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  • 8/3/2019 Gastronomia Sensual-gilmar Rocha

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    Civitas Porto Alegre v. 9 n. 2 p. 263-280 maio-ago. 2009

    Gastronomia sensualAnlise simblica deA festa de Babette eDona Flor

    e seus dois maridos

    Sensual gastronomy

    Symbolic analysis ofBabetes fest andDona Flore seus dois maridos

    Gilmar Rocha*

    Resumo: O texto apresenta uma anlise simblica sobre a representao do gnerofeminino dramatizada nos lmes Dona Flor e seus dois maridos (1976) e A festade Babette (1987). Ambientados em contextos socio-histricos diferentes, tais lmes

    podem ser vistos como etnograas que falam do imaginrio religioso e do ethoscultural protestante na Dinamarca de ns do sculo 19 e do sincretismo afro-brasileiroda primeira metade do sculo 20. O ponto de vista da antropologia simblica, alimentada

    pelas contribuies tericas de Clifford Geertz, Marcel Mauss, Victor Turner e RobertoDaMatta, orienta a interpretao dos lmes a partir dos cdigos culturais da culinria(comida), da corporalidade (sexualidade) e da religiosidade (puritanismo e sincretismo).Destaca-se, nessas etnograas flmicas, o modo como os sistemas da ddiva e dacarnavalizao que as estruturam convergem para um mesmo campo de signicao.A estratgia metodolgica adotada consiste em comparar os lmes tendo por base aestrutura conceitual dos dramas sociais.Palavras-chave: Cinema; Gnero; Comida; Sexualidade; Religiosidade

    Abstract: The text presents an analysis on the symbolic representation of womendramatized in the lms Dona Flor e seus dois maridos (1976) and Babetes fest

    (1987). Allocaed in different social and historical contexts, these lms can be viewed asethnographies which speak of religious imagery and the cultural ethos of ProtestantDenmark at the end of the nineteenth century and the Afro-brazilian syncretism inthe rst half of the twentieth century. The point of view of symbolic anthropology,supported by the theoretical contributions of Clifford Geertz, Marcel Mauss, VictorTurner and Roberto DaMatta, guides the interpretation of lms employing thecultural codes of cooking (food), the body (sexuality) and religiosity (puritanism and

    * Doutor em Antropologia Cultural, professor do PPG em Cincias da Religio da PontifciaUniversidade Catlica de Minas Gerais, em Belo Horizonte, Brasil. Texto apresentada no3 Simpsio Internacional sobre Religiosidades, Dilogos Culturais e Hibridaes, realizadoem Campo Grande, MS, em abr. 2009.

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    syncretism). These lm ethnographies describe how the system of donation andcarnivalization that structures the movies converge to the same eld of meaning. Theadopted methodological strategy aims to compare the lms based on the conceptual

    structure of social dramas.Keywords: Movies; Gender; Food; Sexuality; Religiosity

    O assunto material da gastronomia tudo o que pode sercomido

    (Brillat-Savarin)

    Introduo

    Ao longo da histria a relao entre sexo, comida e religio tm suscitadomuita controvrsia. Ora vista como uma relao natural e universal, ora como

    particular e cultural, o fato que a comida, a sexualidade, a religiosidade esuas relaes simblicas so, a exemplo do que diz Lvi-Strauss (1989) acercadas espcies naturais, boas para pensar sobre o signicado das experincias

    sensveis na constituio da cultura. Anal, comida, sexo e religio estimulam(ou inibem) certos sentidos nos deixando ver muito da maneira como associedades pensam e sentem sobre alguns de seus simbolismos mticos eritualsticos centrais organizao de sua cosmologia cultural.

    A festa de Babette1eDona Flor e seus dois maridos2 so dois grandessucessos do cinema mundial. Alm de vrios prmios internacionais, o primeiroconquistou o Oscar de melhor lme de lngua estrangeira em 1987; o segundo,

    premiado no Brasil e relmado nos Estados Unidos em 1982 com o ttulo de

    Meu adorvel fantasma, levou mais de 12 milhes de espectadores s salas decinema de todo pas.A festa de Babette tem como ambiente a pequena vila deNore Vosborg, localizada na regio da Jutlndia ao norte da Dinamarca, durantea segunda metade do sculo 19; Dona Flor e seus dois maridos tem comocenrio a cidade de Salvador (BA), mais precisamente, o Pelourinho, e a histria

    1 A Festa de Babette (Babettes Gaestebud), conto de Karen Blixen (peseudnimo de IsakDinensen), de 1952, foi levado ao cinema em 1987, com direo de Gabriel Axel, estreladopor Stphane Audran (Babette), Birgitte Federspiel (Martina), Bodil Kjer (Philippa), uma

    produo dinamarquesa, gnero drama, com durao de 102 minutos.2 A produo brasileira Dona Flor e seus dois maridos baseada no romance homnimo deJorge Amado publicado em 1966, foi adaptada para o cinema em 1976 por Bruno Barreto,estrelada por Snia Braga (Flor), Jos Wilker (Vadinho) e Mauro Mendona (Dr. Teodoro),classicada como gnero comdia e tem durao 120 minutos.

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    se passa no Brasil de 1943. Apesar das diferenas no tempo e no espao, ambospodem ser vistos como narrativas sobre a representao do gnero femininonas tradies culturais protestante e afro-brasileira tendo como foco de anlisesimblica os cdigos da culinria, da corporalidade e da religiosidade.

    Longe de pretender esgotar o assunto, este texto tem por objetivo apontaralgumas relaes de ordem terico-metodolgica e simblica que a anlisecomparada dos lmes nos convida a reetir sobre: 1) o sentido do cinemacomo cultura e do lme como etnograa; 2) o imaginrio mtico-religioso eritualstico dramatizado nos lmes; 3) o signicado do ethos corporal comoidioma focal na constituio do gnero feminino e suas relaes com a comidae a sexualidade no contexto histrico-cultural do protestantismo europeu da se-

    gunda metade do sculo 19 e da Bahia afro-brasileira da primeira metade do sculo 20. Neste sentido, este texto deve ser visto como um processo deanlise simblica em curso dos lmes em cena. Os pressupostos tericos que orientam essa anlise comparativa encontram-se na convergncia das tradiesantropolgicas estruturalista e hermenutica com Clifford Geertz (1989), MarcelMauss (1974), Victor Turner (1994; 2005) e Roberto DaMatta (1983).

    Cinema, cultura e etnografa

    Desde sua inveno em ns do sculo 19, o cinema tem exercidoum efeito cultural profundo sobre o imaginrio das sociedades modernas,criando estilos de vida, impondo vises de mundo, estabelecendo padres de

    beleza, promovendo modelos de comportamento, ditando modas, acionandoeconomias, estimulando publicidades, enm, construindo um sentido polticoe antropolgico para o homem contemporneo. Em sentido amplo, Morinsintetiza a questo chamando nossa ateno para a sua eccia simblica(mgica) junto s massas nos seguintes termos:

    O recuo que o socilogo do cinema deve tomar , pois, esterecuo histrico e antropolgico que pe o problema preliminar datransformao do cinematgrafo em cinema e da universalidadedeste. ento e s ento que pode considerar-se sociologicamentea riqueza dos contedos do universo cinematogrco. Dada a suaqualidade mgica, os contedos dos lmes participam no s douniverso esttico mas tambm de um universo onrico colectivo.Anal, atravs das adaptaes trmulas da oferta procura, oslmes tornaram-se depositrios no s de um inconsciente colectivo maneira de Jung, onde se encontrariam os arqutipos trans-

    histricos (nomeadamente na mitologia que envolve as Estrelas), mastambm dos inconscientes colectivos, onde se xam a sensibilidade,as aspiraes e os sonhos das sociedades numa situao histrica esociolgica determinada (Morin, s. d, p. 314).

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    Com efeito, ao lado de outros media como a televiso, o rdio, apublicidade, o cinema pode ser visto como um eciente mecanismo pedaggicona promoo da educao sentimental, segundo a parfrase de Geertz, namedida em que fornece ao homem comum um sistema de signicados queorienta suas experincias cotidianas. O cinema , nessa perspectiva, umoperador simblico na formao das almas dos homens contemporneos. No toa Massimo Canevacci (1984) ir aproximar a stima arte (o cinema) dareligio, e o lme da missa, pois ambos mesclam o mito no rito, a razo naemoo, o culto no espetculo, e vice-versa. Neste ponto, nos aproximamostambm da antropologia estrutural de Lvi-Strauss (1967; 2004) em suaanlise dos mitos, na medida em que o cinema na forma do lme, pode ser

    visto como uma espcie de mitologia das sociedades contemporneas. Adespeito de toda conscincia envolvida na produo do cinema, os lmesguardam muito dessa estrutura inconsciente de pensamento que so osmitos.3

    com base nessas caractersticas do cinema que o lme se revela, pordenio, uma etnograa posto que, sem perder de vista as dimensessubjetivas que envolvem a sua produo artstica, como estilo e autoria,ele constitui um registro sociolgico (em termos antropolgicos, um texto

    cultural) referente a um determinado presente histrico-cultural. Esta tambm a percepo de Lvia Barbosa ao comentar o lme de BrunoBarreto:

    Ento um lme no caso Dona Flor e seus dois maridos, ou oromance do mesmo nome no traz tona apenas aspectos dasubjetividade e criatividade do seu autor, Jorge Amado , mas,tambm, o contexto scio-cultural onde esta subjetividade ecriatividade foram construdas. Portanto, para ns antroplogos um

    pouco difcil fazer uma distino rgida prtica clssica na crtica

    literria entre os aspectos internos e externos da obra do autor. Paraos antroplogos, ou pelo menos para um certo tipo de antroplogo,os aspectos internos so de alguma forma condicionados, no sentidode estarem referidos a um determinado contexto histrico e culturalespecco. Por isso que, atravs de um livro, de um romance, oude uma msica popular, possvel se discutir aspectos e dimensesde uma determinada sociedade (Barbosa, 1998, p. 95).

    Assim, a exemplo da obra literria analisada por DaMatta (1993), tambmos lmes e outras artes em geral podem ser lidas como narrativas etnogrcas

    3 Ponto este tambm partilhado por Campbell (1990). Na verdade, no s o cinema tambm aliteratura e a publicidade guardam certo parentesco com o imaginrio dos mitos (cf. Eliade,1986; E. Rocha, 1990).

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    que mesmo tendo por objeto a co nos revelam muito da maneira comouma sociedade pensa, sente, classica e interpreta seus dramas sociais, seusconitos morais e valores culturais. o que nos mostram alguns antro-

    plogos norte-americanos na coletnea de ensaios organizada por Meade Metraux (1971) na anlise dos lmes da Europa Ocidental e do LesteEuropeu.

    Em suma, do ponto de vista epistemolgico, pensar o lme comoetnograa signica ultrapassar as dicotomias entre realidade e imaginrio,texto e contexto, na medida em que o lme , ele mesmo, uma formanarrativa constitutiva da realidade. Feita essas consideraes, nossa atenose volta, especicamente, a partir deste momento para o sentido das relaes

    mticas e rituais presentes no imaginrio religioso e profano dos lmes emcena.

    A festa de Babette eDona Flor e seus dois maridos comodramas sociais

    Primeiramente, as anlises j dedicadas aos lmes parecem dirigir-se parafocos diferentes, embora convergentes. Assim, em torno deA festa de Babette

    destaca-se o peso do tempo e do ethos puritano como metfora histrica dadestruio e da ressurreio mtica na interpretao de Lima (1996) e Andr(2002); quanto aDona Flor e seus dois maridos, as interpretaes de DaMatta(1987a) e Barbosa (1998) destacam a estrutura da sociedade e o problemada identidade nacional. Minha hiptese que tais abordagens convergem, demaneira inesperada, para o que se pode chamar de processo de carnavalizaoque envolve a ambos os lmes sem, contudo, deixar de acionar o sistema daddiva como ser visto frente.

    O ponto de partida analisar tais lmes numa perspectiva comparadacomo dramas sociais, segundo a formulao de Victor W. Turner (1994),isto , enquanto processo desarmnico originado de situaes conitivascomposto de quatro fases (ruptura, crise, ao corretiva e reintegrao) que seinteragem formando uma seqncia complexa de atos simblicos.4 Isto podeser observado a partir do quadro sinptico dos lmes a seguir:

    4 A noo de drama social se mostra um fecundo conceito analtico na interpretao doslmes, independente do gnero drama ou comdia. Anal, o drama para Turner acionaas estruturas que organizam a sociedade, introduz a liminaridade na ordem social e tornapossvel o surgimento da communitas.

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    Quadro 1: Sinpse deA festa de Babette eDona Flor e seus dois maridos

    A festa de Babette Dona Flor e seus dois maridos

    Ruptura Comuna de Paris Morte de VadinhoCrise Condio de estrangeiro Solido de Flor

    Ao Restauradora Banquete em homenagemao centenrio de nascimentodo deo

    Casamento de or e pedido aosOrixs para Vadinho voltar

    Reintegrao Re-unio dos moradores davila

    Con-vivncia dos dois maridos

    Fonte: O autor.

    Apesar das diferenas no tempo e no espao, estas estrias convergem

    para um padro mais ou menos comum de signicados onde o mito e o ritotendem a se aproximar, muito embora nA festa de Babette o rito evoque o mitoe emDona Flor e seus dois maridos o mito reclame o rito.5

    Numa noite fria de setembro de 1871, Babette chega Jutlndia, regio aonorte da Dinamarca, fugindo do massacre dos assaltantes do cu, assim Marx

    batizava os communards de Paris. Neste episdio, a Comuna de Paris, Babetteperde o marido e o lho. Achille Papin, cantor de pera parisiense que anosantes havia visitado a regio da Jutlndia, quem recomenda Babette s irms

    Filippa e Martina, lhas do falecido deo fundador de uma rgida seita puritanacultuada pelos moradores da vila de pescadores. Em nome do pai, ambasabdicam ao amor de Lorens e Papin que outrora, em momentos diferentes,se interessaram por elas. Desde a morte do pai, Filippa e Martina assumema tarefa de assistncia aos velhos e pobres da comunidade, alimentando-oscom uma dieta frugal base de po, peixe e cerveja. Aos poucos Babettecomea a introduzir um sabor especial a esta dieta, despertando ento osentido das pessoas para a comida, para o prazer, se se pode dizer, para o

    mundo da sensualidade, at ento domesticado por um rgido cdigo moral devida puritana asctica. O nal deste processo ou quem sabe, o seu incio ,acontece com o banquete promovido por Babette em homenagem ao centenriode nascimento do pastor, quando ento todo um sistema de smbolos sagradose profanos acionado.

    De imediato, alguns pontos se destacam nessa histria. A condio doestrangeiro, personicada por Babette, Lorens e Papin, representa um duplo

    jogo de seduo e perigo;6 Babette levar muito tempo e ser, at certo ponto,

    5 Embora apresentem anidades estruturais, mitos e ritos podem ser tratados diferentemente, ainterao pode ser conquistada a partir de uma perspectiva cosmolgica.

    6 Esta condio do estrangeiro tambm aparece em outros lmes como, por exemplo, Bagdcaf ouAsas do desejo (cf. G. Rocha, 2001).

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    olhada com desconana mesmo por Filippa e Martina, at o momento dobanquete oferecido em homenagem ao centenrio de nascimento do pastor.No lme, as cenas que antecedem o banquete so ilustrativas do perigo queele representa. Por um momento, Martina chega mesmo a ter pesadelo com o

    jantar; ou ento, logo que os convidados se renem, as irms advertem parao perigo que esto correndo posto que no controlam o que ser servido. O

    banquete representava tudo aquilo contra o qual as irms Filippa e Martinahaviam lutado contra durante a vida em nome do pai, ou seja, o prazer, acomensalidade, a sensualidade.7 O que Filippa e Martina mal sabem que aorgia, no sentido atribudo por Maffesoli (1985), constitui uma via alternativa religio, fuso cosmolgica com o sagrado. Em termos durkheimianos, o

    banquete representa a efervescncia ritualstica da festa; nos termos de Turner, a prpria objeticao da communitas. Esta tambm a sugesto de Nei Lima,

    para quemA festa de Babette representa uma outra via para se atingir a pureza,o sagrado e/ou o divino:

    mesa, os dois mundos, o da sobriedade e o da sensualidade. Oumelhor, trs: entre os dois, a gratido em forma de delcias sensuaisque Babette oferecia s irms e aos seus convidados. O que Babette

    parecia querer dizer que no preciso recusar os prazeres corporais para que o esprito prossiga justo e correto. Que esses prazeres

    podem ir alm da simples dissipao dos sentidos para signicargratido e generosidade. inicialmente esse gesto (dito na formade um banquete fausto) o que provoca o malogro das promessas quezeram de se manterem puros, negando qualquer prazer que viessedo campo discursivo da comida (Lima, 1996, p. 79).

    A partir do entendimento do banquete no lme como um ritual que atingimos o Banquete como mito no imaginrio losco e religiosoocidental. Tal como noBanquete de Plato (2002), a funo do amor a decriar a virtude nos homens por meio da beleza. Parece-me ser exatamenteeste o princpio que move, inicialmente, a festa de Babette.8 A declaraode Babette, ao nal do lme, logo aps as irms questionarem-na quantoao gasto conspcuo de todo o prmio da loteria ratica este juzo. Anal,Babette no se encontrava mais pobre ou mais rica do que antes, na verdade,havia resgatado parte do amor perdido anos atrs com a arte que Deus lhedera de fazer magias por meio da culinria. Em outras palavras, o banquete uma declarao esttica de amor vida, sociabilidade, sensualidade, comensalidade, enm, comunho dos homens.

    7 Virgindade, suplcio, devoo so alguns dos principais valores do imaginrio feminino cristo(catlico e protestante) do sculo 19, observa Corbain (2008).

    8 Raticando o sentido subversivo que cerca o imaginrio da festa, ver Valeri (1994).

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    Mas, h outras razes que nos leva a pensar na festa de Babette comoum rito que aciona todo um sistema de valores onde o sagrado e o profano semisturam. E, se misturam, observa Mauss, as almas nas coisas; misturam-seas coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim que as pessoas e as coisassaem cada qual de sua esfera e se misturam: o que precisamente o contratoe a troca (Mauss, 1974, p. 71). O lmeA festa de Babette ilustra de maneirasimblica todo o sistema de prestaes totais tal qual, magistralmente, reveladono Ensaio sobre a ddiva, de Mauss. Contudo, mais do que simplesmentedar, receber e retribuir, os gestos de Babette evocam ainda o que Mauss

    prenunciou como a quarta obrigao: o regalo feito aos homens em vista dosdeuses e da natureza (Mauss, 1974, p. 59). Babette vai alm da generosidade

    das irms Filippa e Martina por terem-na acolhido anos atrs, posto que elaultrapassa o plano das relaes sociais para inscrever-se no campo da arte eda religio ao aproximar-se do sacrifcio. O gasto de todo prmio da loteriacom o banquete pode ser visto, de um lado, como uma espcie de consagraodo ato de doao incondicional, do outro, como um meio de mediao entreo sagrado e o profano, anal, Babette produz o banquete em homenagem aocentenrio de nascimento do deo da vila. Neste sentido, Babette produz amediao entre o sagrado e o profano, o esprito e a matria, restabelecendo

    as relaes entre as lhas Filippa e Martina e o Pai, bem como, a relaodestes com a comunidade, acionando um sistema de trocas simblicas ligadoespiritualmente pela f (religio) e pela comida (corpo). como se Babette,ritualmente, preenchesse o espao normalmente reservado s mes, ela que umdia fora me, promovendo a ligao entre o passado e o presente, bem comoservindo de elo entre o mundo dos vivos e dos mortos, tambm acionasse umsistema de alianas na medida em que transferia as relaes de consaguinidade

    para o mbito das relaes sociais ans prevalecentes entre irmos

    espirituais. Da, do ponto de vista dos dramas sociais, ao m da festa deBabette, as 12 personagens que compem esta Santa Ceia, saem juntas emcomunho, cantando, abraando-se, perdoando-se, desculpando-se das invejas,dos rancores, das desavenas que, nos termos de Turner, a estrutura da vidacotidiana ajuda a separar, hierarquizar, estraticar, impedindo a communitasacontecer, exceo em situaes liminares e rituais.9

    Babette, assim como a personagem Dona Flor, so cozinheirasque parecem atualizar, ritualisticamente em seus banquetes, aquilo que

    9 Turner (1994) nos lembra que communitas rene ao menos trs caractersticas bsicas queparecem aplicar-se perfeitamenteA festa de Babette, a saber: a liminaridade, a marginalizaoe a pobreza.

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    Lvi-Strauss (1989) designou como cincia do concreto. A cincia do concretoexpressa um tipo de ao e pensamento social que no se ope ao pensamentocientco propriamente dito, mas que se revela de igual importncia mesmosendo de outra natureza. A cincia do concreto opera por meio da bricolage,ou seja, atividade intelectual artesanal que se aproxima da arte, da magia, domito, enm, de uma esttica selvagem em que a racionalidade no excluia emoo, a criao, a arte. A culinria, nestes termos, expressa um sistemade signicados por meio do qual a percepo artstica, mtica, emocional,comunicativa inscritas na prtica dessas cozinheiras, nos fala das relaessociais e do imaginrio cultural das sociedades em comparao.

    Assim que, do outro lado do Atlntico, meio sculo depois, mais

    precisamente na cidade de Salvador (BA), em meio Segunda Guerra,encontramos as personagens deDona Flor e seus dois maridos. Florpedes, ousimplesmente Flor, Valdomiro (Vadinho) e Teodoro (evocao do verboteadorar, segundo o Neologismo de Manuel Bandeira), formam o tringuloamoroso desse drama brasileiro com toque de realismo maravilhoso. Anal,a realidade e o imaginrio, o sagrado e o profano, a ordem e a desordem, semisturam formando um mundo relacional no qual as personagens carnavalizama sociedade brasileira. Aps a morte do marido Vadinho (corruptela de

    vadio), a vivaDona Florcede crte do farmacutico Dr. Teodoro comquem se casa. No leva muito tempo para que Flor confesse ao padre seusdesejos de mulher e sua parcial insatisfao com o novo casamento, o que afaz pedir aos Orixs a volta do malandro e amante Vadinho. No nal, resultadodo sincretismo afro-brasileiro, Flor passa a dividir seu corpo e sua alma comseus dois maridos.

    A estrutura desse drama no diferente deA festa de Babette, como jprenunciado anteriormente. O que chama a ateno inicialmente em Dona

    Flor e seus dois maridos, como sugerem outras anlises j realizadas sobreo lme homnimo do romance de Jorge Amado, a sensao de que o quetemos em mos consiste num desses momentos especiais onde a sociedade

    brasileira se apresenta mais atual do que nunca.Dona Flor e seus dois maridos pode ser visto como um mito de referncia, o que nos termos de Lvi-Strauss, signica a transformao mais ou menos elaborada de outros mitos,

    provenientes da mesma sociedade ou de sociedades prximas ou afastadas(Lvi-Strauss, 2004, p. 20). Com efeito,Dona Flor e seus dois maridos evocaoutros mitos que somam para a formao de uma mitologia da sociedade

    brasileira. Por exemplo, no necessrio muito esforo para demonstrar oparentesco deDona Flor e seus dois maridos com a fbula das trs raas noBrasil, tal como analisado por DaMatta (1987b).

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    Se tomarmos o drama de Dona Flor como representao dos dilemasda mulher na ordem patriarcal brasileira como smbolo do poder dosfracos que nossa personagem deve ser vista.10 Dona Flor como inmerasoutras personagens, por exemplo, Maria Padilha eXica da Silva ou, como nadenio de SantAnna, a mulata cordial na potica romntica brasileira,destaca a imagem da mulher objeto de desejo a ser comido, porm, capaz deinverter a relao de dominao por meio do jogo da seduo e de uma possvelantropofagia cordial:11

    Com efeito, a gura da mulata, em grande parte da poesia ro-mntica, tem essas caractersticas ambguas, uidas e instveis.Ela atua mestiamente. Enquanto mulher de cor, tendo uma dupla

    natureza, pode movimentar-se socialmente, desde que mantenha suaduplicidade de carter. Enquanto forfaceira e brejeira conseguir,atravs da docilidade, transformar-se de escrava em rainha. E a asujeio e a seduo se mesclam. Poder-se-ia mesmo estabelecerum paralelo entre esse atributo da mulata e aquilo que na sociologia,desde Srgio Buarque de Hollanda, vem sendo chamado de ohomem cordial. Essa mulher descrita em muitos poemas romnticos(e na msica popular contempornea) uma mulher cordial. Maisdo que isso, especicamente, ela uma mulata cordial (SantAnna,1985, p. 41).

    Aqui, o simbolismo em torno do trs, ou melhor, em torno do sistemarelacional onde o trs simboliza o plano das relaes intermedirias, ambguas,mestias, ganha notria visibilidade e signicao antropolgica. ParaRoberto DaMatta, o Brasil se caracteriza como uma sociedade relacional e,como tal, o simbolismo do nmero trs est presente em inmeros momentosde nossa vida social. Assim, do campo religioso com a Santssima Trindade,

    passando pelos rituais de identicao cultural do pas (o carnaval, a semana daptria e a semana santa), atingindoDona Flor e seus dois maridos, entre outros

    ritos e smbolos, o nmero trs mais do que uma curiosidade cabalstica dosistema cultural brasileiro, do ponto de vista cognitivo, trata-se do modusoperandi constitutivo da nossa cosmologia de pensamento. Roberto DaMattaobserva que:

    O nmero dois um nmero onde a mediao no se apresentacomo possvel. Trata-se da representao de um dualismo diametral,sem possibilidades de englobamento (os dois termos so de

    10

    Bakhtin (1987), Turner (1994; 2005) e DaMatta (1983) reconhecem na liminaridade e nocarnaval formas e momentos de expresso do poder dos fracos.11 Esta inverso, em ltima instncia, nos aproxima do imaginrio das releituras artsticas da

    Virgem de Guadalupe no movimento caracterizado como new mestiza chicana que temcomo um de seus fundamentos o mito da vagina dentada, ver Bragana (2006).

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    Lvi-Strauss e Dumont), ou seja, na perspectiva do dois, homeme mulher esto em conito, e nenhum pode englobar o outro emnenhuma situao. Mas, na perspectiva do nmero trs, tudo muda.

    Com ele, h a possibilidade imediata da mediao, da conciliaoe da harmonizao. Por meio dele, a relao reintroduzidanovamente na dade, e cria-se a possibilidade de adiar o conito(DaMatta, 1988, p. 20).

    De um modo geral, todo esse sistema organiza o campo das relaes emDona Flor e seus dois maridos. Dona Flor ocupa uma posio intermediriaentre os maridos, cada qual ilustrando o lado contrrio do sistema, ou seja,Vadinho malandro, amigo da orgia, representa o lado marginal da sociedade(jogadores, bomios e prostitutas), seu comportamento e estilo de vida so aexpresso da prpria negao da ordem social do trabalho, da vida devotadaao lar, o que faz dele um legtimo smbolo da concupiscncia; do outro lado,encontra-se Dr. Teodoro, homem da cincia farmacopia, esposo dedicado ecircunspecto, representante do lado srio da sociedade, porm, nada sedutorou simptico. No meio, encontramos Dona Flor, dialogando, ou melhor,construindo um mundo de dilogos entre sistemas culturais e valores sociaisdiferentes, o que lhe garante a capacidade de metamorfosear e assumir,

    portanto, papis variados dentro de um campo de possibilidades.12 Como

    fez Nossa Senhora conciliando com o divino, o sagrado e o profano, trao que diga-se de passagem est presente tambm nesta Dona Flor que faz umaponte entre o morto idealizado e o vivo concreto (DaMatta, 1987a, p. 141), eisa a qualidade de mediao das cozinheiras em foco. Da,Dona Florapresentar-se ao mesmo tempo como professora da arte culinria e objeto de desejo doshomens. Aqui, o imaginrio da sexualidade invade o campo da arte culinria e,

    por extenso, o da religiosidade e/ou vice-versa.13

    Na tradio afro-brasileira, a separao entre corpo e alma, esprito e

    matria, sagrado e profano, enm, entre sexualidade e comida, no se realiza tocartesianamente como no imaginrio religioso cristo (catlico e protestante)onde o sistema binrio caracterstico das sociedades anglosaxs prevalece sobrea cultura do sincretismo.14 No mundo do candombl e outras religies afro-

    brasileiras, nos ensinam socilogos e antroplogos, o mundo se inscreve numa

    12 Babette e Dona Flor podem ser vista como mediadoras culturais entre sistemas simblicosdiferentes, ver Velho e Kuschnir (1996).

    13

    Todo esse sistema no est ausente deA festa de Babette, embora o simbolismo binrio se faadominante e a relao entre a comida e a sexualidade seja percebida e vivida como negativa.14 Ferreti (2006) aproxima o conceito de sincretismo da ideia de sistema relacional na perspectiva

    antropolgica de DaMatta (1987a) sem que isto signique uma ruptura com a abordagemclssica de Bastide (1959).

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    ordem cosmolgica na qual os homens, os animais, as plantas e os espritos,cada qual, se se pode dizer, constitui uma espcie de pessoa e participa deum sistema mais amplo de relaes sociais, observa G. Rocha (2009) entreoutros. essa perspectiva cosmolgica que nos permite apreender Dona Florcomo, na expresso de Roger Bastide, um n de participaes, em meioao mundo das relaes entre doutores e malandros, a ordem e a desordem,indivduos e pessoas, mes e meretrizes, santas e pecadoras etc., segundo afrmula de DaMatta.

    Nesta perspectiva, que podemos compreender as relaes entre comida,sexualidade e religio no universo relacional deDona or e seus dois maridos.Muito emboraA festa de Babette apresente, inicialmente, muitas diferenas

    em relao aDona Flor e seus dois maridos, a partir da comparao entre ossistemas culinrios, corporal-sexual e religioso, o processo de construo daidentidade feminina das personagens centrais ganha maior visibilidade.

    A cozinheira e seu dom

    No ocasional batizarmos este tpico de a cozinheira e seu dom,pois aqui o texto clssico O feiticeiro e sua magia, de Lvi-Strauss (1967),

    nos serve de fonte de inspirao, anal, as personagensBabette eDona Flor,ambas cozinheiras, so portadoras de qualidades especiais, quase mgicas,na medida em que dominam a arte da culinria, os mistrios da cozinha,os segredos do prazer. Como muitos seres liminares (feiticeiros, monstros,circenses e outros) tambm as cozinheiras so manipuladoras dos elementosda natureza e da cultura; sua eccia para alm da crena das pessoas em seusdotes artsticos e/ou poderes mgicos reside em sua capacidade de fazer amagia acontecer, observa Mauss (1974).

    A comida aparece como smbolo metafrico dessa magia, seja produzindoa comunho entre os homens seja promovendo a carnavalizao das relaessociais. Neste ponto,A festa de Babette se aproxima deDona Flor e seus doismaridos, anal, Babette tambm se revela uma mediadora nas relaes entreas lhas, o pai e a comunidade de pescadores. E mais, Babette altera o sabor dacomida (ou a falta dele) digerida pela comunidade, o que em termos simblicosmetaforiza a vida assexuada das irms Filippa e Martina. O contrrio se passacom Dona Flor, cuja sexualidade parece intimamente relacionada comida,ao sabor. Para Vadinho. Dona Flor a prpria metfora da comida que elalhe oferta. De um lado, uma vida asctica, puritana e assexuada das irmsFilippa e Martina, do outro, Dona Flor, cozinheira e comida de seus doismaridos. Por traz de ambas, dois modelos de sociedades ou de sistemas sociais

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    onde as relaes predominantes tendem a destacar de um lado, o universodas relaes individuais e impessoais da tica protestante, do outro lado, ouniverso das relaes pessoais e hierarquizadas que caracterizam a sociedade

    brasileira. Na verdade, o nvel de ascetismo extremo vivido pelos habitantesde Nore Vosborg os coloca prximo da condio denida por Louis Dumont(1985) como sendo a dos renunciantes, dos indivduos-fora-do-mundo.15 Acondio de Babette neste mundo, ela mesma uma espcie de indivduo-fora-do-seu-mundo, parece lhe fornecer o signicado necessrio para compreendero sentido da distncia cultural vivida pelos pescadores da vila, emboraestivessem prximos sicamente. Na verdade Babette parece duplamentegozar da condio de indivduo-fora-do-mundo, se se leva em considerao

    o fato dos homens estarem frente da tradio culinria francesa. A distnciasocial tambm motivo da distncia sexual entre Dona Flor e Dr. Teodoro, aformalidade do homem de cincia se objetica na insatisfao sexual de DonaFlor e o sentimento de vazio que a invade. No toa Dona Flor invoca junto aosOrixs a volta do amante Vadinho, anal, o malandro se apossa de seu corpocom o esprito de umgourmet.

    A corporalidade, enquanto idioma simblico que designa um sistema deimagens e de estilo corporal, se apresenta como um objeto privilegiado para

    se apreender o sentido das relaes sociais no processo de constituio dasidentidades (gnero) das personagens em foco. Na verdade, os lmes retratamse no dois modelos de mulheres ao menos duas formas de comportamentosocial que podem habitar muitas vezes um mesmo corpo.16 Sendo o corpo umaespcie de microcosmo cultural a partir do qual se pode identicar um conjuntode valores sociais inscritos ora sob a marca ritual das provaes, ora sob osistema de gestos cotidianos, a verdade que o mais natural dos smbolossociais, sugere Douglas (1988), nos revela muito de como a sociedade se

    pensa. Nessa perspectiva, o corpo constitui uma linguagem por meio do quala sociedade se comunica (cognitiva e emocionalmente) contribuindo assimpara a construo das identidades sociais desde o nvel pessoal, passando pelaidentidade de gnero e atingindo o plano nacional.

    15 O renunciante algum que basta a si mesmo, s se preocupa consigo mesmo. O pensamentodele semelhante ao do indivduo moderno, mas com uma diferena essencial: ns vivemosno mundo, ele vive fora deste (Dumont, 1985, p. 38).

    16

    Divididas entre o sacrifcio e a carnavalizao, Babette e Dona Flor transitam entre essasesferas de signicao. O prazer e a satisfao sexual de Dona Flor obtido com certa dose desacrico, de amor incondicional ao malandro Vadinho, ou em nome da famlia ao casamentocom Dr. Teodoro. Por sua vez, Babette, sua maneira, acaba carnavalizando o mundo deNore Vosborg, ainda que isto lhe custe tambm certo tipo de sacrifcio.

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    Comparativamente,A festa de Babette eDona Flor e seus dois maridosdestacam dois estilos de corporalidade17 que nos remete a dois modelos bsicosde sociedades j anunciados anteriormente. De um lado, a tradio cultural

    protestante na qual o corpo aparece como objeto de ascetismo, disciplina esacrifcio, do outro, a tradio cultural afro-brasileira na qual a movimentao,o prazer, os sentidos, invadem o mundo da religio. A partir de Hertz (1980) eBakhtin (1987), podemos sugerir uma topograa corporal em que o contrasteentre o alto corporale o baixo corporalcorresponde distino hemisfricaentre as culturas anglosax e a afro-brasileira. Embora as mos representamo ponto comum entre Babette e Dona Flora, anal, ambas so cozinheiras,fazedoras de delcias e magia, Dona Flora apresenta um diferencial na medida

    em que pem em destaque o baixo corporal, topos domesticado no plano dacultura protestante. A aproximao da comida com a sexualidade em Dona

    Flor e seus dois maridos ca evidente nos vrios momentos em que Vadinhorelaciona o corpo da baiana comida propriamente dita. Mas Babette e DonaFlor no so santas ou pecadoras por natureza, suas corporalidades falamda identidade como processo histrico-cultural alimentado por mitos e ritos

    presente no imaginrio nacional europeu e afro-brasileiro.18

    Assim, apesar da distncia que separa o estudo de Malysse (2002) dos

    dramas encenados emA festa de Babette eDona Flor e seus dois maridosvale destacar o que diz a antroploga francesa acerca das diferenas de estilosentre a corporalidade francesa e a brasileira:

    Enquanto na Frana a produo da aparncia pessoal continuacentrada essencialmente na prpria roupa, no Brasil o corpoque parece estar no centro das estratgias do vestir. As francesas

    procuram se produzir com roupas cujas cores, estampas e formasreestruturam articialmente seus corpos, disfarando algumasformas (particularmente as ndegas e a barriga) graas a seu formato;

    as brasileiras expem o corpo e freqentemente reduzem a roupa aum simples instrumento de sua valorizao; em suma, uma espciede ornamento (Malysse, 2002, p. 110).

    Tudo isto nos convida a pensar na constituio das identidades sejapessoal, de gnero ou nacional, como processo; no h um fundo substancialno qual se encontra depositada a essncia ou o carter de uma pessoa, umgnero ou um povo. Identidades so resultados de processos scio-histricosonde muitas vezes o feminino ou o masculino, nos ensina a antropologia,

    17 Corporalidade entendida como idioma focal a partir do qual se constri a identidade social(cf. Seeger et al.,1987).

    18 Sobre a questo da identidade e da corporalidade nas religies brasileiras, ver: Oliveira (1976);Heilborn (1992); G. Rocha (2008).

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    expressam padres de sensibilidade incorporados inconscientemente, mas quepodem em determinados contextos rituais revelar-se um poderoso instrumentode carnavalizao da ordem social, segundo o sentido dado a este termo porBakhtin.

    Poder-se-ia perseguir em inmeros registros culturais a construoda imagem da mulher brasileira, por exemplo, na msica, no cinema, naliteratura, na caricatura, mas , curiosamente, na poltica onde encontramos,talvez, a mais completa carnavalizao do gnero feminino no imaginriorepublicano brasileiro. Ocupando um lugar intermedirio entre Marianne eMaria, nos lembram Carvalho (1995) e G. Rocha (2007), a baiana adquiresignicao paradigmtica no imaginrio poltico e cultural brasileiro. Outra

    a imagem da mulher puritana no imaginrio religioso anglo-saxo. Haja vista,a anlise de Elliot (1988), sobre o signicado do revivalismo fundamentalistana poltica norte-americana em tempos recentes. A despeito das conquistasfeministas a imagem bblica das mulheres como lhas de Eva e maioresresponsveis do que os homens pelo pecado original permanece forte (p. 134)ainda hoje, nos Estados Unidos. Tal a viso poltico-religiosa defendida

    pelos republicanos da Nova direita, nos Estados Unidos, desde o governoReagan.

    Em suma, deixo as palavras nais ao pai da gastronomia francesaBrillat-Savarin que, ironicamente, contrariando a jocosa concluso de seuconterrneo Michel de Montaigne em Dos canibais sobre o no uso de calas

    pelos selvagens, nos adverte:

    Aqueles, ao contrrio, a quem a natureza recusou a aptido aosprazeres do paladar, tm o rosto, o nariz e os olhos compridos; sejaqual for seu tamanho, possuem algo de alongado no porte. Tm oscabelos negros e lisos, e carecem sobretudo de carnes; foram elesque inventaram as calas (Brillat-Savarin, 1995, p. 149).

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    Recebido em: 9 jul. 2009Aprovado em: 30 set. 2009