gargalo da vida
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Ebook do poeta Chico bergTRANSCRIPT
CHICO BERG
GARGALO DA VIDA
1
Berço do sol
Eu só, tu girassol Gira gerando no sol
Rege regando arrebol Tu só, eu sol, na calçada Cimentando madrugada
Madrugando noitada De mão em mão Girando girassol
Singrando contramão Gingando com meu botão, solidão
E só lhe dando escuridão Madrugando noitada
Orvalhando com os olhos do farol Neblina neva, neblina
E o sol se leva Às ruas da esquina
E gera e gira eleva e se vira Eu no lençol, tu girassol...
Abortiva
Grave A urgência dos gestos.
E se estilhaçam no silêncio Se não criarem corpos agora.
Grave Se apenas gestos de palavras
Conduzindo do aborto a aurora.
Grave Como a canção
Que não engravida De hora em hora.
E, sem criar lampejo Se faz sobejo
Sem tempo para amar afora.
E mais grave ainda, sem opção É a morte do sonho por inanição...
2
Controvérsias
O arvoredo geme no sol Que não quer vir
E o pescador se perde do leme A lhe urgir.
O amanhã sempre a vaguear E a nossa vida nunca
Cessa de buscar. E o mundo rola
Rola o tempo, em contratempo Tão desatento como pedra, como rio
Como no desafio Nunca pára de rolar.
E o nosso amor não vai Andar pra trás
A sua paz tem gosto de calafrio Movido a desvario
No cio que nos compraz.
Gargalo da vida
Nada passa no gargalo Da vida
E se passa, passa despercebida À sombra caída
Onde duvida, olvida Rompida a malsinar.
E, na vidraça perpassa retraída E adentre o grito
Pervicaz finito E no centro, adentro rito Na garganta se levanta
Para o infinito Dando passo irrestrito, compasso
Às ideias não pairam no ar E pervagam no olhar aflito. Eu fito e reflito sem cessar.
3
Vida no gargalho
Embaralho não raro Me encalho quando paro
Sendo assim, disparo Na corrida de morte e vida
Num tempo caro Pelo trabalho, pela sorte
Que entorte ou desentorte o atalho Cabeça ou cabeçalho
Num fio faro me valho. Escapo no aro
Como atalho menos falho E varo duma vida de gargalho
Menos concebida, de galho em galho Assim sendo, paro
E disparo renhida sorte E grito pela vida
E não pela morte...
Controvérsia
Pela inércia do contratempo Solução não há
Na controvérsia do tempo No escasso ou no excesso
Há falésia manipulando, pulando Ando, andando, dando amnésia
No ardil tão sutil E se fez sombrio
Seu papel Feito o Rei da Pérsia
Pelo fel, pelo céu Tão fiel e a léu
E tão gentil. Há inércia no tempo Me dizendo amem
Além me colhendo também Na peripécia.
Aquém na controvérsia Do sem...
4
Turbilhão
Mão beijada Beijada mão
Ilusão velada Velada ilusão
Mangue no sonho se entrelaça Desenhando diviso no viso comparsa
Isento compromisso sem que faça Rasgando paraíso no atalho que passa
Mendigando sorriso volúpia de riso e taça Mão beijada
Beijada mão Guardada e velada na aflição
Faz zumbir sibilo sem calmaria Sem vacilo no sigilo guia A rebeldia em turbilhão
Mão beijada Beijada mão
Sol
O dia alado se abre Como ventre
E adentre expõe o feto Entre guardado
No desafeto do sabre E neblina no mundo
O sonho velado... E se recolhe ba espera afã
Alça vôo na esperança Do amanhã.
Canto delinqüente Insistente talismã
Varando noite comprometida. Canto abusivo
Por ser pela vida Subversivo.
E olvida Por ser canto e não desencanto
Remida. Se hoje passa a ser jamais
Minha vida é um cais...
5
Solto
Solto Nas palavras envolto Ninguém pode viver
Sob a perspectiva do outro. Absinto
Sinto no instinto noutro Tudo que por nada insinua.
Solto Envolto
São palavras sem rua. Empoeirando vozes Desnudando mortos Sob punhais ferozes
Rasgando alinho e tortos Abrindo cova
Sendo vida e prova Na quebra da memória
Solto Nas palavras envolto
Rompendo palmatória...
Varal do tempo
A ferrugem indolor Não cobre a dor do castigo
A inércia do tempo No incolor abrigo Nos leva consigo
Sonho aflito Batendo fundo
O grito do submundo. E a dor não tem cor Se sonhar sem ação
Só vontade no varal do tempo Descora-me fatal
O coração...
6
Noite ou dia subjaz
Nesse tempo tão mordaz Essa dor aguça com a solidão
Esse sonho de paz esmiuça no chão Vislumbre do destino Acerba-me o coração
Volteia o desatino Achegando a contramão
Subjaz a noite, subjaz o dia Fazendo alegria
Sem emoção. O açoite do vento afoite
Tem algo mais que a razão...
Doce amar
Abaixo do umbigo Sonho tem abrigo
E risonho planto trigo Com água do luar.
À meia noite há escuro E nós por trás do muro
No afoite do ventar. Minha nova tem tesouro
Ainda dou no couro Na vontade do sonhar.
Abaixo do umbigo Não castigo
Há fonte e rio Murmurando largo O doce do amargo
Do mais doce amar...
7
Para o rei governar...
Quanto vale a tua cabeça? Quanto vale a tua cabeça?
Para o rei governar... E grito pros teus olhos
Não delegues nem esqueça Só tu podes mudar
Não se fie nos ferrolhos Não se deixe te levar
Muito menos permaneça Teu sonho pode afundar.
Não desista nem esmoreça Onde queres chegar.
Faça fé e aconteça Insistas logo avivar.
Vá em frente apareça Água-viva vai rolar.
Viva, vença e estabeleça Ver antes de olhar.
E o que é uma certeza? A se perder na estranheza Da mentira a trafegar...
E antes que pereça Interferir toda certeza
Esse amor sua natureza Tende logo revelar...
E quanto vale tua cabeça? Quanto vale tua cabeça?
Para o rei governar...
Crua intersecção
Imerso entre verso e universo A perquirir inverso
Perdurando o persuadir A vida paginada vive a insistir Na rua, na calçada onde cair.
Quem passa perde a graça E se molha... água de chuva
Na curva de pirraça quando olha. Um passado a limpo, passado assim
A premissa lembra o trampolim. Assim se vai reverso
Retro-visado sem aviso Num diviso amar disperso
Acolho teu olho E ainda pede por mim...
8
Tempo fugidio
O avivar repete o drama Do olhar de quem só ama
Sem ao menos pisar no chão. Profundo em tanto abuso Faz-se uso e nem reclama
Com razão. Vivo que nem parafuso Infuso nesse turbilhão
Rodo, giro meio confuso Reviro na cama da solidão.
Quando o luar não é brinquedo Faz-se medo a emoção
E o sonho a cair dos dedos Da Mao da imensidão.
Todo dia, toda hora Aflora tempo da paixão
Para amar não há demora Até na contravenção
Todo tempo vão-se embora Senão antes vai agora
Nesse coração.
Se pensar eu caio
Se pensar eu caio Se pensar eu caio...
O pensamento é que nem raio!...
E o pensamento Tem voz de vento no jogo...
Faz poeira levantar Fumaça pegar... fogo!
Se pensar eu caio Se pensar eu caio...
O pensamento é que nem raio!...
Balaio de vento Invento e saio
Palavra míngua Na língua atento, desmaio!
Se pensar eu caio Se pensar eu caio...
O pensamento é que nem raio!...
9
Devaneios
Queria ser o mar batendo forte Correndo sobre pedra de sul a norte
Furando sem regra com a onda que medra E mal responda, aporte
Nem mais nem menos o amar com sorte Onde o perde e ganha, pouca vez apanha
Nesse nível e porte... Queria ser o vento, em tanto tormento
E romperia com o medo no torpedo atento No enredo de vida e morte
E viveria imensamente com todo rebento Se fazendo evento no rompimento
E assim, sem serenos, nem mais nem menos Queria o mar sem amar amenos...
Sobreaviso
Vivo, vivo e não me arquivo Aponte no horizonte a fonte
E o crivo. Vivo, vivo e não me arquivo
Abismo e ponte, ponte e abismo O mesmo cinismo em monte Faz-me passo, me faz meio
Aviso no esperneio Num diviso sem receio sobreaviso
Passo meio trôpego e indeciso Quando preciso
Vivo, vivo e não menos ativo Quando menos morro, sobrevivo.
10
Lâmina
Lâmina de corte, quando profana O profundo amor oriundo
Não se engana... Coração insiste, teima
No entorte A saudade sem ser fogo queima
A toda sorte. Subvida desumana
Enraíza insana, punhaliza. Navalha na sorte
A carne arde, escraviza. Lâmina de corte Boca da morte
Na fome aniquila. Esse olhar grita, gesticula, debita
E todo sonhar perfila. Lâmina de corte
Viva vida, viva a morte Nesse amar, entre dedos e linha
Nem o enredo descaminha Esse avoar...
Pássaro feio
Meu sonhar Vive um pássaro feio
Batendo asas. Uma prova de maor
Acima de todos os beijos E os ensejos das ruas
Saem das casas. Só o vento da noite Sob açoite arrasa.
Onde a solidão Feito esporão
Talha a imensidão Dos desejos em brasas.
À revelia da alegria Ou na companhia
Da lástima Medonho sonho
Sob lágrima e arquejo Vaza...
11
Imensidão estelar
Estrelas têm transatlântico Sua nudez me abraça O olhar romântico.
Estupidez enluarada Sombreia-me o lado
Obscuro. Ronda a noite
O universo do verso Sem futuro.
Aprendemos desdenhar poesia E atirá-la na esperança
Da cara no muro. A fantasia vive no lixo
A lata de luxo Morre no bucho
De todo capricho. A vida, à revelia olvida
Morrer em vão. A imensidão rouba-me o desejo
No pensar arquejo Estrela decaída ainda
Não caiu no chão...
Bicho semeador
Afloro flores Derramando desamores
Nas mãos insípidas Ergo vidas líquidas
Desandando diapasão. O coração não se adorna
E só a bigorna tune Cavando a terra, ume.
Faz do tempo testemunhas No plantio do cio
Afio unhas. O vento pedra
Ainda montanha Ainda me arranha
Com todas entranhas. Os dissabores correm
Nos horrores Afloro flores...
12
Retrovisor
No silêncio flor Dos lábios meus
Vi retrovisor Sonho no adeus.
E venta noturno sibilo No soturno sigilo
Deu a louca E as horas rosnam
No céu da boca. Toda primavera
Reina no cio Quando pondera Entre pernas rio
Silêncio navegável Sem pouso
Faz-se prumo e desaprumo Do grito e gozo...
Chuva e sol
Com a língua de fogo Lá vem o sol
Desmanchando o arebol Com alegria
Rasgando as nuvens Tocando fogo no dia...
E lá vem a chuva também Puxando o sol
Com seu enxerimento Para se amoitar nas nuvens
Se valendo do frio E do vento...
13
Aonde for Veja aonde vai Seja aonde for
A lágrima se esvai Lava, leva esse amor
Lágrima não sonha Lástima voa
Medonho na fronha Me deixa à toa...
E tão fria E tão crua
Dissipa pela rua Agonia, indiferente continua.
Sem remo e à deriva Viva via essa água viva.
Se não remo É nessa correnteza Onde a incerteza
Nos leva à estranheza tão passiva
O coração, uma canoa A emoção essa lagoa Rumo ou desaprumo
Tão perdido na garoa.
Vento leva, vento voa Quando neva deixa à toa
Avôo
O tempo voa O destino cria asa
Despedaçou-se à toa Porta nos ferrolhos
Desatina e côa Nem água dos olhos Faz riacho e escoa...
Desfolho tempo Na hora acolho
Lago ou lagoa, vaza. Aflora, desregra abrolho
Avoa, avoa, arrasa. No rosto escorre sem escolho
Cabeça pensa O corpo abrasa...
14
Flor de passo
Tenho no espinhaço pó Pé sem compasso, cotó
Na rixa do espaço E nunca está só.
Sobrevive e abraço Na fé do bozó.
E por cima de poeira e cansaço No aço do estrilo
A craniar Tanto nó.
Flor de passo Ativa ou passiva no gogó
Agua-viva reviva Cativa sem dó.
E sem direito zanza no peito Amargando que nem jiló
E ranzinza na cinza Espinhando-me o bozó...
Velação
Vem à janela Revela o segredo
Sem medo de não ser mais bela. E o que nela se guarda
Aguarda donzela Que rala e rela
Na paralela. E não fala nem fela
Tão rala e zela E assim se desvela.
Na caravela Passa e devassa
No dorso sem cela Do vento na vela
Vendo, velando, sequela...
15
Profusão
Destino guardado Olhar ressecado Caindo na mão
Tem passado vexame No derrame da emoção.
O poema me quis assim Falando calado
Nas cordas do bandolim Trancou-me entre paredes
Rasgou-me as redes Matou a sede do motim.
E nem foi só coração E pisando no chão Se fez novamente
Ilusão.
A saudade fura E ninguém mais atura
Agrura do espinho No porão.
Feito fim que começa A vida se apressa E tropeça em mim
E passa comparsa na raça Sem a farsa de profusão.
Solidão
O mar de amar Na sua imensidão
Faz-se em mim solidão Marca-me o corpo
E não se apaga na areia. E corre revolto envolto na veia.
E se esperneia oculto Incendeia.
Eu me procuro Quando te procuro No fundo do poço
No claro ou no escuro Ressalto alvoroço Salto me aventuro
Nem com a cara no muro Paro esse utópico esforço.
E o amar de ser mar Em açoite me inunda
A noite faz revirar Emerge e me afunda Dá-me voz ao sonhar.
16
Às avessas
Sobre verso Reverso em canto Espanto de verso Um tanto imerso A riso e pranto.
Acalento disperso Peço ao santo
Abduzir abscesso No acalanto do universo
Espesso canto.
E me confesso E me averso
Como nem tanto A preço inverso
Assim me regresso Mas a mim, adverso
E me atravesso Feito menino travesso Sem fim sem começo No rio fluindo calma
Escapa-me a alma Do berço.
Saga da revolta
Gastei a mocidade Andei por toda a verdade
E não me encontrei. Vi no desencontro Apelo do confronto Débil de tão pronto
E me recusei. Vida longa, longa vida
Desvida Descabida
E tanta ida sem volta. E o que mostra sem resposta
Fratura exposta Dor nas costas
E revolta. A esperança vive à espera
O silêncio pondera Feito fiança.
O tempo prende a esfera Feito fera na balança E você me pede volta
Ralho, ralho no trabalho Quando embaralho
Valho-me sem escolta A sorte não se solta...
17
Fantasia ao avesso
Sem esforço Vive fim de poço
E asfixia. E o teu corpo moço Poesia, só poesia...
O silêncio cai na rede Como na parede o reboco E no sonho de um louco
Reverberar a sede Se faz pouco.
Só o trivial vira fatal Nesse grito rouco
O que virá será cabal assim E o mundo mudo e moco
Vivendo esse motim Entre esforço e agonia
Tropeça a fantasia E, ai de mim... Atropelando
O alvoroço no fim.
As mudanças de Zé Lingueta
Nos braços da carrapeta Rodeia silhueta
Na viagem do cometa Do trovão fui a espoleta E as pernas de Marieta Me levou pras suas tetas Na punheta, na punheta Me tornei esse capeta...
Ao descobrir boca e dedo Mulher nenhuma me mete medo
Amor não se explica Zé Lingueta Zé Lingueta
A língua noutra função No ronco da corneta E mudando de feição
No tom dessa trombeta A idade muda o homem
Faz dele estatueta...
18
Cabeças
Cabeças de vento Também sou vento
Fazendo cabeça e parada Antes que aconteça De deixar desatento
Cabeça inchada. Dura vida, vida dura Agrura nem esqueça
Cabeça dura bate no tempo Fazendo cabeça
No muro da calçada. Mundo leve leva a vida
Minguada ou sortida a contento E cabeça de vento
Não tem conta nem desaponta Cabeça tonta
É mãe de vento.
Realidade virtual
Hora de voar Entrei na asa do sol
E me fiz dia. A realidade se prontificou
Dá cabo ao sonhar. Amanheci
Atravessando oceanos De anos de fantasia
Os sonhos se apertaram Os botões do real.
Atravessei toda tecnologia de ponta Fiz de conta
Fiz-me virtual Se não tinha asa, voei.
Se não tinha inferno, enfezei Se não tinha fé, infernizei...
Hoje piso no chão. A realidade criou outra ilusão.
E “a vida continua” ainda é o chavão...
19
Balaio de Vento
No pulsar do firmamento O pensamento tem voz e vento
E vive a vagar Não lento.
Desnudado da véstia Do medo
O pensamento segue o tua réstia Sem segredo
Como sombra do alento Levando guardado atento Todo sonhar sem modéstia
Feito moléstia Sem isento.
No pulsar do firmamento Choro e riso
Fazem paraíso No balaio do vento.
Mundo Medonho
Um momento poético Embora frágil
Um olhar eclético Um pedaço que despdaço
Embora quero, e quero ágil... E o tempo espreita
Quando o olhar se deita Sobre o sonho.
O mundo medonho Modela a vida que nem olvida
E faz da ideia mortadela E nos duvida.
A poesia te salva Tão limpa tão alva de tão suja
E nem fuja, finge-se ético Conforme o diurético
Que nos oferece. Cada um se impõe
Ao que merece.
20
Pequeno Musso
E o menino trazia uma bomba entre o cós E o medo tremulava entre nós...
Musso era seu nome E se dizia mano
Não gostava de Papai Noel Muito menos de nômade ou cigano.
E o deserto era su próprio céu Seu mito Mohammad Ali e Gandhi. Em Bin Laden era grande a sua fé
Os olhos grudados nos Andes Tinha sonho missionário e andava a pé.
Um dia sua vontade se expande Conhece a Meca de Maomé...
Um dia nos veio visitar E sob o olhar do mangue
A vida andava a ré. De repente a vontade bumerangue De encontro ao mundo indiferente
Instigante era nadar contra a maré...
E o menino trazia uma bomba entre o cós E o medo tremulava entre nós...
Tsunami
Foi no batuque e no repique Quase houve esse chilique]
Hora de pique e de corre-corre E ninguém vive e ninguém morre.
Foi nesse fique e não fique Foste embora e eu perdi a hora E nem precisa que me explique
Quero cair fora. E tu faceira e tão matreira
E fui na besteira e me envolvi Não foi a primeira nem a derradeira
Do tsunami que sobrevivi... Está na hora minha vez agora
Quero cair fora Quero cair fora.
21
Tempo perfeitamente imperfeito
Nossa vida está o pretérito Nem sei se perfeito ou mais que perfeito
Não sei... nem sei se o futuro está próximo Ou o mais próximo sou eu
Nem sei se o presente tem jeito Ou se rejeito o jeito que deu
Nossa vida mal vivida, mal ouvida Olvida do peito e nem sequer esquecida
Em nenhum tempo refeito Submete seu direito ao que foi feito
Bem feito ou mal feito Nossa vida, traída.
Rompida, esquecida, adverte Além da rebeldia
Se converte a alegria Ou inverte a teimosia No deleite que asfixia
Nos genes se acha a nossa heresia E se converte ao eito...
Santuário dos Infieis
Aos pés templários O tempo as rés
Rasgou inventários Nos carreteis.
E quem se guardou Sob viés rebentos vários
Dos remos perdidos das marés E nos horários sem erário
Das areias igarapés. Assim tão claro E de tão raro
Dos estuários alumiou Santuário dos infieis.
22
Abalo
Corre a vida pelo ralo Teimosa no rego
Na margem do insossego Das mãos de calos Semeando a sorte
Como se a morte fosse Rainha e vassalo.
E o demônio da fome Escravizando nos consome
Faz da ética badalo. E ao credo dá nome
Inventa e some Na mentira que falo
Subvida disparo Revida sem faro Ser ou se rever
Se sonhar abalo... Escorre a vida
Dissolvida na morte No azar da sorte
Onde vive do entalo.
Invenção
Mente sua, recua e trauma Vida crua pela rua sem alma.
Apela, atropela sem calma Há uma imensidão
Uma solidão Numa multidão que grita Se só acredita na razão
Não me interdita o coração. Há uma canção na palma da minha mão
Batendo-se em vão, evita Há invenção maior que a ilusão? Rasgar as horas não traz solução
Mesmo que o tempo passe Torne a vida impasse
Nem me abrace Nesse disfarce em vão.
Há invenção maior que a ilusão? Rasgar a fé, a devoção sem o coração
O peito amanhece e anoitece E endoidece no turbilhão.
23
Espírito mau
Pela rebeldia Insisto na poesia. Penso, subexisto.
No afoite da calmaria E me prezo do açoite do dia-a-dia.
E o olho tem mágoa fria Recolho da poça d’água
No ferrolho do banho-maria. Ferro, ferreiro, espeto de pau Ter olho não via, de tão mau
O mal dessa agonia.
Cabocla louca
Cabocla, tua boca faísca Teu amor uma isca
Quando o desejo arrisca Nesse lábio que trisca
Nessa vida louca Beija, belisca, translouca
E toda emoção é trisca, é pouca Arrisca, cabocla, arrisca
E a mente oca e o coração mudo Agudo se faz absurdo e surdo.
Teu amor é fogo Que nem se vê
E traz dor e desatino Sem doer.
24
Escuridão da luz
Corre da goela a solidão Num arrasto do grito
Na grandeza de ser chão E pisar no próprio infinito
E, erguendo estrela Fogo feito rito
Invade a imensidão De ser pequeno no não
E o sim a ver finito Se afeta quem vê
Sombrio e só Mortificar multidão
Haverá de pensar sem dó Nos que ficam e nos que virão
São caminhos portas, Desvios de arquivo
Vida dos mortos-vivos Dos que não ousam E vivem em vão...
Viagem do povo
Voa passo, passo voa Faz da espera a esperança
Não viajar à toa Vem quimera da criança
Nessa água escoa Presente sem futuro
Vive clima tão obscuro Ausente ponte Presente muro.
Voa passo, passo voa Faz da espera a esperança
Não viajar à toa Tem que romper cerco
Rasgar essa farsa Basta de esquina e beco
E a vida refém de comparsa. Subjugada nessa prática
De promessa que nem vem Pelo desdém sonha, tática Absurdo que os convém.
Voa passo, passo voa Faz da espera a esperança
Não viajar à toa
25
Crepúsculo
Olho sem fundo Bem profundo,intenso Oriundo do submundo
E enxuto no lenço. Se o mundo sem senso
Imundo e tenso Num segundo me afundo E revolvo quando penso.
E escorre dos olhos Onde morre moribundo
Apesar dos ferrolhos Todo olhar vagabundo...
No abrolho da noite No afoite fecundo,
Vive-se quando morre Se socorre mundo a mundo...
E olho do mundo Profundo imenso
E do imundo oriundo Me convenço e venço...
Nos arcos de Íris
Íris Não ligas
Para os dissabores Quando fores Quando ires E, se partires
Não temas os temores Nos desamores Quando vires.
Íris] Não ligas
Saudades são intrigas Grilhões, ferrolhos
Não ligas pros abrolhos Das águas dos meus olhos
Fazendo arco-íris.
26
Febre
Dentro de mim Essa febre
Me fazendo correr Feito lebre
Sem ver assim Nem mansões nem casebre
Dentro de mim Dilúvio inebre
Rasgando sem fim Razões nas emoções Em que tudo quebre.
Dentro de mim E tudo passa
Menos essa graça Nesse tempo lebre Correndo tinebre Marcando praça
Correndo até que celebre Dentro de mim
O início do fim dessa febre.
Almas que voam
A alma reza Sua oração vira ave
E voa em vão. Sua asa pesa e se enfeza
Quando despreza o chao. E sobe e desce
E acontece de se turvar Na fumaça que se preza
Ameaça sonhar. Nada à margem além da agonia
Nessa viagem sem veículo Presa ao cubículo da fantasia.
A ave voa E se entrega
Quando navega na proa E sobre quando desce
Pro porão. Subjaz pintando a paz
Refém da guerra E mais se emperra
A rés do chão E reza à toa
Reveza e escoa A ave voa
E não sai do chão.
27
Transtorno
Torno a ver E de novo a querer
Ainda me ferve O fogo dessa paixão.
E foge a razão Corpo suborno
Feito forno Crema o coração.
Tudo vira transtorno Torno, retorno de ilusão. Água revolta faz viravolta
Tudo em volta Revolve a aflição.
Olho nos olhos Recolho o adorno Vomito o morno
Por chorar em vão Quero esquecer a dor
Que só faz doer E torno a ver
E de novo a querer Me render mão a mão.
Noturna busca
Não muito raro A insônia toma conta
Do coração Passar tempo em claro Faz parte da emoção
Mesmo assim nem joga fora O dia-a-dia.
Há sempre uma razão De um sim de um não
Trazendo alegria. Em vez de dar-se ao desprezo
Nesse peso Sem apreço em vão E esse olhar a gritar
No sonhar perfila O silêncio teima a guardar
O que dentro queima e destila. A noite tem peso
E as oras me carregam No contrapeso Corro, corro
Não corro a esmo Eu busco a mim mesmo...
28
Desmaio atento
E de amores tão cheios Rasguei recheios Num bruto beijo.
E sem receios Sobrevivi sem meios
Luto e arquejos. Caiu o queixo De fé e releixo
De tão obscuro. Pelo muro
Cosendo escuro Desandado nos raios. As estrelas cadentes
E anjos decaídos Têm abismos nascidos
Nos desmaios. E antes que se esquive No corpo livre, torto
Se não pensa Vive morto
A vida um esquife O sonho um aborto.
Às margens de nós
E de só se calam E as lágrimas nos umedecem.
E de só se resvalam E as lástimas nos envaidecem.
Se não somos nós Criamos voz em carne e osso
E de só, nos abrandem Num remanso de nosso poço.
E de só nos infundem E nos confundem Ao nosso alvoroço Se não somos voz Nem somos nós
E o silêncio nos atira Ao calabouço
Na mentira jazemos sem foz Às margens de nós
A lágrima na lástima interfira E sem ira, perecemos sem voz
À mercê de quem nos mira Se ficarmos a sós.
29
Dor que sobressalta
Falta fica ao lado do excesso Nas carências moendo verso
Remoendo as ciências Na ventania que salta.
Nada além de nada Ainda sobra pro que soçobra.
Passo pro abraço E quando excede, cede a engrenagem
Na miragem de espaço De paz consentida.
Resto de resto não faz vida Se não renhida
Atuada e que sobressalta No flagrante de cada semblante
Que falta. E entala o silêncio de todas as falas...
Jogo de espelhos
Jogo de espelhos Com os olhos não vejo
Só com o desejo. E no olhar sem arquejo
Finco pentelho. Feito rocha debocha na cara
Com arma dispara E escuro vira tocha. Por dentro se mostra
Mais do que se exposta No espelho retrovisor
Adentro o passado Guardado desamor
E encara a mal disfarçada arrogância Espera o que nem pondera o alcança
Jogo de espelho a perseguir Imagens sem lembrança.
Uma vontade adulta No olhar criança
A engravidar manhã Das mentes vãs.
Abrindo ferrolhos Na vontade dos relhos
Habita-me os olhos O jogo de espelhos.
30
À beira do caos
Viajar é minha solidão Terra, mar e ar imensa ilusão
Num infinito próximo, do longe finito O silêncio do grito em erosão
Rasgar tristeza, correr estrada Mesmo na incerteza, nem lhe diga nada.
Ser parte dessa imensidão de estrela e sonho Esvoaçando emoção, onde mal me suponho
Pela mesma razão. Alijar o peso da alma
Sob o carisma da calma A pisar no chão
Viajar sem ser a ermo Da fé e remissão
Sem eira nem beira, meio termo Na mão da sofreguidão.
Navegar
Como navegar nas águas de teu mar? Se nem posso te encontrar Se nem posso te sonhar?
Como remar nas águas desse amar? Se tudo faz chorar, sofrer, desacreditar?
Não responda, nem se deixe à deriva Viva, nessa onda, a nos levar
Envolta, sem cessar Labirinto, já pressinto preamar.
Como fugir sem se libertar? Como nadar sem naufragar?
Nesse riso paraíso desse olhar? Como posso se o destino quis
Como posso ser feliz Se tudo faz chorar?
Faça como as pedras lá do cais Revolvem toda onda
E nem sonda o desatino dessa paz...
31
Sina crua
Abundantemente vive Imensamente ativo
Terminantemente crivo... assim Se não sou crucificado
Às margens, em cada lado Há o sonho alado E não se faz fim
Destinado pelo verso Morto-vivo imerso Nasce bom ou ruim
Crua sina crua Inventa outra lua
Medo, degredo pela rua Segredando: a vida continua
Mesmo assim... Corre se insinua
Se desveste nua e crua Como fosse somente tua A visão de sobre mim. Abundantemente vivo
Imensamente ativo E terminantemente crivo... assim.
Danação
Todo ano me derramo No oceano imenso e frio
E se reclamo do engano do ano a fio. Dentro do mar tem rio Ano a ano tão insano
E vive a desvario Todo ano a todo cio
Maré alta tão peralta Sobressalta até calafrio.
E, no arrasto do desbasto Vão astro e alastro no pio
Pelo rastro nefasto Feito pasto vazio.
Todo ano a todo engano E desengano sombrio.
32
Asas
Em qualquer porto, parto Em qualquer mar, morto
Em qualquer quarto, me reparto Ligado ou absorto.
Em qualquer caminho Alinho ou torto
Em qualquer canto Desencanto, deserto. E, por mais distante
Ou longe-perto Em qualquer caminho
Desalinho, vivo ou morto. Em qualquer porto,
Em qualquer deserto, extinto Parto, perto e pinto...
Sonhar tormentos
Nos tormentos desse amar Rebentos vão chegar.
Eventos dos ventos fazem voar Pensamento no ar.
E o luar caiu no mar. E o mar me faz sonar
Sorrir, chorar, se arrebentar. Coração não tem chão
E eu vaguei. Foi difícil e te encontrei Como é injusta a paixão Eu só queria ser amado
E assim amei... Evento dos ventos
Fazem voar Pensamento no ar.
E o luar caiu no mar Teu olhar me faz sonhar Vivendo no verbo amar
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Ficção da realidade
Sem jeito acaba Surtindo efeito e desaba
No perfeito defeito. Um périplo latino
Americano Na água do cano passa
De ano pra ano no rejeito Assumo com todo respeito
O engano. Olha que levo no peito
E na barriga a intriga do cigano. Com muro ou sem muro Pegar um lugar no futuro
Vira obscuro e insano.
Rarefeito
Se geme Anda ferida a alma.
E o novo amor o corpo sara. Não há quem reme
Tua calma. E, se espalhas em grito
No amor, ou quente ou frio O morno vomito.
O beijo é chama ardente E inflama o peito
E se derrama sem jeito Às águas da emoção
Fervem de amor rarefeito