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  • Os bairros e o futebol nacidade de Buenos Aires de1930

  • OS BAIRROS E O FUTEBOL NA CIDADE DE BUENOSAIRES DE 1930Julio D. Frydenberg

    RESUMO

    No processo de formao da Buenos Aires moderna, o cenrioda cidade mudou enormemente em poucas dcadas. Passa-se dacidade das vizinhanas dos bairros. Esse movimento ocorridonas dcadas de 1910 e 1920 foi considerado crucial na construoda cidade atual, assim como de seus sentidos a partir dos anos1930. Os anos 1920 e 1930 so os momentos do nascimento doimaginrio bairrista e dos prprios bairros. Este artigo procuraentender o papel do futebol nesse processo de construo dasidentidades de bairro.

    PALAVRAS-CHAVEFutebol; Buenos Aires; Bairros.

  • No processo de gnese da Buenos Aires moderna, apaisagem da cidade muda enormemente em poucas dcadas.Passa-se da cidade das vizinhanas dos bairros. Esse movimentoocorrido nas dcadas de 1910 e 1920 foi considerado crucial naconstruo da cidade atual, assim como de seus sentidos a partirdos anos 1930. Os anos 1920 e 1930 so os momentos donascimento do imaginrio bairrista e dos prprios bairros. Aquise buscar desenvolver um estudo do papel que coube ao futebolnesse processo.

    A partir da ao do mercado (loteamento de terras e suavenda a prazo), da ampliao do sistema de bondes e da ao doEstado, ocorreu a ocupao do territrio cujos limites foramfixados em 1887. No princpio do sculo XX, o movimento tinhaproduzido um centro superpovoado, bairros tradicionais comoa Boca, enclaves distantes (Flores e Belgrano), e uma multidode vizinhanas, mais ou menos conectadas com esse centro pormeio do trem e dos bondes. Na primeira dcada do sculo, asvizinhanas apareciam como subrbios de fronteira de um centroque se expandia para os arrabaldes.

    A chamada modernizao plena significou atransformao dessas vizinhanas e das zonas intersticiais que asseparavam em reas plenamente urbanizadas pelo formato deum tabuleiro de xadrez diagramado pela ao estatal. Esseprocesso significou, nos anos 1920, o surgimento dos bairros,em sua maioria nascidos sobre a uniformidade morfolgica daquadrcula. O movimento urbano e social que abrangeu o

    OS BAIRROS E O FUTEBOL NACIDADE DE BUENOS AIRES DE19302

    Julio D. Frydenberg1

    1 Doutor em Histria pela Universidade de Buenos Aires e Diretor doCentro de Estudos do Esporte, Escola de Poltica e Governo, UniversidadeNacional de San Martn, Argentina.

    2 Traduo: Livia Gonalves Magalhes. Reviso: Cristiana Schettini.

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    nascimento dos bairros implicou o aparecimento de um novoespao pblico local, estruturado pela ao conjunta de novasassociaes (associaes de bairro, bibliotecas populares, clubes);novos atores sociais (as barriadas* socialmente homogneas);novos cenrios (a rua, a esquina, o caf do bairro); novassociabilidades; e novos setores populares ou, melhor dito, novacultura desses setores populares. Todo esse conjunto foimisturado mediante a ao de agentes que ajudaram a conectara nova vida cidad ao mundo local. A escola, os meios decomunicao de massa, os novos consumos, assim como aconstruo de rituais profanos massivos cumpriram esse papel.

    Os espetculos massivos foram construdos juntamentecom o pblico moderno, que tambm foi o pblico do futebol. um pblico formado pelos setores trabalhadores e mdios. Umpblico em sua maioria letrado. Um pblico para o qual cabemconsideraes similares s de autores como Adolfo Prieto eBeatriz Sarlo. Nesse sentido, dizemos que o futebol e seu pblicono destoam da sensibilidade dos anos 1920, desse movimentoda subjetividade onde joga o amor, o desejo, a paixo. Nessecaso, a diferena que o pblico majoritariamente masculino.3

    Os estudos que trataram da histria da cidade de BuenosAires supuseram uma relao ntima entre o nascimento dosbairros portenhos e o desenvolvimento do fenmeno doespetculo futebolstico. O futebol foi escolhido como tema, masaparece to inocultvel como intangvel, incmodo e escorregadio.

    Nos primeiros vinte anos do sculo, o futebol setransformou. De moda juvenil passou a ser uma prticaplenamente institucionalizada. Se no princpio do sculo, o futebolemergiu junto com uma onda de fundao de clubes/times, emum movimento paralelo pequena liga dirigida pelas escolasinglesas, durante a segunda dcada a situao passou por uma

    Nota da Tradutora (NT): barriadas um termo em castelhano que serefere a um bairro pobre ou a um grupo de seus moradores, tal como nocaso da meno desta no texto.

    3 O futebol, fortemente associado ao jornal, no escapa aos espaos de umacultura em boa medida mediada pelo papel impresso, ainda que tenhasuas prprias caractersticas. Nos anos 1920, o futebol compartilha todoum conjunto de consumos e mudanas de hbito que afetam a vida cotidiana:a expanso da alfabetizao, o consumo cultural (cinema, publicaes, etc.).

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    grande reviravolta. A liga oficial dividiu-se em duas. O futebolorganizado foi se desligando do domnio dos personagensbritnicos e passou a ser permevel entrada de muitos dos clubesnascidos dos setores populares.

    Simultaneamente, a partir desse momento o futebolchegou a quase todas as instituies sociais e corporaes, desdeo Exrcito e a Igreja, os partidos polticos at as corporaesempresariais e os sindicatos. O espetculo, incipiente durante aprimeira dcada, espasmdico na concentrao de grandesmultides, foi sendo ampliado.4 A dcada de 1920 marcou umverdadeiro salto no processo de incorporao das grandes massasao consumo e produo de bens de cultura popular e massiva.Entre 1922 e 1928, as estatsticas reconhecem que a Argentinaviveu anos de bonana econmica, fruto do aprofundamento doseu papel de produtor e exportador de produtos agropecurios.Os setores trabalhadores viveram um momento em que o custode vida caiu, com um leve aumento do tempo disponvel para odesenvolvimento de atividades recreativas, e uma maior presenacomo consumidores de produtos de massas, por exemplo, dejornais como a Crtica, ou a assistncia aos estdios de futebol,espetculo esportivo j instalado como a maior atrao popular.

    Centraremos a ateno na abordagem da questo daparticipao ativa do fenmeno futebolstico na formao dasidentidades de bairro. necessrio insistir no fato de que osnovos bairros portenhos so basicamente construes simblicas,

    4 At 1910, os eventos com mais convocatria foram os clssicos entreArgentina e Uruguai, que se enfrentavam ocasionalmente e queconglomeravam entre 8 mil e 10 mil aficionados. At 1930, os estdios dosclubes mais populares podiam receber mais de 40 mil pessoas todos osfinais de semana, e muitas vezes ficavam sem espao. A potncia atrativado futebol e dos clubes tambm pode ser medida se consideramos aquantidade de scios das instituies. Desde o final da segunda dcada,pode-se observar a presena dos chamados cinco grandes, medidos emquantidade de torcedores, de scios e de xitos esportivos. A chegada doprofissionalismo em 1931 e, em funo disso, a ao positiva dos dirigentesmultiplicaram geometricamente a quantidade de scios desses clubesgrandes. Entre 1925 e 1932, os cinco grandes quadriplicaram suas massassocietrias, que passaram, em linhas gerais, de 3 mil ou 4 mil a 12 mil ou 15mil scios. preciso considerar que, apesar da ausncia de dados queconfirmem plenamente essa suposio, durante o mesmo perodo, a vendade ingressos no parece ter crescido nem mesmo o dobro.

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    geradas sobre a base de uma quase total indiferenciaomorfolgica estrutural, resultado da rpida urbanizao sobre agrade quadriculada. A construo acabada do contextoritualizado do espetculo futebolstico ajudou a cristalizar asidentificaes em funo do bairro, que estiveram fortementeligadas ao futebol. Assim, concebemos o espetculo futebolsticodentro de um contexto ritual peculiar, moderno, profano.5 Esseprocesso, junto com modificaes estruturais e mediticas, juntocom apropriaes e produes prprias, produziu modificaesna cultura desses setores sociais.

    Em Buenos Aires, esse contexto ritualizado do futebol,com todos seus condimentos, estava plenamente construdo nadcada de 1930. A tarefa, a proposta, ser aqui mergulhar na suaformao, sua gnese. A ateno ser centrada em localizar notempo a presena dos elementos urbanos e materiais necessrios

    5 Para que o fenmeno do estreito vnculo do futebol com as identidades debairro seja visvel, necessrio incorporar categorias que permitam perceb-lo. Para ajudar a explic-lo, ser necessrio o emprego de conceitos como ode ritual. A respeito do conceito de ritual, no se pode entender asociedade moderna se pensamos que os rituais foram excludos de seuseio. A Modernidade inclui esses fenmenos. Existem invenes urbanasmodernas que so rituais. Traos caractersticos dos rituais e que estopresentes no espetculo futebolstico: ruptura com a vida cotidiana; marcoespacial e temporal especfico; encenao programada que se repeteperiodicamente durante um tempo cclico; preeminncia da comunidadesobre a individualidade; ocasio de aes comuns, no marco em que asociedade toma conscincia de si e se autoafirma, com sentimentos decomunitas (proposto como necessrio para o funcionamento de todasociedade). A diferena mais marcante entre ritual religioso e ritualfutebolstico estaria na ausncia de seres ou foras sobrenaturais. O ritualfaz mais do que diz. Por isso necessrio ler o que as pessoas fazem noritual. Os elementos do ritual presentes no futebol so: estdios, hierarquiasprprias da ordem do futebol (localizadas especialmente: dirigentes, etc.,platia, arquibancada); comportamentos coletivos: a torcida com seuscantos, danas, cores; mundo do futebol como analogia de uma religiouniversal: com seus elementos de idolatrizao, padronizao; umcenrio programado, repetitivo, estereotipado; unanimidade temporriaque se constri contra um bode expiatrio: por exemplo, o rbitro. Sobre oconceito de ritual, as ideias bsicas foram extradas de: BROMBERGER, C.Las multitudes deportivas: analogas entre rituales deportivos y religiosos.Revista EFDeportes.com, Buenos Aires, ano 6, n. 29, jan. 2001. Disponvel em:. Acesso em: 27 abr. 2009.

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    para seu desenvolvimento pleno, nas mudanas operadas nacidade e na sociedade portenha que tornaram possvel suaconcretizao.

    Por outro lado, o universo simblico gerado em tornodo contexto ritualizado do espetculo se sobreps aodesenvolvimento de um espao pblico novo, a um novomomento na evoluo da cidade. O futebol incidiu na prpriaconstituio desse novo momento na histria de Buenos Aires.No caso do futebol, de Buenos Aires e de seus bairros, no sepode entender os processos separados, uns sem os outros. Oelemento articulador entre o futebol e a cidade foram asidentificaes territoriais. Existiu um processo nico que implicoua gerao de um novo espao pblico, o desenvolvimento plenodo ritual futebolstico, e a construo das identidades de bairro(e dos prprios bairros), que, naturalmente, no foram edificadassomente com o futebol. O ncleo desse processo teve lugar nosdez anos que transcorreram entre meados dos anos 1920 e meadosdos anos 1930.

    AS PREMISSAS URBANAS E CULTURAIS DOESPETCULO FUTEBOLSTICO EM BUENOS AIRES

    Existiu uma ntima relao entre a estruturao docontexto ritual do espetculo futebolstico e uma srie de mudanastais como as transformaes nos hbitos de sociabilidade, asprticas e experincias da vida na cidade moderna. O futebolorganizado fez parte dos chamados espetculos de massasmodernos. Esses novos cenrios somente foram possveis quandoa sociedade conheceu algumas alteraes significativas quegiraram em torno de:

    - crescente tempo livre e nvel de vida das maiorias;- nascimento de uma nova sociabilidade masculina;- novo espao pblico ligado ao estatal, espaos de

    sociabilidade urbana e meios de comunicao de massas;- novos meios de transporte entre os bairros;- novos meios de comunicao de massas, como a imprensa

    escrita popular e o rdio; e- novas aprendizagens dos habitantes da cidade em sua

    transformao em pblico, no caso portenho tendendo,

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    desde o princpio, a se transformar em participante ativodo espetculo futebolstico (contexto ritual semanalmenterepetido).

    Desde princpios do sculo, foi se desenvolvendo essaformao do hbito de participao entre grandes grupos, dainterao entre indivduos, grupos e massas no uso da rua e dosestdios. Foi um verdadeiro processo de aprendizagem coletivaque terminou por se cristalizar nos anos 1920.

    Se centrarmos a ateno nas condies materiais urbanasque tornaram possvel a estruturao do espetculo como contextoritual, em primeiro lugar, preciso falar dos grandes estdios,os cenrios do evento. Observando as datas de construo dosgrandes estdios da cidade, percebe-se que so dessa poca:Sportivo Barrancas, 1920; Club A. Atlanta, 1922; Independiente,1928; San Lorenzo de Almagro, 1929; River Plate, nos anos 1920e definitivamente em 1938; Argentino Juniors, Boca Juniors eNova Chicago, nos anos 1940, etc.

    O estdio de futebol foi um palco que permitiu a ativaparticipao e a visibilidade dos presentes. Permitiu a constituiode comunitas, elemento bsico para a construo de identidadescoletivas.

    Os estdios apresentam uma clara demarcao de espaos,desde o surgimento da grade de proteo, um limite que atento era frequentemente violado. O campo de jogo assume umcarter mais fortemente sacralizado. A uniformidade na vivnciados espectadores no consegue dissimular a segregao do pblicosegundo classes sociais (tribuna especial, cadeiras,arquibancadas). O futebol um espetculo muito especial. Aadeso mais ou menos incondicional do pblico, somada a umaestrutura no totalmente mercantil das instituies, fez com quea oferta, como era tendncia naqueles anos, nunca tenhaconseguido satisfazer a demanda. Assim, os cenrios e asinstalaes sempre ficaram aqum dos requerimentos do pblicoe da mdia, especialmente em relao aos times grandes (assimchamados desde o final dos anos 1910 em razo da quantidadede aderidos). Os jornais, sintonizando na direo doengrandecimento do espetculo do qual formavam parte,mostravam as carncias dos cenrios frente ao massivo fluxo detorcedores. Assim falava a Crtica sobre o jogo no estdio de SanLorenzo entre o time local e Racing:

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    Vinte mil pessoas assistiram ao jogo entre San Lorenzo eRacing, mas cinco mil ficaram de fora. s 13 horas foipreciso suspender a venda de ingressos por falta de espao.O Esquadro de Segurana teve que intervir (...) s 12hhavia no estdio dez mil pessoas. Dentro do field era difcilver muitas das jogadas. Com um field de capacidade ojogo de hoje teria recebido facilmente umas cinquenta milpessoas. Houve alguns incidentes na rua em virtude dosprotestos do pblico.6

    necessrio dizer que, no fim dos anos 1910, para umafaixa importante dos homens adultos, j existia o hbito de ir aoestdio. Entretanto, a partir dos anos 1920, esse foi setransformando em um fenmeno quase universal, quase unnimepara os homens, especialmente dos setores populares, fortementeassociado possesso de qualidades viris, dos cdigos da culturamasculina, da qual, como prtica no jogo e como torcida dosespectadores, o futebol foi uma marca distintiva.

    Retomamos a srie de premissas urbanas sobre odesenvolvimento do espetculo futebolstico. Os estdios semos meios de transporte no so nada. Nesse sentido, no poracaso que na dcada mencionada apareceram novos meios detransporte estreitamente associados ao futebol: o nibus e ocaminho (em algumas oportunidades alugados ad hoc para otransporte de torcedores).

    6 Crtica, 8 ago. 1926, p. 4. Outros dois exemplos: Dia a dia aumentam osadeptos ao esporte. Pode-se esperar 40 mil espectadores para os jogosinternacionais mais atrativos. Urge aumentar a capacidade dos estdios eisso ns esperamos dos clubes j que no o podemos esperar das autoridadesoficiais, sempre lentas (El Grfico, 25 ago. 1928, p. 17); Jogaram Boca versusIndependiente: Um dia esplndido e as barriadas se movimentaram desdecedo em busca da diverso preferida. O estdio do Independiente ficoupequeno (33 mil entradas vendidas; 7 mil scios; 5mil mulheres) em fila merc das grandes avalanches que varreram os ingressos. (Recorde debilheteria) Contemos os que no se animaram a ir ao estdio doIndependiente pelo difcil acesso; somemos os que teriam ido se tivessemmais comodidades, e chegaramos concluso de que seria preciso umestdio com capacidade para mais de cem mil pessoas. Esse um destinolongnquo, mas para o qual a nova liga deve caminhar [Refere-se recentemente criada liga profissional] (El Grfico, 4 jul. 1931, p. 21).

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    Desde 1928, o nibus permitiu conectar mais facilmenteos bairros entre si, de um modo diferente dos tradicionais bondese trens, estruturados sobre o eixo de conexo entre a periferia eo centro, ou entre cidades prximas.7 As imagens das fotos edos filmes da poca, assim como os textos das crnicas jornalsticasmostram o pblico chegando aos estdios graas a todos essesmeios de locomoo, por volta de 1930. Por exemplo, em 1932, oclube Independiente contratou um servio de banheiras paraque os torcedores vermelhos cheguem a Caballito desdeAvellaneda. 1 $ a passagem.8

    Outro elemento necessrio para a edificao do contextoritual a organizao institucional de calendrios programadose amplamente difundidos. Nesse sentido, a imprensa popular eesportiva ocupou um lugar especial. Desde meados dos anos 1920,Crtica e El Grfico encabearam as vendas e a adeso majoritria.Tudo isso supe uma organizao institucional mais ou menoscalibrada, o que no chegou a existir nos anos 1920. Foi apenascom o profissionalismo que os mecanismos institucionaismelhoraram um pouco.

    A dcada de 1920 viu crescer a quantidade do pblicopresente ao espetculo futebolstico. Naturalmente, esse tem umafuno, um papel, que compartilha com o pblico de qualqueroutro espetculo. Participar de um fenmeno muito especfico ecodificado implica no se poder aceitar que lhe ofeream qualquercoisa. Em fins dos anos 1920, j se entendia nos cdigos prpriosdo futebol que, embora as regras, em geral, fossem elaboradaspor outros, elas terminavam sendo adotadas como prprias. Aisso eram agregados valores e estilos prprios gerados no mesmoprocesso de apropriao. Ser pblico desses eventos massivosrequeria certa aprendizagem, acmulo de experincias, assimcomo maneiras de agir.

    O pblico espectador nos estdios no cumpria, nemcumpre um papel paciente e passivo durante o tempo em que se

    7 Jogaram Estudiantes de La Plata versus Quilmes: Os simpatizantes doQuilmes chegaram cidade de La Plata em um trem expresso fretado peloclube, enquanto outros ocupando grandes caminhes, cobertos de grandesbandeiras de seu clube (Crtica, 18 maio 1930, p. 7).

    8 Chamava-se banheiras a um tipo de micro-nibus ou nibus sem teto(Crtica, 2 set. 1932, p. 15).

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    desenvolve o espetculo. A torcida uma base a partir da qualse estruturou o ritual e com ele as identificaes futebolsticasnos anos 1920. Esse formato de adeso nasceu com a popularizaodo futebol e foi elemento necessrio da cristalizao dasidentidades futebolsticas e dos bairros. A torcida nasceu com apopularizao do futebol em princpios do sculo XX. A mdiano a encorajou, manteve-se neutra frente ao fato consumado ouo condenou. Isso pode ser visto nos jornais que dedicaram maisespao ao tema, como La Argentina, La Maana ou Crtica.

    Frequentemente, insistiu-se sobre as sensaes e asatitudes do pblico o torcedor atravs do tempo. Com o objetivode mostrar como se aprofundaram os elementos dramticos etrgicos no pblico atual, foram acentuados os elementos cmicose pardicos presentes no pblico dos anos 1930, quando sesupunha que o torcedor incentivava o prprio time e o prpriojogador, no agredia ao rbitro nem ao rival, e nem vivia o destinodo prprio time com muita angstia. Esse pblico, segundo orelato tradicional, estaria construindo o futebol festa dos anos1940 e parte dos anos 1950.

    Entretanto, desde muito cedo os estdios foram cenriosem que se reuniram os condimentos duais de drama e pardia.Nos anos 1920, nota-se facilmente essa dualidade na percepoque tiveram alguns meios jornalsticos sobre a vida e a ao dastorcidas, as garotadas* e as organizadas* * de aficionados.Nesse sentido, o caso mais pragmtico novamente o jornalCrtica. Em suas pginas, vemos imagens e pargrafos laudatriosdos garotos, a garotada, que se reuniam em bares, cafs dosbairros e debatiam sobre futebol, incentivavam seus clubes eestrelas favoritos com calma, mas no sem certa excitao. Poroutro lado, era diferente quando se falava desses mesmos homensnos estdios. Nesse contexto, eles eram chamados deorganizadas, e era impossvel evitar o tom moralizador. Emespecial, a Crtica, intimamente associado ao desenvolvimentodo espetculo, observava com certa distncia e apreenso asatividades das organizadas, que considerava um perigo para aprpria reproduo do futebol oficial. Ou seja, os mesmos grupos

    * NT: No original, muchachadas.** NT: No original, barras.

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    eram vistos como um produto quase extico das barriadas e deum cenrio habitual de suas vidas, o caf; e, ao mesmo tempo,como desalmados e violentos dentro dos estdios. O comum entreas duas caras desses mesmos sujeitos era que em ambos os casosse tratava de torcedores.

    No mesmo sentido, em relao aos cnticos dos fanticos,criou-se a idia de que, antes dos anos 1960, seus contedos erammais de elogios ao prprio time que contrrios ao adversrio.Entretanto, e apesar de que o tema mereceria toda uma linha depesquisa prpria, no parece ter sido assim. Por exemplo, o jornalCrtica, no af de se dirigir a uma enorme pluralidade de pblicosleitores, permite visualizar, detectar a inteno de mostrar arivalidade entre os clubes. Por exemplo, os torcedores do ClubAtlanta em um jogo contra o Racing Club (chamado a academia)no paravam de gritar a academia j tocou.9

    Os novos mbitos de sociabilidade masculina, tais comoos bares, as esquinas, as paradas, eram visveis para a imprensapopular, que, em um movimento de vaivm, os recriava e osincorporava como tema para seu pblico consumidor.10 Porexemplo, a Crtica encarregava-se de mostr-lo em alguns registrosfotogrficos, apresentando as garotadas futeboleiras quefrequentavam os bares vinculados s torcidas de alguns clubes.

    Naturalmente, a torcida daqueles tempos era maisinocente que a atual, mas o compromisso emocional que os movia facilmente perceptvel. Essa inocncia no permite concluir quea relao emocional do simpatizante dos anos 1920 e 1930 noestivesse impregnada de elementos dramticos. Pode-se pensaro contrrio. Talvez nosso dramatismo atual contenha elementosirnicos que antes no eram to frequentes. Assim, o novo seriaa falta de ingenuidade e a presena da ironia, da desconfiana,etc., e no a paixo e o dramatismo.11 Nesse marco tragicmico

    9 Crtica, 31 out. 1931. Cabe registrar que j tocou significa j morreu, jperdeu.

    10 SAITTA, S. Regueros de tinta. El diario Crtica en la dcada de 1920. BuenosAires: Ed. Sudamericana, 1998.

    11 Apesar de no ter sido estudado at agora, muito interessante o fenmenodo rasgo de carns por parte de scios frente a uma frustrao esportiva.Que outro fato pode testemunhar o dramatismo que essa violenta crise deidentidade e pertencimento institucional?

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    do ritual, trata-se de perceber que a rivalidade/inimizade foium elemento constituinte do fenmeno do futebol, o que nosintroduz no tema das identidades territoriais de Buenos Aires.Novamente, os meios jornalsticos tomaram a temtica darivalidade muitas vezes para estimular o pblico leitor acomparecer aos estdios, para somar afetao e para interessarum pblico j cativo na leitura. Analisemos um s caso... Crtica eo jogo que disputado por San Lorenzo e Atlanta, em julho de1924:

    Acreditamos que no existem duas instituies cujosassociados sejam rivais de uma maneira to terminantecomo as duas que ocupam nossa ateno. Quase todoseles esto estabelecidos l no distante e populoso bairrode Boedo, bairro futebolista por excelncia, onde ou se scio do San Lorenzo ou do Atlanta. Ali o tema obrigatrioser o prximo jogo; ningum escapa do interesse quedesperta a luta entre os dois clubes, e ser digno de ver eescutar os corredores que se formam nos cafs com ostorcedores de ambas as instituies, que muitas vezescomea com um galante convite de um express, continuamdiscutindo se o Monti isso ou aquilo, se o Semino umjaf mais cientfico pela inteligncia de sua colocao emaestria inigualvel de seu jogo de cabea; se o Clico o bem-humorado capito do Atlanta d e sobra paradar conta da veloz dupla Acosta, Carricaberry e...terminam com um vigilante* ...12

    * NT: Vigilante, alm de se referir ao agente policial, tambm um tipo depo doce comum nas confeitarias e bares argentinos desde o comeo dosculo.

    12 Crtica, 3 jul. 1924, p. 14. Outros exemplos: Rivais de bairro. Platense eDefensores de Belgrano. Estes dois velhos amici disputando nesta ocasioos dois pontos do campeonato e a superioridade do bairro. (...) Muitasvezes h excesso e festa entre os torcedores desses clubes (Crtica, 7 ago.1926, p. 11). Crtica fala nestes termos: Enfrentam-se Boca vs Racing quetm entre si uma rivalidade acentuada. Entre San Lorenzo e Huracnexiste uma disputa acirrada na pela supremacia do bairro (Crtica, 23mai. 1930). Jogam Argentinos Juniors vs Colegiales: Argentinos Juniorse Colegiales disputam a supremacia da zona. So rivais de bairro (...)velhas discusses pela supremacia de uns sobre os outros; jogam peloprestgio de um mesmo bairro, dividido pelos afetos, comentriosanimados que vo tomando forma no mbito de cada um, que aumentamquando se aproxima o jogo (Crtica, 27 mai. 1930, p. 16).

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    Sabemos da existncia de bares quase exclusivos para ossimpatizantes de alguns clubes. Bares situados no centro dosbairros onde compareciam de vez em quando alguns jogadoresdo clube. Era o caso de Platense, San Lorenzo, Velez, entreoutros.

    de suma importncia levar em conta que quando seformaram os bairros j existiam os torcedores e a rivalidade entreclubes. Ambos edificaram uma forma de viver o futebol e de vero outro como um rival/inimigo, e no como um mero e ocasionaladversrio.

    AS IDENTIFICAES DOS BAIRROS COM O FUTEBOL

    No marco da modernizao urbana, o problema aquiproposto relacionar o futebol, que tambm sofreu grandesmudanas, com a construo dos vnculos identitrios referentesaos bairros. Defendemos que a gnese dos bairros portenhosoperou, entre outras coisas, sobre a matria que o futebol jtinha gerado desde princpios do sculo XX. Essa identificaoterritorial, primeiro de vizinhana ou de quarteiro, foiconstruda com a matria propiciada pelo futebol e seus formatosemocionais e institucionais de construo de fidelidades erivalidades.

    A rua e a esquina, a chamada parada, passaram a ser oespao ganho pela garotada e pelo futebol. Junto com o tango eo turfe, operou e foi, ao mesmo tempo, meio para a criao dessasnovas sociabilidades em torno das esquinas, as paradas, oscafs, os jogos semanais. Ali, esses ncleos masculinos, em ntimocontato com a vida cotidiana e familiar, deram vida s chamadasgarotadas futeboleiras, que tinham a vantagem, em relao aoturfe, de unir vrias geraes. Todo esse novo universo implicoua reformulao do senso comum estruturado em torno da vidado bairro, formatada pelo futebol e em que o futebol foi temarecorrente. Nos bares, nas esquinas, joga-se com as experinciasprprias e com as narraes e discursos dos meios de comunicaoque naquela poca tinham enorme potncia: o rdio (no seu incioe em rpida expanso) e a imprensa popular escrita, plenamentemassificada.

    A construo da identidade de bairro ergueu-se sobre abase de poucas diferenas morfolgicas entre os distintos bairros

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    diagramados sobre um espao quadriculado.13 Assim, asconstrues simblicas configuraram essas identidades(heterogneas e conflituosas) construdas por sobre a tendncia homogeneidade e indiferenciao espaciais.

    Se prestarmos ateno cronologia, veremos semdificuldade que a gerao que participou do nascimento dosbairros sups o futebol como um fenmeno preexistente,aceitando-o como prprio e natural. Esse fato no menor. Opreviamente existente foi uma contribuio do universosimblico do futebol. Esse prvio fornecido pelo futebol, e quenasceu no princpio do sculo ao se popularizar a prtica e aonascer o espetculo, o fenmeno fundado por jovens que sesentiram, por meio do futebol, representantes de um territrio,uma vizinhana, frente ao universo geral da cidade eespecialmente frente vizinhana mais prxima e principal rival.Eles sentiram que jogavam a honra de serem nicos, osverdadeiros representantes do pequeno lugar. Sobre essamatriz, esse formato em que simples visualizar o eles e ons por meio de um canal privilegiado como a competioesportiva, operar a construo de novos espaos pblicos locais,a urbanizao e, mais tarde, desde o fim dos anos 1920, aimprensa, potencializando todo esse fenmeno, potente por simesmo.

    Os bairros nasceram em consonncia com a potncia deum formato, uma matriz que foi contribuio do futebol e seuritual: a construo de identidades sobre a base da oposio aum outro (rival/inimigo) e todos os outros competidores.

    O futebol foi uma das vias pelas quais esses processos seconcretizaram. Processos nos quais a homogeneizaosociocultural e o individualismo correram paralelos e justapostos.Ele operou no sentido da corrente modernizadora oficial, mas,paradoxalmente, foi veculo da apario de novasheterogeneidades e conflitos. As rivalidades e seu contedodesviaram-no dessa vertente de construo de novashomogeneidades e geraram novas diferenas. O bairrohomogeneizou-se, edificou-se sobre o futebol, mas esse outrocontexto, o texto, o ritual do futebol e sua cultura associada

    13 GORELIK, A. La Grilla y el Parque. Buenos Aires: Universidad Nacional deQuilmes, 1998.

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    emergiram e tornaram visveis diferenas sociais.14 A paisagemdo bairro foi montada a partir da experincia do futebol, dosimaginrios gerados no futebol, das identidades geradas com ofutebol, misturadas com a torcida, num processo percorrido poreste esporte desde o incio do sculo XX.

    Isso operou de forma justaposta, compartilhada ou emtenso com as experincias e saberes que conhecemos por meioda j clssica produo historiogrfica elaborada sobre a vida dacultura letrada, a partir da escola, das associaes de bairro edas bibliotecas populares. O bairro tudo isso junto, operandosimultaneamente, s vezes em conflito e outras vezes emconsonncia. A identidade gerada pelo futebol e quefundamentou os bairros foi articulada sobre a base da distncia,da criao e da inveno das diferenas com o outro,especialmente com o vizinho. Nesse sentido, as rivalidadesocuparam um lugar central nesse processo. Viver o futebolsignificou a rivalidade e, com ela, um formato que contagiou oarmado das identidades dos bairros. Nessa torcida, certaviolncia ou agressividade real ou potencial esteve presentedesde o incio. Se observarmos a histria da competio nos anos1920, encontramos atos violentos. Eram frequentes as pedradasem rbitros, ameaas a jogadores prprios e alheios, cantos contraa outra torcida, invases de campo, etc. A quantidade desuspenses de jogos, originadas por esses acontecimentos,chamariam a ateno do aficionado contemporneo.

    Nesse novo espao pblico, nesses novos mbitos desociabilidade, eixos de produo e reproduo da simbologiabairrista, operaram os novos meios de imprensa. Esses sentidosdados pelos meios e aqueles que existiam previamente dadospelo prprio futebol foram preenchendo os contedos do ritual,cuja potncia se explica pela particular conjuno entre forma econtedo.

    14 O bairro uma paisagem, e toda paisagem constituda pelo olhar dehomens adultos, aqui as primeiras geraes de filhos de imigrantes. Oolhar que constri a paisagem produto da experincia, distanciada quese volta para si assim o diz Beatriz Sarlo seguindo Raymond Williams(SARLO, B. Una modernidad perifrica: Buenos Aires 1920 y 1930. BuenosAires: Nueva Visin, 1988).

  • Os bairros e o futebol...

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    As duas mdias mais importantes pelo seu alcance foramo jornal Crtica e a revista El Grfico.15 A Crtica, diferente de ElGrfico, foi permevel s rivalidades locais expressadas no futebol.Na verdade, isso foi parte de uma poltica editorial por meio daqual se pretendeu transformar a publicao em uma refernciadas grandes maiorias. A Crtica, ao mostrar a existncia dasorganizadas, das rivalidades, tentava tocar uma zona sensvelpara seus leitores, ecoar essa sensibilidade..., mas ao (tentar) faz-lo, foi (necessariamente) mudando-a, transformando-a, j queela continha elementos inaceitveis. Ao se referir a ela, foimodificando-a, numa tentativa de neutralidade, foi refletindoelementos exticos, essencializando e ao mesmo tempo criticandoas caractersticas imorais.

    Os meios de comunicao massivos foram, desde asegunda metade dos anos 1920, atores principais na recriao dofenmeno. Deram visibilidade, mas tambm classificaram,identificaram, nomearam, construindo, potenciando ouobturando. notvel como, se observarmos as pginas do jornalCrtica, em poucos anos as referncias aos clubes mudaramcompletamente. At o incio da dcada de 1930, apareciamelementos que no existiam cinco anos antes. Apareciam os nomesque designavam os clubes arquetipicamente, de forma apelativa.

    Por exemplo: Gimnasia y Esgrima de La Plata era chamadode os means sana, ou triperos* ; Racing, a academia;Independiente, os diabos vermelhos, os vermelhos de Avellaneda;Argentino Juniors, os da Avenida San Martn; Chacarita, osfunerrios; Velez Sarsfield, o forte, os da Villa Luro; River Plate,os milionrios; Atlanta, os bomios, os de Villa Crespo; Huracn,os do Parque dos Patrcios, o globinho; Platense, as lulas, os deSaavedra; San Lorenzo, o esquadro de Boedo, o ciclone, ossantos; Estudiantes de La Plata, pica-ratos (pincharratas);Quilmes, cervejeiros; Boca, os xeneises; etc. Todas essas maneirasde chamar os clubes e suas torcidas eram amplamente

    15 Silvia Saitta estudou o jornal Crtica; e Eduardo Archetti, a revista El Grfico.Cf. SAITTA, op. cit.; ARCHETTI, E. Estilos y virtudes masculinas en ElGrfico: La creacin del imaginario del ftbol argentino. DesarrolloEconmico, Buenos Aires, v. 35, n 139, 1995.

    * NT: Tripero um termo utilizado na comunidade autnoma espanhola deArago para se referir a um indivduo que tem grande prazer em comer.

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    empregadas na mdia, especialmente na Crtica, no fim de 1932.Seis anos antes s apareciam muito esporadicamente.

    O jornal Crtica estava muito atento em recriar os espaosde contato direto com o pblico e tornar visvel os mbitos desociabilidade, apelar a eles, ser cmplice do leitor popular.16

    Montou e potencializou o desenvolvimento do espetculoesportivo, mas de uma maneira muito particular e diferente deEl Grfico, revista massiva com objetivos pedaggicos, porm maisapegada construo de imaginrios nacionais que locais.17.

    No jornal Crtica, aparece o portador mais claro daidentidade de bairro, a chamada garotada. Crtica mostra fotosde dezenas de garotos que passavam suas tardes nos bares dosbairros, e as epgrafes dessas fotos explicam que esses alegresjovens formavam as garotadas do bairro de Saavedra e do clubePlatense, por exemplo. Mas o faz normatizando, direcionando.Bandeiras, exotismo, distncia so as maneiras empregadas pelaCrtica para ocultar o que estava por trs, tentando neutralizar aviolncia existente naquelas fotos. Nas mesmas pginas apareciaa crtica a esses mesmos garotes que eram violentos nosestdios... mas sem mencion-los diretamente. Eram as chamadas,pela Crtica, de torcidas organizadas (barra bravas). Os editoresde El Grfico pareciam temer que as barriadas se tornassem violentase tratavam de no mostrar os gestos agressivos. Por isso dirigiamcom mais entusiasmo seus argumentos e suas energias para asconstrues da identidade nacional futebolstica.

    16 SAITTA, op. cit.17 Na imprensa popular aparece uma srie de narraes que remetem ao

    passado (recente ou distante) das instituies e dos atores. Repetem-se asnotas em fins dos anos 1920 e 1930 sobre os ex-jogadores, notas que apelam nostalgia. Muitos artigos fazem eco das festas de aniversrio dos clubes,entrevistas com os fundadores dos clubes, etc. No final da dcada de 1920,no rdio aparecem programas como o Grande bordo do campeonato, umacontrapartida pardica do que fazia Crtica com os clubes de futebol e suasdesignaes arquetpicas. O programa apontava na mesma direo,cristalizando figuras e cones aderidos aos clubes, com seus rivaistradicionais. Em 1928, realizou-se a primeira transmisso de um jogo defutebol. No ano seguinte, o pas teria em funcionamento mais de 500 milaparelhos, e em 1930 j existiam dez emissoras. Os anos 1930 viram nasceros programas esportivos dedicados exclusivamente a esse campo. Cf.ULANOVSKY, C. Das de radio. Historia de la radio argentina. BuenosAires: Espasa Calpe, 1995.

  • Os bairros e o futebol...

    199Cad. AEL, v.16, n.28, 2010

    A mdia usa elementos originrios da vida cotidiana e dacultura dos grupos majoritrios. Devem faz-lo se desejam ganharconsumidores. Mas ao faz-lo hipertrofiam certos aspectos eenclausuram outros. De sua parte, os leitores se apropriam daleitura, filtrando-a com suas prprias vivncias e crenas. Heternos jogos de produo, cpias, apropriaes, emprstimos,dominaes.

    O futebol, como todos os esportes modernos, veio daGr Bretanha e foi adotado, gerando novas prticas, associando-se a outros valores diferentes daqueles originrios. Nisso se podever um processo de emprstimo, de circulao e ao mesmo tempode produo de novos elementos. Por exemplo, esses elementosnovos estiveram, diferentemente do fair play, associados expresso da paixo e desinibio emocional. Assim, o futebolfoi uma prtica que misturou a afetividade e a razo.18 Essa matrizsobreviveu ao futebol durante sua insero na produo dasidentificaes dos bairros e, seguramente, com algumas mudanasainda existe. O futebol foi uma arma de gerao de visibilidade,de expresso oral e corporal.19 Foi cenrio e meio de expressoem um mbito de liberdade limitada pelas regras. Nesse sentido,o torcedor acredita ser dono de um papel que disputa o centrodo cenrio com os atores principais.

    Os torcedores usaram e transformaram seu lugar noespetculo. Desde um papel secundrio, ainda que necessrio,manifestaram desde o incio do sculo iniciativas e atitudes queos mostraram interessados em ser eles mesmos o eixo. Essessujeitos lutaram por fazer com aquilo que possuam muito maisdo supostamente deveriam. Fizeram o possvel, forando a faixade possibilidades, com o que possuam.20 Com o futebol buscaramvisibilidade, ascenso, presena, aprendizagem, preencher espaossociais.

    A lgica da construo de identidades no futebol impossvel de ser abordada sem dialogar com o seu contexto.Aqui, o marco foi a luta por visibilidade e a ascenso social. O

    18 FORD, A. Navegaciones. Buenos Aires: Amorortu, 1994.19 DE CERTEAU, M. Pratiques quotidiennes. In: ________. Les cultures

    populaires. Paris: Union gnrale ddition, 1979.20 SARLO, op. cit. - seguindo Michel De Certeau.

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    cenrio foi dado pela competio esportiva entre iguais e nocom o poder. O poder aparece como algo dado pelas leis, rituaise papel dos participantes no espetculo e, como veremos, peloque dado, pelos valores.

    O que fazem com o que dado? Como irromper no que dado? Participando, enfrentando ao igual, ao outro, ao inimigo,na luta por se destacar e passar a primeiro plano...; na luta paraimpor uma noo de justia segundo a viso do grupo, dointeresse prprio. Fica o espao da luta, da luta por justia(esportiva), por espaos sociais e culturais para o qual o contextoritual do futebol ofereceu um cenrio ideal, no qual as expressescorporais, gestuais e passionais proibidas na vida diria estavammais ou menos legitimadas.21 A profundidade dessas emoesestava marcada pela sensao de que com o futebol se jogava aessncia profunda de cada um e do grupo, ou a prpria existnciado emblema que se reconhecia como prprio.22

    Focalizaremos brevemente nos valores que apareceramno ritual, no discurso da mdia e que por meio de diferentesfontes podemos supor existentes na configurao das identidadesde bairro. Ou seja, aqueles valores masculinos tradicionais, comoa virilidade, a coragem, a honra, colocados em jogo no mundodo futebol praticando ou exercendo o papel de torcedor.

    O que estava em jogo? A honra. Os torcedores jogam oque eles aprenderam a jogar quando estavam jogando futebol, eassim fizeram os jogadores em torneios oficiais. No por acasoque as ligas socialistas e comunistas criadas na dcada de 1920tiveram como um dos seus objetivos explcitos ensinar a jogar e aser pblico, objetivos moralizantes que lembram os discursos dosingleses, na mudana de sculo, que assumiam o poder daautoridade, cujos objetivos eram a difuso da prtica esportivasegundo os princpios do fair play. Essa proposta de recriar odever de ser a partir da esquerda estava destinada ao fracasso etalvez possa ser vista como um sinal: a distncia entre os desejosde como devem ser os setores populares, os estilos de vida, osenso comum, e a luta por sua modificao.

    21 BROMBERGER, op. cit.22 Sobre a noo de Jogo Profundo, cf. GEERTZ, C. La interpretacin de las

    culturas. Barcelona: Gedisa, 1990.

  • Os bairros e o futebol...

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    A identidade de bairro construda sobre esse formatodado pelo futebol implica necessariamente a existncia do outro,do rival. Nessa construo, os meios de comunicao de massaoperam ativamente. Assim, foi se construindo um ns associadoa um time clube/territrio. Os dirigentes torcedores tiverama atitude visceral que costumamos reconhecer no fantico atual.O que podemos dizer sobre os dirigentes que presenteiam complacas comemorativas a outros clubes e os que se ofendem com amesma atitude?

    Em janeiro de 1931, o Independiente fez bodas de prata.O Clube Estudiantes de La Plata o homenageou colocando umaplaca no estdio do Independiente, com o qual possuem umagrande amizade. .23 O Racing Club, eterno rival doIndependiente, desgostoso pela atitude, decidiu suspender suasrelaes com o Estudiantes. O cronista do El Diario conclui: Osistema de suspender relaes est se generalizando entre nossosclubes. O mais curioso nisto que a ruptura de relaes precisamente o menos esportivo possvel. Talvez seja por issoque recorram a ela!.24

    O desenvolvimento do espetculo incidiu natransformao dos times em representantes e bandeirasidentitrias das comunidades de bairro. Embora isso no tenhasido plenamente corroborado, os clubes operaram mais comocatalisadores simblicos nicos para cada bairro, do que comoveculo de participao coletiva. Nesse sentido, notvel aquantidade de associaes que existiam em cada bairro.25 Todoesse processo se baseia no fato esportivo, competitivo, queresultou ser um veculo enormemente eficaz. Da que osresultados, as histrias e as lembranas vinculados aodesempenho esportivo ocupem um lugar de singular importnciana gerao e na recriao dessas identidades.

    Em meio a essa enorme mobilidade social, o futebol estestruturado sobre alguns valores prprios dessa mesmasociedade moderna em construo: o mrito, a condio

    23 El Diario, 2 jan. 1930, p. 13.24 El Diario, 4 jan. 1930, p. 14.25 SIRVENT, M. T. Cultura popular y participacin social. Buenos Aires: Ed. Mio

    y Dvila, 1999.

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    necessria de semelhantes para sua prtica e sua expectativa, etc.Esses valores bsicos para a construo da cidadania tambmaparecem como precondies necessrias para o aparecimento eo desenvolvimento do ritual do futebol.

    O futebol foi um meio extremamente apto para aconstruo e a reproduo do universo do bairro, nessa sociedadeaberta, com enormes necessidades de armar universos prprios,neste caso estruturado sobre o cenrio territorialmorfologicamente indiferenciado. A diferena foi construda nomundo simblico e ali ocupou um lugar central.

    CONSIDERAES FINAIS

    Em meio ao processo de renovao urbana, no incio dosculo XX, o futebol viveu como pde na cidade, sendo umaprtica que ligou o descampado, a fronteira urbana, com as reassuperpovoadas, cheias de sons ininteligveis de idiomas distantesque comeavam a soar cada vez mais como msicas prprias.Assim, o futebol, como prtica e moda entre jovens dos setorespopulares e como espetculo incipiente, pr-existiu ao prprioaparecimento do bairro. Difundiu-se entre as vizinhanas comos jovens que aprenderam rapidamente o que significava arivalidade, a inimizade e a torcida. Nesse movimento prvio, aidentidade local, pequena, de vizinhana, estruturou a maioriadas iniciativas dos fundadores dos clubes. Eles diziam defendera honra do lugar, ser seus verdadeiros representantes.

    Esse formato emocional, valorativo, de atitude serepetiria mais tarde, com a produo das identificaesterritoriais dos bairros. Mas isso aconteceria no contexto de outracidade que emergiria vertiginosamente. Nesses vinte anos, de1910 a 1930, ocorreram mudanas violentas. Mudanaspresenciadas e em muitos casos executadas pelos habitantes dacidade. As transformaes se construram sobre a diagramaoestatal da quadrcula indiferenciada.

    O futebol, praticado ou no mbito da torcida, ofereceuespaos de participao no novo espao pblico. Obviamente,no foi o nico, mas foi um espao privilegiado do ponto devista da gerao de identidades territoriais. Tambm ajudou agerar identidades nacionais.

    Por outro lado, se olharmos o futebol com todos seusingredientes, perceberemos que ele conectou o cenrio

  • Os bairros e o futebol...

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    extraordinrio do ritual com a vida cotidiana e os espaos dasociabilidade masculina. Ocorreu um movimento simultneo,nico, no qual se potencializaram entre si o espetculo, o clube ea imprensa, que se encarregou de codificar, classificar, regozijandoem torn-lo cada vez mais visvel.

    Se focarmos nos atores sociais que nos interessam, osatores populares portenhos, a esmagadora maioria dostorcedores, veremos que seu papel como tal indicou a suanecessidade e a possibilidade nesse momento histrico de setornarem visveis, de formar parte, de pertencer, de ascendersocialmente. No contexto geral de um marco que a prpria eliteideou: um processo de integrao tendente homogeneizaosocial e cultural. Nessas novas construes, o futebol operou comomatriz sobre a qual se armaram novas solidariedades e novasoposies.

  • NEIGHBORHOODS AND SOCCER IN THE CITY OFBUENOS AIRES DURING THE 1930s

    ABSTRACT

    During the formation of the modern Buenos Aires, the scenarioof the city enormously changed in few decades. From a city ofsurroundings, it emerged new neighborhoods and districts. Thisprocess that took place during the 1910s and 20s has beenconsidered crucial in the building up of the current city. The 1920sand 30s are the moments of the emerging of a neighborhoodimaginary, as well as the neighborhoods themselves. This articleintends to analyze the role of soccer in this process of creationand development of neighborhoods identities.

    KEYWORDSSoccer; Buenos Aires; Neighborhoods.

  • [Almanach Esportivo para o ano de 1931, anno IV,organizado por Thomaz Mazzoni. Capa]. (ColeoCPDS, R/1004, Arquivo Edgard Leuenroth/UNICAMP,Campinas, SP.)