínia -Olha para ela. Talvez
"imagine" que comeu um bom almoço - acrescentou, com um risinho perverso.
- É diferente de toda a gente! - respondeu Jessie, que observava Sara no
meio das suas alunas.
- As vezes, chega a fazer-me medo...
- Meu Deus, como tu és ridícula - disse Lavinia.
Sara conservou até à noite o olhar brilhante e as faces frescas. As
criadas olhavam para ela, muito intrigadas, e os olhinhos azuis de Miss Amélia
estavam redondos de espanto: não podia acreditar em tanto aprumo da parte
de alguém que incorrera tão gravemente no desagrado de sua augusta mana!
Mas era bem uma atitude de Sara! Estava, sem dúvida, disposta a mostrar-se
indiferente...
Ao que Sara estava disposta, era a guardar o maior segredo possível
sobre os acontecimentos maravilhosos sucedidos no seu quarto. Se Miss
Minchin subisse novamente ao sótão, tudo seria descoberto, com certeza. Mas
parecia pouco provável que repetisse a ascensão, pelo menos naqueles
tempos mais próximos. O que ela ia, sem dúvida, era vigiar rigorosamente
Hermengarda e Lottie, que elas não se atreveriam a recomeçar as suas
expedições noturnas. Em todo o caso, recomendaria o maior segredo a
Hermengarda, e podia confiar nela. Se Lottie chegasse a descobrir qualquer
coisa, obrigá-la-ia a jurar que não diria nada. E, depois, o Feiticeiro ajudá-la-ia a
preservar a sua obra de olhares profanos.
- Mas, suceda o que suceder - repetia Sara consigo mesma, durante todo
o dia - há, em qualquer parte, sobre a Terra, um ser divinamente bom que é
meu amigo. Talvez eu nunca venha a saber quem é, e não possa agradecer-
lhe, mas nunca mais me sentirei tão só como até agora. Oh! O Feiticeiro foi
generoso!
O tempo tinha estado mau, na véspera; e continuou assim naquele dia;
úmido, lamacento e frio ao máximo. Havia imensos recados a fazer; a
cozinheira estava tal qual um porco-espinho e, como sabia a má disposição de
Miss Minchin em relação a Sara, não fazia a menor cerimônia em descarregar
também sobre ela o seu mau gênio. Mas, que importância pode ter tudo isso,
quando um socorro maravilhoso veio até nós, misteriosamente?
A bela ceia da noite anterior dera força a Sara; sabia que ia dormir
muito quentinha e, embora o estômago começasse de novo a gritar que tinha
fome- o que era naturalíssimo - sentia que poderia esperar, até ao dia seguinte
de manhã, que chegasse o fim do seu castigo.
Era já bastante tarde quando subiu para o quarto. O coração batia- lhe
com força assim que pôs a mão no fecho da porta.
"Talvez tudo tenha desaparecido!-pensava- procurando ser corajosa.
Naturalmente foi só para me ajudar a passar esta terrível noite. Mas, de
qualquer maneira, vivi, na realidade, horas deliciosas: não foi um sonho!"
Empurrou a porta e entrou. Por pouco não deixou escapar um grito.
Dominou-se, porém.
Fechou a porta e, encostando-se a ela, olhou para o quarto.
O Feiticeiro tinha voltado e fora ainda mais generoso do que na véspera.
O lume ardia; sobre a mesa estava uma nova ceia, e desta vez havia dois
talheres; um soberbo tecido bordado, com aspecto exótico, escondia a parte
superior da desmantelada chaminé. Todos os móveis velhos, partidos e
estragados, estavam escondidos sob panos de cores lindas; algumas
tapeçarias, presas por pregos tão finos, que era inútil o martelo para pregá-los,
dissimulavam as paredes esburacadas. Havia leques lindíssimos pendurados
aqui e ali, e grandes almofadas, sobre as quais se podia sentar, espalhadas no
tapete. Uma arca de madeira, coberta com um pano e guarnecida com mais
almofadas, fazia admiravelmente as vezes de divã.
Sara aproximou-se do lume, sentou-se e abriu muito os olhos, para ver
melhor.
- É como um conto de fadas que se tornasse realidade - murmurou ela.
Parece-me que bastaria eu manifestar um desejo: diamantes ou sacos cheios
de ouro e logo os veria aparecer! Não me espantava! Será esta a minha
mansarda? Serei eu a mesma Sara esfarrapada, encharcada e transuda de
frio... Quando penso em tudo o que eu imaginava e como desejava que
houvesse fadas! Pois bem! Eis-me vivendo um conto de fadas! Chega a
parecer-me que, por pouco, eu própria serei fada e transformarei tudo com a
minha varinha de condão.
Levantou-se e foi dar as pancadas regulamentares na parede. Becky
apareceu imediatamente.
Quando entrou, ia caindo no chão, espantada! Ficou muda, durante
alguns minutos. Por fim, balbuciou:
- Meu Deus! Meu Deus!
- Vês - exclamou Sara.
Naquela noite, Becky instalou-se sobre uma das grandes almofadas, em
frente do lume, e teve uma chávena e um pires verdadeiros, para tomar chá.
Quando, depois de cearem, Sara se foi deitar, encontrou um belo
colchão novo e um magnífico almofadão de sumaúma. A antiga enxerga e o
pequeno travesseiro que lhe haviam dado, tinham sido transportados para a
cama de Becky, que dormiu, assim, muito mais confortàvelmente.
- Donde pode vir tudo isto? - perguntava Becky, pasmada. - Meu Deus!
Quem pode fazer este milagre?
- Não queiramos saber - respondeu Sara. Se não fosse o grande desejo
que eu tenho de dizer, ao menos, "Obrigada!”, preferia não saber coisa
nenhuma. Seria ainda mais belo.
Desta forma, a vida das duas pequenas foi maravilhosamente
transformada, a partir desse dia. O conto de fadas continuava. Todas as noites,
quando Sara voltava para o sótão, descobria sempre um novo embelezamento.
As paredes decrépitas desapareciam a pouco e pouco, sob tapeçarias e
gravuras; engenhosos móveis desmontáveis iam aparecendo dia a dia; depois
foi uma pequena estante, cheia de livros; enfim, parecia não haver mais nada
que fosse possível desejar.
Quando Sara descia para a cozinha, de manhã, havia ainda, em cima da
mesa, os restos da ceia; ao regressar, à noite, o Feiticeiro tinha-os levado;
substituindo-os por uma esplêndida refeição.
Miss Minchin mostrava-se mais severa do que nunca; Miss Amélia
andava bastante rabugenta e a cozinheira sempre absolutamente insuportável.
Sara ia fazer recados, fosse qual fosse o tempo, e ouvia ralhar a propósito e
despropósito de tudo, chegando a levar empurrões. Só de longe em longe
conseguia trocar uma palavra com Hermengarda ou com Lottie.Lavinia olhava
com ar de desprezo e troça o seu velho vestido, todo remendado, e as outras
lançavam-lhe olhares curiosos, quando ela entrava na aula. Mas que importava
tudo isto a Sara, se estava vivendo no país das maravilhas? Era uma história
incomparávelmente mais espantosa do que todas as que ela imaginara para se
defender do desespero. Por vezes, quando lhe ralhavam, tinha dificuldade em
não sorrir.
"Se soubessem - pensava ela. – Oh! Se soubessem"
Quando voltava para casa, toda molhada, cheia de cansaço e fome,
reconfortava-a a idéia da boa ceia e do bom lume que encontraria lá em cima...
Mesmo durante os dias mais trabalhosos, conservava a sua melhor disposição,
pensando no que veria à noite, ao abrir a porta do quarto, e perguntando a si
própria que nova surpresa a esperaria... Não tardou a parecer menos magra.
As faces tornaram-se-lhe rosadas, e os olhos já não pareciam grandes de mais
para a sua carinha tão original.
- Sara Crewe está esplêndida - disse um dia Miss Minchin a Miss Amélia,
num tom de desaprovação.
- É verdade - respondeu imprudentemente a pobre Miss Amélia. -Está a
engordar, ela, que começava a parecer um corvo esfomeado...
-Esfomeada!-protestou sêcamente Miss Minchin. -Não tinha a menor
razão para parecer esfomeada! Sempre teve comida em abundância!
- Oh, com certeza, com certeza - concordou humildemente Miss Amélia,
assustada ao ver que, como de costume, fizera disparate.
-É desolador verificar semelhante disposição numa criança daquela
idade - disse Miss Minchin, com ar altivo e misterioso.
- Que disposição? - perguntou timidamente Miss Amélia.
- Dir-se-ia que pretende desafiar-nos - explicou a diretora, um tanto ou
quanto embaraçada, no fundo, porque sabia, perfeitamente, que não era
assim.
-Qualquer outra ter-se-ia sentido humilhada e teria cedido perante...
perante os acontecimentos que transformaram a sua vida. Mas aquela
pequena parece tão pouco disposta à submissão e à humildade como se fosse,
na realidade, uma princesa.
- Lembras-te - começou a imprudente Miss Amélia - da manhã em que
ela te perguntou o que farias, se descobrisses que ela era, realmente,
princesa?
- Não - interrompeu secamente Miss Minchin.
-Não digas tolices.
Mas lembrava-se melhor do que ninguém. A própria Becky criava
bochechas e perdia o ar de animal escorraçado. Também ela desempenhava o
seu papel no maravilhoso conto de fadas... Tinha agora dois colchões, duas
almofadas, os cobertores de que precisava, e todas as noites ceava
abundantemente, sentada sobre uma bela almofada, em frente do lume. Já não
se tratava da Bastilha, nem de prisioneiros; em vez destes, havia agora duas
pequenas que viviam num mundo de delícias.
Umas vezes, Sara lia em voz alta; outras, imóvel, olhava o lume com ar
ardente, pensando no amigo desconhecido a quem tanto gostaria de exprimir,
ao menos uma vez, uma pequena parte da gratidão de que o seu coração
estava cheio.
Depois, produziu-se uma nova maravilha. Um empregado de um
armazém levou ao colégio de Miss Minchin vários embrulhos, que eram, todos,
endereçados, em grandes letras, bem legíveis: "A menina que habita a
mansarda da direita.”
Foi mesmo Sara quem abriu a porta e pegou nos embrulhos. Colocou- os
sobre a mesa da antecâmara e estava a ler a direção quando Miss Minchin a
avistou:
- Leva imediatamente esses pacotes à sua destinatária - disse ela, com
severidade. - Não percas tempo a olhar.
- São para mim respondeu Sara, tranquilamente.
- Para ti - exclamou Miss Minchin. - Que queres dizer com isso?
- Não sei quem os manda - explicou Sara -, mas são-me dirigidos. Eu
durmo na mansarda da direita. Becky dorme na da esquerda.
Miss Minchin, muito agitada, aproximou-se para ver os embrulhos.
- Que contêm eles? - perguntou.
- Não sei - respondeu Sara.
-Abre-o ordenou Miss Minchin. Sara obedeceu. Na fisionomia de Miss
Minchin estampara-se uma grande perplexidade. Os pacotes abertos deixavam
ver sapatos, meias, luvas, um vestido, um casaco quente e confortável, e
mesmo um bonito chapéu e um guarda-chuva. Todos estes objetos eram de
excelente qualidade, e na algibeira do casaco haviam pregado, com um
alfinete, um papel onde estava escrito: "Para serem usados todos os dias.
Serão substituídos quando for necessário". Miss Minchin estava perturbada.
Este incidente inesperado despertava estranhas angústias na sua alma
mesquinha.
Se ela se houvesse enganado, e a criança tão mal tratada tivesse no
mundo algum amigo original, talvez um parente afastado, que houvesse
descoberto o seu rasto e se divertisse a velar por ela daquela forma
misteriosa?
Às vezes, há tios, velhos solteirões, muito ricos, que não gostam de ter
as sobrinhas em casa e preferem ocupar-se delas à distância. Pessoas desta
espécie são sempre caprichosas, impulsivas, e ofendem-se com a menor coisa.
Seria lamentável se algum parente de Sara aparecesse um dia, e
soubesse toda a verdade sobre os vestidos rotos, a alimentação insuficiente e
os trabalhos pesadíssimos...
Miss Minchin sentia-se pouco à vontade e olhava de lado, para Sara.
- Está bem! - disse ela, num tom que nunca tivera depois da morte do
capitão Crewe. - É alguém que se mostra verdadeiramente bom para ti.
Visto que te mandam essas coisas tão bonitas e que as substituirão
quando estiverem usadas,vai vesti-las imediatamente, e arranjar-te melhor.
Quando estiveres pronta, podes vir estudar com as tuas companheiras. Não te
ocupes mais de recados, por hoje.
Quando, meia hora depois, Sara entrou na sala de estudo, o colégio
inteiro ficou tomado de espanto.
- Será possível - exclamou Jessie, tocando no cotovelo de Lavínia. -
Olhem para a princesa Sara!
Todos os olhos estavam fixos nela. Lavínia olhava-a também e tornou-se
vermelha.
Era, realmente, a princesa Sara, que acabava de entrar. Nunca a tinham
visto assim, desde o dia da sua grande desgraça. As alunas não reconheciam
nela a pequena que haviam avistado duas horas antes, na escada de
serviço.Sara trazia novamente um vestido semelhante aos que Lavínia tanto
Lhe invejara - um vestido de linda cor e admiràvelmente feito. Estava bem
calçada, e os cabelos, todos em caracóis negros, que lhe davam um ar de
"pony" espantado quando ela os trazia soltos sobre o rosto, estavam agora
cuidadosamente seguros por uma fita.
- Talvez tivesse recebido uma herança! - murmurou Jessie. - Sempre tive
a idéia de que lhe aconteceria qualquer coisa extraordinária. É tão original!
- Ou talvez as minas de diamantes dessem notícias... - disse
maldosamente Lavínia. - Não fiques agora espantada diante dela, parva!
- Sara! - disse gravemente Miss Minchin. Venha sentar-se aqui!
E, perante os olhos maravilhados das condiscipulas, que não podiam
dissimular a sua intensa curiosidade, Sara retomou o lugar de honra que
ocupava dantes, e curvou-se tranquilamente sobre os cadernos.
Naquela noite, quando Becky e ela acabaram de tomar o seu chá, Sara
sentou-se sobre o tapete e ficou durante muito tempo silenciosa, a olhar
vagamente para as labaredas do fogão.
- Está a imaginar alguma coisa – perguntou Becky, respeitosamente.
Porque Becky sabia que, quando Sara olhava para o lume com aqueles
olhos sonhadores, havia em geral, alguma bela história em preparação...
Mas,naquela noite, Sara abanou a cabeça e respondeu:
-Não. Procuro, apenas, saber o que devo fazer.
Becky considerava-a sempre com respeito. Sentia qualquer coisa, como
se fosse veneração, por tudo quanto Sara fazia ou dizia.
- Não posso deixar de pensar no meu amigo ,explicou Sara. - Se ele não
quer dar-se a conhecer; será indelicado da minha parte tentar adivinhar
quem ele é. Mas gostava tanto que soubesse como lhe estou reconhecida e
como foi grande a felicidade que ele me deu! Porque, aqueles que têm bom
coração, gostam de fazer os outros felizes. Isso hes é ainda mais agradável do
que receber agradecimentos.
Eu gostava... Eu gostava muito...
Naquele momento, os seus olhos fixaram-se sobre uma mesinha que
ocupava um dos cantos do quarto. Tinha-a avistado ali, numa das noites
anteriores, ao entrar. E sobre a mesa encontrava-se uma bonita pasta com
papel, sobrescritos e tudo quanto é preciso para escrever.
- Oh - exclamou ela. - Porque não pensei nisto mais cedo?
Levantou-se e trouxe a mesinha para junto do lume.
- Vou escrever-lhe - disse ela alegremente. Deixarei a carta bem à vista,
sobre a mesa, e talvez a pessoa que traz a ceia compreenda e a leve. Não
pedirei nada mais ao meu amigo; e estou convencida de que os meus
agradecimentos não o farão zangar.
Eis o que dizia a carta de Sara:
"Espero que não ache indelicado da minha parte escrever-lhe este
bilhete, visto que não quer dar-se a conhecer. Peço-lhe que não imagine que
eu procuro descobrir qualquer coisa; eu quero agradecer-lhe o ser tão bom
para mim, tão divinamente bom, e ter feito da minha vida um belo conto de
fadas. Estou-lhe tão reconhecida e sou tão feliz! - e Becky é tão feliz e está tão
reconhecida como eu, porque, tal como eu, ela também vive, presentemente,
no mundo das maravilhas. Nós estávamos abandonadas, tínhamos frio e fome;
e como tudo mudou, graças à sua bondade! Peço-lhe que me deixe dizer-lhe
uma só palavra: obrigada, obrigada, oh! muito obrigada!
A pequena da mansarda.”No dia seguinte, colocou a carta sobre a mesa,
e, quando voltou, à noite, a carta tinha sido levada. Sara soube assim que o
Feiticeiro a recebera, e este pensamento foi-lhe muito doce e consolador.
Depois do chá, estava ela a ler um dos livros novos, para Becky ouvir, quando
um ligeiro ruído, que parecia vir da trapeira, chamou a sua atenção. Levantou
os olhos e viu que Becky também ouvira, porque levantara a cabeça e parecia
assustada.
- Há qualquer coisa lá em cima - murmurou ela.
- Sim - respondeu Sara, baixinho. - Dir-se-ia um gato que quer entrar.
Aproximou-se da janela. Ouvia- se como que um ligeiro arranhar. De
repente, Sara começou a rir: recordava-se de certo pequeno intruso que já uma
vez entrara na mansarda, e que ela avistara naquele mesmo dia,
melancòlicamente sentado em cima da mesa, em frente da janela do
cavalheiro da Índia.
- Se fosse o macaquinho - disse ela alegremente - o macaquinho que
tivesse fugido outra vez? Oh gostava bem que fosse ele!
Subiu a uma cadeira, abriu a janela com precaução e olhou para fora.
Nevara durante todo o dia e ali mesmo ao pé, sobre o manto branco que cobria
o telhado, avistou um corpinho trêmulo, cujo focinho preto se estendia
suplicante para ela.
-É o macaco! -exclamou. - Fugiu pelas águas-furtadas do "lascar", e a
nossa luz atraiu-o.
Becky tinha- se aproximado também.
- Vai deixá-lo entrar? - perguntou ela.
- Naturalmente - respondeu Sara. - Faz muito frio lá fora, para os
macacos, e eles são muito delicados. Vou ver se o agarro.
Estendeu a mão para o macaco, falando-lhe ao mesmo tempo, com
doçura, tal como costumava falar aos passarinhos e a Rodilard. A sua alma
sensível inclinava-se ternamente para tudo o que era pequenino, tudo o que
sofria e era tímido.
- Vem, querido dizia ela. - Eu não te faço mal. O macaco percebeu muito
bem que ela não lhe faria mal; tinha-o compreendido ainda antes de ela lhe
tocar. Adivinhara que os dedinhos de Sara lhe pegariam com o mesmo cuidado
que os longos dedos bronzeados de Ram Dass. Deixou-se agarrar dócilmente e,
quando se viu nos braços de Sara, envolveu-se junto do seu peito e pegou-lhe
delicadamente numa madeixa de cabelos, olhando-a com fixidez.
- É gentil o macaquinho - repetia Sara, com doçura, beijando-lhe a
cabeça. -Gosto tanto dos animais pequeninos!
O macaco estava encantado por se aproximar do lume, e quando Sara
se sentou, instalou-se sobre os joelhos, pôs-se a olhar para ela e para Becky
com simpático interesse.
- É esquisito, não é? - disse Becky.
- Parece um bebê muito feio - respondeu Sara a rir. - Peço-te desculpa,
amigo macaquinho, mas gosto mais que não sejas realmente uma
criança.
Nem mesmo a tua mãe seria capaz de se envaidecer contigo e ninguém
se atreveria a dizer: "Oh, como ele se parece com o pai... , mas gosto de
ti mesmo assim.
Depois, encostou-se para trás, na poltrona, com ar pensativo.
- Talvez ele tenha pena de ser tão feio – disse ela - e pense
constantemente na sua fealdade. Pensará ele realmente nalguma coisa?
Macaquinho, meu pequenino, tu tens alma?
Por única resposta, o macaco levou a pequena mão à cabeça e coçou-se
conscienciosamente.
- Que vai agora fazer-lhe?- perguntou Becky.
-Vou deixá-lo aqui ficar esta noite. E amanhã levo-o ao cavalheiro da
Índia.Tenho pena de ficar sem ti, meu querido macaquinho, mas assim é
preciso. Tu deves preferir viver com a tua verdadeira família; e eu não sou
mais do que uma parente de ocasião...
Quando se foi deitar, arranjou-lhe um ninho junto do leito; o macaquinho
fez-se numa bola e adormeceu, como uma criança encantada com a sua nova
casa.
No dia seguinte, três membros da "Grande Família" encontravam-se
reunidos na biblioteca do cavalheiro da Índia, fazendo quanto podiam para o
distrair. De resto, só estavam autorizados a visitá-lo quando ele próprio lhes
mandava pedir que viessem. Nos últimos tempos, O Sr. Carrisford vivia numa
grande incerteza e, naquele dia, essa incerteza transformara-se em verdadeira
ansiedade, porque esperava o regresso de Carmichael, cuja permanência em
Moscou se prolongara mais do que contava. Ao chegar, tivera grande
dificuldade em descobrir as pessoas que procurava. Quando conseguiu saber a
sua direção, foi informado de que andavam em viagem, e decidiu esperar o seu
regresso a Moscou.
Carrisford estava sentado na sua grande poltrona, e Janet instalara- se
no chão, ao seu lado. Janet era a sua preferida. Nora ocupava um banco
baixinho e Donald montava a cabeça de pele de tigre que servia de tapete.
Diga-se, de passagem, que ele "guiava" bastante ruidosamente a sua
montada.
- Não faça tanto barulho, Donald - disse-Lhe Janet. - Quando se deseja
distrair alguém que está doente, não é preciso gritar. Talvez estejamos a fazer
muito ruído, Sr. Carrisford?
Mas o cavalheiro da Índia limitou-se a bater-lhe afetuosamente no ombro
e disse:
-Absolutamente nada. Até é bom, porque me impede de pensar mais...
- Vou estar quieto - anunciou Donald, numa voz vibrante. - Ficaremos
todos caladinhos como ratos.
- Nunca os ratos farão tanto barulho - observou Janet.
- Mas se forem muitos? - objetou Donald.
-Era preciso que fossem cinqüenta mil, e mesmo assim... - disse
severamente a irmã. - E nós, nós não devemos fazer mais barulho do que um
só rato.
Carrisford pôs-se a rir.
- O papá não deve tardar - disse Janet. Podemos falar da menina que ele
procura?
- Parece-me, até, que, neste momento, não podemos falar de outra
coisa! - respondeu o cavalheiro da Índia, com ar abatido.
- Nós gostamos muito dela - declarou Nora. Chamamos-lhe "a
princesinha quase fada".
- E por quê? - perguntou ele, interessado.
Os ditos e os gestos da "Grande Família" ajudavam-no a esquecer um
pouco o seu único cuidado. Porque - explicou Janet - ela será tão rica, quando
a encontrarem, que será como uma princesa de contos de fadas.
- É verdade - perguntou Nora - que o pai dela tinha empregado todo o
dinheiro que possuía na mina de diamantes de um amigo, e que este amigo,
julgando tudo perdido, fugiu, convencido de que era um ladrão?
- Mas, na realidade, não era – acrescentou Janet.
O cavalheiro da Índia pegou-lhe na mão e respondeu:
-Não; não era um ladrão.
- Tenho tanta pena desse amigo - continuou Janet. Se o dinheiro parecia
estar perdido, a culpa não foi dele, e eu tenho a certeza de que isso lhe causou
um grande desgosto.
-Compreendes muito bem as coisas Janet respondeu Carrisford,
apertando mais a mãozinha que conservava na sua.
- Já falaste ao Sr. Carrisford na "pequena que não é mendiga" - gritou
Donald, com toda a força. - Já Lhe disseste que ela tem vestidos novos? Talvez
ela também andasse perdida e a tivessem encontrado.
- Chegou agora uma carruagem - exclamou Janet. - Parou em frente da
porta. É o papá!
Correram todos para a janela.
- Sim, é o papá - proclamou Donald. - Mas não vem nenhuma menina
com ele!
As duas irmãs e o pequenino precipitaram-se para a entrada e ouviam-
se saltar, bater as palmas e soltar gritos de alegria, enquanto o pai os beijava
um por um.
Carrisford fez um esforço para se levantar, mas deixou-se tombar de
novo na poltrona.
- É inútil - murmurou ele, tristemente. - Como eu estou doente!
Ouvia-se a voz de Carmichael, que se aproximava.
- Não, meus filhos - dizia ele - vocês voltarão quando eu tiver acabado
de falar com o Sr. Carrisford. Agora vão brincar com Ram Dass.
Depois entrou, bem disposto e ágil, como de costume. Dir-se-ia que a
saúde e o bom humor entravam também com ele. No entanto, a sua fisionomia
exprimia um certo desânimo, quando apertou, com afeto, as mãos do doente
que o olhava ansiosamente.
- Então - perguntou Carrisford. - E a criança adotada pelos russos?
- Não é a mesma que nós procuramos - respondeu Carmichael. - É
muito mais nova que a filha do capitão Crewe e chama-se Emily Carew.Vi-a e
falei-lhe. A família russa deu-me todas as explicações possíveis.
O cavalheiro da Índia parecia bem desanimado e triste. A sua mão
deixou cair a de Carmichael.
-Nesse caso, é preciso recomeçar as pesquisas. Eis tudo! - disse ele. -
Sente-se um pouco, peço-lhe.Carmichael obedeceu. Pouco a pouco, tinha-se
dedicado profundamente áquele homem tão desgraçado. Sentia-se, ele
próprio, tão rico de felicidade que um desgosto assim tocava o mais fundo da
sua alma. Se, naquela grande casa vazia, se ouvisse,um dia, uma voz infantil,
como tudo seria diferente!E não podia suportar a idéia de que o seu pobre
amigo estivesse condenado a viver sempre sob o pesadelo daquele remorso e
daquela idéia fixa.
- Então - disse ele, na sua voz quente e reconfortante.Havemos de
encontrá-la!
-É preciso voltar a pôr-se imediatamente em campo, sem perda de
tempo - disse nervosamente Carrisford.Tem um projeto, uma idéia qualquer?
Carmichael, também um pouco agitado, levantou-se e começou a andar para
trás e para diante ao longo da sala, com ar indeciso e preocupado.
- Pois bem. - disse ele, por fim. - A idéia que me ocorreu, há pouco, no
comboio que me trazia de Dôver, é esta: A criança está, com certeza, em
qualquer parte. Já corremos todos os colégios de Paris. Abandonemos Paris e
procuremos em Londres.
-A verdade é que não faltam aqui colégios de meninas - disse Carrisford,
e estremeceu ligeiramente.
- Depois concluiu: - Há um, exatamente na casa contígua a esta.
- Muito bem! Começaremos por aí. Não podia ser mais perto.
- Há neste colégio - continuou Carrisford - uma criança por quem me
interesso; mas não é aluna. É uma pobre pequena abandonada, muito morena
e parecendo-se o menos possível com o pobre Crewe.
O Feiticeiro estaria novamente em acção, naquele minuto preciso? Fosse
como fosse, a verdade é que Ram Dass entrou, enquanto o patrão ainda estava
a falar, e inclinou-se profundamente, com um imperceptível clarão nos grandes
olhos escuros.
- "Sahib- disse ele - está ali a menina, aquela que tocou o seu coração.
Traz o macaco que tornou a fugir para o quarto dela, pelo telhado. Disse-lhe
que esperasse. Pensei que agradará, talvez, ao "sahib" vê-la e falar-lhe.
- Quem é? - perguntou Carmichael.
- Ninguém sabe-respondeu Carrisford: É, justamente, a criança de quem
lhe estava a falar, a pequena do colégio vizinho.
E, voltando-se para Ram Dass:
- Sim, gostaria de vê-la! Manda-a entrar...
- Durante a sua ausência - explicou ele a Carmichael - eu ia
desesperando de tudo. Os sombrios dias de Inverno pareciam-me
intermináveis. Como Ram Dass me tivesse falado do abandono e desconforto
em que vivia esta criança, organizamos uma pequena conjura, digna de um
romance, para a socorrer. Era quase pueril, mas, ao menos, o meu cérebro
estava ocupado. De resto, sem ajuda do meu ágil e silencioso Ram Dass, não
poderíamos ter feito nada.
Foi nesse instante que Sara entrou na biblioteca. Trazia ao colo o
macaquinho, que se via perfeitamente não ter o menor desejo de deixá-la.
Agarrava-se a ela soltando gritinhos. Quanto a Sara, a comoção que sentia por
se encontrar em casa do cavalheiro da Índia, tornava-lhe coradas as faces,
habitualmente pálidas.
- O macaquinho tornou a fugir - disse ela, na sua voz musical.Encontrei-o
ontem, à noite, junto da minha janela e, como fazia muito frio, deixei-o ficar no
meu quarto. Tê-lo-ia trazido imediatamente, se não fosse tão tarde. Mas eu
sabia que o senhor estava doente e pensei que não gostaria de ser
incomodado.
Os olhos profundos de Carrisford fitaram-se em Sara com viva
curiosidade.
- Foi uma gentil atenção da sua parte,disse ele. Sara olhou para Ram
Dass, que se conservava imóvel junto da porta.
- Deseja que o entregue ao "lascan" - perguntou ela.
- Como sabe a menina que é um "lascan"?Perguntou o cavalheiro da
Índia, sorrindo ligeiramente.
- Oh! Eu conheço os "lascars" - explicou Sara, entregando a Ram Dass o
macaquinho, que se mostrava muito contrariado. Nasci na Índia.
O cavalheiro da Índia ergueu-se tão vivamente e olhou para Sara com
uma fisionomia tão alterada, que ela ficou interdita.
- Nasceu na Índia! - exclamou ele. - Venha ao pé de mim! -acrescentou
Carrisford, estendendo-lhe a mão.
Sara aproximou-se e deu- lhe a mão. Não se mexia e olhava com
inquietação para ele. Parecia tão agitado...
- Mora na casa vizinha - perguntou Carrisford.
- Sim. No colégio de Miss Minchin.
- Mas não é aluna.
Os lábios de Sara desenharam um leve sorriso. Hesitou um pouco.
Depois respondeu:
- Não sei perfeitamente o que sou...
- Por quê?
-Ao principio era uma aluna e tinha tudo quanto queria;mas agora...
- Era uma aluna E presentemente o que é?
O estranho sorriso, um pouco triste, reapareceu no rosto de Sara.
-Durmo no sótão, ao lado da ajudante de cozinheira - respondeu ela.
Faço recados para a cozinheira e tudo o mais que me mandam, e ajudo as
alunas mais pequeninas a estudar as lições.
- Interrogue-a, Carmichael - disse Carrisford, que se deixara cair,
exausto, na poltrona. - Interrogue-a; eu não tenho forças para isso.
O excelente papá da "Grande Família" sabia conversar com crianças.
Sara compreendeu-o imediatamente, logo que ele Lhe dirigiu as primeiras
palavras, com voz afetuosa:
- Ouça minha filha: Que quer dizer "ao princípio"?- perguntou ele.
-Quando o meu pai me trouxe para aqui.
- E onde está o seu pai?
- Morreu - respondeu Sara, muito docemente: O meu pai tinha perdido
tudo quanto possuía; eu fiquei sem nada e não apareceu ninguém para se
ocupar de mim ou pagar a Miss Minchin.
- Carmichael!-gritou o cavalheiro da Índia. Carmichael!
- Não a assustemos - respondeu Carmichael, em voz baixa.
E, levantando novamente a voz, dirigiu-se a Sara:
-Foi então que a mandaram para o sótão e transformaram em criada. É
isto, não é verdade?
- Eu não tinha familia nem dinheiro - repetiu Sara. - Não pertencia a
ninguém...
- Como foi que o seu pai perdeu a fortuna?-interrompeu o cavalheiro da
Índia, ofegante.
- Não foi ele que a perdeu - respondeu Sara, cujo espanto aumentava de
minuto a minuto. O meu pai tinha um amigo que se utilizou do dinheiro dele. O
papá teve demasiada confiança nesse amigo...
O cavalheiro da Índia respirava cada vez com mais dificuldade.
- Esse amigo não teve, talvez, a intenção de fazer mal - disse ele. Foi
tudo, decerto, o resultado de um erro.
Sara nem avaliava como a sua voz, clara e tranqüila, parecia inflexível.
- Talvez... - respondeu ela. - Mas isso não impediu que o meu pai
sofresse muito. Tanto, que morreu de desgosto!
- Como se chamava o seu pai – perguntou o cavalheiro da Índia. Diga-me
o nome dele.
- Chamava-se Ralph Crewe - respondeu Sara;um pouco perturbada. Era
o capitão Crewe. Morreu na Índia.O rosto, já tão pálido, do doente, tornou-se
lívido, e Ram Dass correu para junto dele.
- Carmichael , balbuciou Carrisford. É ela!É a criança!
Durante alguns minutos Sara julgou que o cavalheiro da Índia ia morrer.
Ram Dass tinha pegado num frasco e deitara algumas gotas do seu conteúdo
num copo, que levava aos lábios do doente. Sara tremia e olhava para
Carmichael.
- Que criança sou eu - perguntou ela, numa voz que desfalecia. - Quem é
este senhor?
- É o amigo do seu pai! - respondeu Carmichael.Não tenha medo, minha
filha. Há dois anos que a procuramos!
Sara levou a mão à fronte e os seus lábios contraíram-se.
-E, durante todo esse tempo, eu estava em casa de Miss Minchin -
murmurou ela. - Estava aqui a dois passos, do outro lado da parede!
O CASTIGO DE MISS MINCHIN
Aquela grande alegria, absolutamente inesperada, que Carrisford
acabava de ter, era demasiado forte para ele.
- Oh! - murmurou o doente, com a voz fraquíssima, quando Carmichael
manifestou a intenção de levar Sara. Eu queria conservá-la ao pé de mim, sem
a perder de vista!
- Eu tomarei conta dela - afirmou gravemente Janet, que o pai tinha
chamado. E a mamã não tarda a chegar.
Sara acompanhou Janet, que lhe dizia:
-Estamos tão contentes porque a encontraram! Não pode fazer idéia!
Donald, com as mãos nas algibeiras, contemplava Sara com ar de
alguém que se censura a si próprio.
- Se eu lhe tivesse perguntado o seu nome quando lhe dei o meu xelim -
disse ele -, ter-me-ia respondido: "Sara Crew", e teria sido encontrada
imediatamente!
A Sr.a Carmichael chegou, entretanto; estava muito impressionada e,
puxando Sara para si, beijou-a ternamente.
- Parece comovida, pobre criança - disse ela.
- E compreende-se perfeitamente que seja assim... Mas havia uma
pergunta que queimava os lábios de Sara.
- É ele - disse ela por fim, indicando com o olhar a porta fechada da
biblioteca. Foi ele o mau amigo? Diga-me, peço-lhe!
A Sr.a Carmichael chorava, ao beijar novamente Sara, pensando como
ela devia ter sido pouco acarinhada durante aqueles dois anos.
- Não lhe chame "mau", minha querida - respondeu ela. - Ele não tinha,
realmente, perdido o dinheiro de seu pai; mas, durante um momento,
convenceu-se de que, na verdade, o perdera, e como era muito amigo, teve
um desgosto tão profundo, que adoeceu. Ia morrendo e, muito tempo antes de
recuperar a razão, já o seu pobre papá tinha falecido.
- E procuravam-me - disse Sara em voz baixa.
- Quando, afinal, eu estava tão perto...
Esta idéia não a deixava.
-Julgavam que a menina se encontrava em França - explicou a Sr.a
Carmichael. O Sr. Carrisford procurou-a por toda a parte. Mal imaginava ele,
quando a via passar em frente das janelas, que a menina era a filha do seu
amigo; mas, pensando nela, pensava em si e quis protegê-la. Então disse a
Ram Dass que entrasse pela janela do seu quarto e arranjasse um pouco a
mansarda onde a menina dormia.
Sara soltou um grito de alegria e a sua fisionomia iluminou-se.
-Como! Foi Ram Dass que me levou todas aquelas coisas tão bonitas -
exclamou ela. - Foi o cavalheiro da Índia quem lhe deu ordem para isso?
Foi ele quem transformou o meu sonho em realidade?
- Sim, minha querida, foi ele mesmo. É muito bom, muito generoso, e
pela ternura que lhe inspirava a Sarinha que ele procurava, teve pena de si.
A porta abriu-se e Carmichael fez sinal a Sara para entrar.
- O Sr. Carrisford sente-se melhor - disse ele - e deseja vê-la.
Sara correu para a biblioteca, e, quando o Cavalheiro da Índia olhou para
ela, pôde ver que a pequenina estava radiante.
Aproximando-se muito da poltrona, com as mãos juntas no peito, Sara
exclamou, com a sua vozinha alegre e tremula:
-Foi o senhor quem me mandou todas aquelas coisas tão bonitas, todas
aquelas coisas?
- Sim, minha pobre filha, fui eu - respondeu ele.
A doença e a comoção tornavam-no mais fraco, mas olhava para a
pequenina com tanta ternura e um tão grande desejo de a abraçar, que Sara
julgou tornar a ver o olhar do pai. Muito simplesmente, ajoelhou ao pé dele,
como ajoelhava outrora ao pé do pai, no tempo longínquo em que ele e ela se
adoravam, tal como se fossem duas almas num só corpo.
-Nesse caso, o senhor é que é meu amigo, o meu grande amigo - disse
ela.
E, curvando-se sobre a mão emagrecida, beijou-a muitas vezes.
- Dentro de três semanas estará bom - disse Carmichael à esposa. - Olha
para ele...
Efetivamente, já não parecia o mesmo. A "senhorazinha" tinha aparecido
e era preciso tomar muitas decisões, resolver novos assuntos. Antes de mais
nada se impunha a questão de Miss Minchin. Era indispensável que alguém
fosse anunciar-Lhe a transformação que se dera na vida da sua antiga aluna.
Sara não voltaria ao colégio. Sobre este ponto Carrisford era categórico.
Sara ficaria com ele, e Carmichael se encarregaria de falar a Miss Minchin.
- Estou bem contente de não voltar lá - confessou Sara - porque Miss
Minchin vai ficar furiosa. Ela não gosta nada de mim; talvez a culpa seja minha,
porque, eu também, não gosto dela.
Mas Carmichael não precisou de se incomodar. Foi a própria Miss
Minchin que se apresentou a reclamar a sua antiga discípula.
Precisando de Sara e não a encontrando em parte alguma, soubera, com
grande indignação, que as criadas a haviam visto sair pela escada da cave,
levando um objeto escondido debaixo do casaco; dirigia-se à casa vizinha, não
voltando a aparecer.
- Que foi ela lá fazer?! - exclamou Miss Minchin.
- Não sei, nem faço idéia. - respondeu a tímida Miss Amélia. -Talvez
fosse por ter vivido na Índia, como o nosso vizinho.
-Isto de meter-se em toda a parte, sem que a chamem, e procurar
captar simpatias de uma forma audaciosa, é bem o feitio de Sara! - disse Miss
Minchin. - Há quase duas horas que lá está! Não posso suportar tal
atrevimento. Vou ver o que se passa e pedir desculpa desta inqualificável
conduta ao dono da casa.
Sentada sobre um banquinho almofadado, junto de Carrisford, Sara
conversava animadamente com ele, quando Ram Dass anunciou a visitante.
Sara empalideceu e levantou-se, involuntariamente. Mas Carrisford pôde
verificar que ela estava calma e não parecia assustada.
Miss Minchin, severa e digna, entrou na biblioteca. Fizera "toalete" e
toda a sua atitude era rigidamente correta.
- Lamento incomodar o Sr. Carrisford - disse ela- mas preciso de lhe
dirigir algumas palavras.
Sou Miss Minchin, diretora do colégio vizinho da sua casa.
O cavalheiro da Índia fitou-a um momento, em silêncio.Tinha um gênio
violento e queria ficar senhor de si.
- É então Miss Minchin? - perguntou ele.
-Em pessoa, Sr. Carrisford.
- Nesse caso - prosseguiu ele - chega no instante oportuno. O Dr.
Carmichael, meu procurador e advogado, ia exatamente agora a casa de V. Ex.
Carmichael inclinou-se ligeiramente.Miss Minchin olhou para ele, olhou
depois para Carrisford, com uma surpresa que nem sequer pretendeu
dissimular.
- Seu advogado?- perguntou ela.Não compreendo. Estou aqui por dever
profissional: acabo de saber que uma das minhas alunas teve o atrevimento de
se introduzir nesta casa... Uma aluna que eu conservo por caridade. Venho
explicar a V. Ex. que isto sucedeu sem meu conhecimento. E, voltando-se para
Sara, ordenou:Volte já para casa! Será severamente castigada. Vá
imediatamente!
O cavalheiro da Índia puxou Sara para si e pegou-lhe na mão.
- Não - disse ele. - Sara não irá.
Miss Minchim julgou estar a sonhar.
- Não irá - repetiu ela.
- Não!- confirmou Carrisford. - Não voltará para sua casa, porque a sua
casa nunca foi a casa de Sara. Agora é aqui o lar que será o dela.
Miss Minchin recuou, estupefata e indignada:
- O seu lar! Que significa tudo isto?
- Tenha a bondade de lhe explicar, Carmichael. Mas que seja o mais
rápidamente possível - disse Carrisford.
E, fazendo sentar Sara, pegou-lhe nas mãozinhas... tal como o pai
costumava fazer-lhe.
Na sua voz pausada e calma, Carmichael falou como um homem que
conhece perfeitamente o assunto de que trata e não ignora as leis. Miss
Minchin, como mulher acostumada a negócios, compreendeu também este
último ponto, e não se sentiu muito à vontade...
- O Sr. Carrisford - explicou Carmichael – era amigo íntimo do capitão
Crewe. Os dois associaram-se para negócios muito importantes. A fortuna que
o capitão julgava ter perdido, foi salva e encontra-se inteiramente na posse do
Sr. Carrisford.
- A fortuna?! - exclamou Miss Minchin, empalidecendo. -A fortuna de
Sara?!
- Exatamente, a fortuna de Sara – respondeu friamente Carmichael. E
continuou: - Foi, até, multiplicada por determinados acontecimentos: as minas
de diamantes estão hoje mais prósperas do que nunca.
- As minas de diamantes!... - balbuciou Miss Minchin, que estava vivendo
uma das horas mais cruéis da sua existência.
- As minas de diamantes - repetiu Carmichael. E não pôde deixar de
acrescentar, com um ligeiro sorriso de ironia: Poucas princesas, Miss Minchin,
são tão ricas como há-de vir a ser Sara Crewe, a aluna que a senhora
conservava por caridade. Há dois anos que o Sr. Carrisford a procura;
encontrou-a, finalmente e agora, por nada deste mundo, se separará mais
dela. Continuou a dar a Miss Minchin todas as explicações necessárias para a
convencer completamente de que o futuro de Sara era magnífico e a sua
fortuna, que julgaram perdida, estava multiplicada, e que, além disso, daquele
dia em diante, Carrisford seria o seu tutor e o seu maior amigo.
Miss Minchin era mediocremente inteligente;provou-o à evidência
naquele dia, fazendo um esforço desesperado para readquirir o que
perdera;compreendia-o bem , pela sua avareza e crueldade de alma.
- Encontraram a criança em minha casa - objetava ainda. - Fiz tudo por
ela. Sem mim, teria morrido de fome na rua.
Carrisford não pôde conter-se mais.
-Talvez tivesse sofrido menos do que no seu sótão - disse ele.
- O capitão Crewe confiou-ma - prosseguiu desesperadamente Miss
Minchin.Devem entregar-ma até que atinja a maioridade. Voltará a fazer a
mesma vida que fazia dantes e terminará a sua educação. De resto, farei
intervir a lei a meu favor.
- Vamos! Vamos, Miss Minchin - interrompeu Carmichael. -A senhora
sabe muito bem que a lei não é para aqui chamada. Se Sara pedir, ela própria,
para voltar para o seu colégio, estou persuadido de que o Sr. Carrisford não
Lhe recusará a sua autorização. Tudo depende de Sara.
- Pois bem - disse Miss Minchin - apelo para Sara. Evidentemente que
não a amimei - continuou ela, dirigindo-se à pequenina; mas lembre-se da
satisfação do seu pai pelos progressos que a menina fazia. E... Sim... Eu
sempre fui boa para si...
Os olhos verdes de Sara fixaram-se nela, com o olhar claro e brilhante
como aço, que tanto desagradava a Miss Minchin.
- Realmente - exclamou Sara. - Nunca dei por isso.Miss Minchin tornou-
se vermelha e levantou-se.
- Pois devia ter dado - replicou ela. - Infelizmente, porém, as crianças
não sabem apreciar aqueles que são bons para elas. Tanto Amélia como
eu ,sempre dissemos que a Sara era a mais inteligente das nossas alunas. Não
quer respeitar a vontade do seu pobre pai e voltar comigo para o colégio?
Sara deu um passo em direção a Miss Minchin. Lembrava-se do dia em
que a diretora lhe dissera que ela não tinha ninguém que a protegesse e que,
se quisesse, poderia pô-la na rua; pensava nas horas desoladas que passara no
sótão, sozinha com Emily e Rodilard. Olhou Miss Minchin frente a frente e
disse:
-A senhora sabe muito bem a razão por que eu não quero ir consigo!
Sabe perfeitamente! Um relâmpago de cólera passou nos olhos de Miss
Minchin.
-Visto que é assim, não tornará a ver as suas companheiras - disse ela. -
Vigiarei Lottie e Hermengarda...
Carmichael interrompeu-a, delicadamente, mas com firmeza:
- Perdão! Sara verá quem ela quiser. É pouco provável que os pais das
amigas de miss Crewe recusem, para as suas filhas, os convites do seu tutor. O
Sr. Carrisford olhará por isso...
Miss Minchin curvou-se a este último golpe. O tutor era, decididamente,
ainda mais perigoso que o velho excêntrico que ela imaginara e o seu espírito
sórdido concebia fàcilmente que poucos pais recusariam às filhas autorização
para conviver com a proprietária de uma mina de diamantes. E se Carrisford
lhes contasse a lamentável existência que ela proporcionara a Sara, que
desagradáveis consequências poderiam vir daí para o seu colégio!
- O senhor assume um pesado encargo - disse ela, dirigindo-se para a
porta. - Compreendê-lo-á dentro em breve. Esta criança teve sempre falta de
franqueza e de gratidão. Naturalmente - disse ainda, dirigindo-se a Sara -
agora, vai de novo julgar-se princesa.
Sara corou um pouco, porque receava que pessoas estranhas -- embora
cheias de ternura por ela difícilmente pudessem compreender a sua quimera
preferida, e respondeu em voz baixa:
-Procurei ser uma princesa; sempre, mesmo quando tinha muito frio e
muita fome; procurarei sempre proceder como se fosse princesa...
- Agora, não terá a menor dificuldade nisso...-replicou àsperamente Miss
Minchin, enquanto Ram Dass a acompanhava com todas as deferências de um
grande respeito.
Miss Minchin, logo que chegou a casa, mandou chamar a irmã; ficaram
fechadas, as duas, durante muito tempo, e a pobre Miss Amélia passou horas
horríveis, chorando amargas lágrimas, que encharcaram vários lenços.
- Não sou tão esperta como tu - dizia ela - e tenho sempre medo de falar,
porque tudo te faz zangar. Mas, se fosse menos tímida, talvez isso tivesse sido
melhor para o colégio e para nós. Pensei muitas vezes que era preferível ser
menos dura para Sara Crewe, e organizar-lhe uma existência mais doce. Sei
perfeitamente que a obrigaram a trabalhar mais do que seria permitido à sua
idade e que ela não comia o necessário...
- Como te atreves a falar assim! - exclamou Miss Minchin.
- Não quero saber! - respondeu miss Amélia, com uma espécie de
bravura desesperada. - Mas agora, já que comecei, irei até ao fim, suceda o
que suceder. Sara é inteligente e boa, e teria sido sensível à menor
manifestação de afeto. Mas tu nunca a tiveste. A verdade é que a sentias mais
inteligente do que tu e daí a razão da tua antipatia. Ela adivinhou...
- Amélia! - rugiu Miss Minchin, que parecia disposta a tratar a irmã como
se fosse a pobre Becky.
Mas Miss Amélia estava de tal forma excitada, que coisa alguma podia
fazê-la parar.
- Perfeitamente! - exclamou ela, por sua vez. Sara viu como tu és dura e
interesseira, e como eu sou fraca e parva; ela compreendeu que nós
estávamos de joelhos perante a sua fortuna e que a maltratamos em seguida,
porque ela não tinha um "penny", ao passo que se conservou digna e boa
como uma verdadeira princesa, quando nós tínhamos feito dela uma
verdadeira desgraçada. Sim, uma princesa, eis o que ela sempre foi!
Com os nervos perfeitamente desequilibrados, a pobre Miss Amélia
começou a rir e a chorar, balançando-se de tal forma na cadeira, que Miss
Minchim não sabia que fazer.
- E agora está perdida para nós! - continuou Miss Amélia- irá para
qualquer outro colégio e, se ela fosse uma criança como as outras, contaria em
toda a parte como nós a tratamos; a nossa casa ficaria definitivamente
arruinada, e nós bem o teríamos merecido, principalmente tu, Maria Minchin,
porque és avarenta, cruel e sem coração!
Chorava e falava tão alto, os seus soluços nervosos eram tão fortes, que
a irmã teve de dominar a sua indignação e contentar-se em fazê-la respirar
sais e aplicar-lhe água-de-colónia na testa, para acalmá-la um pouco.
Digamos desde já que, a partir daquele dia, Miss Minchin começou a ver
a irmã sob outro aspecto e a compreender que devia ser cautelosa, porque ela
não era tão estúpida como parecia e podia dizer-lhe verdades
comprometedoras.
Naquela mesma noite, quando as alunas estavam reunidas na sala de
estudo, Hermengarda entrou; trazia uma carta na mão e a sua carinha redonda
tinha uma expressão singular, em que se misturavam o espanto e a alegria.
-Que sucedeu? Perguntaram algumas vozes.
- Trazes-nos a explicação da cena desta tarde?- interrogou vivamente
Lavínia. - Porque houve uma cena na sala de Miss Minchin; miss Amélia teve
um ataque de nervos e foi para a cama.
Hermengarda respondeu lentamente, como alguém que ainda não está
refeito de uma grande comoção.
-Acabo de receber uma longa carta de Sara.
- De Sara? - foi a exclamação geral.
- Onde está ela? - quis saber Jessie.
- Em casa do nosso vizinho - respondeu Hermengarda, sempre
lentamente. -Em casa do cavalheiro da Índia.
- Onde? Como? Mandaram-na embora?Miss Minchin sabe onde ela está?
Foi por isso que houve a cena desta tarde? Diz! Diz depressa!
Falavam todas ao mesmo tempo e Lottie principiou a chorar.
Hermengarda começou pela notícia que lhe parecia responder a todas as
perguntas:
- As minas de diamantes existem! Existem realmente!
Todas as condiscípulas a rodearam,ansiosas.
-Existem! -- repetiu ela. - Durante algum tempo o Sr. Carrisford julgou
que tudo estava perdido...
- Quem é o Sr. Carrisford - perguntou Jessie.
-O nosso vizinho. E o capitão Crewe julgou também que era verdade e
morreu de desgosto.
O Sr. Carrisford ficou doente; quando melhorou, quis encontrar Sara,
mas não sabia onde ela se encontrava. Depois souberam que nada estava
perdido;havia milhões de diamantes nas minas e metade pertencia a Sara; ela
era rica, rica, rica, quando dormia no sótão, tendo por único amigo um rato! O
Sr. Carrisford encontrou Sara esta tarde: está em casa dele e não voltará cá.
Agora é que ela é uma princesa, cem vezes, mil vezes mais do que nunca! E eu
vou visitá-la amanhã à tarde e pronto!
A própria Miss Minchin teria sido impotente para dominar o tumulto que
se seguiu a esta comunicação inesperada. Apesar de ouvir tudo no seu quarto,
não teve coragem de aparecer; os soluços de Miss Amélia, prostrada sobre o
leito, já Lhe bastavam. Sabia que a notícia estava espalhada e que, de alto a
baixo, da cozinha às aulas, toda a gente falava no grande acontecimento.
A carta foi lida, relida e comentada por todas as alunas. Só muito tarde é
que se restabeleceu a calma.
Becky, como toda a gente, estava ao corrente do sucedido, e arranjou as
coisas de maneira a poder subir para o quarto mais cedo do que
habitualmente.Sentia a necessidade de estar só, e ver, ainda uma vez, o
quarto mágico. Que ia acontecer àquele quarto maravilhoso?Com certeza que
o Feiticeiro não o deixaria ficar para Miss Minchin.
Becky estava bem contente por causa da sua querida miss Sara, mas a
garganta apertou-se-lhe e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas quando
chegou ao último patamar. Naquela noite já não teria lume, nem candeeiro cor-
de-rosa, nem ceia, nem princesa lendo histórias à luz da chaminé... Já não
havia princesa!
Ao abrir a porta reprimiu um soluço, mas, depois, ia soltando um grito.
O candeeiro cor-de-rosa estava aceso, o lume ardia, a ceia estava
servida, e Ram Dass, de pé, sorriu a Becky que não podia acreditar no que via.
- A "senhorinha" não se esquece - disse ele. Contou tudo ao "sahib". Quis
também contar-lhe, a si, a sua grande felicidade. Aqui está a carta que ela lhe
manda, pois não quis que a menina adormecesse triste. O "sahib" ordena que
vá amanhã a casa dele. Ficará ao serviço da "senhorinha". Esta noite, levarei
tudo isto, pelo telhado.
Tendo falado assim, Ram Dass inclinou-se ligeiramente e desapareceu
pela trapeira, sem o menor ruido, com uma facilidade tal, que Becky adivinhou
logo o nome do Feiticeiro e a forma como ele tinha feito as coisas.
ANA
As crianças da "Grande Família" estavam radiantes. Nunca haviam
sonhado um prazer tão grande como aquele que lhes proporcionava a
convivência da "pequena que não é mendiga. Dificilmente encontrariam outra
amiguinha que tivesse tido tantas aventuras e passado tantas amarguras. E
não se cansavam de a ouvir.
Rodilard, os passarinhos e o esplendor do céu, que Sara avistava da
trapeira, encantavam-nos. Mas a história preferida era a do banquete
interrompido e do sonho realizado.
Sara contara-lhes esta história, pela primeira vez, no dia seguinte ao da
sua ida para casa de Carrisford. Os pequenos tinham ido tomar chá com ela;
sentaram-se todos sobre o tapete, em frente do fogão, e ela descrevera-lhes a
sua vida no colégio de Miss Minchim, com aquele pitoresco que Sara imprimia
a tudo quanto contava. O cavalheiro da Índia também escutava. Quando
acabou, ergueu os olhos para ele e pôs-lhe a mão sobre o joelho.
- Acabei - disse ela. - Agora é a vez do tio Tom (Sara resolvera tratá-lo
assim, de futuro). A segunda parte é consigo. Não sei como será, mas deve ser
bem bonita.
Então, Carrisford contou como, num dia em que ele estava mais doente
e triste, Ram Dass procurava distraí-lo, descrevendo-lhe as pessoas que
cruzavam a praça e, principalmente, uma pequenina que passava mais vezes
do que as outras.
Carrisford começara a interessar-se por ela, exatamente porque pensava
muito numa certa pequenina que procurava por toda a parte, e também
porque Ram Dass, depois da primeira escapadela do macaco, lhe descrevera a
mansarda em que vivia essa criança, de quem traçou o retrato, e que parecia
pertencer a uma classe muito superior à das criadinhas vulgares. Pouco a
pouco, Ram Dass fizera ainda outras descobertas acerca da vida miserável da
sua pequena vizinha, e um dia disse a Carrisford:
- "Sahib", eu posso, fàcilmente, atravessar o telhado e fazer uma boa
fogueira, enquanto a criança anda por fora. E, quando ela voltasse, molhada e
transuda; julgaria que um feiticeiro tinha passado por lá.
Esta idéia agradou a Carrisford, e Ram Dass, contentíssimo por ver um
sorriso iluminar o rosto sempre triste do patrão, desenvolvera o seu projeto,
explicando que não havia nada mais fácil do que transformar completamente o
quarto, onde tudo era desconforto e pobreza. O doente interessara-se cada vez
mais por aquele plano romanesco, e consagrara à sua execução vários dias
que lhe tinham parecido menos tristes. Na noite da festa interrompida, Ram
Dass, com todos os seus pacotes, conservara-se vigilante na sua própria
mansarda acompanhado pelo secretário, que o ajudava e achava naquela
aventura tanto prazer como o patrão.
Deitado de bruços sobre as ardósias, ao lado da trapeira, Ram Dass
assistira ao aparecimento de Miss Minchin e à cena que se havia seguido; e,
quando se assegurou do profundo sono de Sara, introduziu-se no quarto, com
uma lanterna de furta-fogo e, com a ajuda do companheiro, que Lhe ia
passando as coisas do lado de fora, preparava tudo. Se, por acaso, Sara se
mexia, Ram Dass apagava a lanterna e estendia-se no chão.
Tudo isto foi contado e explicado por Carrisford, no meio das perguntas
e exclamações sem fim das crianças.
- Como eu me sinto feliz, por saber que o Feiticeiro era o tio Tom! - disse
Sara.
A afeição que unia Carrisford e Sara era muito profunda. Entendiam- se
maravilhosamente. O Cavalheiro da Índia nunca tivera, em toda a sua vida,
uma companhia tão agradável como a de Sara. Tal como Carmichael
profetizara, antes que passasse um mês já Carrisford parecia outro, tão grande
era a sua transformação. Tudo o distraía e interessava; a idéia de possuir uma
grande fortuna, que pouco antes lhe causara um verdadeiro desgosto, tornava-
o agora imensamente feliz. Havia tantos projetos a fazer, em relação a Sara! A
brincadeira do Feiticeiro mantinha-se, entre os dois, e um dos prazeres de
Carrisford era inventar novas surpresas para Sara. Hoje, apareciam lindíssimas
flores, para lhe ornamentar o quarto; amanhã, Sara encontrava, debaixo do
travesseiro, ou entre as almofadas, os objetos mais inesperados e divertidos;
uma noite em que estavam os dois na biblioteca, ouviram como que o ruído de
uma grande pata a arranhar na porta e, quando Sara foi abrir, viu um cão
magnífico, um soberbo galgo russo, cuja coleira de ouro tinha a seguinte
inscrição: "Chamo-me Bóris e pertenço à princesa Sara".
Carrisford não se cansava de evocar as recordações da princesinha de
sapatos rotos e casaco desbotado. Passavam ambos belos dias em casa
da"Grande Familia", onde Hermengarda e Lottie iam visitar Sara. Mas os seus
melhores momentos eram aqueles em que, sozinhos, liam, conversavam e
evocavam o passado.
Uma noite, Carrisford percebeu que a sua companheirazinha não se
mexia e contemplava o lume com olhos sonhadores.
-Então? Que "imaginamos nós" neste momento - perguntou ele.Sara
olhou para ele e corou um pouco.
- Lembrava-me - respondeu ela - do dia em que eu tinha muita fome, e
da pequenina que nessa ocasião encontrei.
- Houve tantos dias em que tiveste fome - exclamou o cavalheiro da
Índia, com uma entoação triste na voz. - Em qual deles foi?
- Naquele em que o sonho se tornou realidade- respondeu Sara.
E contou-lhe, então, a história da padaria, da moeda de quatro "pence"
encontrada na lama, e da mendiga ainda mais esfomeada do que ela. Narrava
tudo muito simplesmente, em rápidas palavras, o que não impediu Carrisford
de voltar a cabeça e levar a mão aos olhos.
- Há bocadinho - concluiu Sara - formava eu um projeto... Imaginava
uma coisa que gostaria muito de realizar.
- Que é - perguntou Carrisford, com voz trêmula. - Podes fazer tudo
quanto quiseres, princesa!
- Pois bem - disse Sara, hesitando um pouco.
-Visto que o tio Tom diz que eu tenho muito dinheiro, mesmo meu,
gostava de ir visitar a padeira e dizer-lhe que, sempre que veja crianças com ar
de ter fome, as mande entrar e lhes dê de comer; depois me manda a conta.
Acha que isto pode ser?
- Trataremos desse assunto amanhã - respondeu Carrisford.
- Obrigada - disse Sara. - O tio compreende, eu sei o que é ter fome, e
deve custar tanto, quando não se tem bastante imaginação para esquecer...
- Sim, sim, querida Sara - interrompeu ele.
- É realmente assim. Mas procura não pensar mais nisso. Vem sentar-te
ao meu lado, neste banquinho, e lembra-te apenas de que és princesa!
- Que bom - disse Sara, a sorrir. - E quero pensar também que posso
distribuir pão e "buns" pelos pobres, à minha vontade.
Ao mesmo tempo que falava, sentou-se no banquinho, e o cavalheiro da
Índia - Carrisford insistia para que ela o tratasse assim uma vez por outra -
puxou-lhe suavemente a cabecinha morena e encostou-a aos seus joelhos,
acariciando-Lhe os cabelos.
No dia seguinte, de manhã, miss Minchin viu, da sua janela, um quadro
que lhe foi particularmente desagradável. Carrisford preparava-se para sair de
carruagem, acompanhado de uma silhueta confortàvelmente envolta em
magníficas peles. Esta pequena silhueta era bem conhecida de Miss Minchin e
lembrava-lhe um certo passado... Atrás dela, apareceu uma outra figura cuja
vista irritava talvez mais ainda Miss Minchin: era Becky, a graciosa criadinha
particular de miss Sara Crewe, que levava agasalhos. Becky nunca tivera,
como agora, faces tão redondinhas e frescas.
A carruagem partiu e não tardou a parar em frente da padaria. Por um
curioso acaso, a padeira colocava na montra, exatamente nesse momento, um
tabuleiro de "buns" acabado de sair do forno.
Vendo que entravam pessoas na loja, deixou o que estava a fazer e veio
atender os elegantes fregueses. Fixou atentamente Sara, durante uns
segundos; depois o olhar iluminou-se-lhe.
- Reconheço-a muito bem! - disse ela. - Apesar de que...
- É verdade! -apressou-se a responder Sara. Foi a mim que a senhora
deu seis "buns" por uma moeda de quatro "pence", e...
. . e a menina deu imediatamente cinco a uma mendiga - interrompeu a
padeira. - Nunca mais me esqueci e confesso que, primeiro, não consegui
compreender...
Voltando-se para Carrisford, a boa mulher continuou:
-Peço-lhe desculpa do meu atrevimento, mas afirmo-lhe que é raro
encontrar uma criança tão caridosa, e que pensei nela muitas vezes, depois
daquele dia... Não leve a mal a minha liberdade ,isse ela, dirigindo-se
novamente a Sara - mas agora tem muito melhor aspecto e... parece muito
mais feliz do que...
Oh! Sem dúvida! - respondeu Sara. Agora tudo corre melhor; sou muito,
muito feliz e venho pedir-lhe que me faça um favor.
- Oh miss, que favor posso eu fazer-lhe? Isso seria um grande prazer
para mim! - exclamou a padeira, afirando-se cada vez mais. De que se trata?
Encostada ao balcão, Sara expôs-lhe o seu plano acerca das crianças
famintas e dos "buns" quentinhos.
A mulher escutava-a com a maior atenção e um ar de grande espanto.
- Meu Deus - exclamou ela, quando compreendeu bem a idéia da
encantadora menina. Mas isto vai ser uma verdadeira alegria para mim. Eu não
passo de uma pobre padeira, não posso dar muito e a miséria aparece de todos
os lados; mas posso afirmar- Lhe que, depois desse horrível dia, tão frio e
triste, tenho distribuído muitos bocados de pão a pensar na menina.Como
estava encharcada e como parecia ter fome! No entanto, deu os seus "buns"
quentes e apetitosos, como teria feito uma verdadeira princesa!
Carrisford sorriu involuntàriamente e Sara também, pensando no que
dissera consigo própria, naquele dia, para ter coragem de dar os "buns".
-A pobre pequenita tinha um ar tão desgraçado disse ela; ainda tinha
mais fome do que eu...
-Estava positivamente a morrer de fraqueza- confirmou a padeira. Falou-
me nisso muitas vezes, depois, explicando-me que lhe parecia sentir o
estômago desfazer-se...
- Mas tornou a vê-la - exclamou Sara. Sabe onde ela está?
- Com certeza... - respondeu a padeira, com ar radioso. - Está lá dentro,
na cozinha. Há um mês que veio para minha casa. Tornar-se-á uma bela
rapariga. Não imagina como ela me ajuda já nos trabalhos da casa e da loja.
Quando penso na existência que levava!...
Ao dizer isto, aproximou-se da porta que comunicava com o interior. Ao
seu chamamento apareceu uma rapariga que veio até junto do balcão. Era
bem a pequena mendiga - Sara reconheceu-a logo , mas estava limpa,
decentemente vestida e sem o mais leve vestígio do ar esfomeado de outrora.
Parecia tímida, mas a sua fisionomia, agora que havia perdido o ar meio
selvagem que tinha dantes, tornara-se simpática. Também ela reconheceu
Sara e ficou a contemplá-la, como num êxtase.
- Os senhores compreendem - explicou a padeira-, eu disse-lhe que
viesse ajudar-me, sempre que não tivesse que comer. Via-a tão cheia de boa
vontade, que me dediquei a ela e acabei por lhe arranjar um lugar cá em casa.
Ajuda-me imenso e porta-se muito bem, mostrando-se sempre reconhecida.
Chama-se Ana e não tem apelido de família.
As duas crianças olharam-se durante um instante. Depois, Sara tirou a
mão do regalo e estendeu-a a Ana, que a tomou entre as suas.
-Estou bem contente por saber que vives aqui - respondeu Sara. - E
tenho uma idéia. Talvez a tua protetora te permita que a ajudes a distribuir pão
e "buns". Penso que isso te dará prazer, porque, tal como eu, tu também sabes
o que é não ter nada que comer...
- Sim, sim - respondeu a pequenina. Ana não disse mais nada, mas Sara
teve a certeza de que ela a compreendera. Ana acompanhou-a até à porta da
loja e, de pé, com os olhos muito abertos, viu desaparecer, ao longe, a
carruagem que levava a princesa Sara.
FIM