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As linhas de fronteira são um requisito fundamental para a existência de um estado e para o exercício da soberania. A definição das actuais fronteiras internacionais é o resultado de processos de constituição dos estados, envolvendo aspectos relativos à História, ao Direito e à Antropologia que convergem para uma descrição geográfica da linha de fronteira. Partindo dos conceitos que definem o tema das fronteiras terrestres, esta obra contém, ainda, enquanto aplicação, um registo do processo de demarcação da fronteira de Timor-Leste, interessante para uma memória histórica do processo de consolidação da independência deste país. Destina-se a investigadores e a profissionais nos domínios da Engenharia Geográfica e da Geografia, podendo ser útil a profissionais de outros domínios que tenham intervenção em processos de delineamento de linhas de fronteira. Este trabalho foi galardoado com o Prémio Internacional Gago Coutinho 2008, atribuído pela Sociedade de Geografia de Lisboa.

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1.1 ENQUADRAMENTO As linhas de fronteira são um requisito fundamental para a existência de um estado e para o exercício da soberania. A definição das actuais fronteiras internacionais é o resultado de processos de constituição dos estados, envolvendo aspectos relativos à História, ao Direito e à Antropologia que convergem para uma descrição geográfica da linha de fronteira.

Segundo Adler (2002) existem três consequências políticas do delineamento de uma fronteira:

A paz, na medida em que os tratados de delimitação celebrados entre estados vizinhos são, na maior parte dos casos, tratados de paz ou acordos sobre fronteiras que enfatizam o carácter permanente e pacífico da linha.

A reafirmação da independência do Estado. A segurança, decorrente do carácter quase sagrado da linha de fronteira, indepen-

dentemente de garantias políticas ou disposições de natureza militar.

A maior parte das actuais fronteiras terrestres foram consagradas em tratados elaborados no século XIX e na primeira metade do século XX. Do século XIX até à actualidade, o mapa político mundial sofreu alterações, atravessando processos de colonização, de descolonização, de guerras e de desagregação, agregação de aparecimento de novos Estados. Este percurso aparenta convergir para um equilíbrio, pelo menos no que respeita às questões relativas a grandes possessões territoriais. Em 1907, Curzon comenta este percurso do seguinte modo:

“But with the rapid growth of population and the economic need for fresh outlets, expansion has, in the case of great powers, become an even more pressing necessity. As the vacant spaces of the earth are filled up, the competition for the residue is temporarily more keen. Fortunately the process is drawing towards a natural termination. When all the voids are filled up, and every frontier is defined, the problem will assume a different form. The older and more powerful nations will still dispute about their frontiers with each other; they will still encroach upon and annex the territories of their weaker neighbors; Frontier wars will not, in the nature of things, disappear.”

O número de Estados soberanos evoluiu de cerca de 70, antes da I Guerra Mundial, para mais de 190 na actualidade, perfazendo um total de cerca de 310 fronteiras terrestres. A maior parte da bibliografia refere que os factores territoriais constituem mais um facilitador de conflito do que uma causa, sendo que, entre 1816 e 1992, somente um terço das disputas entre estados teve uma base territorial. Verifica-se também que a escalada para uma guerra foi três vezes superior nestes casos (Hensel, 1999).

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Sem pretender enveredar por uma análise geopolítica dos conflitos internacionais, pode, com segurança, afirmar-se que a história do século XX veio a confirmar a previsão de Curzon. No entanto, a forma dos conflitos bélicos modificou-se: não são necessariamente com o país vizinho e a expansão não se processa estritamente pela anexação de um território, existem outras formas mais subtis de exercício de influência. Não é seguro dizer--se que a estabilização das fronteiras já se tenha consumado inteiramente, pois subsistem ainda cerca de 60 fronteiras com litígios a nível mundial, número que previsivelmente aumentará à medida que os Estados mais recentes, surgidos dos processos de desco-lonização, se dediquem à demarcação das suas fronteiras terrestres.

As razões dos actuais litígios prendem-se com diferentes interpretações de textos de tratados, com diferentes pressupostos de natureza legal e com aspectos da caracterização geográfica das próprias linhas. A importância assumida por estas situações de litígio depende essencialmente do nível de relacionamento entre os Estados vizinhos e do acesso a recursos naturais que possam “estar em jogo”. Mesmo quando o território em causa não é rico em recursos naturais, se visto da perspectiva de um Estado, ele pode ser importante para a população local. Questões locais de exploração agrícola de terras ou de recursos hídricos podem gerar conflitos entre populações, com consequências graves no relacio-namento entre Estados.

Nas últimas duas décadas, têm sido assinaláveis os progressos realizados ao nível das técnicas de posicionamento, principalmente com os sistemas de posicionamento por satélite designados por GNSS (Global Navigation Satellite Systems), com os sistemas de observação da Terra a partir de plataformas orbitais e com a utilização de informação geográfica em suporte digital. O impacto desta evolução torna-se evidente se for tomado em consideração que a exactidão posicional de um mapa de fronteira de finais do século XIX poderia assumir valores da ordem dos 500 m e que as técnicas actuais permitem com facilidade uma exactidão submétrica. Esta diferença é ainda amplificada por questões associadas à definição de sistemas de referência posicionais que, no século XIX, eram fundamentalmente astronómicos e de concretização deficiente. A mesma só é mitigada pelo facto de a descrição das fronteiras não ser exclusivamente cartográfica.

Uma análise científica de fronteiras internacionais tem de ter forçosamente em conta a dimensão histórica na sua constituição, pois é daí que deriva a sua existência, com as limitações de qualidade técnica intrínsecas à época e ao contexto em que foram elaboradas. Desta característica releva um potencial foco de problemas, na coexistência de meios técnicos e requisitos actuais a par com definições frequentemente vagas e imprecisas produzidas no passado mas que são inalteráveis.

Na época actual, o foco da expansão de soberania está nas fronteiras marítimas, pros-seguindo aí a ocupação dos espaços vazios referida por Curzon. A questão das fronteiras terrestres, uma vez terminadas as grandes reivindicações de possessão territorial, apresenta-se como uma questão menor. Tratando-se de uma questão menor, poderia ser irrelevante a sua discussão técnica e científica, podendo os litígios existentes serem deixados por resolver ou serem resolvidos a um nível mais diplomático do que técnico.

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A relativa estabilidade das fronteiras é atribuída por Foucher (1988) ao facto de existir uma ausência generalizada de práticas de renegociação de limites. Este autor refere o seguinte, a propósito das fronteiras de África e do facto de uma grande parte não se encontrar ainda demarcada:

“Il y a donc autant de causes de friction que les États pourrait le souhaiter! Mais, dans l’optique d’un révisionnisme frontalier, il faudrait prendre le risque d’inventer d’autres critères, endogènes et mutuellement acceptables. Question juridique sans doute, mais qui en sous-tend une autre: pendant combien de temps les dirigeants des États pourront-ils faire l’économie d’une reformulation des principes ou des critères du compartimentage territorial?”

A experiência recente no processo de demarcação da fronteira entre a República da Indonésia e a República Democrática de Timor-Leste veio proporcionar indicações no sentido da necessidade de reabrir o estudo das fronteiras terrestres. Este foi um trabalho com características únicas na era actual, por abranger a totalidade de uma fronteira terres-tre, num contexto em que a generalidade das fronteiras internacionais estão estabilizadas, seja por existir acordo, por existir litígio consolidado ou por ainda não terem sido objecto de revisão.

Embora este trabalho não incidisse propriamente sobre a definição de raiz de uma nova fronteira, pois esta já existia ao nível de um tratado de delimitação e com a demarcação concluída, veio requerer uma reflexão sobre conceitos anteriormente firmados, agora sob a luz de novas técnicas e novos requisitos inexistentes na época em que esta e a generalidade das outras fronteiras foram estabelecidas. O interessante neste caso é o facto de ter exigido uma análise minuciosa de uma descrição de fronteira. Sendo uma fronteira típica da viragem do século XIX para o século XX –, e nem se pode considerar que fosse uma fronteira tecnicamente mal definida pelos padrões da época, antes pelo contrário –, pode presumir-se que muitas outras fronteiras definidas de um modo similar evidenciariam problemas análogos se fossem analisadas do mesmo modo. É crível que o serão mais cedo ou mais tarde, sendo essa a justificação para o presente estudo.

De um ponto de vista jurídico, uma fronteira não tem, em geral, erro associado. Esta assunção não tem obviamente em consideração que a qualquer delineamento, mesmo após a sua materialização, está sempre associada incerteza posicional; uma questão que poderia ser problemática de tratar é assim liminarmente ignorada. Ser ignorada não implica, no entanto, que esteja encerrada, como refere Downing (1980):

“Border disputes rarely have an independent life of their own. They do not suddenly spring into existence, complete with incompatible claims, enraged governments and casualty lists. Rather they resemble cases of high explosive left carelessly behind by the indifferent progress of human history. They need fuses to be dangerous, and someone has to light those fuses for them to explode.”

Além da resolução de litígios, os actuais instrumentos de aquisição e exploração de informação geográfica podem ser aplicados com benefício na gestão da zona de fronteira. Se, por um lado, as disputas territoriais perderam alguma da sua importância, a gestão das

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fronteiras assume importância pela necessidade de controlo de atravessamentos, como os de comércio ilegal ou actividade terrorista, a gestão de recursos transfronteiriços e a manu-tenção de relações harmoniosas entre populações fronteiriças. Uma parte considerável destas questões de gestão tem a ver com a própria natureza da linha de fronteira, com a natureza do espaço envolvente e como conhecimento que se tem destes.

1.2 OBJECTIVO E METODOLOGIA O presente documento tem como motivação o processo de demarcação da fronteira terrestre entre a República Democrática de Timor-Leste e a República da Indonésia. Pelas circunstâncias em que esse processo decorreu, principalmente o facto de se tratar de uma revisão integral de uma fronteira definida há cerca de 100 anos, agora com recurso a técnicas e métodos recentes, constitui-se como um excelente caso de estudo sobre a demarcação de fronteiras nos tempos actuais.

O objectivo deste trabalho consiste na análise do traçado de fronteiras terrestres, visando a criação de instrumentos para a sua caracterização e gestão, além de uma base teórica de análise para utilização em situações de interpretação de tratados e resolução de disputas posicionais sobre o território.

O primeiro componente metodológico consiste numa revisão bibliográfica dos estudos sobre fronteiras terrestres, de onde se extraíram os conceitos fundamentais e os problemas identificados em trabalhos publicados desde o século XIX. A componente histórica do entendimento, dos princípios e dos processos seguidos na definição de fronteiras tem uma importância que vai para além do enquadramento científico do trabalho, sendo importante na interpretação dos antigos tratados que ainda hoje se encontram em vigor. As inter-pretações actuais requerem uma confrontação da metodologia seguida na época em que foram estabelecidas as fronteiras com os actuais requisitos de exactidão posicional.

Segue-se uma segunda componente de revisão bibliográfica, essa de enquadramento científico do trabalho presente, incidindo sobre os temas de investigação actualmente em curso e a justificação da sua existência.

Faz-se, seguidamente, uma descrição geral do processo de definição de uma fronteira, identificando os pontos que se consideram menos bem resolvidos, e uma análise de descrições de fronteira de onde se retiram os componentes típicos utilizados para esse fim, evidenciando-se ambiguidades que poderão gerar situações de disputa.

Os elementos descritivos da fronteira são, depois, analisados em pormenor no que respeita à sua objectividade e valor, como descritores inequívocos de uma linha de fronteira. Essa análise incidirá fundamentalmente no carácter difuso da linha de fronteira, decomposto em:

Incerteza na definição da linha. Exactidão posicional absoluta e relativa do delineamento e da demarcação. Evolução no tempo. Perceptibilidade da linha.

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A incerteza na definição da linha deriva da forma como é feita a sua descrição e do carácter difuso das características geográficas em que se baseia. A exactidão posicional, ou a medida do erro associado à sua localização, deriva da metodologia que na prática é utilizada para a delimitação e demarcação. A evolução das características geográficas no tempo é avaliada na medida da sua relação com a linha de fronteira. A perceptibilidade da linha é uma proposta apresentada neste trabalho e é um descritor do grau em que a linha é perceptível para o cidadão comum e para quem exerce actividades na proximidade da fronteira.

Segue-se uma descrição geral dos métodos e da tecnologia actual envolvidos num processo de demarcação da fronteira e o impacto que a sua utilização pode ter na demarcação ou na revisão de fronteiras.

Relativamente à gestão da fronteira, é feita uma descrição dos dados geográficos neces-sários, organizados num sistema de informação geográfica, sendo avançadas propostas de conceitos instrumentais no apoio à gestão da fronteira derivados por modelação geográfica. É introduzido o conceito de pressão potencial sobre a fronteira e o conceito associado de desequilíbrio na pressão. Estes factores, assim como os elementos de caracterização da linha são depois conjugados numa análise das ocorrências de pretensão territorial e de atravessamento ilegal.

O desenvolvimento teórico elaborado na primeira parte deste trabalho recorre substan-cialmente ao caso específico da fronteira entre a República da Indonésia e a República Democrática de Timor-Leste. Na segunda parte do trabalho, faz-se a descrição do processo de delineamento e demarcação da fronteira, com maior incidência no desenvolvimento do processo propriamente dito e menor incidência nas questões teóricas.

Restringindo-se o foco principal deste livro na determinação de fronteiras internacionais, a sua relevância pode ser transposta em grande parte a outros tipos de delimitação, nomeadamente limites administrativos, cadastrais ou de concessões de exploração de recursos naturais.

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No período da II Guerra Mundial e posterior, foi novamente suscitada a atenção sobre a questão das fronteiras, sendo de destacar os trabalhos de Boggs (1940), Jones (1945), Prescott (1965, 1977) que constituem as referências fundamentais nesta matéria. De uma forma algo simplificada, poderá dizer-se que o trabalho de Boggs consolida os desen-volvimentos anteriores, com uma forte influência das ideias de Lapradelle e de Adami, e introduz uma tipologia de fronteiras abrangente, em que se destacam as fronteiras de natureza étnica.

O trabalho de Jones viria a constituir-se como o manual prático para a delimitação de fronteiras, e o trabalho de Prescott a referência teórica sobre a matéria até ao advento da informação geográfica digital e das actuais técnicas de posicionamento. De entre estes, principalmente os trabalhos de Jones e de Prescott serão frequentemente citados ao longo deste texto e não será feita aqui uma síntese do seu conteúdo.

2.2 TIPOLOGIAS DE CLASSIFICAÇÃO DE FRONTEIRAS Curzon (1907) desenvolveu as suas ideias tendo como base o conceito de fronteiras naturais e artificiais, diferenciação estabelecida respectivamente por se encontrarem, ou não, associadas a características geográficas. Curzon diferenciava as fronteiras naturais geográficas daquelas que também se designavam por fronteiras naturais mas ditadas por critérios históricos ou políticos, ou seja, aquelas a que Fiore se referia no texto citado acima.

Curzon distinguia demarcação e delimitação de fronteiras, seguindo MacMahon, e dis-tinguia as fronteiras artificiais em três grupos:

Astronómicas: que seguiam paralelos e meridianos. Matemáticas: com ligações rectas entre pontos especificados. Referenciais: definidas com recurso a vários pontos e incluíam arcos de círculo e linhas

rectas.

Hartshorne (1936) propõe a classificação de fronteiras em antecedentes, subsequentes, sobrepostas e consequentes. As duas primeiras são relativas a períodos ou modos de ocupa-ção de uma região; a terceira é uma fronteira imposta, tipicamente por um colonizador; e a quarta é aplicada quando a fronteira está sobre uma característica geográfica ou barreira natural. Esta classificação é interessante na medida em que evidencia a forma como as fronteiras foram construídas, nomeadamente as estabelecidas por um processo de colo-nização, que serão subsequentes à ocupação nativa do território e antecedentes à ocupação por parte do colonizador.

Boggs (1940) propõe uma classificação de fronteiras em quatro tipos: físicos, geométricos, antropogeográficos, complexos ou compostos. Os tipos principais seriam assim compostos:

Tipos físicos:

Montanhas: – Cristas de montanhas; – Divisão de águas.

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Desertos. Lagos, baías e estreitos:

– Linhas médias; – Principal canal navegável; – Margens.

Rios e canais: – Linhas médias; – Talvegues; – Margem.

Pântanos. Fronteiras em águas territoriais. Curva de nível.

Tipos geométricos:

Linha recta (meridianos e outros círculos máximos). Paralelo de latitude. Linha de rumo ou loxodrómica. Arco de círculo. Linha paralela a, ou equidistante de, linha de costa ou rio.

Tipos antropogeográficos:

Fronteira tribais. Fronteiras linguísticas. Fronteiras religiosas. Fronteiras económicas. Fronteiras históricas. Fronteiras culturais. Limites de propriedade pré-existentes.

Linhas complexas ou compostas.

A classificação no tipo antropogeográfico relaciona-se mais com a génese do que com o tipo de demarcação.

Jones retoma a classificação de Boggs, mas salvaguardando que cada fronteira deve ser encarada como um caso único e que uma boa solução num local poderá não o ser noutro local. Jones afirma que a distinção mais real de fronteiras é feita entre fronteiras internas e fronteiras internacionais.

Brigham (1917) utiliza o conceito de evolução da fronteira em três estados:

Fronteira tribal. Fronteira de transição. Fronteira ideal.

Foucher (1988) apresenta uma classificação de fronteiras, excluindo as europeias, segundo a sua horogénese (termo introduzido por Foucher significando a génese da fronteira):

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Fronteiras de origem inter-imperial (exemplo, Malásia-Indonésia). Fronteiras de origem intra-imperial (exemplo, Senegal-Mauritânia). Fronteiras europeias-asiáticas ou europeias-africanas (exemplo, Etiópia-Sudão). Fronteiras internas aos conjuntos: intra-asiáticas; intra-africanas; intra-latino-americanas

(Turquia-Irão; Rwanda-Burundi; México-Guatemala).

Esta classificação é favorável para uma análise das fronteiras na perspectiva da sua génese, evidenciando processos de estabelecimento com afinidades entre si.

Num cenário actual, de gestão e eventual revisão de fronteiras, a classificação de fronteiras que eventualmente será mais operacional é a de:

Fronteiras definidas por coordenadas. Fronteiras definidas por descrição verbal (baseada, ou não, em características geo-

gráficas). Fronteiras definidas por materialização.

Esta classificação pode aplicar-se a segmentos de fronteira e não necessariamente à totalidade da fronteira. As descrições verbais podem ser acompanhadas de uma descrição cartográfica, mas, em geral, prevalece a primeira descrição sobre a última. As duas últimas traduzem estados de transição para a primeira. A demarcação das fronteiras do primeiro tipo é entendida como um instrumento, não sendo os marcos o elemento que estabelece o limite, simplesmente o materializam.

2.3 VISÃO ACTUAL DAS FRONTEIRAS TERRESTRES Segundo Blake (2000), existem, actualmente, 192 Estados (actualizando a referência a 191 Estados com o Estado de Timor-Leste), 41 dos quais são Estados sem fronteiras terrestres. A estimativa de Biger (1995, cit. Blake) era de um total de 308 fronteiras terrestres perfazendo 266 000 km. O número de fronteiras com algum tipo de disputa é, actualmente, de cerca de 60 (Blake, 2000). Verifica-se ainda um interesse crescente na demarcação e gestão de fronteiras (Blake, 2000) já acordadas, em parte devido ao surgimento das técnicas de posicionamento por satélite.

Se, por um lado, se advogou a tendência para o desaparecimento das fronteiras, o que se verificou foi um aumento da sua relevância.

Parte do foco actual do trabalho de investigação está na possibilidade de uma teoria geral de fronteiras (Brunet-Jailly, 2005), perspectiva essa que tinha sido excluída por Jones (1945) e Prescott (1965) nas suas obras que constituem os manuais de referência sobre o assunto. Segundo estes autores, cada fronteira é um caso único e, apesar de existirem aspectos comuns, é preponderante a especificidade de cada caso, sendo, no entanto, defendida por alguns autores (Brunet-Jailly, 2005; Paasi, 2005) a possibilidade de teorizar sobre as fronteiras e de destacar os aspectos formais comuns. Paasi (2005) apresenta o estudo das fronteiras como um ponto de convergência multidisciplinar, envolvendo a Geografia Política (Estado, soberania, território, nacionalismo), a Geografia Económica (interacções transfronteiriças, regionalismo, desaparecimento de fronteiras), a Geografia

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Cultural (etnicidade, identidade, identidades supra-nacionais) e a Geografia Regional (regiões como construções sociais, regiões como processos históricos, demarcação de regiões).

Brunet-Jailly (2005) apresenta uma formulação da teoria de estudos de fronteiras dividida em: cultura transfronteiriça; actividades políticas em níveis múltiplos de governação; poder local transfronteiriço; forças de mercado e fluxos de mercado. Como se pode constatar, é uma visão tendencialmente social e económica, pressupondo-se que pouca modelação geográfica esteja envolvida. Minghi (1963) tinha formulado uma análise das fronteiras baseada na sua função e introduzido o conceito de percepção da fronteira, embora também aos níveis sociológico, cultural e económico.

Em síntese, os tópicos de estudo das fronteiras incidiram inicialmente sobre:

Fronteira como linha ou como região. Tipologias de fronteira. Abordagem às fronteiras como casos únicos não passíveis de uma teoria geral. Fronteira como linha de exercício de soberania ou linha de agregação de comunidades

homogéneas. Procedimentos para o estabelecimento de uma fronteira. Procedimentos para a resolução de litígios.

No período após a II Guerra Mundial, a questão das fronteiras teve desenvolvimento principalmente na perspectiva das questões políticas, sociológicas e étnicas. Nesta perspec-tiva, as linhas de estudo incidiram sobre:

Relações entre as populações fronteiriças e o modo como a fronteira afecta o uso do espaço.

Fronteiras abertas num cenário de desenvolvimento de regiões políticas agregando vários países.

Combate à criminalidade, terrorismo, imigração ilegal e comércio ilegal transfronteiriço.

Apesar da grande evolução técnica sentida neste período, não se verificou uma alteração de muitos dos conceitos existentes no século XIX e início do século XX. Entre os problemas que não estão resolvidos constam:

A introdução do conceito de fronteiras difusas. As questões relativas à qualidade da Cartografia e as implicações do aumento da

exactidão posicional. A interpretação técnica das descrições imprecisas de fronteiras. A modelação geográfica das pressões sobre a fronteira. A caracterização da fronteira numa perspectiva de gestão.

Exceptuando a vaga referência feita por Blake (2000), não é tomada em consideração a alteração introduzida pelas novas tecnologias e novos paradigmas de abordagem à informação geográfica. Essa omissão generalizada poderá ser interpretada de diversas formas:

O ponto de vista dos autores é essencialmente político e sociológico. A questão geográfica posicional está essencialmente resolvida.

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Efectivamente, a tendência multidisciplinar de abordagem ao estudo das fronteiras parece excluir as Ciências de Informação Geográfica. Uma possível razão para isso poderá estar na escala de análise: as questões posicionais e a pressão local sobre a fronteira são fenómenos perceptíveis numa escala muito localizada, enquanto as questões associadas a zona de fronteira são mais perceptíveis à escala do relacionamento entre nações ou entre regiões. Os problemas locais podem, no entanto, ter consequências de âmbito mais vasto do que as suas causas directas.

A diferenciação dos conflitos em regionais e posicionais ocorre em paralelo com a diminuição da importância dada aos segundos. No entanto, possivelmente o seu número poderá aumentar, dependendo da relação entre os Estados e dos interesse que se venham a manifestar na disputa pelas regiões em causa. O potencial de litígio está presente, em virtude de definições deficientes e de novas tecnologias de posicionamento e de repre-sentação geográfica.

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13.1 FRONTEIRA NO PERÍODO ANTERIOR AO TRATADO DE 1904 O primeiro tratado sobre possessões territoriais, celebrado em 1851, delimita a fronteira entre Portugal e os Países Baixos através da divisão das duas grandes regiões de reinos existentes na ilha de Timor, Servião e Belos, pelas duas partes. Uma vez que estes grupos eram constituídos por reinos sem fronteiras marcadas, este tratado apenas atribui a cada um dos Estados a área aproximada de influência na ilha.

Em 28 de Agosto de 1851, é nomeada uma comissão mista que redigiu um projecto de tratado para assentar na divisão de territórios entre Portugal e os Países Baixos. Três meses depois, em 16 de Novembro de 1851, os delegados dos dois países, Bernard Von Trogen e A. B. Cezar da Silva, subscreveram uma acta e uma carta que determinava os limites seguindo o princípio da não divisão dos Estados limítrofes indígenas. Este Tratado de 1851 traçou os limites de separação dos territórios portugueses e holandeses de Timor, divi-dindo-o, assim, em duas partes: a região de Belos (para Portugal) e a região de Servião (para a Holanda). Esta primeira divisão resulta de um levantamento no terreno que terá ficado incompleto devido a chuvas e a situações de litígio entre os reinos.

Em 20 de Abril de 1859, é assinado um tratado em Lisboa (ratificado posteriormente em 1860) que determinou a divisão da ilha segundo o mesmo critério de 1851. Este tratado deixou subsistir o enclave holandês de Maucatar e o enclave português de Oecussi-Naimuti e o encravamento com os reinos de Oecussi-Ambeno. Por este tratado, Portugal desiste de todas as suas pretensões às ilhas a Norte de Timor (incluindo o arquipélago de Solor e Flores) e fica apenas com a ilha Cambing (Ataúro). A Holanda cede o reino de Maubara, abandona as pretensões sobre a ilha de Cambing, perdoa uma dívida de Portugal de 80 000 florins e, além disso, empresta 120 000 florins a Portugal. O tratado de 18594 divide, então, as possessões portuguesas e holandesas através dos reinos que constituíam esses dois grupos.

Na Figura 13.1 é apresentada, de uma forma simplificada, a fronteira entre Portugal e a Holanda, após o tratado de demarcação de 1859, incluindo os enclaves que mais tarde vieram a ser trocados.

4 “Tratado assinado em 20 de Abril de 1859 de demarcação e troca de algumas possessões portuguesas e neerlandesas no arquipélago de Solor e Timor entre Portugal e os Países Baixos.”

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Figura disponível a cores no Anexo Figura 13.1 Divisão de territórios estabelecida pelo Tratado de 1859.

A compensação financeira pela cedência de territórios resulta de um incidente diplomático pouco prestigiante para Portugal. Foi, em 1850, nomeado o conselheiro Lopes de Lima como presidente de uma Comissão que iria negociar com a Holanda a questão dos limites de Timor. Lopes de Lima chega a Timor em 1851 e, após negociação com os represen-tantes holandeses, faz o seguinte acordo (Oliveira, 1949):

“Portugal cedia à Neerlândia as possessões das Flores e desistia das pretensões que podia fazer valer sobre o grupo de Solor. A Neerlândia cedia a Portugal o reino de Maubara. Como Portugal não ficava suficientemente indemnizado em territórios, comprometia-se o Reino dos Países Baixos a dar ao Governo de Timor 200 000 florins, logo que o Gover-nador Geral da Batávia tivesse conhecimento do Tratado, e as outras em períodos deter-minados; e feito o primeiro pagamento, o Governo de Timor entregaria à autoridade neerlandesa os territórios cedidos e receberia desta o reino de Maubara.”

O comissário Lopes de Lima aceitou o pagamento adiantado e só perante o facto consu-mado comunicou à metrópole o acordo realizado. Tendo excedido os seus poderes, foi mandado retornar a Lisboa e viria a falecer em Batávia durante a viagem. Embora Portugal não reconhecesse a validade do documento assinado por Lopes de Lima, rapidamente explorado pela Holanda, já não foi possível retornar à situação negocial inicial e o acordo depois firmado viria a acomodar a transacção financeira.

A divisão do território foi ainda objecto de diversas propostas após 1859, com diferentes alternativas para a linha de fronteira e para as trocas de enclaves.