francis wolff - sócrates

Upload: juliana-ortegosa-aggio

Post on 20-Jul-2015

432 views

Category:

Documents


34 download

TRANSCRIPT

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    1/48

    COLE

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    2/48

    Copyright Francis WolffTradUt;50:Franklin Leopoldo e Silva

    Capa:Moema CavaIcantiDiagramar;50 Interna:Jacob Levitinas

    Revisao:Newton T. L . SodreLuis A. Obojes

    Indice

    i U Deditora brasiliense s.a.01223 - r. general jardim, 160sao paulo - brasil

    Capitulo 1o enigma'. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7Capitulo 2o ateniense . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 24Capitulo 3A rnissao .. . . .. . . .. . . .. . . .. . . . . . . . . . . . .. 40Capitulo 4o universal ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 62Capitulo 5A morte . . . . . . . . . . . . . . .. 82Indica~ao de leitura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 90SOcratesno seutempo .. . . . . . . . . . . . . . . . . .. 94

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    3/48

    Capitulo10enigma

    Talvez Socrates jamais tenha sido urn fil6sofo, nosentido que damos a palavra. E no entanto, para afilosofia assim como para a consciencia popular,ele e muito mais: e 0 fil6sofo. Adornado, aos olhosdos fil6sofos, com todas as virtudes sacramentaisdo "totem" - para empregar a bela expressao de __J. Brunschwig -, a do pai simb61ico assassinado,do her6i fundador da Iinhagem, todos, ou quasetodos, ha vinte seculos reivindicam a heranca, paradefender-Ihe a mem6ria, para retomar sua buscaradical ou para tentar libertar-se de sua imagemfascinante: 0 pr6prio Nietzsche rendia tributo aocu Ito ao tentar derru bar 0 (dolo. Investido, paraa mem6ria popular, da aura religiosa lido" sabio.em algum lugar do Panteao dos sfrnbolos entrePitaqoras, Jesus e Confucio, 0 papel que S6cratesdesempenha e 0 de urn mito vivo: todo pensamentoque e sufocado pelo mundo afara, todo intelectualperseguido par suas ideias, e e Socrates que se

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    4/48

    8 o ENIGMAassassina! Todo pensamento que se exercita nasinterroqacoes essenciais, toda voz intransigente quese eleva para resistir as consciencias satisfeitas oudenunciar os desatinos coletivos, e e S6crates querevive! A fortuna foi proplcia ao mito, que alimentaas paqinas mais I(ricas acerca da "consciencia" mal-dita, assim como as mais estereotipadas tagarelicesdo moralismo escolar.o que opor ao mito-S6crates? Talvez uma data.Para 0mais frio dos historiadores da filosofia, S6cratese pelo menos um ponto de referencia. IIAntes"de S6crates, entre aqueles que chamamos justamentede "Pre-Socraticos", um pensamento rico, profundo,urn questionamento sem duvida fundamental, masque permanece, para n6s, um pouco estranho, exoticamesmo. "Depois" de S6crates e como se estivessernosem casa: 0 panorama mudou, os "lampejos lumi-nosos" dos Pre-Socraticos deixaram lugar para asdernonstracoes encadeadas, e as suas visoes c6smicassubstitu (rarn-se os problemas derivados de nossaspreocupacoes vitais. Em suma, "com" S6crates,como diz CIcero, "a filosofia desceu do ceu paraa terra, introduziu-se nas casas e na praca domercado". E clare que se deve desconfiar dessasdivis5es demasiado n ttidas, que talvez nao passemde ilus5es de perspectiva, da mesma maneira quenao se pode atribuir somente a responsabilidadede S6crates a transforrnaeao de modos de pensar,da qual ele tera side sem duvida apenas a testemunhaou 0 porta-voz. Em todo caso, e preciso atentarpara este evento marcante de nossa cultura: Socrates

    SOCRATES 9

    marca epoca mesmo para os menos "rnistifica-dos".Por outro lado, e diHcil se Iivrar do mito, tantomais que, antes dele, houve a lenda, na qual S6cratesse transformou a partir, e atraves, de sua morte. Desdeque no ano de 399 a.C. 0 estado ateniense 0condenou a beber a cicuta mortal, um verdadeirogenero literario nasceu da noite para 0 dia: a "dis-cussao socratica". E, semelhantemente ao que se dacom esses fora-da-Iei que 0 patfbulo transformaem martires e destina as cancoes de gesta, invocava-sea sua lembranc;:a, citava-se seus grandes feitos eseus atos corriqueiros, defendia-se sua causa - comoa suprir 0 testamento espiritual que ele nao deixara.De toda esta producao. em grande parte perdida,eleva-se para n6s a obra monumental de Platao,que soube nos seus Dialogos transfigurar 0 genero- e sem duvida tambern a personagem - para dar-Ihea forma perfeita requerida pelo seu proprio geniofilosofico. Ao lade de tais obras-primas, a figuratalvez mais fiel, mas sem 0 mesmo relevo, que nosmostram as obras apoloqeticas de Xenofonte (Memo-rabilia e Apologia de S6crates) empal idece porefeito da cornparacao. Cada urn tern 0 S6crates quepode.E da mesma forma que 0 mite ainda pode encerraruma verdade, a de urn ponto de reterencia, a lendaja duplicava a hist6ria. Pois, deste "socratismo"generalizado de que quase todo pensamento se vaireclamar doravante, nascia no IV seculo a.C. a maiorfebre filos6fica que 0 Ocidente conheceu: Socrates

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    5/48

    HUm povo tao apaixonadopela beleza das formas. ; . a

    ponto de ve-Ia semprecom urn dom divino ... "

    SOCRATES 11

    nada escrevera, e escrevia-se em seu nome; nuncadirigira escola, e estas se fundavam as dezenas, etad as Socraticas, Tronco comum dos "GrandesSocraticos", (a Academia de Platao, depois 0 Liceude Arist6teles) e dos "Pequenos Socraticos" (Cfnicos,Megaricos, Cirenaicos) e ainda outros dos quaiss6 nos restam vest (gios, S6crates talvez valessesobretudo como emblema. No entanto, como explicarque filhos assim tao diversos tenham podido reivin-dicar a mesma paternidade? Como explicar que setenham considerado socraticos - ao mesmo tftuloe aparentemente com os rnesmos direitos - 0ascetismo estrito, a mcrtificacao provocante, aironia misantropa de um Dioqenes - 0 homemdo tonel, a quem Platao chamava de "S6cratesenlouquecido" - e 0 hedonismo sorridente e tran-qiiilo de urn Aristipo, "0 amigo do prazer"? Comoexplicar que Platao, por exemplo, nos mostre sempreseu "querido amigo Socrates" avido de encontrara realidade par detras das palavras, sempre prontoa desencavar as racioclnios capciosos de seus inter-locutores, e que toda uma gerac;:ao de "refutadores",amantes de estranhos paradoxos verba is, tenhapod ida invacar a mesma mestre? Nao sera porquea lenda socratica revela tarnbern uma verdade, ade uma personagem enlqrnatica, cuja opacidadeencobria todas estas contradicoes e cuja riquezapermitiu todas estas tensOes antagonistas? .

    E, de fato, antes do mito, antes da morte e dalenda, S6crates ja aparecia aos seus contemporaneoscomo urn rnisterio. "Ninquem conhece esse sujeito",

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    6/48

    12 o ENIGMAconfessava 0 belo Alcebiades no Banquete (Platao)em meio a dais solucos de embriaguez. Qual e paiseste misterio ?Antes de mais nada, S6crates e feio: rosto amas-sado, nariz chato, narfnas abertas, olhos bovinos a fu-gir da face, labios qrossos. E negligente: sujo, enfei-tado, faca sol ou chuva, com 0 velho manto e 0mesma cajado. Nota-sa como excepcional 0 fato deter ele ida ao jantar de Agaton "bern lavado e comsandall as". Que importa?, pade-se dizer. Nao

    julgamos Kant ou Gandhi pela aparencia ou_elegan.cia!Claro mas ha uma coisa: para urn povo tao aparxo-nado' pela beleza das forrnas, tao amoroso pelaharmonia plastica a ponto de ve-la sempre comourn dam divino, urn signa de perfeicso interior,S6crates e uma contradicso viva: e feia tanto quantasua inteliqencia e viva e sua sabedoria lum~n?sa,"semelhante a esses satires expostos nas oficlnasdos escu Itores e que as artistas representam comurn p(faro au urna flauta: abertos ao meio, encontra-se em seu interior estatuetas de deuses" (Platao,Banquete). Sua teiura e provocante, mas no sentidode que provoca a reftexao: ele nao aparece comobela ~s Ii bela na realidade; e feio no corpo, masbela' na alma. Feiura decididamente essencial parao seu destina e consubstancial ao mito que faz delea pai de nossa tradic;:ao metafisica: S6crates encarnaaos olhos dos gregos a oposicao do ser e do parecer,da alma e do corpo, oposicao que eles tornaramo fundamento de sua retlexso e da qual somosainda tributaries,

    SOCRATES 13Mas alern desta contradlcao que tanto chocouseus conternporaneos, ha ainda todas as esquisiticesde sua conduta. Se alquern caminha junto a ele,

    conversando, ei-Io "que fica para tras, imovel,mergulhado em suas medltacoes". Conviva refinadoe delicado, aparece sempre no meio das refeic;:o:_s.Nao Ihe faltarn recursos, mas vive como se naotivesse nenhum; anda descalco e frequents a melhorsociedade. Passa par mis6gino mas filosofa com asrneretrizes. Sabe-se que seus dotes oratorios saonulos mas seu verba e tao poderoso que nenhum, -de seus interlocutores resiste a sua forca de atracao:sera para paralisa-los, "como a raia-eletrica" (Platao,Menon), au para desperta-los, "como a moscarda"?(Platao, Apologia). Desconcertante esse S6crates,na verdade. E, de fato, esta "estranheza" que fascinaas que Ihe sao proximos, ele mesmo a endossa comtranqulltdade e sem fanfarronice, persuadido ~eque ela Ihe vern "d'alhures": "No passado, confiaele, dificilmente se encontraria um outro caso, esem duvida nenhum", que fosse assim "tornado".Originalidade assumida com confianca serena, porvezes mesmo um pouco provocante, como diantede seus ju (zes: li e sabidamente urn fato, diz a eles,que S6crates se distingue em alguma coisa do restodos homens" (Platao, Apologia).Entao, dir-se-a: chega de mitos e de lendas! Chegade eniqrnaticas estranhices! Queremos a verdadeiroS6crates, 0 S6crates historicol Seria bern paradoxa I,e ate mesmo escandaloso, que, daquele que seesforc;:ou toda a vida para resolver. os enigmas,

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    7/48

    14 a EN IGMAesvazrar as lendas e ironizar os mitos, nos teriharestado s6 urn conto da carochinha, born apenaspara fazer sonhar os colecionadores de caricaturasde romance! Facil de dizer e no entanto ... eleescapa ainda entre os dedos do menos ingenuodos historiadores.Nos 0 imaginamos frequenternente, e nao semalguma razao, revestindo-se diante da eternidade datripla figura exemplar do Santo, do Her6i e do Sabio,Essas figuras, porern, ficam-Ihe apertadas.Sao S6crates, talvez: dlzendo-se investido dernissao divina, trazendo em si uma voz interior(seu "demonic"). andando descalco pelas ruas, inter-pe!ando os conhecidos ao acaso dos encontros,barrando-Ihes 0 caminho com 0 seu bastao: pres-sionando-os com questoes ate perturbar-Ihes aconsciencia para converts-los a busca dos verdadeirosvalores. Decididamente, tern tudo do modelereligioso. Ate a acusacao que sofreu "de nao respeitaros deuses do estado e de introduzir novos", Esobretudo a morte como rnartir, aeeita, consentidacom serenidade e talvez desejada ate 0 supllcio.Ve-se faeilmente tudo aquilo que nele se poderiaprestar ao genera haqioqrafico, e como seria tacil

    para a tradicao crista eanonizar a figura paga.Entretanto, onde ja se viu santos que nada tema pregar, profetas que nao anunciam nenhumarnensaqern, visionaries sem doutrina para revelar aomundo, sem dogma para impor, sem preceito aditar?Mais humanamente: Her6i talvez. Sem duvida, a

    SOCRATES 15

    1

    julgar pela sua conduta em tres expedicoes mil i taresde que participou: foi notadasua coragem nabatalha, conta-se sua valentia ante 0 perigo, suapresence de espfrito nos momentos crfticos, seusangue-frio nas derrotas. Oiz-se que salvou 0 jovemAlcebrades, um dos grandes pol (ticos do seculo,Em surna, 0 her6i tfpico, endurecido pelas noitesem claro e suportando as agruras do inverno nocerco de Potideia (432 a.C.). Coragem do soldado,mas tarnbern firrneza do cidadao. que se manifestouem dois epis6dios em que se viu envolvido.Ouis 0 aeaso que S6crates fosse nomeado membrodo Conselho (o sorteio era com efeito a regra demo-cratica): 0 mesmo acaso fez com que sua triboexercesse 0 poder num perfodo em que se pas umproblema delicado: depois da vit6ria naval dasArginusas {406 a.C}, ao largo de Lesbos, seis dosgenerais vencedores foram aeusados de nao terrecolhido os corpas dos companheiros rnortos, apretexto de uma tempestade. A Assernbleia dopovo, instigada palos demagogos, volta-se contraeles e quer julga-Ios em bloco. Algumas vozes seelevam: e ilegal - e de fato era -I cada um devepoder apresentar individualmente sua defesa. as

    que protestam sao tambern arneacados de serperseguidos como traidores. Dos cinqiienta Pritanesque deveriam par a proposicao em votacao, somenteS6crates se recusa. Sua obstinacao legalista, al ias,de nada adiantou: os generais foram finalmentejulgados em bloeo e executados: mas, as paix5esaplacadas, reconheceu-se que S6crates, sozinho,

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    8/48

    16 o ENIGMAes tive ra certo contra todo s os outros . D ian te deseus proprio s ju (z es , e le evocara mais ta rde 0episodic nes te s te rmo s : em vao , "os o rad ores sediziam pro nto s a pro ce ss ar-m e, a man da r- me p re n.d er,e v6s o s incitavels ao s brados ; embo ra! Achei demeu dever co rrer perigo ao lade da le i e da justic;:aem vez de es ta r convo seo , numa decisao injusta,por medo da prisao au da mo rte". . .Dutra circunstancia, mesma atitude, Depois darendicao defin itiva de A ten as dian te ~e E s~arta(404a.C}, 0 in im igo in terno - a partido ans t_?-cratico - aprov eita ra -se das ru (nas e da cornocaoda derro ta para man tar a go vern o te rro ris ta cha ma do"dos Trin ta". S 6cra tes e convocado pelos senhoresde plantae co m rnais quatro cidadaos. Ordena-se- Ihes,sob pena de morte , que tragam de Salam in a umproscrito para que se ja executado . O s qua tro obede-cem mas S6cra tes vo lta tranquilarnente para casa ;e sern duv ida , con ta e le , "te ria pago com minhav ida se 0 governo do s Trin ta n ao tive s se ca (do empouco tempo... N es ta circuns ta ,ncia mas tre i, naopor palavras mas por atos, que a _m0rte - ~ ~er-doem-me dize-lo sem rebuc;:o s - n ao dou m ars rrn-portancia do que a um fig a po~re .. :.. Ass im es~epoder, po r mais fo rte que tenha sido, nao consequruf'o rcar-m e a u rn a i n ju s ti ce " .Super-her o i, en tso , que a lia as qualidades doguerre iro as do res is ten te? M as ja s e v iu res is ten tesrecusarem qualquer co rnpro rn is so , a n ao ser quandocoagidos? Patrio tas que co lo c~m em ~ausa osfundamento s ideo l6gicos da un idade nacion a l em

    SOCRATES 17tempo de gue rra? Conhecem-se her6is que fogemda glo ria e da v ida publica , concitando seus am igosa fazerem 0 mesmo?

    E ntao , s im plesm en te , S abia . E , co m efe ito , S 6cra tese 0 sabio par excelencia , aquele que ma ida sua v idanurn idea l da razj io, em quem se rea liz am como quepor m ilagre todas as v irtudes canonicas, Moderacao,tem perance , lea ldade , equidade, pro bidade, de sprezopel o s v a lo res materia is ... can saria enurnera-Iaspo r temo r de se rmos edifican tes mas sobre tudope lo terno r de torna-lo rebarba tiv o . De fa to , n adamais fas tidioso do que as sabio s : a exis ten cia delesas sem elha-se a u rn a c o le ta n ea cris ta liz ada de pie do sa simagens , e frequenta-los no s atinge como uma perpe-tua chamada a o rdem .M as e ste ho rn em a quem chamam temperan tenao mede a s palavras n em 0 v in ho . E s te in te le ctua l,que imagin am sempre pe rdido em nuven s cin zen tase d es pre za ndo 0 coJo rido das co isas , sabe melho rqu e ninquem devorar a v ida com suas arnplasmand (bulas : danca e toca lira ; se seus o lhos s a osa l tados, e pa ra v er melhor de todos as lados,as segura ; se tern as nar inas aber tas, e para sen tirmelhor . E as labios gro s sos n ao to rn am seus be ijo smais sensuais? Querem -no ca s to : descrevem-nainsen s fve l ao s av ances do bela A lcebiades quedes liz ara para 0 seu le ito ; mas e v i s ta f re que n temsn terodeado de efebo s cuja eompanh ia n ao desdenha:perturbada pela be lez a de Ca rrn ido , de se ja , diz ,desnudar sua a lma antes de des fo lhar seu corpo .Uma sen sua lidade a s s im it flo r da pe le nos deixa

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    9/48

    18 a ENIGMAlonge, como se v e , dos cliches acerca do sabiodistanciado dos bens do mundo e faminto dealimento espiritual, que entretanto eJe tsmbemfoi. Compreendemos entao como esta fragil unidadede contraries que fazia sua vida, uma vez desman-chada em conceitos, podera produzir entre asouvintes as doutrinas mais asceticas au as maishedonistas.Nem Santo, nem Her6i, nem Sabia. Tais names"pret a porter" nao Ihe caem sob medida. Entaa,para aquern destes r6tulos, desses modelos absolutosnos quais qualquer figura humana 's6 entra comdificuldade, pracuramos ao menos qualificativosapropriados.Mestre, entao. S6crates foi, de fata, 0 Quia detoda uma gerac;:ao e influenciou indiretamente tudoaquilo que se pensou depois na Grec ia , Para falarapenas dos maiores, formou Platao, Aristipo,Antlstenes que, segundo se diz, andava todos os diaso trajeta do Pireu (16 km ida e vol ta) para ouvirS6crates. Mas ha todos os outros, rnais humildes,que tarnbern socratizaram a sua maneira: Esquino,o leal memorialista, Euclides de Megara, 0 tsrruvel16gica, Fedon de Elis, 0 moral ista tagarela, longaseria a lista mesmo com a nossa iqnorancia limi-tando-a. Aos quais seria precise acrescentar 0"cfrcu 10 dos mtlrnos", 0 pal ida Querefonte, defidelidade quase rnfstica, Apolodaro de Falera,chamado "0 terno" porque era duro com todosexceto com S6crates, Lfsias, Menexeno, Crrton,Glauco, todas essas sornbras que passarn ao acaso

    SOCRATES 19das paqinas de Platao au de Xenofonte, e aindatodos estes anonimos da hist6ria que nurn dia oupor urn momento encontrararn S6crates e nuncamais se reencontraram. Mas seria preciso sobretudomedir - 0 que nao e possfvel - sua autoridadeimediata, em virtude de sua ascendencia e de seucharme, bem como sua influencla a longo prazo,derivada de sua vocacao, Bern rnenos maldito doque se ere. reverenciada em vida e venerado desdea morte.Entretanto naD seria preciso tsmbem levar aserio as suas pr6prias recusas? Este protesto entremil outros, no qual, distinguindo-se dos Sofistas -

    as verdadeiros gurus de seu tempo - assegura:"quanto a mim, nao tive jamais urn 56 discfpulo ...Jamais prometi ou dei lic;:oesa quem quer que fosse".Nao seria samente para se eximir dos desvios deseus ouvintes que descambaram? Mas este '''mestre''vai sempre repetindo para quem aparece que nadasabe, que nada tern a ensinar, nem deseja formarninquem, Que despreza ensinamentos e desconfiade doutrinas. Que nada tern a oferecer, exceto sua"frequentacao": que cada urn s6 tern que pensarpor si mesmo para aperceber-se de que sabe maisdo que ele. lqnorancia fingida, falsa rnodestla, ardilpedag6gico de todo rnestre? Ou, mais provavelmente,urn trace essencial de seu pensamento.Como caracterizar a que devemos chamar seu pen-semento (rnais do que sua doutrinal, sobretudo namoral, S9 e verdade que a ela e que se resume quaseinteiramente? Racionalista, sem contestacao: e

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    10/48

    20 o ENIGMAmesmo um dos mais torrnidaveis esforcos parajustificar, fundamentar e regrar na escala dos homensas normas das suas 8(fOeS e os segredos das suaspaixdes ~ rompendo assim com toda urna tradicaomitoloqica e traqica de del (rios ocultos e de cegosentusiasrnos. Curiosa racional ista, entretanto, cujalnvestlqacao se anuncia por uma "revelacso divina"e que sobretudo nas mais graves ou nas maiscorriqueiras circunstancias da vida, em vez de segu iros ditarnes de urn arb (trio racional fia-se nas lnluncbesmisteriosas de seu demonlo interior que, a beirado ato, 0 impede de realiza-lo. Nem por isso tacarnosdele urn mfstico: Nietzsche bern 0 notau: "estavoz, sempre que se anuncia, e para dissuadir. Nestanatureza anormal a sabedoria instintiva s O semanifesta para se opor de quando em quando aoconhecimento consclente . .. ". Em tad a casa,e mesmo se seguimos Nietzsche nas suas conclusoesquando ele ve em S6crates a "ser entimtstico porexcelencia. 0 ser em quem a natureza 16gica estatao hipertrofiada quanta no m rstlco a sabedoriainstintiva", este "demonic", luz religiosa ou barreirainstintiva, aparece por certo como um limite: comose Socrates nao tivesse podido levar completamentea cabo a rsvolucao intelectualista radical que eledesejava conduzir ate 0 paradoxo, como teremosocasiao de verificar.Revolucionario, pois, em moral: pela sua fun9aohist6rica, ele encarna, com efeito, a primeira "cons-ciencia moral" e e , como diz Hegel, "a virada prin-cipal do esprrlto para sua interioridade". Ao tentar

    SOCRATES 21pela primeira vez apl icar a etica a ordem da razaosubmetida as suas proprias leis, Socrates representa,ainda com Hegel, "a moralidade concreta que setransforma em moral idade abstrata", Hevolucaomoral que tera de ser oor n6s avaliada. Mas, nurnplano mais imediato, em face dos espiritos maisesclarecidos de seu tempo, certos Sofistas que faziamoscilar 0 fundamento das leis e das crsncas aomostrarern seu carater arbitrario, sua continqenciaau relatividade, ele aparece como singularmenteconservador; nao se separa jamais da obedlenciaincandicional a legalidade e as instituicoes. Con-formista, au talvez mesma reacionario : apelando,para anular as riscos de anarquia moral, aos velhospreceitos da moral tradicional.Na polrtlca, a mesma dificuldade em situa-lo.Recusa todo compromlsso ativo e nao conhecemosdele participacao alguma na vida publica, alemdaquela a que 0 obrigava 0 funcionamento normalda cidade dernocratica. (I nversamente aos estadosmodernos, a autoridade do Estado ateniense naopesa sobre os indivrduos exclu indo-os da vidapol rtlca, mas sim coagindo-os a ela), Nao temosrazfies para suspeitar de sua lealdade para com ademocracia - sua atitude 0 prova -, mas ele ironizaabertamente alguns de seus fundamentos, comoa pratica do sarteio, em termos que lembram certascrrticas arlstocratlcas: "ele dizia ser loucura sortearmagistrados 'pela fava', quando certamente ninquerndeixaria ao aeaso a escolha de urn pilato, de urncarpinteira, de urn flautista, ou de qualquer Dutro

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    11/48

    22 o ENIGMAartesao do mesmo genera, cuja incornpetencia seriabern rnenos nociva do que a daqueles que governama Estado" (Xenofonte, Memorabilia). Ao mesmotempo, teve Crttias entre seus ouvintes famil lares,que foi "0 rnais ambicioso, 0 mais violento e amais sanguinaria dos homens do regime ollqarquico",como diz Xenofonte. Mas teve tarnbern Alcebrades,que foi, segundo 0 mesmo Xenofonte, "o maisdebochado, 0 mais insolente e a mais violento doshom ens da democracia". 0 que alias, seja dito depassagem, tenderia a limitar a ascendencia que seempresta ordinariamente a sabedoria socratica - eque nao se estendeu para alern do crrcu 1 0 dos"lntelectuais" - e que, de maneira mais geral,tenderia a relativizar a influenc ia dos mestres sabreos alunos au dos intelectuais sobre uma qeracso.De todos estes Socrates, qual escolher? 0 ver-dadeiro, dizia-se. Mas como, se as seus pr6ximosnao puderam capta-lo. e se a imediata poster ida-de soube apenas forjar a lenda, como poderrarnosn6s melhor defini-Io, vinte seculos depois. e depen-dendo inteiramente de testemunhos indiretos?E.stes testemunhos e retratos contraditorios, hi!mais de urn seculo os eruditos os pensam, os cornpa-ram, os criticam. Alias nao ha de ser 0 menor dosparadoxos socraticos: ele que nada escreveu e sobrequem ja tanto se tinha escrito, e escrevendo ao infinitesabre ele que se buscava entao raancontra-lo tal comoem si mesma. Ha trinta anos atras contavam-se ja maisde 1600 trabalhos academicos ace rca do que seconvencionou chamar 110 problema de Socrates":

    SOCRATES 23

    sem acelerar, 0 ritmo se mantern. 0 metoda esimples, mas mio ha receita: segundo a ' doseqem quese adotar entre 0 Sccrates-de-Platso, 0 Socrates-de-Xenofonte e 0 S6crates-de-Arist6fanes, obter-se-aurn S6crates-hist6rico diferente, com a condlcaode se ajuntar uma dose pessoal de imaginac;:aa oude fascinio. Esp (rita sintetico e enciclopedico,aliando a acuidade metaf(sica urn genio literarionao igualado, Platao nos mastra urn S6crates vivo,aberto, curiosa, jamais satisfeito, superlormenteironico e habil dialetico. Xenofonte, com a bornsenso grosseiro do grande proprletario de terras,com 0 maralismo praqrnatico e frio do mllitarao,mostra-nos urn SOcrates moralizador e convencional,preso aos sadios valores utilitarios e dogmatizandoa proposito de tudo. E, afinal, a retrato feito par.Arist6fanes talvez nao seja a mais caricatural, eleque teve ao menos 0 rnerlto de escrever sua cornediaferoz, As Nuvens, vinte e quatro anos antes da mortede S6crates e sem intuito apoloqetico, sense comocultas intencoes polrticas: endossando 0 grandemedo dos bem-pensantes ante os intelectuais,Arist6fanes nos apresenta urn mestre-pensadorperigoso, empoleirado no seu "pensatorio" e ocupado,entre duas li~5es subversivas, em medir saltos depulga. .. Ultimo ardil de S6crates, 0 de adotarsempre as traces de seu desenhista. E, para n65,ultima sa (da, a de nos agarrarmos a nossa unicacerteza: Socrates, cldadao ateniense ...

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    12/48

    Capitulo20ateniense

    Os trinta dias que separam a condenacao a mortede S6crates da execucao da sentence foram aprovei-tados por seus amigos para maqu inar sua fuga; todos,ate mesmo as iu (zes, teriam side complacentes.Nada mais facil, expl ica-lhe na prisao seu fielCr (to n : am igos no estra nge iro estdo pro ntos aacolhd-lo, outros em Atenas se ocupam dos detalhesda operacao. S6crates responde: os atenienses mecondenaram legalmente, depois de um processoconduzido com equidade, portanto e justo que eume mantenha fiel a s suas leis, sense ao seu juiga-mento, nao fugindo. Suprema ironia? Bravataintrepida do inocente assumindo ate 0 fim a suasorte para culpabil izar os acusadores? Legalismoabsurdo que chega mesmo a afiancar erros judi-ciarios? Talvez, mas nao somente isto, a conti-nuacao da resposta 0 prova. E, dlz S6crates emsubstancia, que Atenas me deu tudo, meu nas-cimento, minha educacao, meu estilo de vida e

    SOCRATES 25

    de pensamento. Se Atenas me fez 0 que sou, comque direito trai-Ia? Mas sobretudo para onde tugir,eu que amo e conheco apenas a ela? Onde nao sersense urn desnorteado?Para onde poderia tugir, de fato, 0 mais ateniensedos atenienses? "S6crates, cidadao ateniense nascidoem Atenas par volta de 470 a.C., marta em Atenasem 399 a.C.", nao seria afinal uma definicao toruim de S6crates, ele que permaneceu fixado emAtenas "mais que as impotentes, as cegos e outrosmvalidos" (Platao, Crttont, que a amou ate a mortee que esposou ate suas contradicoes,Ateniense, S6crates 0 e com efeito ate a medulados ossos. Numa epoca em que todos os intelectuaisviajam, medicos, sables, professores, artistas, elesomente deixa a sua cidade para cumprir as obri-gacoes militares. Numa epoca em que todo grand~pensamento deve passar pela prova do cosrnopoli-tismo, ele faz 0 seu passar pela prova da sedenta-riedade. Resta saber 0 porqus e 0como.Primeiramente, Socrates nao precisa se deslocar;ele [a esta onde se deve estar: Atenas. "Escola daGracia", como diz Pericles, bem postado parasabe-lo, Atenas e a centro de urn vasto imperiopol (tico, mas sobretudo 0 centro de toda a vidacultural "ocidental", um pouco 0 que sao Paris eNova lorque' no seculo XX, segundo as modas e'as domfnios. A Atenas de Pericles tern os maisfinos estrategas, mas tarnbern as melhares escritores,as mais "virtuoses" escu Itores. E la inventa ou levaao seu apogeu 0 pensamento pol Itico, mas tarnbern

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    13/48

    26 o ATENIENSEa H istoria, a cornedia e a traqedia, Quem nao terna sorte de nascer ateniense a( v ern sa instalar, comoo historiador Her6doto, 0 urbanista H ipodamo, oumesmo 0 orador "rneteco" l.fslas, que fala 0 aticornelhor do que as atenienses. Quem nao desejainstalar-se em Atenas, a ela dedica temporadasobrigat6rias: 0 Hsico Anaxaqoras, a medico Hip6cra-tes, au as mestres itinerantss chamados Sofistas,como Protaqoras, especial izado em Polltica, e depotsdele G6rgias, especializado em retorica, au 0 enci-eloped ista Hfp ias. Para que sair de casa quandotodo a pensamento do mundo desfila it porta?E assim que S6crates pode seguir e refazer a dornictlioo ltinerarlo intelectual do seculo: pede ouvir nasua juventude Parrnenides au um de seus discfpulosvindos do Oeste e assim iniciar-se nas mais gravesabstracoes e no questionamento absoluto sobreo "ser" e 0 "nao-ssr": deve ter seguido 0 ensinarnentode algum grande ffsico vindo do Leste, provavelmenteAnaxaqoras , e s e interessado com ele pela fisiologia,pelo movimento dos astros e pela estrutura da materia.Foi arrastado na estelra dos grandes Sofistas, cujoestilo revolucionario, as preocupacdss antropolcqicase sobretudo a interroqacao acerca da linguagemdeveriam seduzi-Io. Sem duvida ele proprio foi,sucessiva ou simultaneamente, "ffsico" e "sofista":e assim que Arist6fanes no-lo representa ainda em423. Foi tudo isto antes de ser S6crates, quer dizer,antes de encontrar 0 seu caminho, que so podiaser ateniense.Ora, curiosamente, esta Atenas cujo regime

    SOCRATES 27pol (tico e brilho cultural todo 0 Ocidente louva,esta Atenas c lassics de que se diz ainda hoje ter sideo berco da filosofia nao 9, ate Socrates, de formaalguma dada ao pensamento puro. Pelo contrario:os intelectuais de passagem sao certamente aco-Ihidos com benevolencia quando a obra delescontribui para reerguer 0 prestrqlo ateniense, massao olhados com desconfianca quando a tendenciapara a especulacao pura arranha os preconceitostradicionais. Esta Atenas "dernocratica", queacreditamos tolerante, multipliea os processos contraos "Iivre-pensadores". Motivo oficial: impiedade.Primeiro "fiI6sofo" que tenta fazer carreira emAtenas, 0 ja meneionado Anaxaqcras nao pede,apesar da protecao de Pericles, escapar da condenacaoem 430 por haver ousado dessacralizar 0 sol e a lua,afirmando que 0 primeiro era uma massa i ncandes -cente e a seq; -nda, uma pedra. Estrangeiro, safa-sepelo exllio. A mesma sorte aguarda mais tarde 0melhor representante das Luzes, Protaqoras, vindode Abdera, suspeito de agnosticismo, e 0 maisobscuro Diaqoras de Melos, acusado, sem mais, deate (smo. E S6crates, 0 ateniense, s6 fara completara longa llsta de intelectuais exclu (dos - com 0exIlic a menos e a marte a rnais.Esta Atenas do V seculo que imaginamas "filo-sofa" e pois antes de Secretes estranha aos pensa-mentos audaciosos e a s interroqecoes radicais, queIhe parecem apriori marcadas pelo pecado de orgulhocontra a ordem divina: a astronomia ou a cosmologiaparecem-Ihe suspeitas, os jogos de abstracao sobre

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    14/48

    28 o ATENIENSEo "ser" e 0 "nao-ser" parecem-Ihe vaos, reservadosas colonias longfnquas e indignos do verdadeirocidadfJo ateniense. Porque a sabedoria da Atenasdo V seculo se realize essencialmente na ordempoh'tica: a politica, a arte sutil e empirica, depen-dente das circunstancias - e que portanto nada temde absoluto -, ancorada na ac;ao - e nao na especu-la9fJo geral -, suspensa da temporalidade imediata- e nao da eternidade -, e cuja justeza se medepelo exito concreto - e nao pela verdade abstrata.E se a pensamento de Atenas se resume a suapol (tica, s6 precisa, como unico fundamento, deuma moral pragmatica, tirada dos velhos preceitosde seus antigos legisladores, meio historicos, meiolendarios, os "Sete Sables": "saiba escolher aocasiao", "nada em excesso", isto e , tenha 0 sensopratico da justa medida, "conhece-te a ti mesmo",isto e , saiba que nao es mais do que um homem,nero um deus, e que nao podes ultrapassar par tuasaedes os Iimites permitidos da ordem do mundo,nem deslindar pelo conhecimento os misterios,Aforismos penetrados, como se ve, de um idealutilitario, que desconfia da humana vontade desaber, a qual fix am Iimites intranspon iveis; bernafastados par conseguinte do modelo especulativo.Que pode significar, a partir disto, para 0 atenienseS6crates, que observou seu SEkula e assistiu adomictlio it hist6ria de suas especular;:5es, permanecerligado a Atenas? Que pode significar, a partir da i,pensar como ateniense? Nao pode mais significarimporter, como tentaram os ital i anos, as interroga- ,

    SOCRATES 29r;:oes "ontoloqicas": nao se trata rnais, tampou~o,como tentaram os aslaticos, de enxertar as q,uesto~sde "ffsica" na cidade classica. Nem sequer e aderira este pensamento cosmopolita dos Sofistas, en:re-tanto bem pr6ximo, por outro lado, das preocupac;:~esdos oradores e dos pol iticos atenienses. E precrsodoravante interrogar-se em casa e sabre ela; retom~rpais a caminho dos grandes pensadores =.Graciae dirigi-Ia para Atenas, transport~,r todas a~,I~~err~~gac;:oes radicais dos "00t61090S e dos f~slcospara 0 proprio terreno que e e sempre foi a deAtenas 0 terreno moral. Pais para aquele qu~,atraves;ando 0 pensamento do SEkula, nao pode ma~sse contentar com as regras de costume ancestr~lsque norteiam os habltos e as. ~raticas,.8 precisoretomar as interrogac;:5es es s enc ra i s , mas slt~ando-~sdoravante na medida da ac;ao humana: Nao marscolocar a questao "0 que e 7" em Mglca pura ouna gagueira tautol6gica (H O que ~ a ser?"; ~'o que eque e 7"), mas retomar a mesma mterroqacao funda-mental na esfera daquilo que os gregos chamam 0"ethos", isto e. os costumes e as compor,tamentos.f: preciso ser piedoso, diz Atenas. E S6crat~s seinterroga: 0 que e a piedade? Sejamos corejosos,dizem os atenienses. E S6crates Ihes pergunta: 0 quee a coragem? Contenta-te com fazer, 0 teu dever,diz a velha sabedoria ateniense. E Socrates: 0 quee a dever? E isto 0 que significa dizer que S6cratesinventa em Filosofia a Etics : quer dizer ante.s detudo que pela primeira vez ele pensa como ateruensecom as arrnas da Grecia: sua Razao. S6crates desposa

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    15/48

    o ATENIENSEAtenas, mas, com Socrates, Atenas desposa a Grecia.Mas desposar Atenas e tarnbern ligar sua sorte auma hist6ria que nao passa finalmente de uma longaserie de crises: notadamente este final do seculo V,marcado durante mais de trinta anos por um conflitosangrento contra a coalizao liderada por Esparta,guerra iniciando-se par terrrvel epidemia, entrecor-tada par lutas civis e terminanda pela ru Ina. Ora,no que crer om tempos de crise? Todos os valoresem que se acreditava, regras morais, costumes sociais,dogmas regligiosos, se fendem. Em que acreditar,por exemplo, em tempo de peste? Respeitar 0 que,esperar 0 que, agarrar-se a que? V a sabedoria humana,impotente para nos Iivrar dos rnais terrlveis sofri-mentos! Mediocre providencia divina que ferecegamente honestos e desonestos! Por que ele,hoje? E quando sera a minha vez? Para que serrazoavel quando a mundo e absurdo ? "A violencia domal era tal que nao se sabia mais 0 que se tornar, eperdia-se todo 0 respeito pelo que e divino e respeita-vel. Todos os costumes anteriormente em vigorpara as sepulturas foram transtornados. Inumava-secomo se podia... Mas a doenca desencadeou nacidade outras desordens rnais graves. Cada urn 58atirou a busca do prazer com uma audacia quedantes escondia. A vista das bruscas transforrnacoes,dos ricos que morriam subitarnente e de pobres quese enriqueciam de repente com a riqueza dos mortos,procurava-se os proveitos e os prazeres rapidos,posto que a vida e as riquezas eram igualmenteeferneras, Ninquem cuidava de atingir urn objetivo

    SOCRATES 31honesto, pois nao se sabia se se ia viver 0 suficientepara realiza-lo. Ninquern era retido nem pelo temordos deuses nem pelas leis hurnanas; nao se cuidavamais da piedade do que da impiedade desde que sevia todos morrerem indistintamente ... " (Tucl-dedes). Mas, em que acreditar, ainda, no tempo deuma guerra do Peloponeso tao encarnicada quantainsensata? No interesse do Estado, na salvacaocomum, na solidariedade nacional, em todos essesvalores que dantes haviam sido a force dos cidadsos-soldados, outrora unidos contra 0 invasor persa?Mas como acreditar nesses valores comunitariosquando os chefes 56 pensam em sua ascensao pessoal,quando os pol ( ticos dao 0 exernplo da corrupcfo,quando todos dao mostra de um individual ismodesenfreado? Mas sobretudo quando, dilaceradapel as lutas internas, a Cidade nao aparece mais comoo asilo inabalavel, a (mica garantia autorizada .e 0centro de refarencia monopol Istico de todos osvalores e crencas, Entao, acreditar em que, senaoem si -.. na sua grande carreira pessoal ou na suapequena sobrevivsncia cotidiana. .E desta profunda "crise moral", marcada comotodas pelo recuo ao individual isrno, que surgeS6crates, mais ateniense que ninquern e moral istacomo jamais houve. Mas desta moral que-era outroraquestao de Estado - do qual-as pessoas se desiludern-, ele faz a questao de cada urn, j~ quecada um eredoravante poder pensar por si: ja que cada urn correarrebatadamente arras de seus interesses imediatos ,vejarnos secada urn sabe mesmo atras do que corre

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    16/48

    32 o ATENIENSEate a infinito, se faz 0 que pensa ou sabe mesmo 0que faz. Para esta moral que era outrora uma questaode crencas - a s quais nao se adere mais -, ele buscaurn fundamento mais estavel do que os costumesrelativos e as normas efemeras: um fundamentoracional. E desta moral que, numa civilizacdo taocentrada na palavra, fazia antes parte das coisasindiscutrveis, ele faz a questao da discussiio, Inter-roqacao individual sobre as fu ndamentos da moral ,tais poderiam ser com efeito os tres traces essenciaisda rnissso de S6crates tal como a crise de Atenasa tornou necessaria.Eis ai 0 que dissipa ao menos uma contradicao:que S6crates possa aparecer ao mesmo tempo comorevolucionarlo e como reacionario. E , de fato, revo-luclonarlo ousar, pela primeira vez, interrogar-sesabre as regras das acoes humanas, sem senhorespol (ticos nem preconceitos religiosos, e sem outragarantia alern da coerencia e do rigor de sua propria-investiqacdo. Hevolucionario raciocinar pessoalmentesabre a moral idade e sobre ela refletir como quebrincando, na solidao do dialago e na agita

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    17/48

    34 a ATENIENSEe rnais homens. Nao sao mais os rnisterios damateria e da vida que nos espantarn, sao os homens,estes homens que se agitam e agem; e a eles que eprecise interrogar, e eles ao menos respondem. E lesvao e vern atras de seus afazeres - para onde corremeles? -, eles se amam e se matam - que e que osmove? -, eles se cruzam, se encontram e trocam napraca publica seus bens au suas ideias: que dizem unsaos outros e como funciona toda esta azafarna? Justa-mente, eles mio cessam de falar, em Atenas mais doque em qualquer outro lugar, e nao somente ace rcado tempo, mas tarnbern de seus projetos e de seusdesejos, da administracao da casa ou da Cidade.De "ffsica", nossa filosofia torna-se "moral",de rneditacao solitaria, nossa investigar;:ao torna-sedialoqo, Assim Socrates, fil6sofo urbano: nada maisde ceo estrelado por sobre a cabeca dos homens;e a moral no seu coracao que 0 interesse. Ele vaicnde estso os atenienses, nos banquetes, no qinasio,nos locais de esporte e sobretudo na agora, coracaoda cidade e centro de trocas e de encontros: 0ze-povinho dos vendedores ambulantes, as barracasdos perfumistas e dos barbeiros cercarn a prar;:a, asmulheres estao em casa dirigindo a vida domestics,os homens livres mais ocupados terminam suastarefas poueo depois do rneio-dia, os escravostrabalham a servic;:o de cada um e da paz publica,em surna, reina a ordem ateniense - deixando aoscidaddos 0 prazer da ociosidade e 0 lazer da conver-sacao. "Que hi! de novo ?", nao cessam de se pergun-tar mutuamente as desocupados da agora, nos dias

    S6CRATES 35

    em que 0 vazio da atividade pol (tica as priva dasalegrias da del iberacao pu blica. S6crates e um delese, mais do que qualquer outro, sabareia os prazeresdas discussoes privadas; mais do que qualquer outroele domina a arte sutil do dialoqo, a "dialetica",jogo de esp/rito e de finura, feito de fintas e deesquivas, torneio de argumentadores plena desubentendidos e de alus6es; nesses duel os pactficos,S6crates quase sernpre triunfa, mas sobretudo impoeseu terrene. 0 da lnterroqacao moral; pois 56 lstoo interessa, 0 que os hamens dizem ace rca do quefazem e como justificam 0 que querem; para definirsua buscaestritamente urbana, cita os versos deHamero: ele procura descobrir "aquilo que no viverdos homens se faz de mau ou de bom" (Sexto EmpI-rico, Contra os L6gicos). Instalando pela primeiravez sua residsncia permanente no meio dos homens,e sobre eles doravante que 0 fil6sofo se interroga,e e a eles que pergunta a que se pergunta a si mesmo.E pois triplamente como ateniense que se entendea vocacao de S6crates. ~ triplamente par sua terra,seu tempo e sua cidade que S6crates e 0 primairoIilosoto da etica: transportando a antiga especutsciioracional para 0 terreno ateniense da moralidade;tentando superar a crise dos valores de Atenas paradar novamente a sua moral urn fundamento solidoporque pessoal (nao-estatal) e racional (nao-religioso);interrogando os misterios da cidade e de seuscostumes pelo intercarnbio e 0 dialoqo racional,Oai a ruptura, talvez nao tao artificial quanta possaparecer, entre "Pre" e "Pos-Socraticos". Certamente

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    18/48

    36 o ATENIENSEja houvera antes de S6crates, e ha ainda em seutempo, outros fil6sofos valtados para esses mesmosinteresses, canscientes da mesma crise e util izandoas mesmas armas: os Sofistas, outros fil6sofosurbanas, e justamente interlocutores privileg iadosde S6crates, que se Ihes assemelha tanto que corneles se confu nde aos olhos do profano. Mas exata-mente par serem demasiado conscientes da crise, osSofistas a repercutem, sao- the a eco refletido: tudose faz e se desfaz, tudo e posslvel e tarnbern 0contrario de tudo, nada ha de fixo que possa detera fuga dos valores au a relatividade das crencas.Demasiado conscientes tarnbern da irnportanciada I inguagem (cujo poder aval iam antes de Socrates)e da "dialetica" (que inventam antes de Socrates,estabelecendo-Ihe as regras e os efeitos), e sabre esteterreno tambern relativo e movente que estabelecemseu acampamento provisorio: nao sao mais "fi 16sofosdos campos" nem ainda fil6sofos da cidade, saonomades, interurbanos, que vao de cidade em cidadesem jamais se fixar: os grandes viajantes acabamsempre mais ou menos ceticos, ou ao menos rela-tivistas. Socrates, preso e como que enraizado na suasedentariedade urbana, s6 po de buscar no terrenourbano da etica, e atraves da arma urbana porexcelencia. 0 dialoqo, um solo fixe que ligaria enfimas ac;:oesde seus concidadaos a razao deles, grega.Assim se dissipa talvez urn outro enigma aparente,que de outra forma apareceria como estranhezade um indivfduo de excecso: que S6crates nadatenha escrito. F il6sofo profundamente grego e

    SOCRATES 37

    cldadso profundamente ateniense, como poderi~escrever? Todos os fil6sofos gregos - ao menos ateo final da epoca classica - desconfiam da escrita,pelas razdes, entre outras, que expoe Platao (F:~ro);o texto escrito sofre de tres males conqenitos:primeirarnente ele e fixo e Ita quem Ihe diriqe apalavra, ele se cantenta com signifi?~r uma corsa(mica, sempre e de uma vez por todas ; em sequndolugar, uma vez publicado, 0 texto vive. sua propriasxlstencla e se dirige da mesma rnanerra a tados,seja qual for a cornpetencia do interlocutor; enfim,entregue a si mesma, e incapaz de se defender sema presence de seu autor e de responder a seusadversaries. Certo, dir-se-a, mas os fil6sofos antesde S6crates escreverarn, naD? Pouco, na verdade, ejamais tratados filos6ficos no sent.ido estrit~~ parvezes discursos, no caso dos Soflstas, frequente-mente poemas, destinados naa a serem Iides, masa serem ditos, repetidos, cantadas, proclamado.s,salmodiadas, a maneira das verdades reveladas cUJOpoder de captacao e de fasclnio sao devidos tantoas arrnas da persuasso oral quanto ao rigor abstratodo raciocrnio. Entao, depois de S6crates, escreveram?Nem todos, lange dista, e nunca tratados, antes dofinal da epoca classica: suas natas de curse sao parvezes como no caso de Arist6teles, as (micas "obras"que nos restam deles; quanto as suas obras verda-deiramente destinadas a publlcacao. elas contarnamos riscos da escrita ao fingirem ser meras resenhasde discussoes reais, mimetizando a ritrno vivo dopensamento no ato de nascer ,e de se comunicar:

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    19/48

    38 o ATENIENSEe 0 caso, par exempla, dos Didlogos de Platso,Entao Socrates nao e uma excecao na generalidadeqreqa: melhor ainda, ao abster-se completamentede escrever, ele assume mais uma vez ate a fim suahelenidade. 0 que escrever de racional nesta I(nguaem que "razso" (logos) se diz "discurso" (logos)?A fortiori para urn cidadao ateniense: Atenas, jase disse, e uma "civil izac;:ao do discurso politico",em que todo projeto, toda declsao importante passapela discussao publica em comum; aquele, pais, queconduz sua investiqacilo ace rea dos "costumes" e?a moralidade so tern que interrogar os principaisinteressados, Urn "tratado de moral" teria feito riras atenienses, e Socrates em primeiro lugar. Pois nofundo 0 desejo de escrever supoe que desejamoscomunicar a distancia a destinatarios ausentesou afastados ou que pretendemos deixar para ap.osteridade uma mensagem eterna (0 que significaainda comunicar it distancia, no tempo desta vez),e em todo caso sup5e ainda que podemos nos dirigirindistinta e indiferentemente a todos, do alto denosso saber, por exemplo. Ora, Socrates nao possuinenhum saber em particular, po is do ponto de vistamoral nao ha saber que valha e, como veremos, acornpetencia socratica depende cada vez dos lnterlo-cutores: e a H(pias, a Carrnide, a L(sias, que S6cratesse dirige, cada vez de maneira diferente, ao sabordas circunstancias e segundo a personal idade decada urn, nao ao "publico" ou aos homens em qeral,Ao impulso do individualismo responde a investiqacsode Socrates, individual e individual izada. E sabre

    SOCRATES 39o seu tempo que ele deseja agir (e nao pensar paraa eternidade) e e Atenas que deseja reformar,dirigindo-se a cada ateniense. Nossa falta de inforrna-c;:ao a dlstancia nao passa pois do reverso da ascen-dencia de Socrates sobre seus conternporaneos:pela sua presence de cada vez e em cada lugar emque estavam, talando-lhes no presente sobre seupresente, na conversacao face a face, ele soubeassim paradoxalmente fintar a tempo; pais quempode dizer que se querendo menos "ateniense doV seculo" ele teria sido mais universal? Quem dizpar exemplo que, ao escrever para n6s em vez detalar a eles, ele nao teria perdido nas duas frentes,como tantos outros cujas obras desapareceram?Curiosa desvio da historia: que tenham side esque-cidos ate 0 nome de tantos pensadores que especu-laram acerca da eternidade e da universalidade desuas doutrinas escrevendo tratados, e que 0 fil6sofomais universalmente celebre da Antiqutdade naotenha querido levar a sua voz para alern dos murosda sua cidade e dos limites de seu tempo. Que,numa palavra, sendo apenas 0 rnais ateniense dosatenienses de seu tempo, S6crates possa par istomesmo aparecer para nos como um dos Sabios maisuniversais. E sem duvida pela sua morte que elefez explodir todos esses ! imites hist6ricos, e foidela que fez sua unica mensagem; mas ainda afnao ha rnisterio: condenando a morte em 399 0cidadao-fllosofo Socrates, e como se, virando a paqinade seu apogeu, a Estado ateniense do V seeulo tivesseassim assinado sua propria sentenc;:a de morte.

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    20/48

    Capitulo3 A missao

    No centro do mundo, a Grecia, com Atenas parcentro, que brilha em torno de sua agora. S6cratesesta la, no umbigo do mundo. "De manha, ele vaiaos passeios e aos ginasios; na hora em que 0mercadofervilha ele vai ate a agora e passa 0 resto do diano lugar em que devers encontrar mais gente"(Xenofonte, Memorabilia), Entretanto, este filhode artesao escultor, ele mesma farmado no offcio,nao se toma par centro do universo. A lenda querrnesmo que ele tenha cornecado a tomar-se peloque fora ao aperceber-se de que nao era nada. Aomenos e 0 que ele conta em seu processo: seu amigoQueronfonte, um dos (ntimos do IIfa-clube", teriaido eonsultar 0oraculo de Delfos para saber se existiaalquern mais sabio do que Socrates: ao que a Prtiateria respondido pela negativa. "Vejarnos, quesignifiea a palavra do deus, pergunta-se entsoSocrates. Que sentido af se oeulta? Tenho conscienclade que nao sou nem pouco nem muito saoio. Que

    / SOCRATES 41

    quer ele dizer quando atirma que sou a mais sable 7"(Platao, Apologia).E deste ernbaraco, assegura ele,que nasceu sua investlqacao, Que seja verdadeira autalsa a anedota, poueo importa; .ela e em todo caseexemplar: pais deste jogo dual entre S6crates e adeus, entre a saber imputado e a saber suposto,entre aquele que sabe somente que 0 outro sabe eaquele que nao sabe 0 que sabe, VaG nascer ao mesmotempo a investiqacao de Socrates e sua rnissao.A investiqacao se anuncia assim: "Fui ter com umdos que passam por sables, certo de que poderiaassim eontrolar 0 oraculo e dizer-Ihe claramente:'eis aqui um mais sabio que eu, e tu disseste queeu 0 era'. Examinava a fundo a meu hom em ...Eis a irnpressao que me ficou do exame e da eonversaque tive com ele: passava por sabio para muita gentee sobretudo para si mesma, mas nao a era ...Retirei-me dizendo a mim mesmo: 'afinal de contas,sou rnais sabio que ele', Com efeite, e posslvel quenenhurn de n6s nada saiba de bom; somente, eleere que sabe, se bem que nao saiba; enquanto eu,se nada sei, tarnbern na~ creio saber. Parece-me.pois, que sou um pouco rnais sabio que ele, ao menosnisto que nao creio saber 0 que nao sei" (Platao,Apologia). E a investigac;:ao continua, de desgrac;:aem desgrac;:a para 0 saber dos outros, de surpresaem surpresa para a de Socrates - e 0 do deus:ninquern com efeito sabe coisa alguma daquilo queaeredita saber, e S6crates e a (mica consciencie.Que signifiea este jogo de inversao que podeparecer ao rnesrno tempo bem abstrato e bem futil ?

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    21/48

    42 A MISSAOOuer isto dizer que todos as interlocutores deS6crates, os pseudo-sables, hornens politicos, profes-sores, artsssos. sao incompetentes? De maneiraalqurna, e talvez mesmo ao contrario: todos sabem,este conduzir uma armada, aquele cornpor urn poema,aqueloutro fabricar Limpar de sandalias ou constru irurn navio. E nao somente eles praticam par vezesde maneira excelente 0 seu offcio, cujos truquesconhecem, mas estso tambern equipados com todaa instrucao necessaria ao sxercrcio da funcjio, Entao,eles sao sables? Por certo eles sabem algo, masignoram 0 essencial. Qual e este essencial: 0 segredodo mundo au a chave do universo? Nada disto, 0objeto de sua ignorancia e bem mais modesto emulto mais importante; e a investiqacao socraticae bern mais profunda e muito menos exigente: elesignoram muito simplesmente 0 objeto de seu saber.Em outros termos: eles sabem fazer, e nao sabemo que fazem.Vejamos por exemplo os pol (ticos, observemo-Ios:eles sabem f alar ao povo, sabem persuadi-Io a tomartal decisao, sabem par vezes engenhosamente preveras conseouencias de tal compromisso, em suma,sabem comandar as homens como urn piloto sabeconduzir 0 navio. Mas sabem eles par que, com quefinalidade fazem tudo isso? A Justice. terminampor arriscar; eis largada a grande palavra ..Mas 0 quee a justica? Ei-Ios bem ernbaracados: eis que seusdiscursos brilhantes se embrulham quando se tratade definir isto que deveria entretanto fundar todosas seus atos: a justice, eles sabem canta-la, nao sabem

    SOCRATES 43dlze-Ia. Clarividentes em tudo, sao cegos para 0essencial; seria confiar um barco ao capltso quesoubesse calcular a postcso. conhecesse os ventose as mares, mas nao soubesse onde deverla ir.Vejarnos urn sacerdote: ele sabe interpretar osoraculos, render os cultos, organizar os ritos. Maso que e a piedade? a padre primeiramente seempertiga: ele ao menos, assegura, esta bem colocadopara sabe-lo, batemos na porta certa: piedoso ejustamente 0 que ele faz, atacar a impiedade! Maspor que 0faz? Ele corneca a hesitar; porque e piedoso.Ele retoma: 0 que e piedoso e 0 que agrada aos deuses.Mas par que isto e nao aquila agrada aos deuses?Por que e piedoso? Mas andamos em ctrculos. comoanda em cfrculos toda a c ; : a o realizada as cegas. Vamosver os generais - e os melhores dentre eles, aquelesfamosos pelo ardor e sangue-frio. E les devem serrnestres em materia de coragem. E, de fato: a cora-gem, nada de mais simples, observem-me, e 0 queeu taco, respondem eles como um 56 hornem.Pressionama-Ios para que sejam mais precisos: masei-Ios nurn supl (cio, ei-Ios que se enredam em suascontradicoes. Confusso igual e a do poeta, que sabecornpor tao belos cantos, quando Ihe pergu ntamoso que torna belos os seus cantos e 0 que e a beleza.Que conclui disto 0 antigo artesao escultor? Que,de todos, os artesaos sao ainda os mais sables: aomenos sabem fazer um born par de sandal ias, sabempara que elas servem e por que a fazem; sim, 0 artesao"que [todos os outros] desprezam, de cuja arte sefaz pouco. rl quem [eles] iancariam 0 nome de seu

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    22/48

    II de todos, as artesaosssostna os mais sebios".

    SOCRATES 45offcio como uma injuria, e dos quais [eles] naoquereriam 0 filho como qenro" (Platao, G6rgias).Que confessem pais, as doutos, que sabem talvezagir, mas que nao sao nem mesmo artesaos de suasacoes e nao podem justificar 0valor de suas condutas- e, a que e pior, nem mesmo tern consciencia destaiqnorancia.De urn lado, pois, especialistas, sables: politicos,sacerdotes, generais, poetas, que, supomo-Io aomenos, comandam, oficiam, combatem ou cornpoemeficientemente. De outro, uma serie de va/ores:justice, piedade, coraqern, beleza, que deveriamregrar seus atos e que ninquern sabe com exatidsoem que consistem. Que importa, dir-se-a? Que

    importa que 0 medico nao saiba definir a saudecontanto que ele nos cure! Mas pode-se esperar que,mesmo sem saber definir abstratamente a saude,todo rnundo ::~ pora de acordo sobre 0 que e urncorpo doente; ter dar de cabeca, eis algo sabre queninquern se enqana, e nao se discute a perder devista para saber se e me/hor se livrar dela; e ninquernpoderia persuadir quem quer que fosse a quebraras pernas para andar melhor. ~ simples classificarem duas colunas os bens e os males do corpo: masencontrar-se-a urna 56 regra de a

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    23/48

    46 A MISSAOfa ce-a acredita r que es ta em v ias de receber rafo rco s ,e que , par m eio des ta m en tira , re e rga a coragemde seus so ldado s ... S uponhamos a inda que umacrianca n ece ss ite de urn rernedio e se re cusa a toma-lo,que seu pa i a engane dando-lne a remedio como sefo ss e a l im en to , e que par m eio de s ta m en tira Ihedevo lv a a saude ... E s e , a o verm es um am igo de ses -perado , e tem ero so de que e le s e su icide , e sco nde!l:0sau tiramos sua e spada 7" (Xenofonte , MemorabIlIa).Para cada nova regra , outras tan ta s excecoes: econ tra riam en te as do re s de cabeca que na o s ao o bje to sde dispute nem de contradicao a s da re s da ac;:ao s aooutro s tan to s pre texto s para con trovers la . E ntao e pre-ciso a in da acres e en ta r : e in jus to enganar o s am igo sa trav e s de uma fraude que Ihes pode ser dano sa . M ass e ra s u fi ci en te ? H a caso s de e ngan o o u 'de in adv erten -cia e m que pre judica mo s alquern se m querer. Is to serain ju sto ? P re cis em as entao: e injusto engana r volun-tariamente o s arniqos atraves de urn a fraude que Ihese dano sa? M as como pode ria ser rnais jus ta agircegamen te do 'que com conhecimen to de causa ;na o da rnais para explicar. De sxcecfic em ca sa deespecle, de contradicao em pa radoxo , de hipotese emretratacao, e preciso afin a l concede r que nao se podeao meno s e ita r urn a to que se ja abso lutam en te [us toou in jus to ; e que , a fortiori, igno ram os a [ustica,Tal e 0 prim eiro cam inho de 56cra tes , Que 0lev a do o raculo de De lto s a e s ta tom ada de co n s-cienda: todo s es te s homen s que crem es e que secreem sables n ao sabem seque r re sponder a que s tsoin tan til: par Que age s a s s im e e s ta s certo em f aze- lo?

    SOCRATES 47Ora, s am en te is to e propria e sumamen te humano :a n ature za tra ns fo rm a, fabrica, agenc ia pelo jo go ce godas causa s e dos efe ita s ; que urn deus pres ida aunao a es ta o rdem globa l nao muda nada : no de ta lhe ,de qualquer fo rm a, cada producao 56 abedeee m eca -n icam en te a s suas causas . S6 0 homem sabe 0 qu efa z an tes de f aze- Io e 0 faz com consclencia: e nema ffs ica n em a te o logia n ao lh e pre sta m a uxllioa lgum . 56 0 homem se canduz com conhecim en tode fin s , so e le po s sui o s obje tiv o s de sua esca lha .Em outro s te rmos : a homem age em func;:ao deva lo res . Supon hamos po r um in s ta n te que nao se jaa s s im , expo ra a inda S6cra te s a s eus am igo s no lim iarda mo rte : querernos explica r, par exemplo , 0 qu eme faz es ta r aqui s en tado na prls ao ? l i E , dir-se-a,porque m eu co rpo e fe ito de as so s e musculos: qu eo s o s s a s s ao . s6lido s e te rn cornissuras Q ue a s s epa ra muns do s outro s , enquan to os m use u lo s, cuja pro prie -dade e se e s tica rem e se re la cha rem , envo lv em osa sso s com as ca rn e s e a pe le que mantern 0 conjunto ;e rn consequencia, pa is , da oscilacao do s ossos no sseus enca ixe s , a dls ten sao e a ten sao do s museu lo sm e tarn am capaz , pa r exempio , de flexionar pres en -temen te m eus membro s ; e e is endio a causa emv irtude da qual, curv ado des ta m aneira , es tou sen tadones te luga r!" Tudo is to e s ta cer to , m as como expli-cac;:ao e ris iv e l; a s v e rdade iras causas , s em duv ida ,s ao outra s ; e ja que se tra ta de conduta s humana s , dede cis5 es , lo go , de v al o res , e l-Ia s: l i e que o s a te nie ns esjulgaram me/hor me condena r, e eu po r m inha vez epa r e s ta m e sma ra z ao julgue i melhor e sta r s en ta do

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    24/48

    48 A MISSAOneste lugar; ou, dito de outra forma, que era maisjusta, permanecendo ende estava, sofrer a pena queeles me infligiam. Pois e , droga! Ha muito tempo queesses ossos e esses rnusculos poderiam estar la paraos lados de Megara ou da Be6cia, onde os teria levadouma certa concepcao do melhor ... " (Platao, Fedon).Eis a r pois 0 essencial: os velores, e eis por quecolocar a questso dos valores e colocar a questaodo homem. Nao 0 que ele tern, mas 0 que ele e .o que e nosso, n6s 0 sabemos, ao menos nos preocu-parnos: urn bom par de calcados, mesma se temosdificuldade em nos calcar, sabemos 0 que e : e aqueleque serve em nossos pes. Sabemos tambem quandonosso corpo esta sao au doente. Mas no que serefere a n6s mesmos, 0 que fazemos com consciencia,nossas aedes, quer dizer, nossos fins, nossas decisoes,quer dizer, a valor delas, disso nao rnais sabemos.Qual sapateiro da alma poderia nos' dizer qual e adecisao que nos convern ? Qual medico da aeaosaberia distingu ir a boa da rna? Eis a( precisamenteo paradoxo: preocupamo-nos mais com 0 que enosso do que com a que sornos (0 que faz do homem,homem, aqu ilo a que os Antigos chamavam suaalma). E justamente isto que Socrates, ao confessarque nada sabe (quer dizer, nenhuma ciencia dascoisas), orgulha-se de saber: lieu 0 reconheco, possuouma ciencia... Que especie de clencia? Aquelaque 8, creio, a ciencla propria do homem" (Platao,Apologia). E : af que S6crates, acabando sua investi-gac;ao, inicia sua rnlssso: reencontrando 0 velhopreceito "conhece-te a ti mesmo". E 0 alfa e 0

    SOCRATES 49omega de sua exortacao moral: II entso, queridoamigo, tu que as ateniense, cidadao da maior e maisafamada cidade, por sua ciencia e seu poder, naote envergonhas de cuidar de tua fortuna, para faze-Iacrescer 0 mais possfval, assim como de tua reputacsoe de tuas honras ... Quanta a tua alma, que deveriasmelhorar sem cessar, nao te preocupas, nem pensasnela . .. Minha (mica tarefa 8, com efeito, andarpelas ruas para vas persuadir, jovens e velhos, avospreocupardes com vossa alma tao apaixonadamentequanto com vosso corpo au com vossa fortuna"(Platac, Apologia). Desta tamada de consclsnclasurgem para Socrates um ensinamento, um metodae uma atitude.o ensinamento e 0 seguinte: ja que as mais sables? O S homens ignoram os valores essenciais (e : quemversamente os mais ignorantes frequentementsjulgam melhor), e que os valores sao perfeitamenteindependentes de todo conhecimento constitu (do.Em outros termos: os maiores esforcos para conheceras coisas e saber agir sabre elas na~ aumentarsojamais urn dedo ao nosso conhecimento do homem , - Irsto e, nao faraD progredir a moralidade em nada.Banalidade, dir-se-a, Pais todos sabem, no funda,que os mais brilhantes diplomas jamais tornaramalquern honesto, e que as mais ingenuos sao frequen-temente os mais inocentes. Certo, todos 0 sabem,mas todos querem nos convencer do contrario: e- 'nao somente os educadores que acreditam que ainstrucso forma 0 ju (ZO, ou os professores de virtude(as "Sofistas") que a transmitem a maneira dum

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    25/48

    50 A MISSAOcurs inho pre-ves tibula r, mas todos e cada urn emseu domfnio se ap6ia em seus t itulo s, s ua co rn pete n-cia , sua eficacia pa ra dar ao s outro s Iicoes de boaeonduta: 0 sace rdote se acha mais piedoso, 0 general ,rnais corajoso, 0 homem publico , ma is jus ta . (E hojeem dia ainda , quan to s doado res de licces: ta l tecloqo,porque sabe melho r que outro 0 que e Deus , no sdiz 0 qu e devemos faz er para ganhar Seu Reina;ta l rnilitante , porque sabe melho r que nos 0 s en ti doda his t6r ia , de le deduz 0 que devertemos desejarpa ra no s sa felicidade; ta l homem de E s tado , po rquesabe as exigene ia s da raz ao de E stado , e re tira rda r princfpios do direito; ta l bioloqo, porque sabeas leis da na tureza , diz -nos 0 qu e deveria s er a n ature zade nos sa s relacoes socials: ta l an trop61ogo , po rquesabe a que te rn side s empre a condicao da mulher,dis to deduz 0 que ela deve nao cessar de se r; ta lmedico que , inquie to pa r nos sa s aude , cuida tambernda de nos so s co stumes e pre tende decidir do vjcioe da v irtude; e todos o s "psi' que, do q ue o bs er va ramdo comportamen to dos homens, tiram normas paraa conduta ... N ao acabarfarno s de faz er a lis ta do sm odern os pro fes so re s de virtude, mor al is ta s disfar-cades, paramen tados com seu saber e enunciandovalo re s do alto de suas catedra s .) M as se cada urnfinalmen te pas sa com tanta facilidade do que e lesabe ao que vale, do qu e ti ao qu e deve ser, e s emduv ida po rque nao saberno s exa tamen te como pensara "moral", e que em lugar de faz er dela a grandetare fa da razdo deixamo-la errar ao acaso dasopinibss rnutaveis e co rr tradito rias : da f a poder

    SOCRATES 51

    aparente das ciencias da s coisas sobre n05SOS julga-mento s de valo r. Ta l e pais 0 n o do problemasocratico: como , ao mesma tempo , evita r 0 "mora-I isrno" do s rnoralistas, que ditam aos outro s 0 qu edevem faz e r em nome do que sabem , e con fer iraos valo re s sua dign idade indiscutfve l e s eu ca ra terabsolute?

    Dai um rnetodo. ainda que a palav ra se ja inade-quada se evoca principio s rigido s , po is s e tra ta dodialoqo com todas . a s liberdades , a s sinuosidadss ea desenvo ltura que 0 intercarnbio vivo supoe: nadamenos gra tu ito entretan to do que es te exercfciosutil do qual pe rdemos ate as regra s , do que estejogo serlo em que os adversaries sao sol idarios.Porque se a dialoqo socratico ev ita a friez a doqrnaticada cornposicao escrita , ev ita igua lmen te as ciladasda discussao de salao au do "papo de bo tequ im",N em rnus ica erudita ence rrada de u ma vez par todasn a pa rtitura , nem caco fonia dos in s trumen to s quetocam cada um par s i no vaz io , 0 dialoqo socraticoevoca an tes estas sabias lrnprovisacoes das bandasde jaz z que tecem seu terna, abandonam-no comtoda a I ibe rdade aparen te pa ra re to rna- lo em outra sm oda l idades , pa recem perder-s e de vista e se reencon-tram como por acaso em un (ssono. gu iados pe loba ter is ta que, sem jarnais se im iscu ir nas fras es darne lodia, a ss egura ao con jun to a coesao e as relancana proqres sao . 0 baterista e , par as s irn diz e r,Socrates, que se opoe a s eu interlocutor sustentandoo: el e 0 interroga, 0 guia, coloca-o em face das suasdificu Idades ou das suas con tradicfie s : 0 solista e

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    26/48

    52 A MISSAO

    o outro, a sabio, que lanes suas certezas mel6dicasmas logo perde a sequranca, tropecando nas comple-xidades do tema. 0 tema e , por assim dizer, 0 valorem discussao, justica, sabedoria, coragem, bondade,piedade, amizade, dever... Nenhuma abrigatorie-dade a niio ser aquelas do tema e do ritrno lentomas inflex (vel do animador; cada urn improvisa asua maneira, como pode, como sabe au ere saber.Mas par que 0 dialoqo? Primeiramente contra 0pragmatismo que reduziria a valor das acoes aoexito: Socrates faz os outros falarem acerca do quedizem para faze-los refletir sobre a que fazem. Maso dialoqo tarnbern contra a dogmatismo, isto e, averdade cristalizada ou proclamada: S6crates mIofala aos -outros, fala com eles; cada urn deve poderfazer a sxperiencia do exame moral interrogando-sesobre sua propria pratica, 0 dialoqo se trava assimao res das realidades cotidianas, das preocupacoesde cada urn. Quase urn papo. Mas este papo trivial,Socrates 0 toma a contrapelo, 0 espreme como urnlimao e torca-o a exibir seus titulos. Ei-Io parexemplo ao encontrar 0 adivinho Eutifron nos degrausdo Palacio da Justlca, Oi, que fazes aqui S6crates?- Imagina que estou a braces com um processo!E S6erates expl iea a queixa dada contra ele. 0 outrotarnbem esta as voltas com as tribunais: processaseu pal por hornicfdio. E os dois litigantes a discu~iros seus neqocios como dois compadres. - Ora veja,voce nao e um qualquer para ousar processar 0pai, diz S6crates. E que me dizes tu? E ainda porcima a vrtirna era apenas um rnercenario? Ousar,

    SOCRATES 53contra todas as regras ctvicas, dar queixa contraa pr6prio pai nao e para qualquer um! Esta cerroque, enquanto adivinho, "pedes saber exatamentequais sao as julgamentos dos deuses, 0 que e piedosoe 0 que nao e para mIo temer - -desde que as coisasse tenham passado assim como tu a dizes - cometerpor tua vez uma acao (rnpia ao intentar esta ac;:aocontra teu pai". E 0 outro, como se esperava: "Masverdadeiramente eu nao serviria para nada e Eutifronnao se distir.guiria do camum dos homens se eu naosoubesse exatamente tudo isto" {Platao, Eutifron).E pouco a pOUCO 0 tom muda e passamos insensivel-mente da conversacao ao dialoqo fi los6fico que seanuncia final mente assim: "Bern, diz-rne entao comodefines 0 que e piedoso eo que e fmpio." Ao mesmotempo os papeis se precisam: Socrates interrogapais supostamente e ele que se esta informanda eo outro responde pols supostamente ele e 0 que sabe.Mas par que interrogar em vez de expor? Certo,ja se disse, S6crates nao objetiva informar, masformar: 0 que viesse do mestre em sentido unico(os pedagogos modernos nada inventaram} teriasomente umefeito externo sabre a consciencia doaluno; a formacao apenas se pode efetuar conformeao ritmo e as exiqencias pr6prias de sua proqressaointerna. Mas par tras desta razjlo estritamente peda-g6gica ha uma outra. S6crates busea na "dialetica",.arte do dialoqo, mais do que um metoda de educacao,ele v e ai urn modelo de verdade - cujo primeiroprincfpio se poderia enunciar assim: admitir comoverdadeiro somente 0 que a outro reconheceu

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    27/48

    54 A MISSAOclaramente como tal. Uma verdade possu (da masnefo partilhada nao seria uma verdade: permaneceriano estado de opiniao esteril. Neste sentido Socratese ainda urn sofista: nao somente porque sabe usarde todos os truques do duelo polernico, mas porquea seus olhos a verdadeiro nao tern valor - porquemio tem efeito - se nao S8 manifesta como verda-deiro. Mas em lugar de deduzir disto, como algunssofistas, que a verdadeiro se reduz ao verossimi-Ihante, adota a perspectiva inversa: e preciso que averdadeiro alcance as aparenclas da verdade parapoder ter urn sentido. Que sentido? Muito simples-mente a de cada urn de nossos atos - e nao somentede nossas ldeias, A exemplo das lnstitulcoes demo-craticas que 56 decidem 0 que deve ser feito aposum debate publico e contradit6rio (infelizmentemuitas vezes sem discernimento e sem unanimidade),as verdades socraticas - antes de tudo aplicaveis -se poem it prova publica e contraditoriamente: arazao se estabelece em comum porque e uma razaopratica, De que serviria discutir sabre a justice senao fosse para ser justo?Assim se justifiea a tecnica socratica de investi-gacao filos6fica a que Platao ehamava sua "rnaleutica".Socrates, segundo ele, pretendia ter herdado estaarte da interrogaCao de sua mae t parteira. Ora, diziaele, de acordo com 0 costume religioso, s6 asmulheres que nao podem mais parir e que podemfazer partes, quer dizer, conforme 0 caso, cenduziro parto a bam terrno suavizando as dores, au fazerabortar. "Minha arte rnaieutica tern as rnesrnas

    SOCRATES 55atribuicoes gerais. A diferenca e que se aplica aoshomens e nao a s mulheres, e e a s almas que auxiliano trabalho de parte, nao aos corpos. Mas 0 maiorprivih~gio da arte que pratica e que ela poe a provae discerne com todo 0 rigor se e aparencla verdadeiraau mentirosa que engendra a reflexao do jovem ouse e fruto de vida e de verdade. Tenho com efeitoa mesma deficisncia que as parteiras. Dar a luzao saber nao esta em meu poder e a censura quevaries ja me fizeram de que, ao colocer questoesaos outros, nao dou jamais nenhuma opiniao pessoalsabre qualquer assunto, e que a causa disto e anulidade do meu proprio saber, e censura verfdlca ...Eu mesma nao sou sable em nenhum grau e nuneaencontrei por mim mesma nada que a fosse, e queminha alma tenha de si mesma engendrado" (Platao,Teeteto). Que a parabola seja autentlca au tenhaside reinventada por Platao nao muda nada a tuncaode S6crates tal como ele a concebe a partir do oraculode Delfas. Da mesma forma que 0 deus sabia queS6crates era sabio, S6crates revela aos outros 0 queeles sabem sem ter consciencia. Mas da mesma formaque S6crates se enganava ace rca de seu pr6priasaber ate que, apercebendo-se da ignorancia dosoutros, viu que era a consciencia de sua propriaiqnorancie que fazia a superioridade de seu saberace rca do homem, assim ele deseja que seu questio-namento sistematico leve os outros a este mesmoponto crucial de consciencie crftica. Oaf a irritar;aode seus interlocutores - dares de parto: "56 0 quefazes, diz-Ihe alquern, e encontrar por toda parte

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    28/48

    HA ironia ... uma grallidade sorridente,uma ligeirezaentretanto inslstente,uma modestls segura de 5 1 mesme".

    SOCRATES 57dificuldades e cria-Ias aos outros" (Platao, Menon).Da r tambem a ernbaraco deles em face das suascontradicoes - os abortos: "tenho vertigem dianteda dificuldade do raciocinio", confessa um deles(Platao, L tsies). Da r enfim a confissao, preludiode todo nascimento bem-sucedido: "imagina quale no momenta a minha decepcao quando perceboque apesar de meus trabalhos anteriores sou incapazde responder as tuas questoes ... " (Xenofonte,Memorabilia).E se acrescentarmos que Socrates se quer tarnbemmedico quando pretende curar seus contemporaneosdo maior mal, "a doenca da alma" (Platao, G6rgias)?Entretanto guardemo-nos de ver neste obstetra ec I (nico de almas urn "psicanalista" - ao menos nosentido moderno -, que faz 0 outro falar para faze- torevelar-S8 na sua nudez "psicoI6gica"! Fazer dara luz as almas, distinguir 0 real do aparente nao edissecar as personalidades nem prestar ouvido asegredos de alcova; e a agora de Atenas nada ternde contessionario nem de consult6rio de anal is ta,Quando mu ito, se a rnaieutica pode evocar a psica-ntil ise, e pelo jogo de finta e de seducao, de demandae de captacao amorosas, que toda relacao dualcomporta. (S6crates nao of ere ceri a a aux iIio dosseus conselhos a cortesa Teodora na sua "caca aosamantes"? - Xenofonte, Memorabilia.) Mas a fcessa 0 paralelo. A analise socratica e individual, elanao e em nada pessoal; e se ela se dirige a cada urn,ela nao diz respeito aos seus fantasmas ou aos seusdesejos (ntirnos, mas slrn a conceitos universals.

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    29/48

    58 A MISSAOo "conhece-te a ti mesmo" nao e urn convite aintrospeccao ou a psicoterapia, e uma exortacsoa racionalidade moral.Mas esta racionalidade (que nos resta esclarecer)e este metodo, este exame e esta tamada de eons-ciencia, nada seriam se as separassemos de umaatitute que da conta talvez mais profundamentedo "socratismo". Par-que tude em Socrates e filo-s6fico, ate seu aspecto ffsico; nele a filosofia criavida, e seu genia, assim como suas menores manias,faz corpo com sua reflexao. Seria pais falta de jeitadistinguir seu "pensamento" de sua "maneira".Socrates e urn todo, e antes de tudo urn estilo, urncerto olhar para as coisas, para os outros e para si.

    Uma gravidade sorridente, uma ligeireza entretantoinsistente, uma modestia segura de S I mesma. 0ar de quem nunea quer saber de nada mas que sabesempre 0 que quer. Dif(cil, na verdade, caracterizaro estilo de S6crates sem antrtese ou afetacao. aspr6prios antigos Ihe forjaram uma palavra sobmedida, eirtm (de onde vern nossa "ironia"), quedeixa a tradutor moderno tao perplexo quanta aetirnologista antigo. Traduzamos, para simplificar,par "aquele que se pretende ignorante", que "dizmenos do que parece pensar"; portanto finorio,se tomarmos pelo lade pior, como Arist6fanes, au"reservado". se seguirmos Platao ou Aristoteles.Mas tambern "ingenuo", se admitirmos sem dis-cussao 0 que ele diz de si mesmo, ou "dissimuiado",se nao acreditarmos nisso. Porque, enfim, diantedos mil pratestos de S6crates clamando que nada

    SOCRATES 59sabe, que nao procura ensinar nada, que interrogapar interrogar, com toda ingenuidade e sem ideiapreconcebida, naa pademos nos impedir de cairem duvlda, alias como as seus proprios ouvintes:como ter por ignorante aquele que sabe tao bernonde quer chegar? Mas talvez nossa incredulidadenao passe de urn erro de perspectiva: talvez, pode-sedizer, seus disctpulos e Platao, antes de qualqueroutro, nao pudessern impedir-se de atribu ir a seurnestre uma doutrina aculta, urna douta habilidade-logo, de fazer dele urn "irfmico" no sentido atual,Mas entao, esta "ironia socratica" - verdadeira aufinglda? 0 "eu naa sei mas tu sabes": urn proce-dimento de professor au urna prcfissao de fe? Ironiaverdadeira, e fingida, na verdade, como observaYvon Belaval. Realmente S6crates diz a verdade:ele nada sabe, pois s6 ele sabe que, a s questfiesque ele poe, nao ha nenhum saber constitu (do quepossa responder; e de urn outre ponto de vista elepade dizer que a outro sabe, pais ao dar a luz a suasverdades, per-se-a par si mesmo no caminho dosvalores essenciais. Mas ao mesmo tempo ironiazornbetelra: pais 0 dialoqo socratico vai justamentedissolver 0 saber irrefletido do outro e reduzir anada suas pretensoes normativas - enquanto elevai manifestar a ciencia socratica, a do homem.Curiosa inversao ironica: a "eu nada set (daqultoque acreditas que seil, mas tu sabes (0 que tu naopensas que sabes)" se duplica nurn "tu nada sabesIdaquilo que acreditas saber) mas eu sei (aquilade que nem sequer suspeitas)". !: assim que, no

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    30/48

    60 A MISSAOfundo, a maneira socratica nao esta tao longe denossa ironia (no sentido moderno) que, nem hipocritanem verdadeiramente franca, diz a verdade parecendodizer 0 seu contrario - e que nao se sabe nuncapor que lado tomar.Socrates era "ironico", muito bern; e dar? Eis-nosmais informados sobre as astucias do seu carater, masem que conhecemos melhor 0 "socratismo", em quetuda isto e filosofico? Mas acontece que a ironiatalvez seja uma atitude profundamente filos6fica.Pois quer ela se exerca sabre as coisas, sabre osoutros ou sabre si, ela tern sempre urn efeito saneadore purificador. Nem 0 escarnio au 0 sarcasmo, marcasde uma vaidade finalmente doqrnatica, nem ahipocrisia ou 0 embuste, sempre malignos, mas sima ironia, simples e artificiosa. Pois a ironia e distsncie.Apertados em nossos habitos e na repeticao, naotemos nem tempo nem possibilidade de ironizar.!: preciso, como diz muito bern V. Jankelevitch ,que "se relaxe a urqencia vital". Que coloquemosentre nossas necessidades enos mesmos urn paren-teses, a tempo de urn sorriso au de uma interroqacao,ou - como no caso de Socrates - 0 espaco de umaquestao jocosa, mas essencial. Ironizar os outros: 0rei esta nu, e 0 homem mais poderoso do mundosempre esta sentado sobre seu traseiro! As "grandezasde convencso", para falar como Pascal, outro grande-ironico. se invertem. Ironizar as coisas: aquelasque nos sao mais indispensaveis, aquelas que malpodemos separar de nos, tornarn-se bruscamenteestranhas, frfvolas: sua religiosidade desvanece aos

    SOCRATES 61

    olhos distantes de quem sabe dizer-Ihes "sols apenascoisas": quem ainda pode dizer seriamente minharaupa, minha fortuna, minhas condecoracoes, minharaca, ap6s ter feito a viagem formadora da ironia?Pais 0 cumulo da falsa seriedade seria colar a simesmo, f i rmernente, em toda quietude sonolenta ...Ironizar a si mesma: 0 que fazemos maquinal ouimperturbavelmente, afinal por que? 0 que acredi-tamas saber, a que estamos seguros de crer, nossascertezas estauram como baloes: e nassas mais n'gidascrencas se volatizam como ao contato do ar fresco.Os momentos fugitivos roubados pela ironia aseriedade das coisas e a aderencia da existenciasao momentos prec iosos: sao momentos de cons-ciencia. A filosofia socratica e este luxe e e esta cans-ciencia, Tern desta a fragilidade, pais degenera facil-mente, a h ist6ria dos ouvintes de Socrates 0 prova.Efemera, ceda se dogmatiza: it forca de acreditar suaclarividencia invencfvel, torna-se aventureira, videAlcebiades; por excesso de distanciamento, dano ceticismo; por gosto da radicalizacso e da provo-cacao, torna-se "cinica" ... Ate a ironia acaba parlevar-se a serio. Mas ela e sobretudo um luxo,Socrates melhor que ninquern 0 sabia. Para poderfilosofar, para colocar entre si e 0 mundo a barreiraprofilatica do questionamento e da retlexao. e precisoo lazer da conversacao - e quase 0 prlvlleqlo daprequica, E preciso ter tempo de se abstrair dotempo que passa para espantar-se com 0 que ja naoespanta. E preciso j6 ser bem Iivre para saboreara prazer liberador da distancla.

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    31/48

    Capitulo4 a universal

    P a r a onde tudo isto leva S6crates? Quanta aironia, muito bem: mas sera que S6crates nao passade um desmancha-prazeres brincalhfio? Alquernque contraria a rotina do pensamento, que 90stade irritar as consciencias e de amedrontar as cabecasrecheadas? E somente isto 0 socratismo? Este inca-modo que faz ranger nossas certezas, esta proble-rnatlzacao. esta suspeicso permanente? Nao, parcerto: tudo isto s6 sao prim icias. Ese, mais do quequalquer outro, S6crates nos sen sibil izou com 0peso das quest5es e desconfiava da prontidao dasrespostas - se ele sabia da lrnportancia dos caminhos,ainda assim era preciso que eles 0 levassem a algumlugar. .Para quem, como Arist6teles, catalogasse fria-mente as obras dos fil6sofos em termos de resultados,como se poderia resumir numa palavra 0 socratismo?"Socrates, cujas preocupacoes visavam as coisas

    marais e de forma alguma a natureza em seu con-

    SOCRATES 63

    junto, tinha neste dom inio buscado 0 universale fixado pela primeira vez 0 pensamento em defi-nil;:5es" (Aristoteles, Metaffs;ca). 0 universal emmateria moral, pols. Mas 0 que isto significa? Refa-camas a itinerario que a isto conduz com um exem-plo tirade do Laques de Plataa.A cena se passa num ginasio. Dais pais de boafam iIia, Lisimaco e Meleslas, estao desnorteadosem face da educacao dos filhos: queriam que Ihesfosse dada uma s61ida instrucso cfvica, que elesmesmos lamentam nao ter recebido, e nao sabemcomo arranjar-se. Por isto pedem a dois celebresgenerais, N (cias e Laques, que assistam com elesaos exercicios de treinamento de urn mestre dearmas, para que Ihes deem uma opiniao: proporcionao exercrclo com arrnas (U a hoplomaquia") umaboa formacao? Socrates esta por ali, como de cos-tume desocupado. Os dais especialistas propdernassocla-lo a dlscussao: ele, que e vista sempre rodeadopelos jovens, deve conhecer melhor do que eles asproblemas da nova gera.;:ao; ademais sua valentiaesta acima de qualquer suspeita; sera pois um bornconselheiro. Socrates aceita, mas .acredita maisjusto, "sendo 0 mais jovem e 0 menos competente,escutar primeiramente os outros e instruir-se comseus discursos". Assim e teito, e Nicias expoe seuponto de vista: defende a haplomaquia, estimandoque e uma excelente preparacao para 0 combate euma boa escola de coragem. Laques e de oplnlaooposta: os exercrcios de salao jamais fizeram urnborn soldado, simplesmente porque jarnais tornaram

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    32/48

    Alcebfades, natureza brilhante corrompide pele ambipfjo.SOCRATES 65

    bravo um covarde. E requerida pois a arbitragemde S6crates. Este sol icita primeiramente que seesclareca a debate: de que se fala? Da hoplornaquia,sem duvidal Claro, responde Socrates, "mas quandose delibera sobre urn rernedio para os olhos" e sabreos olhos e nao sabre 0 rernedio que se discute, e ea um especialista dos olhos que nos dirigimos; demaneira geral "quando discutimos ace rca de umfim, e este fim 0 objeto da discussao e nao a meiosubordinadoa este fim"; assim, neste caso, e a almade vossos filhos e a virtude deles que esta em questao,nao 0 exerdcio com arrnas que e destinado aaperf'eicoa-la. Procurai pois um especialista emeducacso e nao em arrnas, Quanto a mim, nao sou'qualificado, "pois nada conhec;:o da questso, e naosou capaz de distinquir qual dos dois tern razao,nao sendo nestas rnaterias nem inventor nem alunode urn mestre". Mas, no lugar desta arbitragem,participaria de urn exame conjunto. Esta combinado,e Nlc i8S , que conhece bern nosso hornem, sabebern 0 que esperar: sabe "que serernos forcados,seja qual for 0 assunto abordado, a nos deixar levarpelo fio da conversa a expllcacoes sobre n6s mesmos,nosso genero de vida e sabre toda a nossa existenciaanterior". Acrescenta: "espero que, ao sermassubmetidos a esta experiencla, nos tornernos maisprudentes se estivermos dispostos... a aprenderdurante toda a vida e nao a acreditar que s6 avelhice traz a sabedoria ... Sabia desde muito tempoque, com Socrates, nao seriam apenas os jovens ospostos em causa, mas tarnbern nos mesmos". 0 exame

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    33/48

    66 o UNIVERSALcorneca, pais . S6cra te s vo lta ao seu exemplo : epreciso , fa z e le adm itir , para cura r as olhos, conhecera v irtude que querem as manda-tes adquir ir aurecobrar , isto e , a visso, N o caso nao e a coragema v irtude que se tra ta de tran sm itir 7 Procuremospo is , pr im e iram en te , de fin ir a co ragem . Ve remosen tao qua l e 0 m elho r m eio para as s e gurar a pres en cede la no s [ovens, n a m edida ern que as exercfcios eo s es tudas podem lograr ta l fe ito . Ten ta , pa is ,L a que s, re spo nde r a minha questao: 0 qu e e acoragem 7"A ss im acaba 0 preludio de todo dialoqo socratico:pela questao "0 qu e e 7". Detenhamo -no s um tan tone s te pon to crucia l. Tres conversoes i n s ens lve i sa cabam de se opera r, eno s faz em pa s sa r do ba te -papaa intarroqacao f i lo s6f ica .P rim eiro , te r-s e-a r eco nh ecid o 0 efe ito da iron iasocratica: pas sam os da certez a a suspe ita e do s abersuposto a colocaciio em causa de seus pres supo s tas .Ur n pas so atras. aparen temente , ja que, em luga rda resposta qu e procuravarnos (0 que pode a hoplo -m aquia7 ), encon t-c-no s urn a ques tao que naopi oeuravarnos (0 que e ~ c ora gem 7 ). Urn pas sodecisive. n a r ea li da de , ja que, lim itando a pretensaodo s sabe res ao co loca r 0 tipo de questao que naopodem reso lv er , rea liz amos 0 progresso cr/tico,Po is pen sar a s cegas n ao e s e e ng an ar (dizer a verda-de iro pe lo fa lso ), 0 que nao seria a lia s tao grav e :urn e rro nurna soma, bas ta v er ifica r , e e le se apagacorn uma bo rra cha . M as 0 rnais desa stro so se riaen ga nar-s e de pro blem a. E a s s irn que quer ia rn que

    SOCRATES 67

    S 6cra te s re so lv es se : co ntra o u a fa vo r da ho plo ma quia ,equa l do s do is te rn r a z ao ? Ma s e sta e afin al urn aquestao ta la : prova -o a contradicao lnsupsravel do sdo is gen era is . Pro cure mo s 0 "erro de ca lcu 10" naargumentacao deles , n ao 0 encont r a r emos : e s emduvida v erda de iro que 0 sxercfcio das armas e urnapreparacao nece s s a ria para a v ida m il itar, e naom eno s verdade iro que e le tenha jama is tra n sfo rm adourn medro so ... N ada de hssitacao: quando duasopinioes parecem igua lm en te v ero s s im eis e qu ee la s s ao igua lm en te fa ls as ; ou melho r, dua s boasre spo s tas a u rn a r n a q uestao,E s ta que s tao que nem suspe itav amos rea liz a as egunda transposicao: passamos de uma mera questaode meio s a uma reflexao sobre- 0 fim . De tecnico, 0problem a to rn a -s e mo ra l. S abe r como s e pode fa z e r(para adqu irir um a fo rm acao ) e vao , se n aa sein te rro ga prim eiram en te s abre 0 que se que r a tingiratraves disto. !: po rque se sabe can scien temen teonde se que r chegar que se pode in te rrogar sobreas v ias pa ra Iii chega r - e n ao 0 in v ers a . A ss im fazo piloto que co nduz 0 nav io a po rto segura , a s s imfa z 0 s apa te iro que conhece 0 molde do calcadoan te s de co rta r a eouro ; a s s im fa z em os artssaos,no sso s mes tres , em sua s realizacoes: a ss im a cr ed ita -mos faz er em no ssa s conduta s : a te o s ju rzes deS 6cra te s , par es tima rem sua aCao nociva, aehara rnborn Iiv ra r a cidade dela , condenando -o it mor te ;m a s ta lv ez uma reflexao sobre a [us tica Ihe s tiv es s epoupado urn erro [udiciario.M as e a terceira transposlcao q ue co nd icio na 3S

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    34/48

    68 a UNIVERSALduas outras: a simples forrnulacso da questso "0que e?". 0 "0 que e " e para Socrates 0 cornecoda sabedoria, pois supoe a suspensao provisoria detoda re l aceo puramente praqmatica com as coisas,com os atos e com a linguagem: e propriamente 0que se chama refletir no sentido em que a espelhodevolve a fonte sua luz. A coisa, 0 ate ou a palavrafamiliares - demasiado conhecidos - sao repenti-namente postos a distancla, diferidas sua consurnacaoau sua utilizacao, para serem por fim percebidos.Mas esta suspensao e provisoria e nao se trata paraS6crates de permanecer nela: 0 "o que e " e necessario.mas como mero desvio no rumo de uma razao emato. Entretanto, dir-se-a, par que atormentarmo-noscom os IlO que e ?": em caso de duvida, temos aomenos as diclonarios, cataloqos de respostas acabadas.Mas, a nao ser que 0 consultemos com relacao apalavras que jamais tenhamos ouvido, a dicionariosomente nos da aquila que mais ou menos ja sa-brarnos: ele nos instrui sobre 0 usa da palavra enao sabre a essencie da coisa. Pais nao e por maniaverbalista au purismo de qrarnatico que S6cratesprocura 0 que e a coragem ou alguma outra vir-tude: nao e para melhor falar, e para bem fazer;para fundar nossa conduta na razfio, estabelecendoo invariante que temos de pensar para poder agirracionalmente.Tal e pois 0 primeiro objetivo socratico: fazertabula rasa das certezas irrefletidas para poder secoiocar a procura de um valor. Mas esta caca nao

    SOCRATES 69

    se desenvolve sem dificuldades ou mal-entendidos,como a prova 0 que vem a seguir. Laques com efeitenao entende logo assim. A questao de S6cratesele se apressa em responder: "Quando urn soldadopermanece em seu posto e se mantern firme contraa inimigo em vez de fugir, sabe que este homern eum bravo." E, com efeito, quem 0 negaria? Quemrecusaria a este soldado 0 qualificativo de bravo?Mas naa se busca qualificar atitudes, busca-se umaessencla , Nao se procuram bans exemples de homenscorajosos, procura-se saber em que eles a 580. Econtra a exemplo de Laques, 0 contra-exemplo deS6crates: ha por vezes casos, como na cavalariacita au na infantaria espartana, em que as necessi-dades taticas, ou mesmo os ardis estrateqlcos,obrigam bravos soldados a combater recuando.S6crates explicita, pais: quer saber 0 que e a corageme m todas os casas: tanto para a cavalaria quantopara a infantaria; para os atenienses assim comopara todos as gregos e mesmo para os barberos:tanto a coragem do soldado quanto ados mari-nheiros "expostos aos perigos do mar"; comotarnbem "aquela que se manifesta na doenca, napobreza, na vida pol (tica: aquela que resiste naosomente aos males e aos temores, mas tarnbern aspaixdes e aos prazeres". Eis af pois a primeira regrade nossa ceca aos valores: e preciso passar damultiplicidade dos exemplos de coragem, cujasmanitestacoes variam conforme as clrcunstancias,a uma unidade que valha universal e absolutamente;isto e t "a que existe de identico em todas estas

  • 5/17/2018 Francis Wolff - S crates

    35/48

    70 o UNIVERSALmanifestacoss".Desta vez Laques compreendeu a exigencia loqlca,EIe propde, ja mais hesitante: "parece-rne que e umacerta torca da alma, se consideramos