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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013
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FRICÇÕES E RECONHECIMENTOS: PRINCÍPIOS E OPERAÇÕES DA PREPARAÇÃO CORPORAL NA DANÇA E NO
TEATRO
LETÍCIA MARIA OLIVARES RODRIGUES (ECA-USP)
SAYONARA PEREIRA (ECA-USP)
RESUMO A técnica de dança moderna tem sido o primeiro contato dos ingressantes do curso de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo com o treinamento corporal para o ator. Tomando por base a aplicação pedagógica de uma técnica de dança este artigo busca evidenciar relações possíveis com princípios apontados pela Antropologia Teatral. Na formação de atores, o que podemos rastrear sobre o impacto do primeiro contato formal com o trabalho corporal ser o de uma técnica de dança? Como evidenciar as operações da dança que reverberam no entendimento do corpo cênico de um ator? Procuramos, por meio da observação em estágio supervisionado, além das relações entre os princípios, apontar a percepção de aquisição de técnica e linguagem cênica pelos alunos. PALAVRAS-CHAVE: Dança Moderna, Antropologia Teatral, Treinamento, Pedagogia.
FRICTIONS AND RECOGNITIONS: PRINCIPLES AND OPERATIONS OF BODY TRAINING IN DANCE AND THEATER
ABSTRACT The first contact of incoming students for the Performing Arts course in the University of São Paulo with the training for actors is established through modern dance technique. We aim to shed light on the relations that are established within the pedagogic application of a dance technique with theater anthropology principles. What in the formation of actors can be traced back about the impact of the first formal contact with body work be with dance technique? How can the processes of dance that echo on the actor’s understanding of a scenic body be revealed? Through observation in supervised practice, we aimed the relations with pre-expressive principles as well as appoint the perception of the students’ acquisition of both technique and scenic language. KEYWORDS: Modern Dance, Theatre Anthropology, Training, Pedagogy.
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Introdução
Durante o segundo semestre de 2012 a pesquisadora acompanhou os
alunos do primeiro ano de graduação em Artes Cênicas da Universidade de
São Paulo (ECA-USP) como estagiária da disciplina Poéticas do corpo e da
voz II ministrada pela Prof. Dr. Sayonara Pereira. Esse estágio constitui-se em
fase obrigatória do curso de mestrado da instituição e se caracterizou por: a)
acompanhamento e observação das aulas ministradas pela docente, duas
vezes por semana; b) monitoramento de grupos de alunos (esclarecimento de
dúvidas e trabalhos específicos dos conteúdos das aulas); c) trabalho sobre
partituras coreográficas desenvolvidas pela docente; d) aplicação de exercícios
elaborados pela discente sob orientações da Prof. Dr. Sayonara Pereira; e)
aplicação junto aos alunos da sequência de aquecimento desenvolvida pela
Prof. Dr. Sayonara Pereira; e) plantões de atendimento aos alunos sobre os
trabalhos desenvolvidos em aula; f) aulas supervisionadas ministradas pela
discente.
Em consonância com o projeto de mestrado da pesquisadora, que trata
da aquisição da presença cênica por meio do treinamento desenvolvido no
Odin Teatret, busca-se, no presente trabalho, evidenciar as “fricções e
reconhecimentos” entre as técnicas abordadas na dotação de recursos para o
trabalho corporal do ator, traduzido em aquisição de presença cênica.
O Odin Teatret Nordisk Teaterlaboratorium é um grupo teatral sediado
na Dinamarca e comandado por Eugenio Barba (1936) desde 1964, que
desenvolve a linha de treinamento do ator baseado em ações físicas e
estabelece pedagogias de transmissão prática do conhecimento adquirido em
tantos anos de existência. A pesquisadora possui experiência direta com o
diretor e a atriz Julia Varley (1953), em pesquisas de campo realizadas em
Brasília, onde Barba e Varley ministram, desde 2008, workshopsi de imersão
com profissionais das artes cênicas a fim de trabalhar os conceitos e práticas
do campo fundado por ele, a Antropologia Teatral. Essa área de concentração
propõe a análise transcultural de técnicas utilizadas em situação de
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representação que evidenciam o comportamento cênico pré-expressivo do ator
em diferentes gêneros e tradições. (BARBA, 2009: 25)
Visando salientar a aquisição de técnica e expressividade corporal,
perguntamos, na formação de atores, o que podemos rastrear sobre o impacto
do primeiro contato formal com o trabalho corporal ser o da técnica de dança?
A partir dos pressupostos das técnicas aplicadas, como podemos evidenciar as
operações da dança que reverberam no entendimento do corpo cênico de um
ator? Procuramos, a partir de experiência da observação em estágio
supervisionado o reconhecimento de princípios comuns à preparação para se
estar em cena, além de apontar a percepção de aquisição de técnica e
linguagem cênica pelos alunos. Tomamos como princípios as raízes dos
procedimentos aplicados e como operações suas estratégias para o resultado
no corpo.
A observação sistemática promovida pelo formato de estágio
proporcionou uma aproximação com a população estudada, no caso os alunos,
e possibilitou a aplicação de um questionário sobre a percepção dos mesmos a
respeito do impacto da técnica de dança moderna, com ênfase em German
Dance utilizada pela Prof. Dr. Sayonara em seus corpos. De uma média de
vinte alunos estudados, cinco (três mulheres e dois homens) responderam ao
questionário aplicado pela pesquisadora. Dos cinco, uma é profissional da
dança, formada em ballet clássico e especializada em tango e os outros quatro
tiveram eventuais contato com práticas corporais, destacando-se o ballet
clássico entre as mulheres e práticas esportivas entre os homens. Suas
impressões serão consideradas ao longo do texto pontualmente relacionadas
ao tema desenvolvido no artigo e o questionário aplicado encontra-se como
anexo, ao final do mesmo. Optamos por adotar as normas de citação com
mais de três linhas, designada a autores com obras publicadas para a grafia
das respostas dos alunos. Parte-se da lógica que, ao responderem por escrito,
mediante o método adotado na aplicação do questionário, os alunos são
autores de suas próprias formulações.
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Alguns fundamentos da preparação corporal para o ator
A aplicação do treinamento físico, derivado de técnicas diversas para
contribuir com a excelência do ofício, é apontada por Constantin Stanislavski
(1863-1938), em Moscou, quando sistematiza a técnica do ator e recomenda
práticas corporais como preparação pré-cena para os atores, a fim de buscar
um corpo livre de tensões, com domínio de toda a sua estrutura visando “dar
forma externa aos sentimentos invisíveis” (STANISLAVSKI, 1997: 182). Como
treino expressivo para o corpo do ator sugerirá “[...] ginástica, dança, acrobacia
[...] esgrima, [...] todos os aspectos do treino físico”. (STANISLAVSKI, 1997:
199) O objetivo dos exercícios é de tornar a “aparelhagem física mais móvel,
flexível, expressiva e até mais sensível.”, enquanto a dança é capaz de
produzir “fluência, amplitude, cadência no gesto” (STANISLAVSKI, 1989a: 61 e
67). Porém, há a preocupação com que os corpos não desenvolvam
demasiada musculatura, o que poderia engessar os movimentos, e, também,
se evitar qualquer “afetação” surgida a partir dos movimentos de braços e
mãos do ballet, por exemplo. O trabalho corporal, para Stanislavski, deve servir
à capacidade do ator de encadear, com organicidade em cena, as ações físicas
da personagem, que denotarão suas motivações e vida interna. E esse
encadeamento se dá coordenado com o tempo e o ritmo da ação
estabelecendo uma “corrente interior de energia” (1989b: 83) e precisa ser
passível de uma “repetição dinâmica, que se preenche e justifica
progressivamente” (BONFITTO, 2006: 36. Itálico do autor).
Também Rudolf Laban (1879-1958) desenvolvia, na Europa ocidental,
seus estudos sobre o movimento, considerando-o como meio de expressão
que articula o interno e o externo do ser humano baseado na filosofia de que
mente e corpo humanos são indissociáveis (NEWLOVE & DALBY, 2004: 16).
Seu legado se relaciona a diversos campos, incluindo o industrial, as artes e a
psicologia. A criação da Labanotation evidenciou princípios de divisão no
espaço em três níveis e delineou doze direções de movimentos, estabelecendo
um icosaedro (BOUCIER, 2001: 294), ampliando, assim, a noção da
exploração espacial do movimento e criando oposições e equilíbrios instáveis
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que levavam a novas harmonias. Situou, ainda, os componentes relativos a
fatores de movimento divididos em Peso, Espaço, Tempo e Fluência, que
constituem as qualidades de esforço, resultantes de uma atitude interior
(LABAN, 1978: 36). Seus estudos influenciarão a dança moderna americana e
alemã, da qual faz parte Kurt Joss (1901-1979), fundador da Folkwang
Hochschule, em Essen, Alemanha (BOUCIER, 2001: 301).
Não se pretende descrever detalhadamente os conceitos dos pedagogos
acima, nem aprofundar suas influências anteriores, como as derivadas de
François Delsarte (1811-1871) e Émile Jaques-Dalcrose (1865-1950), mas
estabelecer uma circunscrição histórica das heranças, já que os princípios
usados nas aulas de Poéticas do corpo e da voz II dizem respeito à tradição
dos ensinamentos de Laban, absorvidos pela German Dance em sua dança
moderna e Tanztheater, das quais derivam a formação de Sayonara Pereira, e
as relações no campo teatral se darão com os princípios trabalhados por
Eugenio Barba, continuador do trabalho na linha das ações físicas da tradição
stanislavskiana.
A Bailarina Pedagoga, a Aplicação e Recepção dos Conhecimentos
Tansmitidos
A Professora Doutora Sayonara Pereira tem sua carreira artística e
acadêmica marcadas pelos anos na Alemanha, mais precisamente de 1985 a
2004, como bailarina, coreógrafa e docente. Através dos anos de estudos, a
convite da bailarina e coreógrafa Susanne Linke, na Folkwang Hochschule de
Essen, junto a ícones da dança, como Christine Brunel, Hans Züllig, Jean
Cébron, Lutz Foster, entre outros (PEREIRA, 2010a: 177), Pereira desenvolveu
o desejo de transmitir os conhecimentos adquiridos e se conectar mais à
cultura brasileira. Sistematizou seus conhecimentos práticos graduando-se em
pedagogia da dança na Hochschule Für Musik und Tanz Köln e se pós-
graduou, em doutoramento direto, na UNICAMP (Campinas, 2004-2007),
iniciando sua carreira acadêmica no Brasil na mesma Universidade, a partir
daí. Atualmente, como professora efetiva da Escola de Comunicação e Artes
da Universidade de São Paulo (ECA-USP), ministra aulas na graduação e pós-
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graduação. Na disciplina tratada neste artigo, apresenta-se o seguinte
programa:
A disciplina é prática e teórica, buscando-se constantemente as conexões destes dois campos. O aspecto técnico se articula ao poético, em abordagem dirigida do coletivo para o individual, que elege o jogo e a improvisação como estratégias. Os alunos são estimulados a preparar seminários e a realizar pesquisas de campo.
De seu programa geral, selecionamos, entre outros, os aspectos que
interessam a este artigo, como, reconhecimento e construção dos potenciais
corporais (destacando anatomia, estrutura, forma e volume, som e sentido);
compreensão do corpo e da voz como fontes de linguagem; estímulo de
“flexibilização” do tônus corporal e vocal para a aquisição de elasticidade;
domínio das relações entre peso e leveza para o equilíbrio corporal e sua
conexão com a voz; experiências cênicas.
É interessante salientar que os alunos já passaram pelas bases do
programa, ao cursarem com a mesma docente, no primeiro semestre de 2012,
a disciplina Poéticas do corpo e da voz I, na qual trabalharam o
reconhecimento da estrutura óssea (apoios, linhas de força, articulações e
vetores corporais); o tônus muscular; espaço interno e volume corporal; pulso,
andamento e ritmo; criatividade e improvisos do corpo e da voz.
Pereira estabelece em suas aulas uma rotina de exercícios, que, desde
o início, coloca os alunos em contato com a prática dos princípios relacionados
a espaço, ritmo, precisão e percepção corporal. Utiliza nomenclaturas do ballet
clássico como en dehors, e da dança moderna como contraction e release. Aos
poucos, os alunos vão percebendo que essas nomenclaturas contêm um
universo a ser descoberto, como a rotação coxofemoral necessária para se
realizar a rotação das pernas para fora, e o engajamento muscular abdominal e
flexibilidade da coluna vertebral para as contrações e “relaxamentos”.
Aí já podemos salientar a constatação da experiência da técnica extra-
cotidiana no corpo do aluno, em características de estilização e oposições, e
com a particularidade, destacada por Barba, do uso dispendioso de energia
para se chegar a um resultado (aparentemente) mínimo (2009: 34).
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As etapas do trabalho desenvolvido em aula ocorrem, primeiramente, no
solo, em um segundo momento em posição vertical, no centro, e em diagonais
ou frontalmente (em relação à plateia). Também são estimuladas, além da
capacidade de execução técnica, a fluência e a criatividade, principalmente nos
exercícios em pé, nos quais os alunos podem solucionar corporalmente giros,
posições dos braços e criar células coreográficas a partir do “esqueleto”
sugerido pela docente. Os exercícios de solo abrangem o aquecimento das
articulações e cadeias musculares, em sequências pré-determinadas, que vêm
sendo trabalhadas e assimiladas desde o primeiro semestre pelos alunos, mas
que envolvem, em cada prática, a complexidade da execução atenta às suas
nuances, envolvendo questões relativas à eficiência anatômica, como sentar-se
sobre os ísquios, manter acionada a musculatura abdominal, grande atenção à
cintura escapular e pélvica e à fluência e precisão na realização dos exercícios.
Uma das percepções, colhida nos questionários sobre os conhecimentos
gerados a partir das aulas, ilustra os procedimentos e seus entendimentos:
Através do treinamento corporal que se repetia ao longo das aulas, pude desenvolver uma consciência corporal mais apurada. As sequências iniciais de movimentos serviam para que ganhássemos espaço nas articulações e alongamento muscular, mas, além disso, nos traziam a percepção da área corporal que estávamos trabalhando, das possibilidades de movimento a partir daquela região, revelando-se um corpo que não conhecíamos. O estudo do movimento também se mostrou fundamental, como a percepção da contração abdominal (contraction), dos vetores de força para que ele aconteça. Outras descobertas importantes dizem respeito ao peso e ao equilíbrio, os quais investigávamos em aula. Questões básicas de organização corporal foram fundamentais: corpo aterrado e com vetor de força para cima, abdômen contraído, pés e rótulas paralelos e virados para frente, joelhos semiflexionados – tudo isso estava presente em um simples andar e, embora básico, era complexo. Em suma, o maior conhecimento gerado foi da consciência e uso do corpo. (Murilo Tiago Franco de Freitas, 20 anos)
Outros alunos, sobre essa questão, também salientaram a aquisição de
percepção do corpo em movimento e da necessidade de precisão do mesmo
(Ladyane Vieira, 20 anos), e o treinamento técnico desmembrado em aspectos,
“como a consciência de dificuldades e limites corporais, a necessidade de um
cuidado e um trabalho diário com um corpo que se coloca a dizer e as
inúmeras possibilidades poéticas despertadas para o corpo dizer.” (Otto
Rodolfo Blodorn, 21 anos). As dificuldades são ainda identificadas pelo contato
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com a linguagem específica da dança moderna, mesmo pelas alunas que
tiveram mais contato com o ballet ou outra dança (Olívia Teixeira de Aguiar
Machado, 35, bailarina profissional e Giulia Confuorto de Castro, 19 anos, que
cursou ballet clássico por cinco anos), pois reconhecem, em seus corpos,
maneirismos dos estilos praticados por elas. Já entre os benefícios
identificados nesse tipo de treinamento, destacaram: desconstrução de formas
“fixas e externas” de movimento, mais controle sobre o corpo, diversidade no
repertório corporal, aquisição de musicalidade e criatividade estimulada.
Ao aplicar procedimentos da german dance e técnicas da dança
moderna, Pereira instrumentaliza o intérprete com princípios que permitem aos
alunos relacionarem-se com as exigências de um corpo disponível e que os
conecta a outras possibilidades. São várias as identificações que os alunos
consultados estabelecem com outros tipos de treinamento para o ator,
salientando procedimentos da técnica de Meyerholdii (1874-1940) em repetição
de “partituras fechadas” que levem à perfeita execução, para depois passarem
a uma fase mais expressiva e poética e o desenvolvimento da noção rítmica; a
descoberta corporal propiciada por técnicas somáticas; a relação com o espaço
na experiência de Viewpoints, por exemplo.
Princípios Decodificados
A aquisição de técnica corporal para o ator baseia-se no pressuposto de
que é necessário ter recursos em um corpo disponível, pulsante, presente em
cena. Desde Stanislavski, como já vimos, os procedimentos de treinamento
corporal para o ator foram incluídos em sua formação e sua técnica passou a
exigir uma maior percepção do próprio corpo, meio e operador de sua
expressão. Esse corpo passaria a ter subsídios vindos de várias práticas
corporais para desenvolver a “presença cênica” e dar credibilidade à
personagem, fugindo de estereótipos, mas trazendo a possibilidade da
“verdade cênica”.
Jerzy Grotowski (1933-1999), herdeiro direto de Stanislavski, vai aplicar
mais extremamente o treinamento físico para a preparação do ator. Mas não
como uma solução ou fórmula mágica para se alcançar a presença e verdade
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(GROTOWSKI, 2010: 168), antes, como uma forma de “limpar” o corpo de
padrões de resposta social ou de estereótipos a fim de chegar à verdadeira
resposta corporal em cena.
Por sua vez, Eugenio Barba, influenciado por Grotowski, com quem
trabalhou durante três anos como assistente de direção, em Opole, na Polônia,
traz para seu grupo, o Odin Teatret, a premissa do treinamento corporal do
ator, principalmente na acepção de aprendizado, já que training em inglês tem
também esse significado. No campo fundado por ele, a Antropologia Teatral, a
partir de observações e experiências em relação à “presença do ator”, Barba
identifica e compara princípios técnicos de bailarinos e atores de diversas
tradições teatrais (2010a: 298). Em sua pesquisa chegou aos princípios pré-
expressivos que devem modelar energias, sendo, esse trabalho para o ator, um
procedimento técnico. Esses princípios “permitem gerar a presença teatral, o corpo
em vida do ator capaz de fazer perceptível àquilo que é invisível: a intenção.”
(BARBA, 2009: 22). As tensões criadas a partir do domínio da fisicalidade são
uma pista para o entendimento do domínio de energias exigido em um ator,
que o levam ao corpo extra-cotidiano. Barba estabelece que, para construir
uma linguagem física e sonora, o ator tem que pensar com o corpo todo. O
aluno Murilo de Freitas vai salientar a percepção desse aspecto, perguntado
sobre as dificuldades em relação à técnica de dança: “Era sempre um desafio
realizar a sequência de movimentos [...] de maneira convicta, sem ficar preso
ao ‘plano mental’. Era preciso ir e fazer ‘com o corpo todo’, ainda que estivesse
errado.”.
Vejamos alguns princípios, chamados por Barba de “princípios-que-
retornam” (2009: 30), justamente por serem identificáveis em várias tradições
de dança e teatro mapeadas:
- Equilíbrio extracotidiano/ equilíbrio de luxo. Barba irá reconhecer o equilíbrio
extra-cotidiano nas formas do teatro oriental (Nô, Kyogen, Kabuki), nas danças
asiáticas e no Ballet clássico, bem como em sistemas de mímica e na dança
moderna, relacionado, nesse caso ao off-balance e às quedas e recuperações.
Caracteriza-se por provocar um “desequilíbrio”, segundo diferentes
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elaborações de tensões musculares que geram instabilidade, forçando uma
condição formalizada, estilizada e codificada (BARBA, 2009: 35 a 44).
- Oposições. As oposições são “forças contrapostas [...] que agem
simultaneamente” e que, ampliadas, levam à desejada dilatação, ou seja,
tornam-se visíveis, apesar de não necessariamente reconhecíveis, para o
espectador (BARBA, 2009: 48, 49).
- Estilização. Chamada por Barba de “incoerência coerente” vai destacar esse
princípio como a capacidade de transmitir coerente e cinestesicamente uma
“segunda natureza” artificial, porém orgânica (BARBA, 2009: 50, 51).
- Omissão. Como ressalta Bonfitto (2009: 78), Barba passa por várias
referências para exemplificar esse princípio, citando Decroux, entre outros em
um processo de “absorção da ação” que serve para reter, e ao mesmo tempo
ampliar, as forças das ações, tornando o corpo vivo em cena, ainda que na
imobilidade, por exemplo.
- Equivalência. Também reconhecido como uma operação, esse princípio será
caracterizado pela qualidade de transposição, ou seja, mesmo sendo diferente
entre si, um instrumento ou intervenção possuirá o mesmo valor, produzirá
efeitos iguais ou cumprirá função idêntica (BARBA, 2010b: 59). A equivalência
permite a quebra de automatismos ao produzir uma ação real, mas não
necessariamente realista (BARBA, 2009: 59).
Podemos identificar, na aula da Prof. Sayonara algumas operações
calcadas em sua especificidade técnica da dança moderna, diretamente
ligadas à codificação de Barba, sendo: trabalho em espiral, queda e retorno;
troca de peso; alongamentos fora do eixo; fluidez na movimentação;
impulso/contra-impulso e movimento; tensão e relaxamento; sequências
coreográficas, expressividade, criatividade (PEREIRA, 2010a: 84, 85).
Barba trabalha os princípios com estratégias que levam o ator a “pensar
através de ações”, construindo uma linguagem física e sonora. A ação está
contida no tônus muscular do ator comprometido em mudar a percepção do
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espectador (2010b: 159). Nos exercícios vivenciados pela pesquisadora nas
oficinas ministradas por Barba e Varley, destacaram-se a criação de partituras
de ações modeladas por meio de:
1. Ritmo: Lento/ rápido;
2. Qualidade de energia: leve/pesado
3. Tamanho: grande/pequeno;
4. Aspecto introvertido ou extrovertido: para “dentro” / para “fora”;
5. Transposição (equivalência) para apenas uma parte do corpo: Ex. para as
mãos, pés, coluna etc.;
6. Transposição de nível: Ex.: várias formas de dormir, deitado; transpor para a
posição sentada, transpor para a posição vertical etc.;
7. Encontrar a equivalência da partitura física com a voz ou com um objeto.
8. Improvisações.
Dessa forma, tanto por Barba, quanto por Pereira, os níveis pré-
expressivos e os níveis expressivos, serão contemplados na prática,
promovendo a vivência do ator nos recursos técnicos e criativos para seu
ofício.
Considerações finais
Podemos notar, então, desde os sistematizadores de uma nova dança e
teatro, as influências recíprocas, que ainda ecoam nos modos atuais de ensinar
e fazer.
É importante salientar que os procedimentos adotados em práticas de
formação do ator servem às questões formuladas sobre o que o faz vivo em
cena. O que faz crível seus atos e palavras. Portanto, não são os
procedimentos em si que estabelecem a sua eficiência, mas o realizá-los e a
naturalização dos mesmos no corpo do intérprete. Segundo Barba, o ator deve
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conhecer os princípios, explorá-los em sua prática para poder, a partir da sua
própria, permitir uma dança na mente e sinestesia do espectador. (2010b: 69).
A especialização do corpo por si só não serve ao ator, pois um corpo
muito especializado traz consigo o ônus das técnicas, dado ressaltado desde
Stanislavski e reafirmado por Grotowski, quando reconhece corpos
aprisionados pela técnica, domesticados em qualidades de movimento, que
não os permitem ser pessoais A preparação corporal, deve servir, portanto,
para liberar o ator na direção de ser “irradiante” em cena (GROTOVSKI, 2010:
170).
A partir das respostas dos alunos, podemos verificar que a técnica de
dança aplicada nas aulas da Prof. Dr. Sayonara Pereira, produz uma
percepção do desenvolvimento expressivo em relação à técnica, relacionando
o processo criativo à natureza orgânica adquirida com o rigor e a repetição dos
princípios.
É do aluno Otto Blodorn a percepção afiada,
Acredito que não há como existir a formação de atores a partir de um pensamento de cena contemporânea que não passe por uma experiência de dança. O que mais é dito sobre o corpo do ator é que ele tem que estar presente em cena, ou seja, isso significa que não ter apenas mão em cena, nem rosto, mas sim o corpo inteiro e consequentemente é um corpo que diz. Então, o ator tem que saber muito das possibilidades desse seu corpo para poder estar no palco com um corpo que integre o todo do espetáculo. O ator tem que saber dizer com o corpo, afinal, não é só a sua voz que está no palco; hoje o pensamento acerca da cena pede um ator que saiba muito mais do que um texto decorado.
As fricções e reconhecimentos dos princípios pré-expressivos
perpassam uma epistéme aplicada na pedagogia da transmissão da herança
secular dos pioneiros modernos das artes cênicas. Não há que se provar, por
exemplo, que praticar dança moderna é bom para o ator. Mas a verificação da
aplicação do método nos ingressantes do primeiro ano em sua percepção de
aquisição de linguagem apoia o caminho de adoção de práticas corporais
diversificadas para a formação de atores.
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Referências
BARBA, Eugênio; SAVARESE, Nicola. A Arte secreta do ator. São Paulo: É Editora, 2012.
BARBA, Eugênio. A Canoa de Papel: tratado sobre Antropologia Teatral. Tradução de Patrícia Alves Braga. Brasília: Teatro Caleidoscópio, 2009.
______________. Teatro: Solidão, Ofício, Revolta. Tradução de Patrícia Alves Braga. Brasília: Teatro Caleidoscópio, 2010a.
______________. Queimar a casa: origens de um diretor. Tradução de Patrícia Furtado de Mendonça. São Paulo: Perspectiva, 2010b.
BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo: Perspectiva, 2002.
BOUCIER, Paul. História da Dança no Ocidente. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
GROTOWSKI, Jerzy. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski, 1959 - 1969. São Paulo: Edições SESCSP e Ed. Perspectiva, 2010.
LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento. São Paulo: Summus, 1971.
NEWLOVE, Jean e DALBY, John. Laban for all. Londres: Nick Hern Books, 2007/ 2008.
PEREIRA, Sayonara. Rastros do Tanztheater no Processo Criativo de ES-BOÇO: Espetáculo cênico com alunos do Instituto de Artes da UNICAMP. São Paulo: Annablume, 2010(a).
_________________. Articulando pedagogias que se entrelaçam e se (re)criam. In: Org. CÔRTES, Gustavo, SANTOS, Inaicyra Falcão dos, ANDRAUS, Mariana Baruco Machado. Rituais e linguagens da cena: trajetórias e pesquisas sobre corpo e ancestralidade. Curitiba, Editora CRV: 2012 – ISBN 978-85-8042-282-5 Capitulo 5 (páginas 119-134). Disponível em: http://lapettcia.files.wordpress.com/2013/02/sayonara-pereira-articulando-pedagogias-que-se-entrelac3a7am-e-se-recriam-2012.pdf.
STANISLAVSKI, C. A Criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
_______________. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
_______________. A Construção da Personagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989a.
_______________. Manual do ator. São Paulo: Marins Fontes, 1997.
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_______________. Minha vida na arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989b.
ANEXO
Questionário aplicado em maio e junho de 2013 aos alunos de graduação
em Artes Cênicas (ECA-USP), referente ao curso da disciplina Poéticas do
corpo e da Voz II, no segundo semestre de 2012, para Artigo Anda:
Leticia Maria Olivares Rodrigues
Or. Profa. Dra. Sayonara Pereira
Maio-junho/2013
Parte 1
1. Qual o impacto que você sentiu (físico e emocional) de seu primeiro
contato/treinamento físico para o ator ser o de dança?
2. Quais as dificuldades encontradas?
3. Quais os benefícios que você identifica nesse tipo de treinamento?
4. Como você identifica aplicação da dança moderna no trabalho de
atores?
5. Que relações você estabelece com outros tipos de treinamento físico
para o ator?
6. Quais os conhecimentos que foram gerados para você a partir das
aulas de dança?
7. Como a prática da dança se conecta com outras disciplinas da
formação do ator?
8. Como a prática conecta-se com a teoria?
Parte 2
Nome:
Idade:
Ano:
Já praticava algum esporte ou algum tipo de dança? Qual?
ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013
http://portalanda.org.br/index.php/anais
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Teve algum contato anterior com treinamentos voltados para o intérprete?
Qual?
NOTAS
i Durante os anos de 2009 a 2012, sempre em dezembro, a pesquisadora participou dos workshops A Arte secreta do ator - Brasil: Como pensar através de ações, conduzidos por Eugenio Barba e Julia Varley em Brasília. “É um encontro anual, com 30 horas de duração, que tem como principal atividade o treinamento exclusivo de atuação e criação de dramaturgia com o diretor Eugenio Barba e a atriz Julia Varley, destinado a atores, diretores, acadêmicos e pesquisadores brasileiros e latino-americanos, que tenham experiência comprovada na área.” In: http://aartesecretadoator.blogspot.com.br/p/eugenio-julia-e-luciana.html Nos dois primeiros anos, 2009 e 2010, a participação da pesquisadora foi como atriz e nos anos seguintes (2011 e 2012), como observadora. ii Vsevolod Emilevich Meyerhold, diretor e ator, estudou e trabalhou com Stanislavski, mas
rompeu com o mestre, trilhando seu próprio caminho na sistematização de uma técnica para o desenvolvimento do ator, chamada Biomecânica, que segundo Barba e Savarese, contém em seu significado uma busca científica do entendimento de vida no movimento, sendo bios=vida, mecânica=estudo do movimento (Fís). (2012: 206). Leticia Maria Olivares Rodrigues (ECA-USP) Atriz, graduada em Letras (Universidade Mackenzie), com especialização em dança e consciência corporal (FMUSP). Atualmente é mestranda na Universidade de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Sayonara Pereira, e sua assistente no grupo de pesquisa LAPETT (Laboratório de Pesquisa e Estudos em Tanztheater - ECA-USP). Email: [email protected] Sayonara Pereira (ECA-USP) Coautora do projeto da “São Paulo faz Escola” (SEESP) desde 2007, escrevendo para os Cadernos do Professor e do Aluno: Arte – Linguagens, códigos e suas tecnologias. Autora do livro: Rastros do Tanztheater no Processo Criativo de ES-BOÇO, publicado pela Editora Annablume (2010). Coordena o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Tanztheater (LAPETT), e é editora da revista Sala Preta do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas ambos na ECA/USP. Email: [email protected]