francisco de oliveira - o surgimento do antivalor

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  • O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

    CAPITAL, FORA DE TRABALHO E FUNDO PBLICO

    Francisco de Oliveira

    Introduo: a crise do Estado-Providncia

    Nas ltimas cinco dcadas, acelerada e abrangentemente, o que se chama Welfare State, como conseqncia das polticas originalmente anti- cclicas de teorizao keynesiana, constituiu-se no padro de financiamento pblico da economia capitalista. Este pode ser sintetizado na sistematiza- o de uma esfera pblica onde, a partir de regras universais e pactadas, o fundo pblico, em suas diversas formas, passou a ser o pressuposto do financiamento da acumulao de capital, de um lado, e, de outro, do fi- nanciamento da reproduo da fora de trabalho, atingindo globalmente toda a populao por meio dos gastos sociais.

    A medicina socializada, a educao universal gratuita e obrigatria, a previdncia social, o seguro-desemprego, os subsdios para transporte, os benefcios familiares (quotas para auxlio-habitao, salrio famlia) e, no extremo desse espectro, subsdios para o lazer, favorecendo desde as classes mdias at o assalariado de nvel mais baixo, so seus exemplos. A descrio das diversas formas de financiamento para a acumulao de capital seria muito mais longa: inclui desde os recursos para cincia e tec- nologia, passa pelos diversos subsdios para a produo, sustentando a com- petitividade das exportaes, vai atravs dos juros subsidiados para seto- res de ponta, toma em muitos pases a forma de vastos e poderosos seto- res estatais produtivos, cristaliza-se numa ampla militarizao (as indstrias e os gastos em armamentos), sustenta a agricultura (o financiamento dos kkkkk

    Sem a acolhida, quem sa- be at entusiasmada de- mais, e a crtica de Rodri- go Naves, Jos Arthur Giannotti, Roberto Schwarz, Luiz Felipe de Alencastro, Geraldo Ml- ler, Otaclio Nunes, Carlos Alberto Bello, Elso Lu- ciano Pires e Hlio Cor- reia Lino, este ensaio no apareceria agora, perma- necendo, talvez, numa longa ruminao, que vem desde uma bolsa de ps-doutoramento patro- cinada pelo CNPq e CNRS em Paris. Para alm dos agradecimentos formais de praxe, meu reconheci- mento no pode deixar de ancorar-se nos amigos e instituies, particular- mente, neste caso, minha casa o CEBRAP , dis- postos a patrocinar uma discusso que rema con- tra a mar montante do Moloch privatista neolibe- ral, o "ai-jesus" de hoje no Brasil, que uma vez mais mostra como as "idias podem estar fora do lugar".

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    excedentes agrcolas dos Estados Unidos e a chamada "Europa Verde" da CEE), e o mercado financeiro e de capitais atravs de bancos e/ou fundos estatais, pela utilizao de aes de empresas estatais como blue chips, in- tervm na circulao monetria de excedentes pelo open market, mantm a valorizao dos capitais pela via da dvida pblica etc.

    A descrio anterior pode ser refutada com a afirmao de que to- da a vasta gama de subsdios e auxlios pblicos constitutiva do prprio capitalismo, no sendo marca especfica do Estado-Providncia. Mas essa objeo no capta a diferena de natureza entre esses dois momentos. De fato, a formao do sistema capitalista impensvel sem a utilizao de re- cursos pblicos, que em certos casos funcionaram quase como uma "acu- mulao primitiva" desde o casamento dos tesouros reais ou imperiais com banqueiros e mercadores na expanso colonial at a despossesso das ter- ras dos ndios para ced-las s grandes ferrovias particulares nos Estados Unidos, a privatizao de bens e propriedades da Igreja desde Henrique VIII at a Revoluo Francesa; e, do outro lado, as diversas medidas de ca- rter caritativo para populaes pobres, de que as "Poors Houses" so bem o exemplo no caso ingls. Contra esse carter pontual, que dependia oca- sionalmente da fora e da presso de grupos especficos, o financiamento pblico contemporneo tornou-se abrangente, estvel e marcado por re- gras assentidas pelos principais grupos sociais e polticos. Criou-se, como j se assinalou, uma esfera pblica ou um mercado institucionalmente regulado.

    Entretanto, a mudana mais recente das relaes do fundo pblico com os capitais particulares e com a reproduo da fora de trabalho re- presenta uma "revoluo copernicana". Para resumir uma tese que se des- dobrar ao longo deste ensaio, o fundo pblico agora um ex-ante das condies de reproduo de cada capital particular e das condies de vi- da, em lugar de seu carter ex-post tpico do capitalismo concorrencial. Ele a referncia pressuposta principal, que no jargo de hoje sinaliza as possibilidades da reproduo. Ele existe "em abstrato" antes de existir de fato: essa "revoluo copernicana" foi antecipada por Keynes, ainda que a teorizao keynesiana se dirigisse conjuntura. A per-equao da forma- o da taxa de lucro passa pelo fundo pblico, o que o torna um compo- nente estrutural insubstituvel.

    Do lado da reproduo da fora de trabalho, a ascenso do finan- ciamento pblico no foi menos importante. "As despesas pblicas, desti- nadas educao, sade, penses e outros programas de garantia de re- cursos aumentaram, durante os vinte ltimos anos no conjunto dos pases da OCDE, quase duas vezes mais rapidamente que o PIB e elas foram o elemento dominante no crescimento das despesas pblicas totais: desde 1960, elas passaram, no conjunto dos sete maiores pases da OCDE, de cerca de 14% a mais de 24% do PIB" ("Dpenses Sociales: rosion ou Evolution?", L'Observateur de 1'OCDE, n 126, janvier 1984, OCDE, Paris, trad. do autor). Essa mdia resultou de evolues, pas por pas, de 19% jjjjjjjj

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    para 26% na Repblica Federal da Alemanha, de 16% para 25% na Fran- a, de 16% para 23% na Itlia, de 16% para 30% na Holanda, de 16% para 28% na Blgica; entre 1969 e 1981, de 18% para 27% na Dinamarca e de 15% para 22% na Inglaterra. Entre 1965 e 1981, as despesas sociais pbli- cas, como porcentagem da renda disponvel domiciliar, passaram de 28% para 46% na Repblica Federal da Alemanha, de 24% para 42% na Holan- da, de 25% para 33% na Frana, de 22% para 27% na Itlia, de 22% para 33% na Blgica e, na Inglaterra, entre 1969 e 1981, de 24% para 33%. Quer dizer que em sete grandes pases industrializados, nata do Primeiro Mun- do, com exceo dos Estados Unidos e do Japo, o salrio indireto tem uma importncia, em relao ao salrio direto (assimilando a renda domi- ciliar a este conceito) que vai de um mnimo de 33% ao mximo de 45%, at o ltimo ano para o qual se dispe de dados (Ch. Andr, "Les Evolu- tions Spcifiques des Diverses Composants du Salaire Indirect travers la Crise", Critiques de L'conomie Politique, n 26-27, janvier-juin, 1984, Pa- ris). Alis, a transferncia para o financiamento pblico de parcelas da re- produo da fora de trabalho uma tendncia histrica de longo prazo no sistema capitalista; a expulso desses custos do "custo interno de pro- duo" e sua transformao em socializao dos custos foi mesmo, em al- gumas sociedades nacionais, uma parte do percurso necessrio para a cons- tituio do trabalho abstrato; nas grandes economias e sociedades capita- listas contemporneas, o Japo parece ser a nica exceo a esse respeito, no momento de decolagem da industrializao japonesa, e, pelo menos, at h muito pouco tempo: o especfico "exrcito cativo de mo-de-obra" ligado a cada empresa pelo menos s grandes empresas parece um caso inslito na tradio capitalista.

    O crescimento do salrio indireto, nas propores assinaladas, transformou-se em liberao do salrio direto ou da renda domiciliar dis- ponvel para alimentar o consumo de massa. O crescimento dos merca- dos, especialmente do de bens de consumo durveis, teve, portanto, co- mo uma de suas alavancas importantes, o comportamento j assinalado das despesas sociais pblicas ou do salrio indireto. Modificaes dessa mon- ta no rapport salariel so pois, como tem sido repetidamente assinalado pelos autores da corrente terica da regulao (Michel Aglietta, Robert Bo- yer, Alain Lipietz, entre outros), fatores dos mais importantes no longo pe- rodo de expanso que vai desde os fins da II Guerra Mundial at hoje. Noutras palavras, para a ascenso do consumo de massa, combinaram-se de uma forma extraordinria o progresso tcnico, a organizao fordista da produo, os enormes ganhos de produtividade e o salrio indireto, estes dois ltimos fatores compondo o rapport salariel. A presena dos fun- dos pblicos, pelo lado desta vez da reproduo da fora de trabalho e dos gastos sociais pblicos gerais, estrutural ao capitalismo contempor- neo, e, at prova em contrrio, insubstituvel.

    O padro de financiamento pblico do Estado-Providncia o res- ponsvel pelo continuado dficit pblico nos grandes pases industrializa- kkkkk

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    dos. este padro que est em crise, e o termo "padro de financiamento pblico" prefervel aos termos usualmente utilizados no debate, tais co- mo "estatizao" e "interveno estatal". O primeiro destes ltimos leva a supor que a propriedade crescentemente estatal, o que est muito lon- ge do real, e o segundo induz a pensar-se numa interveno de fora para dentro, escamoteando o lugar estrutural e insubstituvel dos fundos pbli- cos na articulao dos vetores da expanso econmica. Uma srie de 1971 a 1985 (International Financial Statistics Yearbook 1987. International Monetary Fund, Washington) mostra que o dficit pblico nos pases in- dustrializados (incluindo EUA, Canad, Austrlia, Japo, Nova Zelndia, us- tria, Blgica, Dinamarca, Finlndia, Frana, Alemanha Federal, Irlanda, It- lia, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Espanha, Sucia, Sua e Inglaterra), cresceu, mdia desses pases, de 2,07% do PIB em 1972 a 4,93% do PIB em 1984. Os Estados Unidos situaram-se na mdia, enquanto outros pa- ses, como Canad, Nova Zelndia, Blgica, Irlanda, Itlia, Holanda e Su- cia ultrapassaram a mdia entre uma e trs vezes. interessante notar que a mdia do dficit pblico como porcentagem do PIB foi geralmente dos mesmos valores em quase todas as partes do mundo, por grupos de pa- ses, o que sugere que as internacionalizaes produtiva e financeira esto obrigando praticamente todos os pases a adotarem o padro de financia- mento pblico do Estado-Providncia.

    A crise do Estado-Providncia e o termo freqentemente mais associado produo de bens sociais pblicos e menos presena dos fundos pblicos na estruturao da reproduo do capital, revelando pois um indisfarvel acento ideolgico na crtica crise tem levado "crise fiscal do Estado" nos termos de James O'Connor (The Fiscal Crisis of the State. St. Martin's Press, New York, 1973) devido disputa entre fundos pblicos destinados reproduo do capital e fundos que financiam a pro- duo de bens e servios sociais pblicos; ou, na verso de Lester Thu- row, a um impasse ricardiano, jogo de soma zero, em que "o que um per- de o que o outro ganha" (The Zero-Sum Society. Basic Books, New York, 1981).

    As receitas dos Governos Centrais como porcentagem do PIB tm se elevado sistematicamente desde nveis de 23% em 1971 a 27% em 1984 (International Financial Statistics Yearbook 1987, IMF) para o conjunto dos pases industrializados, com os nveis mximos de 45,1% na Blgica, 42,23% na Frana, 43,1% na Irlanda, 40,8% na Itlia, 52,2% na Holanda, 42,8% na Noruega e 41,4% na Sucia. Paradoxalmente, pases mais poten- tes como os Estados Unidos esto num nvel de 30%, a Alemanha Federal situa-se em 29% e a Inglaterra em 38,1%, esses ltimos dados referindo-se a 1984. Os gastos dos Governos Centrais situam-se, mdia do conjunto dos pases mais industrializados, acima de 1/3 do PIB, de novo com uma gran- de heterogeneidade, ressaltando-se que os Estados Unidos mantm-se em torno da mdia. No h dados para o Japo, tanto no que se refere s recei- tas governamentais quanto s despesas.

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    Ao lado do dficit pblico e das receitas e despesas estatais como proporo do PIB pelo menos 1/3 dos PIBs mais importantes transitam pelos Tesouros Nacionais , as propores e o lugar da dvida pblica dos principais pases confirmam o lugar estrutural do fundo pblico na socia- bilidade geral. Nos ltimos anos de 1982 a 1986, variando de pas a pas segundo o ltimo dado disponvel nas International Financial Statistics, (1987, IMF), nos nveis mais baixos da dvida pblica interna e externa co- mo porcentagem do PIB agrupavam-se pases como Blgica (10,2%) e Su- a (11,6%); no patamar imediatamente posterior, pases como a Alemanha Federal (20,6%) e Frana (22,7%); no patamar posterior, pases como Su- cia (56,6%), Holanda (55,5%), EUA (43,4%), Inglaterra (47,8%) e Japo (53,8%); nos nveis mximos, pases como Nova Zelndia (73,1%) e Itlia (81,2%). H, pois, uma razovel disperso, mas importa notar que pases da talha dos EUA, Japo, Inglaterra, Holanda e Sucia situaram-se num pa- tamar em que a dvida pblica corresponde metade de seus produtos internos brutos. Salvo Alemanha Federal, Frana e Sua, que se situam nos segundo e primeiro nveis anteriormente descritos, os pases em que a di- vida metade do PIB so, indiscutivelmente, as mais notveis lideranas industriais, tecnolgicas e financeiras do capitalismo contemporneo. A Su- a reconhecidamente uma exceo, pela concentrao de recursos finan- ceiros de outros pases no seu sistema bancrio e financeiro. Ainda que no perfeita, h uma indisfarvel relao entre a dvida pblica dos pa- ses mais importantes, suas posies no sistema capitalista e suas dinmicas.

    O argumento da direita que essa estatizao dos resultados da pro- duo social levaria a uma espcie de socialismo burocrtico e estacion- rio, diminuindo, de um lado, os recursos privados destinados ao investi- mento e, de outro, pela elevao da carga fiscal sobre pessoas e famlias, diminuindo a propenso para o consumo; utilizando-se o esquema keyne- siano da depresso da demanda efetiva tanto por parte das empresas quanto das famlias, a estatizao dos resultados da produo social teria tudo pa- ra conduzir o capitalismo a um estado estacionrio, congruente com a pre- viso estagnacionista da maioria dos clssicos da economia, sobretudo Smith, mais resolutamente Ricardo e secundariamente Stuart Mill.

    O corao do impasse ricardiano de Thurow ou da "crise fiscal" de O'Connor e as verses da direita so menos teorizadas, salvo Hayek no de nenhum modo uma tendncia estagnacionista. apenas e esse apenas muito forte, a expresso da abrangncia da socializao da pro- duo, num sistema que continua tendo como pedra angular a apropria- o privada dos resultados da produo social. Mas, de certo modo, ela expressa tambm a retrao da base social da explorao, em termos mar- xistas, questo que ser desdobrada mais adiante.

    O rompimento do crculo perfeito do Estado-Providncia, em ter- mos keynesianos, devido, em primeira instncia, internacionalizao produtiva e financeira da economia capitalista. A regulao keynesiana fun- cionou enquanto a reproduo do capital, os aumentos de produtividade, kkkkkkkkkk

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    a elevao do salrio real, se circunscreveram aos limites relativos, por certo , da territorialidade nacional dos processos de interao daqueles componentes da renda e do produto. Deve-se assinalar, desde logo, que aquela circularidade foi possvel graas ao padro de financiamento pbli- co do Welfare State, um dos fatores, entre outros alis, que levaram cres- cente internacionalizao. Ultrapassados certos limites, a internacionaliza- o produtiva e financeira dissolveu relativamente a circularidade nacio- nal dos processos de retroalimentao. Pois desterritorializam-se o inves- timento" e a renda, mas o padro de financiamento pblico do Welfare Sta- te no pde nem pode, at agora desterritorializar-se. Em outras pa- lavras, a circularidade anterior pressupunha ganhos fiscais corresponden- tes ao investimento e renda que o fundo pblico articulava e financiava; a crescente internacionalizao retirou parte dos ganhos fiscais, mas dei- xou aos fundos pblicos nacionais a tarefa de continuar articulando e fi- nanciando a reproduo do capital e da fora de trabalho. Da que, nos limites nacionais de cada uma das principais potncias industriais desen- volvidas, a crise fiscal ou "o que um ganha o que o outro perde" emer- giu na deteriorao das receitas fiscais e parafiscais (previdncia social, por exemplo), levando ao dficit pblico. O anterior fica muito claro quando se pensa numa multinacional com antenas em vrios pases: o pas-sede original no contemplado com retornos fiscais e parafiscais proporcio- nais ao investimento e renda (inclusive salrios) gerados alhures por filiais das multinacionais, enquanto o financiamento pblico que tenta articular a demanda efetiva continua circunscrito a sua territorialidade. Em pases como os Estados Unidos, certas atividades das multinacionais, substituin- do suas prprias produes internas, deixam ao fundo pblico nacional os encargos de financiar a reproduo do capital e da fora de trabalho (y compris o seguro-desemprego), o que gera uma crescente incompatibi- lidade entre o padro de financiamento pblico e a internacionalizao produtiva e financeira. Nasceu exatamente dos pases em que essa perfor- mance de suas prprias multinacionais mais acabada, Estados Unidos e Inglaterra, a reao conservadora contra o Estado-Providncia, pondo o acento nos gastos estatais para a produo de bens e servios sociais p- blicos. A reao Thatcher e Reagan, que, procurando cortar ou diminuir a carga fiscal e parafiscal (impostos e previdncia social), fiou-se num com- portamento neovitoriano de empresas e famlias, utilizando presumia- se o alvio daquelas cargas para fazer voltar tona o impulso de investi- mento e o consumo privados.

    O fundo terico da crise

    O padro de financiamento pblico do Welfare State operou uma verdadeira "revoluo copernicana" nos fundamentos da categoria do va- kkkkkkddddddd

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    lor como nervo central tanto da reproduo do capital quanto da fora de trabalho. No fundo, levado s ltimas conseqncias, o padro do fi- nanciamento pblico "implodiu" o valor como nico pressuposto da re- produo ampliada do capital, desfazendo-o parcialmente enquanto me- dida da atividade econmica e da sociabilidade em geral.

    Na medida em que o padro de financiamento pblico constituiu- se em uma verdadeira esfera pblica, as regras da reproduo tornaram-se mais estveis porque previsveis e da competio anrquica emergiu uma competio segmentada. Por certo, no deixou de haver competio no capitalismo, mas essa se d dentro de regras preestabelecidas e consensuais. Essa universalizao tem efeitos paradoxais, segmentando a competio em pelo menos dois nveis, o primeiro o circuito dos oligoplios e o segundo o circuito dos capitais competitivos. A rigor, o fundo pblico um ersatz do capital financeiro, indo alm da teorizao proposta por Hilferding.

    Na forma dos ttulos pblicos e dos vrios tipos de incentivos e sub- sdios, o fundo pblico que agiliza a circulao do capital, e em muitos casos cumpre o papel da famosa ponte invisvel keynesiana entre quem poupa e quem investe. Essa funo demarca um setor oligopolista e um setor concorrencial "primitivo" (que no tem acesso ao fundo pblico) na tradio terica de Labini. Do ponto de vista da teoria marxista, dissolveu-se a tendncia formao de uma taxa mdia de lucro, para dar lugar, no mnimo, a duas taxas mdias: a do setor oligopolista e a do setor concorrencial "primitivo". E o fundo pblico decisivo na formao da taxa mdia de lucro do setor oligopolista, e pelo negativo, pela sua ausn- cia, na manuteno de capitais e capitalistas no circuito do setor concor- rencial "primitivo".

    Imbricando-se diretamente na determinao da taxa mdia de lu- cro do setor oligopolista, o fundo pblico influi decisivamente, atravs de outros recortes, sobre a taxa de lucro de setores inteiros e at de ramos especiais da reproduo no interior do setor oligopolista. Recortes como "prioridades nacionais de segurana", "pesquisa de ponta", "programas es- peciais de produo", e inmeros outros, tais como a sustentao de pro- dues agrcolas excedentrias, transformaram mais uma vez a competi- o segmentada. O papel do fundo pblico como pressuposto especial des- sa segmentao retirou o capital constante e o varivel da funo de parmetro-pressuposto, e colocou em seu lugar a relao de cada capital em particular com o prprio fundo pblico. Em outras palavras, a taxa de lucro de setores de ponta como a aeronutica, as atividades industriais es- paciais, a informtica, tem que se referir simultaneamente aos seus pr- prios capitais e frao dos fundos pblicos utilizados para sua reprodu- o; isto tem um efeito paradoxal, pois enquanto aumenta a taxa de lucro de cada capital em particular (pois na equao particular a frao do fun- do pblico utilizada no tem remunerao ou quando a tem francamen- te subestimada) diminui a taxa de excedente global da economia.

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    A rigor, trata-se de uma relao ad hoc entre o fundo pblico e ca- da capital em particular. Essa relao ad hoc leva o fundo pblico a comportar-se como um anticapital num sentido muito importante: essa con- tradio entre um fundo pblico que no valor e sua funo de sustenta- o do capital destri o carter auto-reflexivo do valor, central na consti- tuio do sistema capitalista enquanto sistema de valorizao do valor. O valor, no somente enquanto categoria central, mas prxis do sistema, no pode, agora, reportar-se apenas a si mesmo: ele tem que necessariamente reportar-se a outros componentes; no caso, o fundo pblico, sem o que ele perde a capacidade de proceder sua prpria valorizao. O fato de que, finalmente, a mesma expresso monetria recubra o interior dessa con- tradio, apresentando-a externamente como uma unidade, no deve le- var a enganos: trata-se, no caso, da "indiferena da moeda do banco cen- tral", que expressa apenas uma relao entre devedores e credores, subsu- mindo nesta a moeda como expresso do tempo de trabalho mdio so- cialmente necessrio.

    Do lado da reproduo da fora de trabalho, que toma a forma do financiamento pblico de bens e servios sociais pblicos extensivos na prtica maioria da populao, as polticas anticclicas aceleradas e uni- versalizadas a rigor, a social-democracia alem e inglesa, e mesmo o Front Populaire francs de 1936 e o New Deal rooseveltiano as precederam a partir do fim da II Guerra Mundial foram no sentido da crescente partici- pao do salrio indireto no salrio total. Esses bens e servios funciona- ram, na verdade, como antimercadorias sociais, pois sua finalidade no a de gerar lucros, nem mediante sua ao d-se a extrao da mais-valia. Dizer, como a maior parte da crtica marxista tem dito, que contribuem para aumentar a produtividade do trabalho, quase um trusmo, posto que qualquer gasto de bem-estar deve potencialmente melhorar as condies de vida.

    A questo terica que se pe vai mais longe: recuperando-se Sraffa (Production of Commodities by Means of Commodities) possvel dizer que o salrio mercadoria-padro para Sraffa agora data, determina a produo de um sem-nmero de bens e servios pblicos sociais, e vai mais alm, atingindo mesmo a produo de bens e servios explorados privadamente. De fato, indexando os benefcios sociais ao salrio, o que se est fazendo tornar o salrio o parmetro bsico da produo de bens e servios sociais pblicos. Isto o oposto da extrao da mais-valia e, con- seqentemente, em sua derivao, da determinao da taxa de lucro, onde os parmetros no apenas do clculo mas da razo da mais-valia residem na relao capital constante-capital varivel. Se tomarmos qualquer dos bens e servios financiados e/ou produzidos pelo fundo pblico, ver-se- que seu preo determinado como uma quota-parte do salrio: isto , a tarifa de um servio pblico como o metr calculada tendo-se como refern- cia uma parte do salrio destinada a gastos de transporte. E, em muitos casos, na fixao de preos de bens bsicos produzidos pelo prprio setor kkkkk

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    privado, o que se tem em vista que seu preo represente uma certa por- centagem dos gastos dos oramentos familiares.

    A dialtica instaurada pela funo do fundo pblico na reproduo do capital e da fora de trabalho levou a inusitados desdobramentos. H, teoricamente, uma tendncia desmercantilizao da fora de trabalho pelo fato de que os componentes de sua reproduo representados pelo salrio indireto so antimercadorias sociais. De um lado, isto representou uma certa homogeneizao do mercado e do preo da fora de trabalho, levando autonomizao do capital constante, de que j falava Belluzzo ("A Transfigurao Crtica", in Estudos CEBRAP n 24), e desatando, por sua vez, a reproduo do capital das amarras de uma antiga dialtica em que as inovaes tcnicas se davam, sobretudo, como reao aos aumentos do salrio direto real. A brecha para a inovao tcnica, desparametrizada do salrio real total, posto que este agora tem no salrio indireto um compo- nente no desprezvel no mnimo um tero do salrio total , deslan- chou um processo de inovaes tecnolgicas sem paralelo.

    simultnea a dupla operao de presena do fundo pblico na reproduo da fora de trabalho e do capital; no se pode, neste caso, bus- car resolver o velho enigma da precedncia da "galinha ou do ovo", mas o fato que houve uma dupla desparametrizao: tanto em relao ao va- lor ou preo da fora de trabalho, quanto em relao aos valores dos capi- tais originais, o capital se move agora numa relao em que o preo da fora de trabalho indiferente do ponto de vista das inovaes tcnicas e o parmetro pelo qual se mede a valorizao do capital agora um "mix", em que o fundo pblico no entra como valor. A contradio, pois, que se assiste a uma elevao da rentabilidade, ou das taxas de retorno dos ca- pitais, gerando a enorme solvabilidade e liquidez dos setores privados, en- quanto o prprio fundo pblico d visveis mostras de exausto como pa- dro privilegiado da forma de expanso capitalista desde os fins da II Guerra Mundial.

    Nesse rastro, inclusive as predies de pauperizao, entendida ab- soluta ou relativamente, no se confirmaram. O que se assiste uma ex- panso do consumo de todas as classes nos pases mais desenvolvidos, e uma renovada e inusitada expanso do investimento. por essa razo que os esquemas keynesianos j no so capazes de explicar os fenmenos con- temporneos, comprimidos entre as tenazes de uma oposio entre pro- penso para consumir e propenso para poupar (ou investir); sem incluir o fundo pblico em sua autonomia relativa, o esquema keynesiano tende a perder sua capacidade paradigmtica. O que torna o fundo pblico es- trutural e insubstituvel no processo de acumulao de capital, atuando nas duas pontas de sua constituio, que sua mediao absolutamente necessria pelo fato de que, tendo desatado o capital de suas determina- es autovalorizveis, detonou um agigantamento das foras produtivas de tal forma que o lucro capitalista absolutamente insuficiente para dar for- ma, concretizar, as novas possibilidades de progresso tcnico abertas. Isto kkkkkk

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    somente se torna possvel apropriando parcelas crescentes da riqueza p- blica em geral, ou mais especificamente, os recursos pblicos que tomam a forma estatal nas economias e sociedades capitalistas. A massa de valor em mos dos capitalistas, sob a forma de lucro, de cuja abundncia a cir- culao monetria contempornea a expresso, no deve iludir: apesar da enorme liquidez, essa massa de valor absolutamente insuficiente para plasmar as novas possibilidades abertas em acumulao de capital concreta.

    O resultado desse longo processo que o fundo pblico passou a vincular-se a finalidades determinadas aprioristicamente, e ainda mais, pouco tem a ver com a taxa de lucro original de cada capital. A rigor, a partir da alocao de uma parcela do fundo pblico que a taxa de retor- no ou seu equivalente, a taxa de lucro, calculada. Concebido como ins- trumento anticclico, tornado permanente e insubstituvel, essa rigidez do fundo pblico escapa s regulaes nacionalmente territorializadas. Ela tor- na relativamente incuas as polticas econmicas em muitos aspectos, dan- do lugar soberania das polticas monetrias e neste caso, apenas as de alguns pases posto que a indiferena da moeda (Aglietta e Orlans. La Violence de la Monnaie. PUF, Paris) do banco central , no fundo, a ni- ca abrangncia que cobre tanto o setor de economia de mercado quanto o setor hors march (a economia pblica de bens e servios sociais); e co- bre precisamente porque, em no sendo mais a moeda a expresso do tem- po de trabalho socialmente necessrio erodida nessa funo pelo anti- capital e pela antimercadoria , terminou por ser apenas a expresso mo- netria mas no necessariamente de valor de uma relao entre cre- dores e devedores.

    Um desdobramento terico particular ao campo marxista

    Em termos marxistas, a funo do fundo pblico tende a desfazer os conceitos e realidades do capital e da fora de trabalho, esta ltima en- quanto mercadoria, ou nos termos de Sraffa a mercadoria-padro, que de- termina o valor e o preo de qualquer outra (relevados os problemas da converso de valor em preos, que alis com o fundo pblico tornam-se praticamente intraduzveis). A equao original de Marx a de D-M-D' no que se refere ao circuito do capital-dinheiro. O fundo pblico funcionan- do como pressuposto geral de cada capital em particular transforma essa equao em Anti-D-D-M-D(-D), sendo que o ltimo termo volta a repor-se no incio da equao como Anti-D, isto , uma quantidade de moeda que no se pe como valor. O ltimo termo uma quantidade de moeda que tem como oposio interna a frao do fundo pblico presente nos resul- tados da produo social, que se expressa em moeda mas no dinheiro.

    Do ponto de vista do circuito da mercadoria, a equao original de Marx era a de M-D-M, e o fundo pblico como estrutura imbricante trans- kkkkk

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    forma a equao para Anti-M-M-D-M(-Anti-M), na qual os dois primeiros termos significam as antimercadorias e as mercadorias propriamente di- tas, e os dois ltimos significam a produo de mercadorias e a produo de antimercadorias. No fundo, a segunda equao fica subsumida na pri- meira. As conseqncias tericas dessa transformao vo se expressar na composio do capital e na taxa de explorao. A composio do produ- to, na equao C+V+M, sofre a seguinte transformao: -C + C+V(-V) + M, na qual a taxa de mais-valia se reduz pela presena, na equao, das anti- mercadorias sociais que funcionam como um ersatz do capital varivel. Isto quer dizer que na equao geral do produto a taxa de mais-valia cai, enquanto na equao de cada capital particular ela pode, e geralmente de- ve, se elevar.

    Essa transformao repe o problema, clssico na teoria marxista, da tendncia declinante da taxa de lucro. De fato, em perspectiva estatsti- ca, procurando medir-se o aumento do capital constante e o declnio do capital varivel a partir da soma dos capitais particulares, chega-se a uma incgnita sem soluo. Porque de fato j no se pode realizar teoricamen- te essa soma. Tanto o capital constante no pode ser uma soma dos capi- tais particulares, pois a existe uma oposio operada pelo fundo pblico para viabilizar a acumulao de cada capital em particular, quanto no se pode mais medir o capital varivel sem considerar o salrio indireto como uma forma oposta ao salrio direto (por isso na equao transformada o segundo V tem sinal negativo). A diferena desta postulao com a "quei- ma de excedentes" da formulao terica do Capitalismo Monopolista de Estado que o fundo pblico no capital, no podendo, seno nominal- mente, seno monetariamente, ser identificado com ele; alm disso, o fun- do pblico no opera como tendncia contra-restante queda da taxa de lucro: de fato, ele uma expresso dela, e sua necessidade estrutural in- substituvel no se d porque o capitalismo esgotou as possibilidades de acumulao; ao contrrio, o fundo pblico comparece como viabilizador da concretizao das oportunidades de expanso, em face da insuficincia do lucro frente ao avassalador progresso tcnico. Em suma, j no se pode falar mais de "capital social total", mas apenas de "capital em geral". A con- seqncia terica mais profunda que a lei da tendncia declinante da ta- xa de lucro se afirma pela retrao da base social global de explorao, enquanto, se tomarmos a velha frmula em seu sentido original, a base social de explorao se ampliaria (se somssemos as antimercadorias com o salrio real direto), o que tornaria o paradigma da tendncia declinante inteiramente incuo. Nos termos de Kuhn, o poder explicativo do para- digma teria perdido toda sua potncia, e por conseqncia ameaaria o corpo terico marxista por inteiro (Thomas Kuhn. A Estrutura das Revolu- es Cientficas. Perspectiva, So Paulo).

    O caminho percorrido pelo sistema capitalista, e particularmente as transformaes operadas pelo Welfare State, repe a velha questo dos limites do sistema. A famosa previso de Marx do fim do sistema foi lida kkkkkk

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    literalmente, e interpretada comumente como uma catstrofe ao estilo de Sanso derrubando as colunas do templo. Ora, a histria do desenvolvi- mento capitalista tem mostrado, com especial nfase depois do Welfare State, que os limites do sistema capitalista s podem estar na negao de suas categorias reais, o capital e a fora de trabalho. Neste sentido, a funo do fundo pblico no travejamento estrutural do sistema tem muito mais a ver com os limites do capitalismo, como um desdobramento de suas prprias contradies internas. Dizendo em outras palavras, as transformaes mais importantes do sistema capitalista se do no corao, no ncleo duro das mais importantes economias capitalistas. O fundo pblico, em resumo, o antivalor, menos no sentido de que o sistema no mais produz valor, e mais no sentido de que os pressupostos da reproduo do valor con- tm, em si mesmos, os elementos mais fundamentais de sua negao. Afi- nal, o que se vislumbra com a emergncia do antivalor a capacidade de passar-se a outra fase em que a produo do valor, ou de seu substituto, a produo do excedente social, toma novas formas. E essas novas formas, para relembrar a assero clssica, aparecem no como desvios do siste- ma capitalista, mas como necessidade de sua lgica interna de expanso.

    Permanece, no campo marxista, uma interrogao sobre o fetiche da mercadoria. O percurso terico at aqui sumarizado tem, como neces- sidade intrnseca de seu desdobramento, a anulao do fetiche da merca- doria, se esta categoria est se desfazendo no sistema capitalista; princi- palmente se a fora de trabalho est se desvestindo das determinaes da mercadoria. De fato, a desmercantilizao da fora de trabalho opera no sentido da anulao do fetiche: cada vez mais, a remunerao da fora de trabalho transparente, no sentido de que seus componentes so no ape- nas conhecidos, mas determinados politicamente. Tal a natureza dos gastos sociais que compem o salrio indireto, e a luta poltica se trava para fazer corresponder a cada item do consumo uma partida correspondente dos gastos sociais. No h fetiche, neste sentido: sabe-se agora exatamente do que composta a reproduo social. Ou, em outras palavras, a frao do trabalho no-pago, fonte da mais-valia, se reduz, socialmente. Mas, parece- ria ironia dizer que o mundo contemporneo completamente des- fetichizado, pois a sociedade de massas parece a fetichizao elevada en- sima potncia. Pode-se, apenas, sugerir que no lugar do fetiche da merca- doria colocou-se um fetiche do Estado, que finalmente o lugar onde se opera a viabilidade da continuao da explorao da fora de trabalho, por um lado, e de sua desmercantilizao, por outro, escondendo agora o fa- to de que o capital completamente social.

    Importa tambm observar que o Estado de Bem-Estar e suas insti- tuies no so, agora, o "horizonte intransponvel"; para alm dele, bate, latente, um modo social de produo superior. Resta resolver um proble- ma, intacto, que o da apropriao dos resultados desse modo social; por enquanto, a capacidade de reproduo desatada pela atuao do fundo p- blico leva gua ao moinho dos proprietrios de capital, numa situao em

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    que este mesmo capital j fundamentalmente socializado. Isto posto, a constituio das classes sociais tambm no atingiu nenhum umbral in- transponvel; no h uma "eternizao" nem das classes nem das relaes sociais. Mas, decididamente, o acesso e o manejo do fundo pblico so o nec plus ultra das formas sociais do futuro.

    O que de fato se transformou foi a relao social de produo; na literatura marxista a relao social de produo foi ganhando cada vez mais uma conotao restritiva, que terminou por assumir como essncia aquilo que para Marx era aparncia (o salrio como ocultao da apropriao pe- los capitalistas do valor de uso do trabalho que a fora de trabalho tem). Dessa forma, sobretudo aps a crtica leninista da social-democracia e da derrocada desta poca do fascismo, o problema da transformao do ca- pitalismo em socialismo tinha como condio prvia a derrocada da rela- o social de produo em sentido restrito, quase no sentido de relao de fbrica.

    Mas a relao social de produo no se mede apenas nem pela pre- sena do salrio nem da propriedade privada; ela inclui, alm disso, todas as esferas necessrias para a reproduo do capital, como a circulao, a distribuio e o consumo, alm da esfera da produo. A "revoluo co- pernicana" da relao social de produo, antevista pela social-democracia alem de antes do nazismo o renascimento poltico da social-democracia no produziu nenhuma nova perspectiva dos problemas tericos princi- pais a presena do fundo pblico na reproduo simultnea do capi- tal e da fora de trabalho. O bloqueio leninista, baseado no prprio Marx ver a Crtica ao Programa de Gotha relegou para um segundo plano quaisquer outras mudanas na relao global social da produo. Ora, o desenvolvimento do Welfare State justamente a revoluo nas condies de distribuio e consumo, do lado da fora de trabalho, e das condies de circulao, do lado do capital. Os gastos sociais pblicos mudaram as condies da distribuio dentro de uma relao social de produo que parecia ter permanecido a mesma; o fundo pblico como financiador, ar- ticulador e "capital em geral" mudou as condies da circulao de capi- tais. Estas transformaes penetram agora a esfera da produo pela via da reposio do capital e da fora de trabalho, transformados nas outras esferas. E, no sentido de Giannotti (Trabalho e Reflexo, sobretudo o cap- tulo "Formas da Sociabilidade Capitalista"), a sociabilidade no se cons- tri, apenas, pela projeo sobre os outros setores da vida social dos valo- res do mercado, mas pelo contrrio, tem nos valores antimercado um de seus traos principais. Em outras palavras, no terreno marcadamente da cultura, da sade, da educao, so critrios antimercado os que funda- mentam os direitos modernos. verdade que nestes tempos de reao con- servadora, em que parece ser o mercado, de novo, o nico critrio vlido, tal posio tem tudo para parecer romntica ou fora da realidade.

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    Esfera pblica e democracia

    Mais que uma coincidncia, a construo de uma esfera pblica, que igual "economia de mercado socialmente regulada" (termo cunha- do pela social-democracia alem de antes da ascenso do nazismo) identificou-se ou se ergueu sobre as bases da regulao keynesiana. Esta esfera pblica , nos pases capitalistas, sinnimo da democracia, simult- nea ou concomitante, e ao longo do tempo os avanos sociais que mapea- vam o acesso e a utilizao do fundo pblico entraram num processo de interao com a consolidao de instituies polticas democrticas. Para todos os efeitos, pode-se considerar a construo da esfera pblica e a de- mocracia representativa como irmos siameses.

    Muitos crticos do Welfare State tm observado que, no fundo, a re- sultante foram basties corporativistas, com cada uma das classes sociais ou grupos especficos defendendo ferozmente seus interesses, que no se espraiam para os outros, confinando a gesto do Estado e dos interesses sociais a guetos particulares, a partir dos quais polticas de carter geral tornam-se impossveis. A direita vai mais longe, e aponta os direitos lato sensu trabalhistas como obstculos ao investimento e acumulao. Trata- se de uma viso conservadora, que revela a aspirao de uma desregulao total, a volta s prticas de uma acumulao selvagem e o retorno das clas- ses sociais, neste caso os assalariados, mera condio de pura fora de trabalho. Interpretaes mais ingnuas vem nas instituies do Welfare State a harmonia total, a desapario das classes sociais, enquanto as inter- pretaes mais pessimistas, vindas estas sobretudo da esquerda comunis- ta, viram nas instituies e prticas da esfera pblica e nas polticas do Wel- fare State apenas a cooptao de largas parcelas do operariado e a anula- o de seu potencial revolucionrio. Um esquerdismo infantil impeniten- te julga que no fundo a educao pblica, a sade pblica, a previdncia social e outras instituies estruturadoras das relaes sociais so apenas uma iluso e contribuem para reproduzir o capital.

    O Estado de Bem-Estar no deixou, por isso, de ser um Estado clas- sista, isto , um instrumento poderoso para a dominao de classe. Mas est muito longe de repetir apenas o Estado "comit executivo da burgue- sia" da concepo original de Marx, explorada a fundo por Lnin. Trata- se, agora, na verdade, de um Estado que Poulantzas chamou de "Conden- sao das lutas de classe". Utilizando-se uma metfora entre o jogo de xa- drez e o jogo de damas, pode-se dizer que o Estado-Providncia um es- pao de lutas de classe onde os territrios de cada pea no caso, de cada direito so previamente mapeados e hierarquizados, isto , no se trata de um campo isomorfo e isnomo. Os adversrios sabem que ao in- vadirem determinada rea, onde a hierarquia da dama, da torre ou do ca- valo dada, a luta de classes consiste em buscar alternativas que anulem a posio previamente hierarquizada, e o poder de fogo, das peas mais kkkkkkkkkk

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    importantes. Somente entre nefitos que o jogo - ou a luta de classes pode arrasar impunemente o poder de cada pea previamente estabele- cido. Nas palavras de Przeworski, trata-se de um jogo de "incertezas previ- sveis". Ao contrrio, o jogo de damas, onde a hierarquia das peas com- pletamente horizontal e a obteno de "peas coroadas" o corolrio dessa homogeneizao qualquer pea do mesmo valor pode varrer com- pletamente toda a formao de jogo do adversrio. A metfora do xadrez serve para colocar em p o que caracterstico da construo da esfera pblica: a construo e o reconhecimento da alteridade, do outro, do ter- reno indevassvel de seus direitos, a partir dos quais se estruturam as rela- es sociais. Enquanto em sociedades sem esfera pblica o jogo de damas a metfora mais pertinente: nos Estados de Mal-Estar, com uma penada, o Governo pode reduzir salrios, aumentar impostos a seu bel-prazer, con- fiscar bens mesmo os da burguesia.

    A estruturao da esfera pblica, mesmo nos limites do Estado clas- sista, nega burguesia a propriedade do Estado e sua dominao exclusi- va. Ela permite, dentro dos limites das "incertezas previsveis", avanos so- bre terrenos antes santurios sagrados de outras classes ou interesses, con- dio de que isto se passe atravs de uma reestruturao da prpria esfera pblica, nunca de sua destruio. Representa, de um ponto de vista mais alto e mais abstrato, o fato de que agora "os homens fazem a histria e sa- bem por que a fazem". uma negao dos automatismos do mercado e de sua perversa tendncia concentrao e excluso. E, apesar da des- crena terica nas cincias sociais da existncia de sujeitos o que , na verdade, uma pobre confuso nascida da multiplicidade de sujeitos que a prpria estruturao da esfera pblica permite e requer , o resultado surpreendente que a esfera pblica e a democracia contempornea afir- mam, de forma mais peremptria que em qualquer outra poca da hist- ria, a existncia dos sujeitos polticos e a prevalncia de seus interesses so- bre a pura lgica do mercado e do capital.

    A construo de uma esfera pblica confunde-se com a plenitude da democracia representativa nas sociedades mais desenvolvidas, no s porque ela mapeia todas as reas conflitivas da reproduo social; isto equi- valeria apenas a estender ou projetar as regras das relaes privadas a uma rea soi-disant pblica. O que fundamental na constituio da esfera p- blica e na consolidao democrtica que lhe simultnea que esse ma- peamento decorre do imbricamento do fundo pblico na reproduo social em todos os sentidos, mas sobretudo criando medidas que me- dem o prprio imbricamento acima das relaes privadas. A tarefa da esfe- ra pblica , pois, a de criar medidas, tendo como pressupostos as diver- sas necessidades da reproduo social, em todos os sentidos. No mais a valorizao do valor per se: a necessidade, por exemplo, da reprodu- o do capital em setores que, por sua prpria lgica, talvez no tivessem capacidade de reproduzir-se. Necessidades que podem ser de vrios tipos, como j foi citado anteriormente: desenvolvimento cientfico e tecnolgi- kkkkkkkkk

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    co, defesa nacional, so das mais comuns, ou, tal como nos oferece hoje o exemplo da luta contra a Aids, necessidades sociais em escala mais am- pla que no podem depender unicamente da autocapacidade de nenhum capital especial. Na rea da reproduo da fora de trabalho, tais necessi- dades tambm se impem: no se trata agora de prover educao apenas para transformar a populao em fora de trabalho; so necessidades que so definidas aprioristicamente como relevantes em si mesmas; que elas terminem servindo, direta ou indiretamente, para o aumento da produtivi- dade no dissolve o fato principal, que o de que, agora, aquele aumento da produtividade que pode ser seu resultado no mais seu pressuposto.

    Qual a relao dessa esfera pblica assim constituda com a de- mocracia representativa? Existe nessa constituio uma transformao das relaes entre as classes sociais; no que agora as classes sociais se sub- sumam no Estado, anulando a velha irredutibilidade entre Estado e Socie- dade Civil, que, desde Hegel, a grande revoluo burguesa. O ponto es- sencial que as relaes entre as classes sociais no so mais relaes que buscam a anulao da alteridade, mas somente se perfazem numa per- equao mediada pelo fundo pblico em que a possibilidade da de- fesa de interesses privados requer desde o incio o reconhecimento de que os outros interesses no apenas so legtimos, mas necessrios para a reproduo social em escala ampla. A democracia representativa o es- pao institucional no qual, alm das classes e grupos diretamente interes- sados, intervm outras classes e grupos, constituindo o terreno do pbli- co, do que est acima do privado. So, pois, condies necessrias e sufi- cientes. Neste sentido, longe da desapario das classes sociais, tanto a es- fera pblica como seu corolrio, a democracia representativa, afirmam as classes sociais como expresses coletivas e sujeitos da histria. Para tomar um caso concreto, quando alguma necessidade mais alta se coloca, como no caso de desativar certos setores industriais, as empresas no podem sim- plesmente despedir seus trabalhadores e empregados: essa operao ne- cessariamente precedida de negociaes que visam a responder pergunta de como salvaguardar os empregos e a renda daqueles que esto nos seto- res a serem desativados. O exemplo recente da Itlia, onde fortes centrais sindicais consentiram em desindexar a curva dos salrios da curva da in- flao, mostra bem esse caso.

    Assim redefinidas as relaes entre as classes, a capacidade de re- presentao elevou-se notavelmente, e como seqncia, o papel e a fun- o dos partidos polticos. No mais necessrio que os partidos se iden- tifiquem, pelas suas origens sociais, com certas classes sociais: o que ab- solutamente necessrio que eles se identifiquem com tais ou quais mo- dos de processar essa relao social de preservao da alteridade. Por este processo, possvel pois falar tanto de partidos de esquerda quanto de direita, sem que isso remeta apenas a uma base social marcadamente clas- sista; mesmo assim, na histria ocidental, os partidos que melhor proces- kkkkkkkkkkaaaaaa

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    sam a gesto dessa relao so notoriamente partidos cuja origem foi mar- cadamente classista.

    Tanto na organizao da esfera pblica quanto na da democracia re- presentativa, a funo intermediadora do fundo pblico alterou as relaes entre as classes e deu lugar ampliao e fixao das funes das classes mdias. notvel que estas, contemporaneamente, so radicalmente no- vas, tendo apenas um longnquo parentesco com a pequena-burguesia, sua matriz original. Como classe social, sua insero geral na matriz das rela- es sociais de produo do sistema capitalista abrange uma srie infind- vel de posies que seria fastidioso enumerar. Mas sua natureza de classe se demarca em relao s outras, o operariado e a burguesia, pela funda- o de sua irredutibilidade na relao social de produo: isto , ela no pode ser substituda nem tcnica nem socialmente por nenhuma outra; ela no intercambivel, o que caracterstico, tambm, das outras clas- ses sociais. Emergindo ao longo de um imenso pano de fundo histrico, tendo como matriz original a clssica separao entre produtores e meios de produo, ela se especificou no decorrer dos processos do Welfare Sta- te como a classe cuja "propriedade" reside na gesto da articulao entre o pblico e o privado; seus interesses no tm correspondncia com os das outras classes sociais, mas nem por isso deixam de ser reais. O proces- so de constituio da esfera pblica especificou essas funes de forma ainda mais radical: para operar a articulao entre o pblico e o privado, foi necessria a constituio de um grupo social especial, que se converte em classe exatamente sem interesses dos tipos que caracterizam as classes sociais clssicas, o proletariado e a burguesia. Isto no as torna "classes bo- napartistas", pois a constituio da esfera pblica exatamente demarca tam- bm seu campo de atuao.

    Esse longo processo instaurou novos modos de representao. Agora no se trata de uma representao que se arma a partir apenas de interes- ses como pressupostos, mas sobretudo como resultados. Em termos rous- seaunianos, no da vontade geral que se trata, mas da articulao de pon- tos especficos capazes de traar a trajetria do resultado a ser obtido. E as classes mdias se constituem em um desses pontos, ou em mais de um, sem o que o resultado a ser obtido no tem condies de ser projetado. Da sua enorme importncia nos partidos polticos modernos. Essas clas- ses mdias modernas superam, inclusive, o antigo lugar da burocracia. Es- ta sempre foi um agente tcnico da razo de Estado; as condies da regu- lao contempornea, fundamentalmente perpassada e estruturada pelo fundo pblico, diluem uma nica razo de Estado, substituindo-a pelas ra- zes particulares que ligam o fundo pblico a cada movimento ou a cada capital, ou a cada condio especfica da reproduo social, incluindo-se a a reproduo da fora de trabalho e a sociabilidade geral. A burocracia continua a existir, por certo, mas ela no mais constitui um agente tcnico parte, seno que se inclui por inteiro nas classes mdias.

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    A crise da crise

    A formalizao das novas relaes sociais de produo nas institui- es do Welfare State politizou a relao do fundo pblico com cada seg- mento da reproduo social. Trata-se, em concreto, de uma relao ad hoc, cujo nico pressuposto geral o fundo pblico em "abstrato". Transporta- do para a esfera pblica, esse ad hoc parece-se com um Super-Estado ou Estado Mximo; a rigor, bem observado, o que h uma mirade de arenas de confronto e negociao, onde o aparente Estado Mximo se converte num Estado Mnimo, emaranhado no prprio tecido das novas relaes: se bem que, para a determinao abstrata do resultado geral, o fundo p- blico seja aquele pressuposto unificador, a obteno dos resultados parti- culares tem no mesmo fundo pblico apenas uma dentre outras determi- naes. Num terreno assim mapeado e esquadrinhado, a autonomia do Es- tado relativiza-se cada vez mais, e est a lguas de distncia do suposto Es- tado Moloch denunciado pela direita.

    A crtica da direita e a passagem ao, na linha das polticas that- cheristas e reaganianas, dirige-se aparentemente ao Estado Moloch, mas seu objetivo dissolver as arenas especficas de confronto e negociao, para deixar o espao aberto a um Estado Mnimo, livre de todas as peias estabe- lecidas ao nvel de cada arena especfica da reproduo social. Trata-se de uma verdadeira regresso, pois o que tentado a manuteno do fundo pblico como pressuposto apenas para o capital: no se trata, como o dis- curso da direita pretende difundir, de reduzir o Estado em todas as arenas, mas apenas naquelas onde a institucionalizao da alteridade se ope a uma progresso do tipo "mal infinito" do capital. tpico da reao thatcheris- ta e reaganiana o ataque aos gastos sociais pblicos que intervm na nova de- terminao das relaes sociais de produo, enquanto o fundo pblico aprofunda seu lugar como pressuposto do capital: veja-se a irredutibilida- de da dvida pblica nos grandes pases capitalistas, financiando as frentes de ponta da terceira revoluo industrial.

    A nova dinmica da economia parte dessa nova situao. Sem con- troles institucionais, a nova dinmica pode exacerbar o que uma das ca- ractersticas do oligoplio: a ereo de barreiras competio, entre as quais se inclui a no difuso como "mancha-de-leo" do progresso tcnico (Sylos Labini, Oligoplio e Progresso Tcnico, Forense, e Jos Arthur Giannotti, Trabalho e Reflexo, Brasiliense). Essas barreiras no apenas impediro a regulao da concorrncia entre os capitais, mas em ltima anlise podem seccionar o mercado de fora de trabalho em duas reas irremediavelmente separadas, cruzando-se como navios em silncio. O efeito mais perverso se dar, finalmente, na estrutura de rendas e salrios, restabelecendo uma dualidade que o prprio sistema capitalista h muito dissolveu.

    O dramtico que essa possibilidade est inscrita na prpria forma mediante a qual o fundo pblico modificou o mercado de fora de traba- kkkkkaaaa

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    lho. Pois, pela relao salrios diretos-salrios indiretos, a ao do fundo pblico homogeneizou a estrutura do prprio salrio direto num leque muito estreito. Esta a base que permitir, por exemplo, a unificao qua- se total do Mercado Comum Europeu, pois, tanto ao nvel do salrio indi- reto (gastos sociais pblicos como porcentagem do PIB e gastos sociais pblicos como porcentagem da renda familiar disponvel) quanto ao nvel do prprio salrio direto, a estrutura de rendas e salrios mais homog- nea que em qualquer dos outros grandes blocos econmico-sociais mun- diais. Isto no deve levar a pensar que o desenvolvimento capitalista reali- zou a promessa igualitria. inegvel que o leque de rendas e salrios estreitou-se, mas assim mesmo as diferenas permanecem enormes: os da- dos disponveis no Compendium of lncome Distribution Statistics, ONU, 1985, mostram que em 1979 a distncia entre os 20% mais pobres da po- pulao e os 20% mais ricos, na Inglaterra, era de 5,67 vezes; para a Blgi- ca, em 1979, era de 4,56 vezes; para a Itlia, em 1977, de 7,08 vezes; para a Sua, em 1978, de 5,76 vezes; para a Holanda, em 1981, de 4,36 vezes; para a Sucia, em 1981, de 5,64 vezes; para o Japo, em 1979, de 4,31 ve- zes; para os EUA, em 1980, de 7,53 vezes; para o Canad, em 1981, de 7,55 vezes; e, finalmente, para a Frana, em 1985, de 7,67 vezes. (Denis Clerc, "Premire des Injustices: Les Disparits de Revenus", Le Monde Diploma- tique, juillet 1988, Paris). Resta considerar ainda que a complexa articula- o entre salrios diretos e salrios indiretos, tendo em conta especialmente aqui o seguro-desemprego, tornou incompressvel para baixo, ou inelsti- co oferta de emprego, o prprio salrio direto. A nova dinmica pode tomar essa nova estrutura como um dado, um patamar a partir do qual tenta estabelecer novas diferenciaes.

    A baixa generalizada da taxa de sindicalizao, nos EUA e na Europa parece que, entre os pases mais importantes, a Sucia uma importan- te exceo , um efeito no previsto da nova estrutura de renda e salrios, pode desguarnecer os fronts onde se trava, permanentemente, o conflito pela regulao institucional do fundo pblico. A desestruturao dos gran- des sindicatos de trabalhadores um dado tomado em conta pela ofensiva da direita thatcherista e reaganiana. Isto pode levar desarticulao da al- teridade, que a condio primordial para aquela regulao.

    O ataque da direita aos gastos sociais pblicos prope, outra vez, em lugar do Welfare State, o Estado Caritativo ou Assistencialista. Tentan- do destruir a relao do fundo pblico com a estrutura de salrios, a cor- reo das desigualdades e dos bolses de pobreza que nos EUA j so imensos ser deixada caridade pblica ou a uma ao estatal evasiva e eventual. Isto o melhor dos panoramas, pois convm no deixar de pensar no pior, que seria uma mescla altamente perigosa de assistencialis- mo e represso.

    Na crise atual, que redefine a prpria crise do Welfare State, a direi- ta no prope o desmantelamento total da funo do fundo pblico como antivalor. O que ela prope a destruio da regulao institucional com ks2a

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    a supresso das alteridades entre os sujeitos scio-econmico-polticos. A privatizao que ocorre na Inglaterra e a reprivatizao ocorrida na Frana durante o predomnio da direita, no so equivalentes desmontagem do suporte do fundo pblico acumulao de capital; pois essa relao estru- tural no pode ser desfeita, condio de completa anulao da possibili- dade de reproduo ampliada do capital. No se retirou o fundo pblico como fundo geral para pesquisa e desenvolvimento tecnolgico; no se retirou o Estado como comprador quase oligopsnico da indstria arma- mentista; sequer se retiraram os andaimes da relao do fundo pblico com a estrutura de rendas e salrios. Apesar de toda a retrica, as polticas that- cherista e reaganiana continuam a seguir os passos, de forma tatibitate, de uma poltica keynesiana em sentido amplo. Quase toda a poltica fiscal, e mais ainda, a poltica monetria, no se libertou daquela ampla molda- gem. Que o digam a persistncia dos enormes dficits da economia norte-americana.

    Dois pontos esto em xeque nessa ampla conjuntura. A tese neoli- beral que, nesse passo, a ultrafiscalidade do Estado, mantidos os contro- les institucionais do Welfare State, pode ter chegado a limites que amea- cem a acumulao de capital, tolhendo as possibilidades de crescimento. o que est em jogo, na aparncia da ultrafiscalidade, que o capitalismo ps-Welfare State, por meio do fundo pblico, desatou uma capacidade de inovaes que no podem ser postas a servio da produo financiadas apenas pelo lucro; exigem e puncionam parcelas crescentes do fundo p- blico. Neste sentido, se reatualiza o limite previsto por Marx para o sistema capitalista: o limite do capital o prprio capital. Mas essa voracidade no pode ser deixada entregue a si mesma, sem controles pblicos, sob pena de transformar-se numa tormenta selvagem na qual sucumbiriam juntos a democracia e o sentido de igualdade nela inscrito desde os tempos mo- dernos. No deve escapar observao que, em pases como os EUA, o tamanho crescente da pobreza j um risco real nesse sentido.

    A crise abala os fundamentos da democracia moderna. O sistema representativo corre o risco de ser transformado numa democracia de in- teresses, com mandato imperativo. Em muitas condies, a democracia de interesses j atua no interior do sistema representativo mais amplo. A pro- fuso de lobbies sua expresso. Levado sua expresso ultramontana, o Estado pode se converter, realmente, num Estado completamente subor- dinado ao capital, o que seria uma homenagem a Marx, vinda de seus mais ferrenhos adversrios e detratores. Por esse caminho, as relaes se inver- teriam: em lugar do Estado como organizador da incerteza da base, da infra- estrutura em linguagem marxista, haveria uma base organizando o Estado, que se transformaria na mais brutal imagem-espelho do banquete dos ri- cos e do despojo de todos os no-proprietrios.

    No existe frmula feita nem acabada para solucionar a crise. No se trata de uma mera crise conjuntural. Trata-se, na verdade, de levar s ltimas conseqncias a verdadeira "revoluo copernicana" operada nas ks2a

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  • O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

    relaes sociais de produo neste sculo, sobretudo depois da II Grande Guerra. Ao contrrio das teses da direita, o ps-Welfare State consiste em demarcar, de maneira cada vez mais clara e pertinente, os lugares de utili- zao e distribuio da riqueza pblica, tornada possvel pelo prprio de- senvolvimento do capitalismo sob condies de uma forma transformada da luta de classes. Quando todas as formas de utilizao do fundo pblico estiverem demarcadas e submetidas a controles institucionais, que no o equivalente ao Superior-Estado ou ao Estado Mximo, ento o Estado realmente se transformar no Estado Mnimo. Trata-se da estrutura de um novo modo de produo em sentido amplo, de uma forma de produo do excedente que no tem mais o valor como estruturante. Mas os valores de cada grupo social, dialogando soberanamente. Na tradio clssica a porta para o socialismo.

    Francisco de Oliveira professor do Departa- mento de Sociologia da FFLCH da USP e pesqui- sador do CEBRAP. J pu- blicou nesta revista "E Agora, PT?" (N 15).

    Novos Estudos CEBRAP

    N 22, outubro de 1988 pp. 8-28

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