gigon, olof. o conceito de liberdade no mundo antigo

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18/03/13 O conceito de liberdade no mundo antigo www.hottopos.com/notand10/gigon.htm#_ftn1 1/44 Home | Novidades | Revistas | Nossos Livros | Links Amigos O conceito de liberdade no mundo antigo [1] Olof Gigon Tradução: Anna Lia Amaral Almeida Prado / Gilda Naécia Maciel de Barros O bem munido arsenal de conceitos que os gregos nos legaram e diariamente usamos compreende conceitos de peso e virulência muito diferentes. Muitas vezes temos de lidar com categorias que permitem interpretar o mundo histórico, categorias que não são, por certo, isentas de problemas, mas para nós são úteis de modo muito especial. Penso em algo como os pares causa e efeito, meio e fim, quantidade e qualidade e outros semelhantes. Além disso, há conceitos mais densos e estimulantes do que parecem à primeira vista. Entre eles estão as abstrações criadas pelos gregos como, por exemplo, "o Estado”, ou mesmo "a natureza”, que são mais indispensáveis para nós hoje do que eram, então, para eles. Um terceiro grupo são os conceitos que já de antemão são explosivos, e logo que são articulados, de certo modo por si próprios, dominam toda a atividade de um indivíduo ou de uma sociedade. Pode-se contar entre eles o conceito de poder, tal como os gregos o concretizaram de forma paradigmática no retrato do tirano; a seguir, o conceito de ordem, pelo qual se deixaram conduzir Hesíodo na Teogonia, Platão na República (Politéia) e também Agostinho na interpretação teológica do mundo. E, finalmente temos os conceitos de igualdade e liberdade. Em força impulsionadora, sem dúvida, o conceito de liberdade vem em primeiro lugar. Certamente é, de longe, o mais complexo e quem procura apreendê-lo, logo se vê, em diversos níveis da realidade, confrontado com problemas de todo tipo. E não apenas isto: não basta deixar-se guiar exclusivamente pela famosa palavra grega e(leu/qeroj, e(leuqeri/a. Essa palavra, em seu primeiro sentido, nada mais designa que um determinado fato do direito civil, importante aliás, o status do e(leu/qeroj em face do status do dou=loj. O que isto quer dizer, mostram-no de forma expressiva duas passagens de Aristóteles, Política 1254 a 14/15 e Metafísica 982 b 25/26. De acordo com essa passagem, e(leu/qeroj é aquele que “pertence a si próprio”, em contraposição ao dou=loj, o que “pertence a um outro”. Naturalmente essa fórmula já é rica em implicações. A palavra

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o conceito de liberdade

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    Home | Novidades | Revistas | Nossos Livros | Links Amigos

    O conceito de liberdadeno mundo antigo [1]

    Olof GigonTraduo: Anna Lia Amaral Almeida Prado /

    Gilda Nacia Maciel de Barros

    O bem munido arsenal de conceitos que os gregos nos legaram ediariamente usamos compreende conceitos de peso e virulncia muitodiferentes. Muitas vezes temos de lidar com categorias que permiteminterpretar o mundo histrico, categorias que no so, por certo,isentas de problemas, mas para ns so teis de modo muito especial.Penso em algo como os pares causa e efeito, meio e fim, quantidade equalidade e outros semelhantes.

    Alm disso, h conceitos mais densos e estimulantes do que parecem primeira vista. Entre eles esto as abstraes criadas pelos gregoscomo, por exemplo, "o Estado, ou mesmo "a natureza, que so maisindispensveis para ns hoje do que eram, ento, para eles.

    Um terceiro grupo so os conceitos que j de antemo so explosivos,e logo que so articulados, de certo modo por si prprios, dominamtoda a atividade de um indivduo ou de uma sociedade. Pode-se contarentre eles o conceito de poder, tal como os gregos o concretizaram deforma paradigmtica no retrato do tirano; a seguir, o conceito deordem, pelo qual se deixaram conduzir Hesodo na Teogonia, Platona Repblica (Politia) e tambm Agostinho na interpretaoteolgica do mundo. E, finalmente temos os conceitos de igualdade eliberdade. Em fora impulsionadora, sem dvida, o conceito deliberdade vem em primeiro lugar. Certamente , de longe, o maiscomplexo e quem procura apreend-lo, logo se v, em diversos nveisda realidade, confrontado com problemas de todo tipo. E no apenasisto: no basta deixar-se guiar exclusivamente pela famosa palavragrega e(leu/qeroj, e(leuqeri/a. Essa palavra, em seu primeiro sentido,nada mais designa que um determinado fato do direito civil, importantealis, o status do e(leu/qeroj em face do status do dou=loj. O que istoquer dizer, mostram-no de forma expressiva duas passagens deAristteles, Poltica 1254 a 14/15 e Metafsica 982 b 25/26. Deacordo com essa passagem, e(leu/qeroj aquele que pertence a siprprio, em contraposio ao dou=loj, o que pertence a um outro.Naturalmente essa frmula j rica em implicaes. A palavra

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    e(leuqe\rioj significa que aquele que pertence a si prprio tem oprivilgio de dispor de seus prprios bens e est pronto a empreg-losde forma generosa a favor de outrem e, mais ainda, que esses bens lhepermitem realizar atos que no esto a servio da criao de umafortuna e da sobrevivncia fsica. Com isso, muito j est dito, masno tudo. No transcurso desta pesquisa deveremos examinarjuntamente, numa extenso significativa, conceitos afins.

    O mais importante , em primeiro lugar, classificar o material, pelomenos de modo aproximado. O mais conveniente distingui-lo em trsgrandes complexos.

    O primeiro a liberdade como forma de vida do Estado e do indivduono Estado e na sociedade.

    Diferente dessa, vem em segundo lugar a liberdade como pressupostode toda ao eticamente responsvel e, por isso, sero consideradassobretudo as limitaes que, justamente, de muitos lados, restringemessa liberdade.

    Em terceiro lugar, perguntar-se- como, na perspectiva cosmolgica eteolgica, pode-se afirmar a liberdade da ao humana.

    Acima de tudo, no nos vamos esquecer de que, na antiguidade e hoje,a liberdade considerada um fim valiosssimo que tem mobilizadotanto o indivduo como a sociedade e, finalmente, a histria mundialno seu conjunto. Com isso tambm, pe-se imediatamente o seguinteproblema: O moderno conceito de liberdade se diferencia do quetinham os antigos? At que ponto?

    Como primeiro desses trs complexos, est bem no primeiro plano aliberdade do ser do Estado.

    O povo grego, como qualquer outro, gostava pouco de estar submetidoa um dspota estrangeiro, ter que receber ordens e pagar tributos.Assim, primeiro lutaram contra os ldios, a seguir contra o Grande Reipersa, depois contra macednios e finalmente contra os romanos.Vrias vezes, alis, os romanos tornaram indecisas as frentes de guerrae se ofereceram aos gregos da me ptria que estavam em dificuldadescomo defensores da liberdade grega contra os reis helensticos donorte, do leste e do sul. Assim torna-se pattico, em regra geral,recorrer ao j referido par de conceitos e(leuqeri/a-doulei/a que, comofoi dito, originalmente pertence ao direito civil e no ao direito doEstado. Especialmente a forma de dominao qual os gregosprocuram submeter os brbaros do oriente interpretada como odomnio de um despo/thj sobre dou=loi. Considerada a questo deoutro ngulo, os gregos so basicamente vistos como homens livres,enquanto os brbaros, aos olhos de todos, so dou=loi, j no mago doseu ser ; assim, como se sabe, os gregos legitimaram a sua pretenso

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    ao domnio sobre os brbaros (Arist. Pol., 1252 b 5-9).

    Mais precisos e de contedo mais rico so dois outros conceitos que jaqui devem ser includos.

    O primeiro o de au)tonomi/a, atestado primeiro em Herdoto (I, 96 e8, 140), depois em Tucdides, como era de esperar, mais tarde nasHelnicas de Xenofonte e em outros textos; caracterstico da elocuode Sfocles que ele o aplique a Antgona que, em seguida a umdesafio concebido unicamente por ela e confirmado por sua livrevontade, caminha para a morte (Ant. 821). O conceito pode serdesignado como termo tcnico. Indica o direito que um Estado tem deadministrar os seus negcios conforme leis que ele, alis, no inventouarbitrariamente, mas, antes, exclusivamente por sua livre deciso,decidiu respeitar; nem permite copiar de estrangeiros suas leis, nemdepende de leis impostas por eles.

    A definio parece banal, mas leva-nos a suspeitar que na au()tonomi/aj se inclui um aspecto fundamental do conceito grego de liberdade.Liberdade aquela condio na qual um Estado (ou ento tambm umindivduo) nem dependente da vontade de outro nem precisa doauxlio de outro, mas, sob determinadas condies de uma ordempoltica ou tica, escolhe por sua prpria ponderao aquilo quereconhece como obrigatrio para si.

    Para ilustrao do que se quis dizer, pode-se apontar alguns conceitossemelhantes. De respeitvel antiguidade so os conceitos au()to/matoje d/i/daktoj. O primeiro conceito atestado pela primeira vez na Iladadesignando um acontecimento que comea por ele prprio, semimpulso vindo de fora; nesse sentido Demcrito introduziu-o nacosmologia (polemizando contra Anaxgoras), como mostra importante

    passagem da Fsica de Aristteles 196a24-35 (e tambm 198a5-13),segundo a qual o cosmos, no seu todo, e os astros, em especial,nascem a)po\ tou= au)toma/tou, sem que, portanto, opere uma forade fora, enquanto a gnese dos animais e das plantas , ao contrrio,determinada justamente atravs de uma fora desse tipo, jpreexistente. Diz-se au()todi/daktoj o aedo na Od. 22, 347 e entende-se por isso que no dependeu de nenhum professor; um deus neleimplantou a arte, o que neste contexto s pode significar que no arecebeu de um homem, mas a domina inteiramente por si prprio.Entre os filsofos, tiveram igual pretenso Herclito (Diog. Laerc. 9,5), Scrates e Epicuro (Diog. Laerc. 10, 2), este ltimo certamentesem pr em ao uma divindade. O pensamento de que mais hbilquem capaz de planejar tudo e no necessita de conselhos aparece,como se sabe, em Hesodo, Erga 293-297. Concordando com ele,Aristteles, EN, 1095b8 ss e, mais tarde (talvez contra Aristteles),paradoxalmente o estico Zeno SVF, 1, 235 a toma em sentidooposto.

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    Dever-se-ia aduzir au()tokra/twr, au)tognw/mwn e au)tourgo/j comoconceitos que sublinham igualmente a autonomia daquele que renuncia dependncia, conselhos ou ajuda de estranhos.

    Devemos demorar-nos um pouco no mais importante conceito destegrupo, o de au)ta/rkeia. Expressa com a mxima clareza a que tipo deliberdade o grego d importncia, no mbito at agora referido. obastar-se a si mesmo, sem precisar solicitar auxlio de outros homensou de quaisquer outras realidades exteriores. Ao mesmo tempo, deve-se observar que se pode falar de autarcia nos mais diferentescontextos, como uma condio perfeita ou, ento, a mais digna de serdesejada. Encontra-se, no mbito da divindade e do cosmos, comoprograma do Estado e como objetivo do indivduo, em parte na vidaexterior, em parte como atributos do telos mais profundamentecobiado, a eudaimonia. O aspecto teolgico, porm, ocupa posiohierrquica prpria, pois a exigncia de autarcia em poltica e tica noraramente pressupe a autarcia da divindade como padro eparadigma. J Xenfanes pde falar da no-carncia da divindade;percebe-se que a idia est presente em Antifonte (VS 87 B 10) esobretudo em uma frase famosa de Xenofonte (Mem. 1, 6, 10), quemais tarde foi muitas vezes retomada at chegar ao Encheirdioncristo de Sextus (Nr. 49, 50 ed. Chadwick). Em Aristteles a autarcia expressamente atribuda ao motor imvel: Metaf., 1091 b 16 ss,

    Coel., 279a 20-22, EE 1244b 7-10, 1245b 14-15, e tambm (na obraps-aristotlica) MM 1212b 36 1213 a 9.

    Em Plato, conforme o desejo do demiurgo, o cosmos que possui aautarcia (Tim.33D, 68E), o que foi aceito a seguir pelo estico Crisipo,cf. Plut. Mor. 1052 D; temos a um ser vivo perfeito, que no precisade nenhum alimento vindo de fora.

    Em Her. 1 32 j se apreende a autarcia como ideal poltico. Significaque um territrio devia ser to produtivo que todos os seus habitantespudessem alimentar-se de forma suficiente. Herdoto, contudo, sabeque isso de fato no acontece. Todavia, para Plato (Rep. 369 b ss) e,com mais razo, para Aristteles (Pol., 1252 b 27 1253 a 1), 1253 a25-29, 1326 b 2 ss, 1328b 15 ss. etc) a autarcia continua, ao lado daeudaimonia tica e da exigncia da utilidade comum, um dos fins daconstruo do Estado. Isso subentende, por assim dizer, uma perfeiotcnica. preciso que todos os grupos de trabalho indispensveis sobrevivncia do Estado estejam representados na comunidade doscidados. Tanto Plato quanto Aristteles estabeleceram listas dessesgrupos e nelas tornaram evidente o que para eles significava a autarciapoltica. Em princpio , sem dvida, realizvel. O que no realizvel a autarcia em dois outros sentidos.

    Quanto ao primeiro sentido, caracterstico do pensamento grego quesempre tenha contado com inmeros Estados existindo uns prximos

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    dos outros. Tambm os Estados perfeitos de Plato e Aristteles noesto isolados no espao, mas so cercados de vizinhos, cada vizinhosendo uma ameaa potencial. Portanto, tambm o Estado perfeitoprecisa estar atento sua defesa e eventualmente procurar aliados,com o que se rompe a autarcia.

    Com o segundo sentido pode ser associada a passagem de Her.,1,32 jindicada. Outra vez, Plato e Aristteles so suficientemente realistaspara saber que mesmo o Estado perfeito no pode ser onerado com afantstica pressuposio de que pode viver economicamente de formaautrcica. Ele tambm depende da importao de gneros e,conseqentemente, da exportao. Institui-se uma interdependnciaeconmica limitada, certo, mas incontestvel.

    Os gregos, alis, sempre sentiram apenas como caso especial que,individualmente, um Estado dependesse militar e economicamente dacolaborao com outros Estados. No partiu deles um impulsoessencial para criar uma ampliao de espao ou um complexo estataluniversal que fosse, de fato, completamente autrcico. A ambio dosromanos, gradualmente desenvolvida desde as guerras pnicas, aambio de construir um imprio que abarcasse a oikoumne global, oorbis terrarum, sempre foi visceralmente estranha aos gregos.Naturalmente devem ser omitidas especulaes ocasionais acerca deuma comunidade universal dos sofoi/.

    Para os indivduos a autarcia significa, em primeiro lugar, a pretensode poder satisfazer a todas as necessidades fsicas por suas prpriasforas ou sem depender do servio prestado por um estranho. Essaforma independente de viver, pelo que sabemos, foi aconselhada pelaprimeira vez por Demcrito (VS 68 B176, 191, 209, 210, 246), depoisfoi atribuda a Scrates em Diog. Laerc. 2, 24 e no conjunto conexo depassagens de Xen., Mem., 1, 2, 1; 3,5; 3, 15; 6, 1-10, e tambm 4, 7,1 e 8, 11. Epicuro, quanto ao tema principal, parte de Demcrito e,subsidiariamente, tambm dos socrticos (Sent. Vat., 77. Stob., Ekl.,III, 17, 13. Fr. 200, 202 Us.e outros).

    Fala por si a realizao radical da autarcia, como ela foi atribuda aosofista Hpias que se vangloriava de ter ele prprio produzido tudo oque trazia no corpo (Plat., Hpias II, 368 bc, cf. VS 86 A I). Diante daalternativa de escolher entre uma melhoria das condies dedependncia exteriores de vida com diviso do trabalho econseqentemente com dependncia mtua e a afirmao da liberdadeoriginal e independncia a preo de um imaginrio regime primitivo devida, Hpias deve ter escolhido a segunda possibilidade.

    Em Epicuro e outros a reinvidicao da autarcia limita-se a contentar-se com a busca justamente do que est disponvel e pretender s o quepode ser conseguido com um mnimo de despesas.

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    Em outro nvel, chegamos tese de que a autarcia um aspecto daeudaimonia. Isso Aristteles expressamente acentua em EN 1097 b 6-8 e 1176b5 (cf. j Plato, Filebo, 20 D-22B, prximo de Aristteles,mas, por certo, no o modelo direto). J antes de Aristteles deve ter-se desenvolvido a questo de saber se a virtude, a perfeio da alma,portanto, como tal, possui essa autarcia e se dela o homem dela podeparticipar. Aristteles negou isso, como mostra a EN 1153 b 17-21. Aseu ver, no final das contas, a eudaimonia abarca, alm da perfeioda alma, tambm a do corpo e as realidades exteriores; se tudo isso serealiza, pode-se falar em autarcia. Isso, contudo, um caso limite quequase no ocorre e no de admirar que o Perpato mais tardio setenha afastado da exigncia mxima: a eudaimonia alcanada quandoos trs bens, em grande parte, esto presentes: Ccero, Tusc. disp., 5,22 e ss., De fin., 5, 91 ss. (compare tambm Diog. Laerc., 2, 91 eCic., De fin. 2, 62). Ento a plenitude total transforma-se em ummximo, estatisticamente determinado, que alcanvel.

    A questo de saber se a virtude, por si s, basta para a produo daeudaimonia, manteve-se ainda depois de Aristteles e tornou-se umpadro das questes da doxografia tica. Com ela sempre retorna afrmula th/n a)reth\n au)ta/rkh ei)=nai pro\j eu)daimoni/an.Cf. Dig.Laerc. 3, 78. Plato, com certas reservas, declara-se partidrio dela;mais longe vo as reservas de Aristteles (op. cit., 5, 30), enquantoAntstenes, no essencial, corresponde a Plato (op. cit. 6, 11). Dig.Laerc. oferece doutrinas diferentes da Stoa 7, 127/8; a frmula interpretada estoicamente por Ccero, Parad. Stoic. 16-19 (tambm olivro V das Tusc. disp.).

    Como j foi dito, no que toca ao indivduo, a autarcia pode traduzir atentativa de contar integralmente consigo mesmo para suasobrevivncia fsica. Muito mais importante a autarcia comoexpresso da independncia espiritual: o indivduo basta-se a si prprioe no precisa da presena de qualquer outro homem.

    Com isso, porm, torna-se um problema o fato de que todo homemest sempre em sociedade com outros homens. Que sentido pode ter, apartir de uma autarcia afirmada de modo enrgico, o trato com osoutros homens? Conseqentemente, uma tal autarcia termina na divinasolido do homem perfeito que se basta a si prprio.

    Com efeito, de modo algum falta a recomendao de um tal retiro nasolido. O cnico Teodoro parece expressamente ter declarado que osbio, que autrcico, no necessita da amizade (Dig. Laerc. l2, 98)e tambm Plato, numa passagem que passa desapercebida, insinua omesmo (Rep., 387 DE). Nem no deveramos admirar-nos disso.Numa reflexo profunda sempre se prova difcil explicar uma relaoentre dois homens que no seja, explcita ou implicitamente,hierarquicamente estruturada: hierarquicamente ou no sentido prprio,

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    conforme o modelo de relao que existe entre o professor e o alunoou entre o protetor e o protegido; ou, ento, no sentido imprprio dacomplementaridade, pelo qual, sob o ponto de vista da diviso dotrabalho, cada um coloca disposio do outro seu produto especfico.Em nenhum desses casos pode-se falar de autarcia. Sempre umdepende do outro e, justamente por isso, a relao suficientementemotivada. Mas como se estabelece uma relao, a partir da qual todadependncia previamente excluda graas ao desejo autrcico doindivduo, ou falando de maneira ch, uma relao na qual o elementoda utilidade para um ou outro dos parceiros, no pode, em princpio,ser levado em considerao? Compreende-se que uma tal relaopoderia ser a mais alta na hierarquia. Apesar disso, persiste, por inteiroe com toda sua dificuldade, a pergunta: Como deve ela ser conseguida,sem colocar em risco a autarcia do indivduo?

    Para responder a essa questo, por caminhos diferentes, Aristteles,Epicuro e os esticos no s formularam de modo mais preciso o idealda autarcia como tambm procuraram manter o sentido e anecessidade da amizade. Para Epicuro e para a Stoa temos o clssicotexto de Sneca, Ep. Luc. 9. Filosoficamente mais significante ateoria de Aristteles, acessvel em vrias variantes: EN 11693-1170b19, EE 1244b1-1245b19, MM (texto corrompido) 1212b24-1213b2. Ela, contudo, no conseguiu superar realmente asdificuldades. Enquanto a antiga doutrina do Estado, de algumamaneira, consegue superar a tenso entre o ideal de autarcia e arealidade histrica de uma pluralidade de Estados, porque diminui aomximo o peso da interdependncia internacional, no plano da ticaindividual persiste com toda a fora o conflito entre a autarciadesejvel e a necessidade e o grau das relaes humanas (que nopodem ser tomados simplesmente como meio para os fins doindivduo). Aristteles se apega, em primeiro lugar, ao pensamento deque a eudaimonia tem uma necessidade natural de comunicao e deinterao com a eudaimonia dos amigos. Em segundo lugar,desenvolve a tese notvel de que apenas a divindade pode satisfazerplenamente a exigncia de reflexo do indivduo sobre si mesmo,proposta pelo preceito dlfico conhece-te a ti mesmo, o homem sconsegue cumpri-la fragmentariamente. Ele se reconhece no espelhodo outro e tambm, no meio de sua eudaimonia, precisa da presenado outro para que, de forma indireta, seja vista nessa eudaimonia asua prpria eudaimonia. Isto implica em que verdadeiramente no possvel que o homem tenha uma autarcia perfeita, igual do deus jque a deficincia de sua natureza impe-lhe limites que ele no podesuperar.

    A contraposio flagrante que existe entre uma autarcia qual, emprincpio, o indivduo se ateve e a conhecida definio do homemcomo z%=on politiko/n representa em Aristteles um problema de tipointeiramente diferente. Em conseqncia dessa determinao, o

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    indivduo apenas uma parte de um todo abrangente e ele tem quecompreender a si prprio como referido a esse todo do Estado (cf. EN

    1097b6-14 e alm disso Pol. 1253a18-29). Ultrapassando qualquerinterpretao especfica desse texto (que dever ser apresentada emum outro lugar), essa contraposio torna claro, de forma exemplar,que o indivduo sempre vai ser obrigado a escolher entre uma autarciacuja dignidade, em ltima anlise, depende da divindade e umareferncia ao Estado e sociedade, que o reclamam integralmente parasi como uma parte do todo que eles prprios constituem. A existnciade uma terceira possibilidade questionvel.

    Com isso voltamo-nos para o problema da liberdade do indivduo noEstado. Por isso entendemos tanto a liberdade de ao como dedeciso que tem o indivduo em sua esfera, como tambm o direito co-determinao acerca da estrutura do Estado ao qual pertence.

    Como nosso trabalho no o de um historiador do Direito, no temosde tratar das definies legais particulares que concernem a essaliberdade nos diferentes Estados gregos. Estamos pesquisando sobre oespao da liberdade e sobre o direito de co--determinao em geral emetodologicamente alis, mais til, tanto em um como em outrocaso, partir dos riscos e restries. Busc-los sumamente instrutivo.

    Partimos da interpretao que Aristteles deu autarcia como um fimdo Estado. Para ele a autarcia s alcanada quando, na populao doEstado, esto representados todos os grupos profissionaisindispensveis sobrevivncia da unidade da cidade. Isso significa, poroutro lado, que o indivduo no pode por si s providenciar e produzirtudo aquilo de que necessita para a sua sobrevivncia e a dos seus.Teoricamente poder-se-ia imaginar, por certo, um homem que em todacircunstncia - e ento tambm em perfeita liberdade - fosseautoprovedor e vimos que Hpias de lis deve ter experimentadoplenamente essa possibilidade. O resultado disso foi, contudo, umaexistncia extremamente primitiva, uma maneira de sobrevivncia,sobre a qual podemos ter srias dvidas de que seja desejvel.

    Sem dvida, deparamo-nos (como j aludimos) com uma autnticaantinomia entre um compromisso de independncia do indivduo,independncia que precisa ser conseguida atravs da mais despojadaforma de vida e uma facilitao das condies fsicas da existncia,que se d apenas quando muitos indivduos se unem, dividem otrabalho entre si e cada um, de forma especializada, est concentradoem uma nica tarefa, atravs de cujo domnio, ele por sua vez,contribui para a prosperidade do grupo todo; nesse segundo caso,contudo, a autarcia sacrificada a favor de um sistema de dependnciamtua.

    Essa questo se tornar mais precisa.

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    As produes especializadas do indivduo no se encontram todas nomesmo plano. Dividem-se antes, por uma necessidade que resulta daprpria coisa, em dois tipos. Conforme frmula muito citada, um tipodesigna-se como o ordenar, o outro como o executar. Os setoresespecializados de carter bsico, como Plato Rep. 369 D e passim osenumera segundo um esquema fixo (proviso para alimentao,moradia, vestimenta e calado), no esto, por si prprios, emcondio de organizar-se entre si de forma adequada. necessrio queuma instncia especial cuide da coordenao das atividades doslavradores, marceneiros, alfaiates e sapateiros. Plato no fala deles noesboo de seu Estado primitivo (Rep. 369 B-372 D) porque pressupesistematicamente, embora no o faa logo de maneira explcita, que atarefa de organizar e ordenar cabe razo, portanto a uma parteessencial do homem, que, no Estado primitivo, de forma nenhuma, eramanifesta; sabe-se que o Estado primitivo no dispe nem de umaclasse de guardas nem de governantes. No Estado historicamenteconhecido, contudo, evidente que existe essa instncia deplanejamento e ordenao. Isso implica em uma grave limitao daliberdade daqueles que apenas tm de realizar o que foi planejado poroutros. Sob um ponto de vista estritamente formal, podese afirmarque ambas as partes sofrem limitaes; no plano dos fatos, certamente mais fcil que o ordenador queira renunciar realizao do plano doque, por sua vez, o realizador queira renunciar possibilidade de eleprprio planejar e ordenar.

    Entra em cena um elemento de muito peso quando (em parte nosentido de Plato, mas, sobretudo, no sentido de Aristteles) o ordenar basicamente entendido como um desempenho intelectual e o realizarcomo um desempenho preponderantemente material.

    Chegamos afinal a uma posio definitiva com a tese de Aristteles deque no homem o corpo e o esprito trabalham no em conjunto, masum contra o outro. Quem est muito ocupado corporalmente, nopode ser ativo tambm intelectualmente. Para utilizar logo umafrmula cara a Aristteles: Quem tem de cuidar do zh=n, portanto, deocupar-se com a sobrevivncia fsica da populao do Estado, no temfora nem tempo para ainda cuidar de seu prprio eu)= zh=n.

    A conseqncia evidente. Por motivos coercitivos que vm dadiviso do trabalho, uma parte preponderante da populao de umEstado , por assim dizer, condenada a renunciar atividade espirituale, com ela, igualmente ao eu)= zh=n, eudaimonia que cabe aohomem e que, no essencial, tem sua base na atividade espiritual e quenela consiste. uma conseqncia altamente inquietante, mas tambmdigna de reflexo. A necessidade de melhorar as condies fsicas devida do homem leva a que uma maioria dessa mesma humanidade noesteja em condio de ocupar-se justamente com essa aptido que,reconhecidamente, em relao s plantas e aos animais, constitui o

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    i)/dion do homem.

    Como prova podem bastar, em nosso contexto, Pol., 1278a20/21 e1328b33-1329a2.

    P18/2 Pelo visto, em segundo plano esto duas coisas distintas: uma, acompreenso do limite do poder humano, sobretudo um limite quesempre lhe permite realizar apenas uma coisa ou outra, mas no todasjuntas; a seguir, como herana platnica (e no apenas platnica), aconvico de que, em ltima anlise, esprito e corpo no formam umtodo orgnico, mas uma unio de duas grandezas heterogneas,realizada para\ fu/sin .

    A Stoa tinha, alis, uma viso essencialmente oposta e tentava comtoda fora manter aberta a cada homem a possibilidade e a liberdadede conseguir a eudaimonia. Trabalho fsico no podia e nem devia porem risco a eudaimonia filosfica e, naturalmente, definiu essaeudaimonia de forma inteiramente diferente da de Aristteles. Deve-selembrar aqui no s o componente cnico da tica estica, mastambm a estilizao da pessoa de Cleantes (Diog. Laerc. 7, 168/9 eoutros) e finalmente a famosa citao das "Lembranas de Crates" deZeno, o Ction: o sapateiro Filisco trouxe consigo melhorespressupostos para a filosofia do que o rei cprio Tmison a quemAristteles quisera ganhar para a filosofia (SVF 1,273).

    Podia, porm, ter ficado claro tambm para Aristteles que elesimplesmente no podia manter-se em sua frmula brutal. Barrar a umhomem que, por sua situao, fosse capaz de alcanar a eudaimoniaapropriada ao homem, o caminho para essa felicidade, porque a eleest destinada a tarefa de cuidar da sobrevivncia material do grupo aoqual pertence, como campons, marceneiro, alfaiate ou sapateiro, mais que odioso e quase impossvel que ele se satisfaa com uma talsituao e com suas implicaes.

    Para de alguma maneira tornar aceitvel essa situao, a sada que est mo ver a limitao da liberdade humana a partir de um ngulointeiramente diferente.

    Entre as razes da diviso do trabalho no Estado primitivo, j Platotinha declarado que as aptides naturais dos homens so diferentes(Rep. 370 ab, 374bc). Embora nunca tivesse feito disso um tema adiscutir, tambm pressups que a classe dos camponeses, artfices ecomerciantes dominada pelo e)piqumhtiko/n e portanto, na melhordas hipteses, eles s em pequena escala dispem do qumoeide/j esobretudo do logistiko/n, partes superiores da alma. Especialmentecuriosa , afinal, a passagem Rep. 371 c-e que incorporava, j noEstado primitivo, duas profisses que, em hierarquia, ainda estoabaixo das demais. A inteno de Plato parece ser caracteriz-las deforma complementar. No primeiro caso trata-se de homens cujo fsico

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    excepcionalmente fraco, mas que so suficientemente dotadosespiritualmente; a eles apropriada a profisso pouco cansativa (mastambm insignificante) dos comerciantes. O segundo caso justamenteo contrrio. Nele temos que tratar com pessoas cuja dia/noia tofracamente desenvolvida que o Estado no pode contar com elas, masque, apesar disso, so bem dotadas de fora corporal. A nica coisaque podem fazer pelo Estado colocar disposio dele sua foracomo trabalhadores diaristas.

    Aristteles vai ainda um passo alm.

    Na verdade ele nunca se colocou de forma explcita a questo sobrecomo fica a aptido intelectual do campons e do artfice, osba/nausoi, em geral. Pode-se, contudo, presumir que fosse de opiniode que deles pode ser exigida a renncia eudaimonia, que, alis, porsua situao natural, no podem alcanar.

    No nosso contexto, mais importante que, com isso, chegamos aolimiar de uma doutrina da qual Aristteles especialmente se orgulhou,como de uma proeza sua: a doutrina do "escravo por natureza".

    No precisamos alongar-nos mais sobre o fato de que a escravido erauma instituio antiqssima e muito difundida na antiguidade em geral.Seu fundamento jurdico, em resumo, era que o inimigo vencido naguerra passava para a propriedade do vencedor no apenas com todasas suas propriedades, mas tambm integralmente com a sua prpriapessoa. Em princpio fica inconteste que esse processo, a transmutaode homens livres e capazes em objetos disponveis, no temabsolutamente nada a ver com a questo da qualidade espiritual dessehomem. Aqui fica implcita uma restrio que no se pode deixar dever: uma situao em que se acha o homem, exclusivamente devido tu/xh do transcurso de uma guerra, e, no, devido sua prpria fu/sij,traz em si todas as caractersticas de algo para\ fu/sin.Conseqentemente tanto a guerra como a escravido sero estranhas auma forma de vida perfeitamente kata\ fu/sin. Conforme a viso geralgrega, a vida e)pi\ Kro/nou bi/oj no conhecia a escravido.

    Essas observaes bsicas, contudo, no so suficientes para dar contado problema, razo pela qual Aristteles procurou resolv-lo a seumodo. Distingue a escravido segundo o direito de guerra que, emltima anlise, uma instituio que no tem justificao, e aescravido por natureza. Esta legitimada pelo fato de que h homensque, por natureza, so to pouco dotados, que no so apenasincapazes de alcanar a eudaimonia, mas, mais que isso, no estonem na situao de cuidar de si prprios de forma independente e pordeciso livre. So dependentes de um outro, espiritualmente melhordotado, que lhes diz, no interesse deles, o que tm que fazer e comofazer sua opo, porque no podem decidir por si prprios.

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    A expresso clssica a respeito, Pol. 1252a30-34, esboa uma relaocomplementar que se apresenta como uma variante da passagemplatnica, Rep. 371 c-e, h pouco citada. Esto um diante do outro, ohomem que pode e sabe planejar intelectualmente o que para fazer(ele prprio, porm, no pode realizar isso, porque lhe faltam forascorporais), e o outro que extremamente capaz, do ponto de vistafsico, mas no dispe da dia/noia capaz de prever. A rigor, ambosviriam a sucumbir, se qualquer deles fosse deixado entregue a siprprio. do interesse de ambos trabalharem juntos. Um, comosenhor, ordena o que tem que ser feito, para que ambos possamsobreviver; o outro, o escravo, executa a ordem. Assim, resumindonuma frmula mordaz, o inteligente depende do forte, que para eletrabalha com os instrumentos e o forte depende do inteligente, quepensa e decide por ele.

    Com efeito, a desigualdade de aptides que, como tal, na zona do maise do menos, quase no pode ser contestada, alcana um limite extremoe surge um problema novo, no fcil de resolver. Em que sentido taishomens que devem ser dirigidos, porque eles prprios no possuemrazo suficiente para poderem dirigir-se a si prprios, apesar dissopodem ser includos na clssica definio segundo a qual o homem um z%=on logiko/n(cf. EN 1097b 33-1098a 5)? No sero eles, porassim dizer, excludos da definio e, com isso, na melhor dashipteses, no permanecero sempre crianas e, na pior, no setornaro semelhantes ao animal? Aristteles viu essa dificuldade, comoo mostra Pol. 1254b16-26. Se estava consciente de todas as suasimplicaes uma outra questo, sobretudo quando consideramos que,cf. Pol. 1252b5-9, os povos brbaros parecem ser inteiramenteequiparados aos escravos por natureza. Por isso, portanto, a relaodos gregos com os brbaros interpretada conforme o modelo de1252a30-34. Torna-se pleno de sentido, para os dois lados, que osgregos dominem os brbaros, pois apenas eles so capazes de fazerplanos; os brbaros, ao contrrio, com sua fora fsica e sua grandenmero de homens, podem realizar o que outros planejaram para eles(Observe-se marginalmente que os romanos aceitaram parcialmenteessa forma de pensar para legitimar o seu imprio; apenas noreclamaram para si tanto a posse de uma dia/noia que em geral planejaquanto, ao contrrio, a aptido especial de estabelecer uma ordempoltica justa. Ningum contestar que, aqui como l, a exignciamuitas vezes serve apenas para dissimular "ideologicamente" uma puraaspirao ao poder. Contudo, no se deve generalizar cegamente esseponto de vista e houve quem tambm estivesse honestamenteconvencido disso).

    Em princpio, isso significa que no apenas alguns indivduos, mas amaioria de todos os homens, de forma alguma, pode ser consideradacomo z%=a logika/. Os esclarecimentos da Pol. 1254b16-26 sopouco satisfatrios e so mais reveladores do embarao de Aristteles

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    que adequados para super-lo. O escravo, assim diz ele, tem umaparticipao no lo/goj, mas apenas em sentido receptivo. No possui arazo que permite decidir responsavelmente, de forma independente elivre, mas simplesmente a possibilidade de compreender a deciso deum outro. Pode-se, portanto, falar com ele ensinando-o, o que o eleva,alis, acima do animal. Na prtica, contudo, como Aristteles esclareceexpressamente, isso faz "apenas uma pequena diferena."

    Evidentemente essa tese aristotlica pela qual, em todo caso, apenasuma minoria dos homens pode ser designada como z%=a logika/ nopleno sentido da palavra tem uma semelhana estrutural com adoutrina estica, segundo a qual a massa preponderante dahumanidade se constitui de meros fau=loi, portanto de a)/fronej emaino/menoi. Aqui como l, embora primeira vista seja legtimo, opensamento de que todo bem e perfeio so raros logo provocaperguntas: Por que razo isso to raro? Como essa raridade concilivel com a hiptese de uma ordem mundial na qual tudo estorganizado de forma to adequada quanto possvel? Que essa questofique provisoriamente em suspenso!

    Para ns mais importante o fato de que a doutrina estica chame aateno para um terceiro aspecto da limitao da liberdade individualno Estado.

    At agora falou-se da reduo da liberdade como conseqncia dadiviso do trabalho que se impe no interesse da melhoria dascondies materiais de vida e, sobretudo, como conseqncia daextraordinria diferena de aptides entre os homens que faz com queo "escravo por natureza" represente justamente aquele caso limite emque o homem est ameaado de permanecer no nvel do animal.

    Uma terceira fonte de reduo da liberdade est no fato de que,segundo a sentena do velho Bias de Priene, "a maioria dos homens m" (Dig. Laerc 1, 88). Toda a filosofia antiga est persuadida damaldade dos pollo, do plh=qoj, mesmo quando ensina, alis, que apro/noia administra o mundo da melhor forma, e quando no tem pejode recorrer a esta ou aquela tese do consensus temporum et gentium.Como foi observado, para a Stoa a maioria dos homens, de longe,consta de fau=loi e, na trilha de Epicuro, Sneca no se cansa deadvertir seu amigo Luclio em relao turba: "Sempre que eu fiqueientre homens, voltei para casa pior do que quando eu sa." (Ep. Luc.7, 1).

    algo muito primitivo supor que aqui est em ao apenas umpensamento "elitista", como gosta de fazer o moderno jacobinismo e asdificuldades no so fceis de resolver. Deixamos isso de lado etambm a difcil questo (s raramente encarada pelos antigos): Porque deus ou a fu/sijno dotou o homem previamente com toda a

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    a)reth/ tica, mas o sobrecarregou com a tarefa de decidir livrementepr ou contra a a)reth/? (Paralelamente, como se sabe, ocorre apergunta: Por que o homem no dispe, previamente, de todos osmeios para assegurar sua sobrevivncia fsica, mas,s a custo deveapropriar-se de todas as te/xnai)?

    No contexto de nosso tempo, limitamo-nos afirmao de que,evidentemente, no vale a pena deixar o fau=loj entregue ao seu livrearbtrio. No caso dele, no temos de lidar com uma deficincia deaptido, como no caso do escravo, mas com uma vontade depravada;ele seria capaz de encontrar a deciso correta, mas no o faz. Contraisso, o Estado intervir com medidas coercitivas.

    A antiga filosofia do Estado trata a contragosto do direito que tm oEstado e as autoridades de induzir o cidado ao comportamentocorreto, no com um apelo a sua inteligncia, atravs da didaxh e dapeiqw, portanto, mas atravs da ameaa do poder. Mesmo assim, ficaclaro que costumam legitimar a coao sobretudo com duasjustificativas principais. Em primeiro lugar, preciso partir do fato deque uma das incontestveis tarefas do Estado estabelecer, entre oscidados, uma ordem universalmente adequada. As leis formulam asregras segundo as quais devia ser possvel a o(mo/noia/concrdia, aconvivncia sem atritos de uns e outros. A situao mais desejvelseria aquela em que cada indivduo, espontnea e previamente,compreendesse o sentido dessa regra e estivesse pronto a reconhec-lavlida para si prprio. Isso, porm, no acontece sempre e, naverdade, no porque os polloi/ no sejam suficientemente dotados parauma tal compreenso, mas porque eles so maus e, de bom grado,oferecem resistncia.

    Basicamente, de modo algum, exclui-se que um esforo incansvel deinstruo possa, no final das contas, convencer tambm o homemdepravado de que certo submeter-se lei. Ento, tambm ele, porsua livre compreenso, agir de acordo a lei. A dificuldade est apenasem que o Estado no pode esperar at que cada um tenhacompreendido que razovel obedecer lei. Aqui e agora, ele obrigado a manter vlida uma ordenao que possa ser praticada.Assim, o Estado precisa obrigar a agir j agora conforme a lei, contra asua vontade e sem compreenso prpria, aquele de quem no seespera que alcance a compreenso interior em tempo hbil .

    Mais uma vez fica claro que estamos diante de uma antinomia: ou seespera at que cada um, por sua compreenso e deciso eticamenteresponsvel, esteja pronto a respeitar a lei do Estado, com o risco deque uma convivncia ordenada e duradoura entre os cidados sejaposta em perigo por um tempo considervel ou se torne at invivel;ou, desde agora, impe-se uma ordem indispensvel ao convvio, pormeio de medidas coercitivas, resignando-se a aceitar que, do ponto de

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    vista tico, o comportamento conforme lei daquele que a isso forcoagido no tem valor.

    O Estado antigo decidiu-se pela segunda soluo e a antiga filosofia doEstado, mais implcita que explcitamente, confirmou-a.

    Com a segunda justificativa entra em jogo a eudaimonia. A filosofiado Estado de Plato e de Aristteles defendeu a tese de que dever doEstado cuidar da eudaimonia dos cidados. Ele precisa adotar asmedidas e criar instituies que possibilitem ao indivduo alcanar ofim que lhe foi estabelecido pela natureza. Assim o Estado torna-se oeducador e, j que o comportamento do homem a partir da infncia,em todas as esferas da vida, pode influir favorvel oudesfavoravelmente em sua aspirao eudaimonia, o resultado queo Estado tem o direito de, orientando e regulamentando, intervir emtoda esfera da vida.

    Percebemos claramente o quanto isto inquietante. Em Plato, naRepblica e ainda mais nas Leis, e tambm em Aristteles, a legislaoorganiza literalmente todas as relaes da vida, desde a gerao dacriana, passando pelo cuidado com o lactente, a instruo dos jovens,chegando at as ocupaes da velhice. Sob esse ponto de vista,tambm prescrito aos poetas o que devem criar e, aos professores,que disciplinas devem lecionar. Quase no sobra um espao no qual oindivduo possa mover-se livremente. So conhecidas de todos ascensuras que, nos tempos modernos e mais recentemente, a partirdisso, tm sido levantadas contra a construo platnica do Estado.

    Pode ser que, aqui tambm, se possa falar de uma antinomia. Dependedo que, em ltima instncia, seja relevante: deve-se conceder aoindivduo um espao bem vasto de livre julgamento, correndo-se orisco de que aja erradamente e jamais consiga chegar mesmo prximoda eudaimonia, ou a lei deve obrigar o indivduo sem discernimento aseguir o caminho que leva eudaimonia? Considerando o destino dohomem, o que melhor, chegar a esse caminho por meio dedisposies coercitivas na esperana de que a coero se tornecompreenso e, com isso, o caminho que leva eudaimonia venha aabrir-se ou, ao contrrio, melhor entregar o homem sua liberdade edeixar a seu inteiro critrio se ele quer ou no cuidar de seu destino?

    Para Plato, o destino do homem, isto , a viso da Idia do Bem estestabelecido, mas, convencido de que a maioria das pessoas, narealidade, so fau=loi, ele optou pela coero educativa sem impor-lherestries dignas de meno. Parecia-lhe melhor para o homem, comoele realmente, chegar mais perto de seu destino sem liberdade doque, em liberdade, falhar irremediavelmente em seu destino.

    Os adversrios de Plato contra ele faro valer, em primeiro lugar, ofato de que o homem absolutamente no to fau=loj, como a

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    filosofia antiga quer fazer-nos acreditar; em segundo, o fato de que,tranqilamente e com muita confiana, pode-se deixar que cadahomem decida em liberdade o que, acima de tudo, quer considerarcomo seu destino e tambm se razovel orientar sua vida para um taldestino.

    De nossa parte, no devemos deixar-nos envolver aqui na discussodessas posies antagnicas.

    O recurso ao que se deve dizer sobre o conceito aristotlico de escravopor natureza facilitar o nosso acesso ao nosso prximo circulo deproblemas. A questo da competncia de cada um est ligada com ateoria de Aristteles e, mais ainda, com o fenmeno da diviso dotrabalho. Por outro lado, a partir dela chegamos ao vasto complexo dasdiferentes formas de Estado.

    Naturalmente no se trata de estender-nos sobre o sistema de formasde Estado, como o desenvolveram Plato e os peripatticos (nodeveramos, em comparao com Aristteles, subestimar neste ponto osignificado de Teofrasto). Limitamo-nos antes questo precisa acercada competncia poltica: Num Estado que, em todas as circunstncias, constitudo de a)/rxontej e a)rxo/menoi , quem tem direito legtimode ser a)/rxwn?

    Dividem-se em dois grupos as respostas possveis que sobretudoAristteles enumera reiteradas vezes. Um primeiro grupo configura aslegitimaes que vm da tradio histrica: a aristocracia e a riqueza.Como, no segundo caso,no se trata, de modo algum, de um capitalfinanceiro qualquer, amealhado por sorte e habilidade, mas de bens deraiz herdados cuja origem se perde nas brumas do passado, pode-sedizer que os dois casos esto apoiados em uma autoridade especficaque vem de uma condio que pde ser afirmada atravs de sculos -uma condio, pois, na qual experincias especificamente histricaspuderam acumular-se. Uma tal autoridade, alis, geralmente estexposta sem defesa ao ataque de exigncias racionais. Passa-se algoparecido com determinados no/moi que tiram a sua autoridadeexclusivamente do fato de que, desde sempre, foram respeitados semque tivesse que responder se so justos e racionalmentefundamentados (cf. Arist.Pol.,1269a19-24). Tambm significativoque a teoria grega se contraponha com desconfiana teoria da puramonarquia hereditria recebida dos romanos e sinta a monarquiaeletiva como a nica forma legtima de monarquia; o rei deve ser "omelhor", uma frmula to bvia na teoria quanto perigosa na prtica,porque em situaes historicamente crticas toda uma srie decandidatos costuma, na maioria das vezes, apresentar-se como osmelhores.

    O segundo grupo de legitimaes tambm resulta de pontos de vista

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    racionais, que, evidentemente, excluem-se mutuamente.

    O primeiro o da competncia especializada. A administrao de umEstado, como qualquer outra profisso que seja um pouco exigente,exige saber e poder especializados. Desde os socrticos invoca-se,como comparao, sobretudo a profisso do piloto, do arquiteto e domdico. Rigorosamente falando, isso significa que legtimo queexera a magistratura apenas aquele que der provas de que possui apolitikh\ a)reth/. A terminologia grega permite tambm que se fale dapolitikh\a)reth que visa tanto competncia tcnica quanto perfeiotica do verdadeiro estadista.

    Poucos homens, entretanto, merecem essa qualificao. Tanto Platoquanto Aristteles aceitaram sem rodeios que, no conjunto de umdeterminado povo, talvez haja apenas um nico homem ou entoapenas um pequeno grupo. Para o direito pblico a conseqncia que, estruturalmente, um Estado no qual reina a competncia polticas pode ser uma monarquia ou uma aristocracia. Para Plato essesdois regimes - tanto um quanto outro - so basicamente variantesequivalentes do Estado perfeito e, Aristteles, pelo menos, em muitaspartes de sua Poltica, tem a mesma opinio.

    A esse ponto de vista, que no fcil de contestar, quandoconsiderado em si prprio, contrape-se outro que, a rigor, igualmente incontestvel.

    O Estado essencialmente uma construo histrica. EnquantoEstado, seu alvo (como Aristteles vrias vezes observou) aestabilidade. Mant-la ser to mais importante quanto maisnumerosos forem os perigos vista. preciso sempre contar com aameaa de do exterior; tambm o Estado platnico perfeito estcercado de inimigos potenciais e, por isso, necessita de guardas empermanente estado de alerta. Apesar disso, no se deve perder de vistao perigo de desagregao que vem do interior. Para enfrent-lo existeapenas um caminho racional. preciso conseguir que todos oscidados estejam interessados diretamente na manuteno do Estado,tanto na sua integridade territorial quanto na sua estrutura poltica. OEstado subsiste quando todos os cidados desejam que subsista. Porsua vez, isso faro, se todos, de igual forma, tiverem o direito departicipar do governo do Estado e sentirem-se igualmente responsveispela ordem poltica. Isso leva democracia como a forma de Estadona qual o acesso magistratura est exclusivamente ligado comprovao de que se um cidado livre.

    Com isso torna-se clara a contraposio. Para a filosofia poltica gregaas formas de Estado nas quais a politikh\ te/xnh pode reinar so amonarquia e a aristocracia; ao mesmo tempo, preciso admitir queapenas poucos governem e que a esmagadora maioria dos cidados

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    seja excluda para sempre do governo. A democracia , emcontrapartida, a forma de Estado na qual todos os cidados participamdo governo e assim esto espontaneamente interessados naconservao do todo; nesse caso que ela tem a chance de ser a maisduradoura forma de Estado. Admitir-se-, porm, que precisorenunciar a toda competncia especializada dos que assumem asmagistraturas.

    Aristteles, por certo, fez srias advertncias acerca dessa evidenteincompatibilidade do princpio da a)reth/ com o da e)leuqeri/a. Issomostra que procurou uma soluo de compromisso.

    Quanto monarquia, pressups que os cidados reconhecem, seminveja, a a)reth/ superior do governante e que, em liberdade, estoprontos a submeter-se a ele, renunciando, com isso, ao seu direito deco-determinao no Estado. A razo disso a convico de que, emltima anlise, a necessidade humana de independncia e de liberdade,de no precisar deixar-se instruir por ningum sobre o que tem quefazer, talvez no seja, em essncia, maior do que a necessidadecontrria de evitar decises prprias e de encarregar os outros daresponsabilidade pelo que tem que acontecer.

    Ele est persuadido de que a democracia representa, no transcursohistrico, a forma definitiva do Estado (cf. Pol. 1286b20-22). Ela exigemenos dos cidados e, por isso, pode contar com a mais amplaaprovao.

    Para legitimar o seu princpio, existem duas teorias, ambas bemcomplexas.

    A tarefa que se apresenta em primeiro lugar puramente formal,conciliar a liberdade e igualdade de todos com o fato de que cadaEstado construdo pela ao conjunta de a)/rxein e a)/rxesqai. Issoser alcanado porque, revezando-se, cada um governa e governado". Essa uma frase-frmula que Aristteles recebeu, semdvida, do vocabulrio poltico da Atenas de seu tempo (Pol.1252a15/16, 1279a8-13, 1322b25-29 e outras passagens) e essafrmula tambm continuou a influir no pensamento romano; pode-secitar Lvio (3,39,8; 4,5,5) que, por sua vez, ser estimulado porCcero. A frase sugestiva, mas, antes esconde que supera adificuldade. De um lado, sublinha as diferenas de funes, medidaque, governando todo o Estado, um planeja e ordena e um outro,obedecendo, por sua vez cumpre as ordens que lhe dizem respeito,uma relao que, ao que parece, no pode existir sem a admisso deque, no governante, h conhecimentos e habilidades especficas. Poroutro lado, em turnos regulares, essas mesmas funes se alternam demodo que um mesmo homem, durante um ano, d provas dasqualificaes especiais que o governo exige e, durante o ano seguinte,

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    deixa que o simples cidado entre em cena.

    Na Poltica III 4/5 esse problema vem luz claramente, em especial,no ponto em que nossa frmula posta ao lado da frase "Apenasaquele que antes se deixou governar bem pode vir a governar bem"(1277b12/13), que parece semelhante, mas tem, na realidade,orientao diferente. que esta frase assinala uma conseqnciairreversvel, como ensina 1332b32-1333a6: No Estado perfeito ojovem vai preferir ser obediente s ordens do governante, porque sabeque mais tarde, como adulto, ele prprio pode vir a exercer o ofcio dogovernante que d ordens. Esse um pensamento to simples quantobvio. Na exigncia da reversibilidade permanente do a)/rxein ea)/rxesqaicrava-se uma aporia talvez sem soluo.

    De tipo inteiramente diferente uma segunda teoria, uma das maisestranhas que a filosofia aristotlica do Estado produziu. Afirma que,na verdade, o cidado mdio, como indivduo, no dispe decompetncia poltica alguma, mas que, da soma de todas as opiniesparticulares, resulta uma suficiente competncia poltica do conjuntodos cidados. A soma de todos os cidados alcana um nvel dematuridade poltica e tica que mais alto no apenas que o nvelpessoal de cada indivduo mdio, mas at mesmo mais alto que o nvelde poucos que, como indivduos, alcanaram a perfeita politikh\te/xnh. Esse , apesar de algumas reservas que Aristteles apresenta, osentido de Pol.III. 1281a39-1282b1. No este o lugar para fazer-se ainterpretao toda do texto. Tambm no necessrio acentuar queesse esforo para legitimar a competncia poltica do povo democrticoencontra-se em contraposio manifesta com a tradio socrtica, talcomo defendida por Xenofonte, Mem. 3,7 (cf. Diog. Laerc. 2, 34 eCcero, Tusc. Disp., 5, 104) e Plato (vide Gorg. 473e-474a, Rep.493e-494a, Leis 670b e outros).

    Abre-se uma ampla perspectiva, quando pensamos que tanto oprincpio da competncia quanto o da liberdade, de modo especfico,podem hipertrofiar-se.

    Competncia significa poder. J o fato, h pouco abordado, de que asprescries da lei, em caso de necessidade, precisam ser impostas porcoero, implica, para aquele que tem de agir em nome da lei naseduo de exercer a coero no mais apenas no interesse do Estado,mas no seu prprio. A competncia, por sua vez, cria umasuperioridade concreta que tambm pode ser utilizada para aconstruo de posies pessoais de poder.

    Os antigos viram tal vontade de poder encarnada na figura do tirano;ele no cobia outra coisa que o poder e, sem levar nada em conta,busca seus interesses e caprichos. Seguir a histria desta figura seria,por si s, uma tarefa. Em suas primeiras manifestaes na Histria, o

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    tirano apresenta-se simplesmente como o governante que governaexclusivamente com o apoio de seu valor pessoal e sem o amparo dalegalidade; ele , por isso, ao mesmo tempo mais livre em sua decisoe, em sua posio, est mais exposto ao risco que qualquer magistradoinvestido pela lei. A poltica e a filosofia tica fizeram dessa instituiouma soma de toda abjeo e desgraa. O tirano o homem que temtodo poder, mas nem um nico amigo, que d livre curso a todos osseus apetites e, com isso, vive eternamente angustiado etc. ParaPlato, ao lado dos sofistas, a imagem oposta do filsofo.

    A realidade histrica do V e IV sculos a.C. faz-nos saber muitoclaramente que os gregos, de um lado, sempre foram fascinados pelaviso da possibilidade do poder soberano sem limites e, de outro, que alegislao no se cansou de garantir-se, de todas as formas possveis,contra a concentrao do poder na mo de um nico magistrado:extrema limitao da durao da funo pblica, o colegiado e aobrigao de prestar contas com preciso ao trmino de cadamagistratura foram os mais importantes meios, sempre empregados,para ter essa garantia.

    Naturalmente mesmo essa configurao tambm desemboca em umaantinomia que no pode ser eliminada. Um Estado cuja sobrevivnciadepende de ao rpida e enrgica e que precisa dar a seus magistradosos meios para tal ao, forosamente corre o risco de que osmagistrados abusem do poder que lhes foi entregue para aumentar aposio de poder pessoal; se cada magistrado, ao contrrio, submetido a um controle contnuo e seu livre espao de ao limitado ao extremo por medidas legais, o Estado tem de aceitar quetoda deciso poltica seja aprovada lentamente e com muito esforo,coisa que s um Estado que se saiba livre de presses internas eexternas pode admitir.

    Todavia, no apenas o poder que pode hipertrofiar-se, mas tambma liberdade. Sua tendncia a colocar-se de forma absoluta maiorporque sempre apenas poucos esto prontos a exigir a responsabilidadee o gozo do poder, enquanto, em nome de uma ilimitada liberdade,populaes inteiras podem ser mobilizado sem esforo.

    Tanto para Plato quanto para Aristteles, o perigo interno epermanente da democracia resulta dessa tendncia. Em Aristtelesdistinguem-se trs nveis mais ou menos ntidos.

    Primeiro, a liberdade democrtica move-se no mbito da leiestabelecida. Dito com mais rigor, limita-se quela esfera quecorresponde ao indivduo, a decises emitidas aqui e agora (o kaq'e(/kasta), sobre as quais a lei, como algo que, de acordo com o seuser, alis, se refere ao geral (kaqo/lou), nada pode estabelecer.

    A liberdade, porm, rompe esse quadro. O povo soberano se faz

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    senhor tambm da lei e reconhece to somente as prprias decises,que encontra caso a caso. Isso a democracia que governa comyhfi/smata. O kaqo/lou desaparece, e s o kaq'e(/kaston se estabelececomo norma, que sempre se estabelece de novo, em plena liberdade(cf. Arist. Pol., 1292a4-37).

    Pode-se compreender historicamente esta democracia como oresultado do desenvolvimento especial do Estado ateniense de Slonat o meio do sculo IV a.C. Todavia, isso no explica tudo.

    O que disso resulta a caracterstica e a fraqueza gritante do conceitogrego do no/moj no seu todo. Com isso no quero apenas dizer queem no/moj (diferentemente do que ocorre com a lex latina), comotodos reconhecem, sempre permaneceram fluidos os limites entre a lei,expressa obrigatoriamente com exatido, e o mero costume. Tambm importante o fato de que os gregos raramente tenham refletido sobrea origem de toda legalidade. Para a maioria dos Estados gregos arepresentao corrente que, no incio, est um legislador que, emvirtude de autoridade especial, criou o sistema fundamental das leis.De onde, portanto, o prprio legislador, chame ele Slon, Zaleucos ouCarondas, recebe os princpios fundamentais que so desenvolvidosem sua obra? Seu feito no inventar o direito, mas formular de modoadequado o direito concebido por ele. certo que encontramosespeculaes que associam a lei poltica a uma lei csmica e procuramderiv-la desta. Isso, contudo, no leva muito longe. Constitui-se oconceito de direito natural que, para ns s apreensvel de modosignificativo na tardia exposio de Ccero no De Legibus. Mesmoisso, porm, permanece muito geral e terico. Assim, ento, oprincpio da legalidade como uma regulamentao preestabelecida deuma vez para sempre, pde ser superado sem dificuldade por meio doprincpio oposto, o da liberdade que escolhe, ela prpria, caso porcaso, as regras de sua ao.

    Resta um terceiro e ltimo nvel. A a exigncia de liberdade abrangetodo o estilo de vida, ultrapassando a esfera poltica. O lema diz quecada indivduo deve ser livre para "viver precisamente como quer";assim, j no Laques de Plato 179a, Rep. 520a, 557b, a seguir Arist.Pol., 1310a32/33, 1317b11-13, 1318b40, 1319b30, finalmente CceroHort. Frg. 39M, Parad. Stoic. 5, 34, De off., 1, 70 e outros. famoso o texto, livremente traduzido por Ccero De rep. I, 66/67, noqual Plato, Rep. 562d-563d, caricaturando-a com cores fortes, pintoua vida em liberdade total.

    No necessrio entrar em mincias. Poder-se-ia talvez perguntar seexiste uma ligao espiritual entre o lema poltico e aquela tesefilosfica que se costuma denominar com a frase homo-mensura deProtgoras. evidente que a pretenso que o indivduo tem de poderviver como quer tem afinidade com o pensamento de que o indivduo,

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    por si prprio, no pode visar a outro tlos da vida que no o que lheparece e lhe oferecido como tal. Aqui, contudo, posso apenasconcisamente remeter conhecida discusso no Teeteto de Plato e EN III 6/7 de Aristteles.

    Por fim, um problema que merece mais ateno do que a que lhecoube at agora o da ortodoxia, tanto no mbito da religio grega eromana do Estado como no das escolas de filosofia. A frmula neo-clssica simples, segundo a qual os antigos tiveram, nesses assuntos,uma liberalidade que foi inteiramente estranha aos sculos cristos, demodo algum satisfatria. J bastam os processos de impiedade emAtenas e as inmeras proibies e limitaes a que os cultosestrangeiros em Roma estavam expostos para mostrar que se deve, emdeterminadas zonas fronteirias da religio, contar com relaes, nomnimo, suficientemente complicadas; e o conceito das escolasfilosficas, tal como se consolidou, no transcurso dos sculos IV e IIIa.C., tem apenas sentido quando no designa uma unidadeorganizatria e jurdica, mas, tambm e sobretudo, uma continuidadeespecfica da doutrina representada. Dito de outro modo, precisamosadmitir que existiram limites definidos que no podiam serultrapassados. Sem dvida esperava-se de quem aderisse a uma escolaque ele aderisse a certas doutrinas essenciais; se, um dia, no transcursode sua vida, no estivesse mais nessa condio, na verdade, no sofria,em conseqncia, qualquer sano fsica, mas seguramente seriaconvidado e obrigado a deixar a comunidade escolar. Por ora, aqui nopodemos entrar em pormenores.

    Com o conceito de liberdade como o pressuposto de toda aoeticamente responsvel, chegamos a um crculo de problemasinteiramente diferentes.

    Uma ao considerada tica apenas quando resulta de uma decisolivre entre diferentes possibilidades de escolha existentes. Recompensae castigo, por meio da sociedade ou tambm por meio da divindade,so legtimas apenas quando o agente pode assumir como prpria umadeciso correta ou ser responsabilizado por uma deciso errada.

    Essa configurao permanece vlida, qualquer que seja o que apsicologia emprica e a sociologia possam aduzir sobretudo contra aspossibilidades de decises livres. Dito de outro modo, a existncia daliberdade justamente to pouco refutvel de maneira imperativa e topouco demonstrvel de maneira imperativa como a existncia dadivindade. A confiabilidade do nosso saber no aumenta de forma maisou menos proporcional prpria relevncia da coisa, antes diminui enosso saber, a respeito das coisas mais relevantes, o mais precriopossvel.

    Duas afirmaes gerais devem vir logo em seguida.

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    Primeiro: um ato elementar de auto-afirmao o fato de que ohomem, desde o princpio e antes de qualquer reflexo filosfica (j ohomem homrico tambm), inclinado a atribuir a si prprio a glriade uma ao com xito e a descarregar em outros fatores aresponsabilidade pelo mau sucesso. O xito de um rival ou de uminimigo atribudo, ao contrrio, a circunstncias favorveis ou interveno dos deuses; um insucesso, contudo, creditado ao prprioinimigo. Isso um mecanismo elementar que, todavia, tambm nasconsideraes filosficas nunca se deveria perder de vista inteiramente.

    Segundo: Do fato de que cada ao humana inevitavelmente ser umaao em sociedade (e possivelmente sob os olhos da divindade),resulta uma antinomia que j Plato julgou insolvel. Por um lado,uma ao tica apenas quando se d porque tica (em Platoquando o homem age retamente graas sua retido); perde seucarter tico no momento em que ocorre em considerao a umarecompensa esperada ou pelo temor de um castigo. Por outro lado,no se pode supor que a sociedade ou a divindade deixem de honraruma ao eticamente correta e aprovem uma deciso errada. Vista nocontexto social e teolgico, a ao tica no pode escapar, assim, aoprmio e ao castigo. Pode preservar a sua substncia apenas quando,de forma consciente e expressa, no conta com essa conseqncia,embora saiba que vai ocorrer. Pode-se ter presente, todavia, o quantoessa situao delicada, considerando o que Plato observa na Rep.357a-368c, alm de 612a-621d..

    Por sua prpria natureza, o antigo conceito de liberdade exige que oexaminemos o mais de perto possvel, se que queremos buscar, um aum, aqueles fatores que so justamente os capazes de anular ourestringir essa liberdade. Comeo por um fator fundamental que podeser visto sob trs aspectos.

    De modo geral, a liberdade de escolha sempre ameaada quandoentra em jogo a inclinao e o interesse de quem escolhe.

    No conjunto dos interesses possveis do homem um deles goza de umaprioridade inconteste. Ele est sempre presente quando um homemest diante de uma escolha: o interesse por sua prpria existncia.Todos os homens sempre acham que melhor ser que no ser. Assim,tendo em mente a famosa frase da Rep. 509b talvez possamos dizer: OBem est ainda alm do ser porque a partir do Bem que, para todosos seres, o Ser um Bem. Mais tarde, Aristteles, da maneiraincidental que caracterstica sua, verifica que o to\ zh=n au)to\mo/non parece ter seu valor (Pol. 1278b 24-30). No foi, talvez, sema influncia de Teofrasto que a Stoa caracterizou a ambio de mantere desenvolver a prpria existncia como impulso mais primitivo detodo ser vivo.

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    Em conseqncia, o homem, em primeiro lugar, cede a essa ambio.Isso no um ato tico, pois o homem a, sem qualquer outraconsiderao, age apenas como j est previamente inclinado a agir.Quando mais de uma possibilidade de auto-afirmao lhe sooferecidas, de novo, segundo sua inclinao espontnea, darprioridade quela que para ele a mais interessante.

    A ao tica se estabelece somente quando um dever se defronta coma aspirao espontnea e o desejo. A liberdade de deciso alcanadasomente quando, ao lado da possibilidade de escolher o seu prpriointeresse, aparece a possibilidade oposta, isto , aquela possibilidade depreferir, contra o prprio interesse, o interesse de um outro homem(ou de uma coisa, em cujo favor se julga que se deve colocar). Noexiste para esta situao, frmula melhor do que aquela que Plato (emuma passagem muitas vezes mal compreendida) cita resumidamente naRep. 343C e 367C e a que Aristteles, concordando expressamente,tambm se refere na EN 1130a 3 e 1134b. A justia torna-se entoprecisamente "o bem alheio". tica uma ao que, contrariando oprprio interesse visa ao interesse do outro; com isso tambm se dizque o agente se afastou dele prprio, de seu prprio interesse, sempreprioritrio, e que, justamente por isso, tornou-se livre.

    Poder-se-ia ser tentado a adotar aqui o conceito kantiano de dever efazer com que a tica grega v desembocar nele, mas isso seria umerro. O pensamento grego vai um passo alm.

    que, para os gregos, a ao tica s perfeita quando o agentepercebe que, na verdade, uma ao corresponde ao seu verdadeirointeresse pessoal, no mais ao interesse elementar pela afirmao daexistncia fsica, do zh=n, mas por um interesse definitivo - de modoalgum existente desde o princpio - interesse pela prpria perfeiotica, pelo eu)= zh=n. Enquanto o interesse elementar era comum aohomem e aos outros seres vivos, esse interesse ltimo visa a um i)/dions do homem e que deve ser realizado.

    H, portanto, um terceiro passo. Sua caracterstica torna-se mais claraquando ns o explicitamos conforme o seu lado material (em segundolugar) e, conforme o seu lado formal (em terceiro).

    Sabe-se que Epicuro no falou da preservao da existncia fsica. Deacordo com a mais antiga tradio, preferiu tratar da ambio doprazer. O ser vivo recm-nascido busca o prazer e evita a dor; e issoque, como mostra a experincia, a natureza isenta de falsificao quer.

    Em princpio, Aristteles est de acordo com isso. O que o homemprocura, em primeiro lugar e de forma espontnea, o h(du/. Para issono necessita de guia. No preciso filosofia alguma para dizer-lhe queo h(du/ desejvel, pois isso sabe por si prprio. E, enquanto nadamais faz seno exigir o h(du, o homem no se encontra no campo da

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    tica.

    O campo da tica comea apenas quando o homem atenta para o fatode que deve esforar-se por algo que justamente no h(du/ - por algoque ele, por si prprio, jamais iria ambicionar. Em grego isso se chamao kalo/n. Esse um conceito que, em Plato, Aristteles e nosesticos, aparece centenas de vezes (e que, de modo algum, faltatambm em Epicuro), sem jamais ter sido definido de formasatisfatria. Podemos apenas dizer que, em princpio, designa ocontrrio de h(du/. O kalo/n aquilo que o homem quer, no por siprprio, e aquilo de que, no por si prprio, tem conhecimento; oque deve querer e que vem ao seu encontro como algo que vem do"exterior" como uma ordem. A deciso tica, ento, recai entre o h(du/que gostaria de conseguir e o kalo/n que deve realizar.

    No basta, contudo, submeter-se ao kalo/n. O processo de educaotica do homem s se completa quando o agente se habituou tanto aokalo/n que para ele, este se tornou um h(du/.Esse um elemento a queAristteles deu mais peso. Justo no apenas o que age simplesmenteconforme o justo, porque assim deve agir, mas aquele que prefere agirconforme o justo e tem gosto e prazer em faz-lo. S o fato de que ohomem sinta alegria na ao virtuosa prova que verdadeiramenteadquiriu a virtude (EN 1099a 7-21; 1104b 3-8).

    O percurso parte do h(du/original, passa ao h(du/ que se ope aokalo/n e chega at a condio ltima na qual o h(du/ se torna o prpriokalo/n (a esse respeito Gnomol. Vat. Nr. 393 Sternb. com exemplosparalelos).

    Podemos, por fim, descrever o mesmo fato tambm sob o seu aspectoformal. A vontade de sobrevivncia fsica, de afirmao da prpriaexistncia e o desejo do h(du tm o carter de uma constante. Existe,acerca desse querer e dessa ambio, um consensus omnium gentiumet temporum desde o incio, alis; portanto, por natureza (fu/sei). Esse,contudo, apenas o ponto de partida. Aqui podemos lembrar apequena observao com a qual Aristteles separa o domnio daa)reth/ tica do da fu/sij (EN 1103a 18-26). O que por natureza nose altera. A pedra cai sempre e o fogo sobe, sempre e em toda parte. Ohomem, em contrapartida, mutvel. Pode agir de uma forma ou deoutra (cf. EN 1139a 6-15) e pode ser levado a decidir-se a favor oucontra a a)reth. Nisso se manifesta a sua liberdade e a suaresponsabilidade histrica, mas tambm a possibilidade de educaotica.

    De novo, contudo, por sua vez, essa liberdade de agir de uma formaou outra no o ponto final. O alvo da educao deve antes consistirem formar o homem de modo que ele, com regularidade e segurana,chegue sempre e a cada vez deciso justa. Em passagem importante

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    da EN 1105a 26-b5, Aristteles distingue a ao tica da ao tcnica eindica trs condies que a ao deve preencher para ser consideradatica: 1. O agente precisa estar informado a respeito do objeto dedeciso; 2. A deciso deve basear-se na resoluo ntima de querer agircomo se deve agir; a inteno correspondente a ela deve preced-la. 3.Esta inteno deve existir no agente de forma firme e irremovvel:bebai/wj kai\ a)metakinh/twj.

    De forma mais clara ainda, a Stoa costuma expressar-se a esserespeito. O sbio, invariavelmente e sempre, manter a inteno justa.Para citar uma frmula utilizada por Sneca: A sabedoria no consisteem outra coisa seno em semper idem velle atque idem nolle (Epist. aLuc., 20, 5). ( = sempre querer o mesmo e no querer o mesmo)

    Formalmente, isso significa que se sai do espao em que se age de umaou outra forma. O querer do homem perfeito distingue-se por meio deuma uniformidade invarivel na qual a imutabilidade dos fenmenosnaturais retorna em grau mais alto. To certo ser o sbio fazer o que justo quanto uma pedra cair ou o fogo subir. O querer pelo qual sedecidiu tornar-se- "segunda natureza".

    Isso, alis, no vale simplesmente para os sbios. Cada ao, tambma do homem mdio, percorre trs etapas. Como a queda da pedracomea em linha reta, assim tambm a ao comea no momento emque, acima de qualquer coisa, exclusivamente e de forma espontnea,ela se concentra na auto-conservao do agente. Ento, nessemomento, em que deve ser feita a escolha entre o querido e o devido,a ao entra no campo da liberdade de "agir de uma ou de outraforma". A educao, por sua vez, no mais amplo sentido (tambmadestramento e instruo), ultrapassar esse domnio. Porque estarhabituado a assumir sempre uma determinada possibilidade ou a isso conduzido, o agente se firma numa inteno determinada (eticamentecorreta ou no) e essa inteno se torna assim uma natureza adquirida.

    espantoso ver como Demcrito j claramente descreveu esseprocesso: "A natureza e a instruo so algo semelhante. A instruotransforma o homem, mas, transformando-o, cria-lhe natureza" (VS 68B 33). Aristteles disse o mesmo, de forma mais diferenciada, mastambm mais obscura em EN 1114a3-21, 1114b30-1115a 3, e, porfim, em 1152a 27-33, com uma citao significativa de Eveno, poetacontemporneo dos sofistas. Em todas essas passagens acentua que aao , num primeiro momento, plenamente livre e responsvel(pensa-se, de preferncia, em uma ao eticamente m), mas, depois fixada pelo hbito e finalmente torna-se uma qualidade natural. Porcerto, no ser do gnero das qualidades naturais primitivas pelas quaiso indivduo no pode vir a ser responsvel, mas, em todo caso, ser talque se tornar imutvel como aquelas. Ento, no conjunto, o homemcontinua responsvel por ela, embora, no caso concreto, no mais

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    tenha a liberdade de poder decidir de uma forma ou de outra; e o que vlido para os homens definitivamente pervertidos, a rigor, valetambm para um outro homem que conseguiu a perfeio ltima eque, em caso algum, hesita sobre como ele tem que agir. Para ele aperfeio tornou-se natureza.

    Assim, a estrutura formal desse processo (devemos cham-lodialtico?) torna-se ntida. Seria possvel empregar conceitosaristotlicos. A partir da nitidez da fu/sij, ultrapassa-se o livrebouleu/esqai, isto , se se deve agir dessa forma ou de outra, e aproai/resij do kalo/n, chegando-se nitidez definitiva da e(/cij, na quala liberdade renunciou a si mesma.

    Isso importante. Para o pensamento grego, a liberdade de agir assimou de outra forma apenas o caminho, mas no o alvo. O alvo spode consistir naquela imperturbvel uniformidade da ao que, emum sentido, est prefigurada na uniformidade do processo natural e, nosentido oposto, reproduz a imutabilidade da divindade. O campo daliberdade torna-se a passagem entre uma vinculao elementar, que ainda aquela da natureza, e uma instncia final segura que j seaproxima daquela do deus. Do ponto de vista histrico, concretamente,tambm se pode formular esses mesmos fatos mais ou menos assim:Postam-se, umas ao lado das outras, estruturas, as que servem sobrevivncia fsica do homem e as que, em princpio, sempre e emtoda a parte sero as mesmas - o campo do econmico, portanto; aseguir, o campo poltico, no sentido rigoroso, que o autntico campoda liberdade e, por isso, da mudana incessante; e, em terceiro lugar, ocampo da religio. Os antigos, de forma mais clara do que a atualidade,viram que cada religio, na medida em que se concretiza em culto,procura estabelecer de forma evidente a imutabilidade da divindade.Uma vez institudas, ordem cultual e formas do culto so, emprincpio, reconhecidamente inviolveis e no podem ser modificadassimplesmente, atravs de medidas arbitrrias ou mesmo eliminadas tanto na Grcia quanto em Roma.

    Agora, contudo, hora de deixar esta discusso geral e de tratar doselementos que, em casos especiais, costumam restringir a liberdade.

    Em relao experincia histrica, distinguimos sumariamente trselementos.

    Em relao ao primeiro, temos o problema das fusukai\ a)retai, dasaptides cuja pr-existncia necessria para determinadas atividades.Talvez, justamente em nosso contexto, seja bom lembrarmo-nos deque essa aptido inteiramente ambivalente. Pode ser consideradacomo aquela parte que, no homem, no se pode perder e destruir, mastambm como uma excelncia que distingue um indivduo e que osoutros, que no a possuem, apesar de todos os esforos, nunca

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    podero alcanar; basta lembrarmo-nos das conhecidas passagens dePndaro (que certamente devemos interpretar com cuidado): Ol. 2, 86;9, 100; Nem. 1, 25 e outras.

    Em contrapartida, a caracterstica de tudo que nele existe por natureza(fu/sei) o homem j encontra em si mesmo como algo pr-existente eno pode ser responsabilizado por isto, seja para efeito de elogio ou decensura. Aes que nascem de tal aptido, no so, como tais,eticamente qualificveis.

    Isso constitui a problemtica das fusukai\ a)retai/. Atendo-nos squatro virtudes cardeais, fica evidente que, para alguns homens,tomados individualmente, mais fcil pr em ao a coragem ou atemperana. Existem tambm homens que possuem uma disposionatural para fro/nvsijtica ou talvez para a e)leuqerio/thj. Disposiessemelhantes podem ser comparadas com formas de comportamento decertos animais, na medida que eles agem inteiramente em razo de suafu/sije no em razo de resolues livremente assumidas. A fusikh\a)ndrei/ado homem aproxima-se da do leo ou da do touro, a fro/nvsijcorrespondente aproxima-se da do co, e, em outro sentido, aproxima-se da das abelhas ou das formigas.

    prprio de Plato que esse problema quase no o tenha preocupado.Com admirvel naturalidade ele espera que, no Estado, os futurosguardies tragam consigo um grande nmero de disposies adequadaspor natureza (fu/sei), disposies que j se podem encontrarprefiguradas em um hbil co de caa (374E-376C) e pressupe aindaque os futuros filsofos e governantes tenham ainda outras disposiesmais especiais (485A-487A e 503CD). Importa-lhe apenas que essesdois grupos como tais cumpram sua tarefa to bem quanto possvel.Parece no interess-lo a questo de saber se eles devem o seudesempenho sua aptido natural, sem a cooperao, portanto, doprprio mrito, ou se a adquiriram por livre deciso tica.

    Alis, em outras passagens, tambm j se mostrou inclinado a entenderos processos essenciais como uma ao conjunta, dificilmentediscernvel, de fatores externos e de deciso prpria do homem. Pode-se pensar no declnio do Estado perfeito, que decorre tanto de uma leigeral de seu ser quanto de uma falha inicial do governante (546AB); oupode-se pensar na escolha dos mortos no mito final, onde a liberdadede cada alma que deve fazer sua escolha sensivelmente prejudicadaporque so admitidas escolha em grupos e as ltimas j encontramesgotada uma srie de escolhas (619 d-e). Assim, justamente naformao dos guardies e dos governantes, Plato confere um pesosensivelmente grande aos fatores naturais (fu/sei) que no esto disposio do indivduo. Em contrapartida, a grande maioria doscidados no pode ser censurada, se a sua aptido natural no suficiente para que eles sejam aceitos como guardies ou sejam

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    levados at a viso do a)uto\ to\ a)gaqo/n, como governantes-filsofos.

    A partir de sua perspectiva, Aristteles mais cuidadoso e exato. Naverdade, no fala muito sobre as fusikai\ a)retai/, mas distingue-asmuito claramente das verdadeiras a)retai/. No hesita em esclarecerque a aptido para cada excelncia claramente de tipo diferente emcada homem, de modo que um , de preferncia, apto para umavirtude, um outro, para uma outra; em contrapartida, nem todos oshomens tm acesso igual s virtudes propriamente ditas, as que podemser consideradas ticas. Quanto a essas vale tambm ainterdependncia de todas as virtudes, de modo que, aquele que seapropriou da fro/nvsijtica, tambm possui, junto com ela, todas asoutras virtudes (EN 1144b 1-14 e 1144b 32-1145a 2). Importa aAristteles defender a responsabilidade do ato tico, que s assegurado quando tem como fundamento uma deciso plenamentelivre, e, sob todos os ngulos, isenta de preconceito.

    Epicuro e a Stoa tambm procuraram, cada um sua maneira,confirmar a liberdade da ao qualificada como tica, para o que, emambos os casos, precisaram de ajuda de hipteses bem complicadas.Aqui no lugar para discutir mincias.

    Por outro lado, pode-se perguntar se Teofrasto, que era antes de tudoum bilogo, tambm no deu mais nfase ao elemento dodesenvolvimento orgnico que ao da deciso eticamente livre. Chama aateno o fato de que, na obra de Ccero, o livro V do De fin., que demodo amplo remonta a Teofrasto, muito mais que o livro primeiro ouo terceiro, acompanha as relaes entre planta, animal e homem e, emespecial, j registra a presena de certas virtudes humanas em algunstipos de animais. Da mesma forma verifica-se que j a criana, em seucomportamento, d a conhecer os primeiros sinais das virtudes maisimportantes. Isso tudo deixa implcito que as fusikai\a)retai/desempenham tambm nos homens adultos um papel maisamplo do que teriam tido na obra de Aristteles.

    O segundo problema o das afeces. Elas so o exemplo tpico deuma instncia que se ope livre responsabilidade. Sabe-se que aHelena de Grgias e muitas mulheres de Eurpides j se desculpavamdizendo que as paixes as tinham dominado. Em Demcrito encontra-se a sentena que, sob mais de uma perspectiva, caracterstica:"Corajoso no apenas quem mais forte que seus inimigos, mastambm quem mais forte que seus desejos. Muitos so senhores nascidades, mas escravos de mulheres" (VS 68 B 214). Demcrito podeter pensado especialmente em prncipes orientais, mas variantes dasentena esto amplamente difundidas na literatura posterior.

    Seria legtimo agora comear sistematicamente pela pergunta acerca doque se deve entender como afeco (pa/qoj). Poder-se-ia partir do que

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    foi dito acima sobre o desejo de afirmao da prpria existncia fsicae, em especial, sobre o desejo do h(du/; do pa/qoj,no sentido que temaqui, dever-se-ia falar na situao em que a conside-rao do interessepessoal de cada um exige o poder absoluto e pe em xeque a exignciade servir ao interesse dos outros homens (ou de algo que se defende).No por acaso que, na construo filosfica, o tirano tido no scomo aquele que quer apenas a prpria auto-afirmao e nada mais,mas tambm como aquele que sucumbiu a todos os pa/qh(observe-seque o esquema dos quatro pa/qh, com o qual a Stoa tra-balha emCcero, Tusc. Disp. III-IV, embora parea faltar em Aristteles, j emPlato, como mostra Laques 191D, pressuposto como um elementoestvel. Como muitos outros esquemas semelhantes, portanto, derivada pr-socrtica tardia e dos sofistas).

    No vamos aprofundar-nos no assunto, mas contentar-nos com umareferncia a dois problemas particulares. Vrias vezes j nosdeparamos com um primeiro problema, mas, mesmo assim, recomendvel formul-lo mais uma vez com todo rigor, pois, nemsempre, na interpretao de Aristteles, Ccero ou Sneca, ele mereceua ateno adequada.

    Em poucas palavras, esse primeiro problema resulta do fato de que ojovem, por sua natureza, vive kata pa/qoj. Sendo assim, sempre deacordo com a sua natureza, ele capaz de ambicionar o h(du e decuidar de sua sobrevivncia, mas no capaz de agir eticamenteconforme o lo/goj. Isso no , de modo algum, uma censura, massimplesmente a descrio daquele perodo da vida do homem que deveser chamado privilegiado, porque nele ainda no se fez valer ainfluncia funesta da cultura e do convvio com os polloi. Noentretanto, chega o momento em que o homem, ao crescer, alcana oque especificamente o distingue como homem, isto , o uso do lo/goj."Por natureza" ele o z%=on logiko/n. Com isso, porm, altera-secompletamente a posio do pa/qoj. Este mesmo pa/qoj, pelo qual anatureza da criana se revela, torna-se agora o adversrio do lo/gojpeloqual a natureza do homem adulto se manifesta.

    Aqui est o problema. Pode ser formulado diferentemente, conformese tenha em vista o conceito de pa/qoj, ou o de natureza ou finalmenteo de homem. Por certo sempre se recair na mesma questo: Deve-seadmitir que existem dois conceitos diferentes de pa/qoje de fu/sij e quea vida do homem se divide em dois perodos que nada tm a ver umcom o outro (por assim dizer, um perodo semelhante ao dos animais eum semelhante ao do deus), ou pode-se afirmar que h uma certacontinuidade ou que, apesar dessa continuidade, h como que umatransio do perodo de irresponsabilidade da criana para o deresponsabilidade do adulto? Deixo de lado esta questo como tal eobservo apenas que Ccero De fin. III-IV pode ser uma leituraextremamente interessante, caso se interprete o texto a partir dessa

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    questo.

    Em segundo lugar preciso mencionar o clssico problema socrtico.Para ficar no par de conceitos lo/goj-pa/qoj, devemos ter comoabsoluta a seguinte exigncia - o lo/gojtem que governar, o pa/qoj temque obedecer. Dito de outra forma, o lo/gojfaz ver o que deve serfeito. Que fique em suspenso a questo de quanto o pa/qoj contribuipara esta dinmica que faz com que seja realizado o que foicorretamente compreendido.

    Para Scrates existe uma alternativa clara. Quem tem o discernimento,age de acordo com ele; quem se deixa incitar pelo pa/qoj, na realidadenem mesmo tem discernimento.

    Como pano de fundo est o pensamento generalizado de que osuperior no dominado pelo inferior e que a perfeio no podeperecer; se perecer, no era bem a perfeio. E para Scrates acompreenso filosfica a perfeio. De acordo com isso, a ignornciatorna-se a nica fonte de todo erro; s ela d ao pa/qoj a possibilidadede agir sem controle.

    A Stoa permaneceu nessa linha, certamente com vrias diferenas queaqui no sero tomadas em considerao. Em contrapartida,Aristteles assumiu decididamente uma posio oposta. No semrazo, j no prefcio da EN, refere-se ao caso do a)krath/jque, naverdade, pode compreender o que deve fazer, mas no o faz; parauma pessoa desse tipo a instruo filosfica intil (1095a 8/9). ENVII mostra pormenorizadamente que, de fato, a a)krasi/a existe; ohomem sabe o que tem que fazer, mas o pa/qoj mais forte e oimpede de agir de acordo com seu discernimento.

    Em Scrates a deciso coloca-se, ento, entre a prontido para deixar-se instruir e a recusa de faz-lo; o fau=lojpode ser reconhecido poresta recusa que, por sua vez, repousa na crena de que ele j sabe oque, alis, na realidade no sabe.

    Aristteles afasta a questo ontolgica sobre a posio da inteligncia,para ganhar espao para os dados da experincia diria, que podem serdescritos como um multiforme conflito entre lo/goj e pa/qh.

    Ao terceiro problema podemos chamar como o das circunstnciasexteriores. Alis, a rigor, a presso da sociedade ou dos fatos naturaisno costuma impedir a liberdade de deciso interior; pode, contudo,bloquear ou at mesmo desnaturar consideravelmente a ao externaque devia resultar da escolha.

    Aqui j acrescento que, nesse ponto, o pensamento dos modernosdifere no pouco do dos antigos. Por um lado, a presso da sociedadehoje, ainda mais fortemente do que nos tempos antigos, costuma ser

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    levada em considerao; por outro, em contrapartida, o pensamentoestritamente antropocntrico da atualidade no reconhece maisnenhum fato natural definitivo. Onde a Antiguidade se arranjacuidadosamente com fatos que ela no pode mudar, a poca atualdecidiu-se pelo domnio soberano da natureza; basicamente, no existemais nenhuma instncia exterior que no possa ser corrigida embenefcio do homem.

    Tomemos, agora, resumidamente caso a caso. Valeria a pena fazeruma pesquisa especial sobre que papel teve, na tica antiga, a partir deTegnis 35/6, passando por Crisipo SVF 3, 228/229 at chegar aCcero Tusc. disp. 3,2/3 o funesto "convvio com homens maus". Ano est em discusso o estado da questo como tal. Desde sempre,diante da influncia malfica de grandes grupos de homens, oindivduo refugiou-se num la/qe biw/saj. A difcil questo antessaber, em ltima anlise, como se deu essa influncia dos polloi/, dasociedade e das massas. O pensamento atual tambm conhece, comosabemos, a tese de que, em tempos primitivos, todos os homens erambons, viviam livres de senhores e em paz uns com os outros, at queum dia "a sociedade" irrompeu com o poder sobre eles e tudo veioabaixo. Como isso, contudo, pde acontecer?

    Apenas formulo a pergunta para, a respeito dela, fazer a observaode que nem os antigos nem os modernos encontraram uma respostasatisfatria. Aqui ficamos entre os antigos. Se pensarmos bem, estranho que Plato, Aristteles, Epicuro e os Esticos operem, comose isso fosse natural, com os polloi/, os que levam a vida semdiscernimento e causam preocupao aos filsofos, como umagrandeza fixa, sem procurar saber como essa grandeza se formou. Emprimeiro lugar pode-se imaginar que, por assim dizer, desde oprincpio, a maior parte da humanidade, de forma alguma, superou afase do kata\ pa/qoj zh=n, e, a rigor, permanece no nvel da criana edo animal. Quando nos deparamos com o problema do escravo, jfalamos sobre isso. Tambm se poderia admitir que, nos temposprimitivos, certos indivduos, homens vidos de poder, comearam ater o domnio irrestrito sobre o meio em que viviam no porquefizessem valer uma inteligncia superior ou agissem com violncia,mas, porque conscientemente apelavam ao pa/qoj de cada um de seuscamaradas e, dessa maneira,reuniram em torno de si o plh=qojque, dapor diante, incapaz de uma deciso de acordo com o direito, s podiaagir kata/ pa/qoj.

    Contudo, com isso, s foi adiada a questo fundamental: Como pdeacontecer que, j nas origens um ou muitoshomens tenham renunciadoao se do homem como z%o=n logiko/n? Como possvel j nasorigens a depravao que isso indica?

    Certamente, a questo apenas um aspecto parcial da clssica questo

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    acerca da origem do mal. de admirar, porm, que essa questoraramente tenha sido tematizada na filosofia grega clssica. Indicar asrazes disso no de todo fcil. Podiam estar relacionadas de muitasformas com aquela fraqueza fatal da religio grega da qual precisofalar mais uma vez. Os deuses do culto no estavam altura de umconfronto com o problema do mal e, quando a natureza hipostasiadaapareceu no lugar da divindade (a partir do fim do V sculo a.C.), oproblema perde sua agudeza: a natureza pode cometer erros que eramimpensveis para a divindade. Assim, de certo modo, o problema ficouno ar e somente no neoplatonismo foi enfrentado a partir de novospressupostos. Mas sobre essa questo, fiquemos por aqui.

    No vamos prosseguir nesse assunto, mas voltar para o que devemosdesignar, em sentido especial, como presso das circunstncias. Comisso chegamos a um ponto que, em nosso contexto, muitoimportante.

    A poca arcaica e a clssica aceitam que ocorram, como de fatoocorrem, circunstncias adversas que podem obstruir ou prejudicar aao livre, como, por exemplo, a doena, a pobreza, infortniodomstico e poltico. O indivduo procura, em cada caso, tirar omelhor proveito da r