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INSTITUTO DE ESTUDOS ECONÔMICOS E INTERNACIONAIS
IEEI-BR
GOVERNANÇA GLOBAL: O PAPEL DAS
INSTITUIÇÕES MULTILATERAIS NOS TEMASECONÔMICOS E SOCIAIS
BACKGROUND PAPER
Dezembro 2005
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BACKGROUND PAPER
GOVERNANÇA GLOBAL: O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES
MULTILATERAIS NOS TEMAS ECONÔMICOS E SOCIAIS*
SUMÁRIO
1. Governança Global e Governabilidade ..........................................................................2
2. Governabilidade e Interesses Hegemônicos na Globalização ......................................7
3. A opção atual dos EUA de governança global ............................................................ 18
4. Alternativas à Governança Global .............................................................................. 19
5. Instituições multilaterais e Governança Global ......................................................... 23
5.1. O caso da ONU ......................................................................................... 23
5.2. O caso do FMI e do Banco Mundial ....................................................... 25
5.3. O caso da OMC......................................................................................... 28
6. Cooperação Bilateral União Européia e América Latina: Perspectivas àGovernança Global ........................................................................................................... 31
6. Bibliografia........ .............................................................................................................36
* Este Background Paper foi elaborado pela equipe do IEEI-BR (Instituto de Estudos Econômicos eInternacionais – Brasil), coordenada por seu Presidente Gilberto Dupas com a contribuição de MarceloFernandes de Oliveira (Cientista Político) e Adalton César da Luz Oliveira (Economista).
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1. Governança Global e Governabilidade
O adensamento da globalização nos anos 1990 passou a demandar o desenvolvimento
de estruturas de governança multicêntrica global que sejam eficazes na construção de
soluções para os problemas sistêmicos internacionais, tais como mudanças climáticas,
AIDS, crises financeiras, comércio desleal, subsídios agrícolas, etc. A Comissão sobre
Governança Global da ONU definiu essa governança multicêntrica global como a
totalidade das maneiras pelas quais indivíduos e as instituições públicas e privadas
administram seus problemas comuns, num “amplo, dinâmico e complexo processo
interativo de tomada de decisão que está constantemente evoluindo e se ajustando a novas
circunstâncias”.Para James Rosenau, governança refere-se a atividades apoiadas em objetivos comuns
que podem ou não derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas e não
dependem, necessariamente, do poder de polícia para que sejam aceitas e vençam
resistências. Em outras palavras, governança é um fenômeno mais amplo do que governo;
abrange as instituições governamentais, mas implica também mecanismos informais e
formais, de caráter não-governamental, que façam com que as pessoas e as organizações
dentro da sua área de atuação tenham uma conduta determinada, satisfaçam necessidades e
respondam a demandas. Portanto, a governança é um sistema de ordenação que depende de
sentidos intersubjetivos, mas também de constituições e estatutos formalmente instituídos.
Assim, esse sistema de ordenação só funciona se for aceito pela maioria; ou, pelo menos,
pelos atores mais poderosos do seu universo. Enfim, podemos interpretar a governança
como a capacidade de se induzir atores estatais e não-estatais a seguirem comportamentos
padronizados sem a existência da competência legal tradicional que ordene que isso ocorra
de fato.
Logo, a medida da evolução da governança global deve ser a eficácia. Por sua vez,
essa eficácia depende da existência de estruturas institucionais que exerçam a capacidade
de governo ao nível global, possuindo a virtude da governabilidade para fazer valer leis,
normas e regras emanadas pelas instituições internacionais. Historicamente, o exercício da
governabilidade necessita de instrumentos que, em última análise, são viabilizados pelo
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monopólio legítimo da violência, o qual é prerrogativa dos Estados. A governança global
inaugura uma esfera própria das instituições internacionais. Ou seja, a efetividade das
normas, regras e resoluções emitidas pelas instituições responsáveis pela governança global
na sociedade internacional depende de Estados que reconheçam sua legitimidade; estejam
dispostos a obedecer e tenham capacidade efetiva de governabilidade para fazer com que os
atores sob sua jurisdição as cumpram.
Essa definição avança pouco no que se refere à natureza das regras e das obrigações
entre as partes, na precedência dos direitos gerais sobre os individuais, na necessidade de
cumprimento dos acordos e nas sanções decorrentes. Tullo Vigevani propõe uma definição
mais precisa e delimitada sobre a governança global: “A idéia de governabilidade tem a ver
com a de comunidade mundial, ao introduzir a possibilidade de princípios visando o bem
comum: se há comunidade, há obrigações e, conseqüentemente, há regras que a todosobrigam. Quem as viola está sujeito a que a comunidade o censure”. Por outro lado, a maior
dificuldade para alcançar-se um padrão de coerência que viabilize o bem comum é a falta
de dois princípios: o da igualdade entre os membros da comunidade; e o de que o bem do
todo tem precedência sobre o bem da parte.
No pós-Segunda Guerra Mundial esse problema parece razoavelmente equacionado
no eixo capitalista. O ciclo virtuoso de crescimento econômico, que perdurou até os anos
1970, esteve vinculado à existência de mecanismos de governança global que
possibilitaram a manutenção dos equilíbrios macroeconômico internacional, das regras de
comércio e de relações econômicas internacionais, as quais possibilitaram aos Estados
nacionais ampla capacidade de governabilidade. Os Acordos de Bretton Woods, de julho de
1944, previram a necessidade de um incremento de cooperação entre os países capitalistas,
visando tanto a ampliação do comércio internacional quanto a criação dos instrumentos
institucionais para um modelo de desenvolvimento que evitasse a desordem econômica, o
protecionismo, a não conversibilidade e as restrições ao comércio. Sob patrocínio dos
Estados Unidos três grandes instituições internacionais foram criadas para incrementar a
governança global: o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BIRD) e a
Organização Internacional do Comércio (OIC). No Acordo estabeleceram-se os princípios
de funcionamento do FMI. Seu papel seria manter a estabilidade das taxas de câmbio e
auxiliar, através de empréstimos financeiros especiais, os países com dificuldades em seu
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balanço de pagamentos. O objetivo seria evitar que esses países, ao entrarem em situação
de crise financeira devido a desequilíbrios em suas contas internas ou externas,
restringissem o comércio lançando mão de desvalorizações cambiais na tentativa de
equilibrar suas contas. O BIRD teria como funções tanto garantir recursos suficientes para a
reconstrução das nações atingidas pela guerra quanto promover e apoiar projetos de
desenvolvimento dos países que a ele recorressem. Nos dois casos, é importante notar que o
regime decisório instituído vinculava-se diretamente às cotas de capital que cada país
detinha e detém na instituição. Desse modo, o papel dos Estados Unidos ganhou relevância,
condicionando o próprio funcionamento dessas instituições, cujas sedes se estabelecem em
Washington. Entretanto, essas instituições de governança global, para além da projeção do
poder norte-americano, efetivamente, possibilitaram aos Estados devassados pela Segunda
Guerra Mundial reconstruírem suas economias e, principalmente, sua capacidade degovernabilidade. Em outras palavras, a liderança e o exercício benigno da hegemonia pelos
Estados Unidos e sua influência na consolidação de mecanismos de governança global
trouxe benefícios difundidos para o sistema internacional.
A última instituição de governança global estabelecida foi a Organização
Internacional do Comércio, com a intenção de estabelecer e fazer funcionar um novo
regime para o comércio internacional baseado nos princípios da democracia, do liberalismo
e do multilateralismo. A conferência internacional para a sua criação realizou-se em Cuba,
de novembro de 1947 a março de 1948, quando foram negociados os termos para sua
implantação e funcionamento, e que resultaram na Carta de Havana. Este documento nunca
foi ratificado pelo Congresso dos Estados Unidos visto que a grande maioria dos
congressistas receava que ele restringisse a soberania do país no tocante ao comércio
internacional. Acrescente-se o fato de que o Congresso é constitucionalmente detentor dos
poderes em relação ao comércio internacional e não parecia disposto a delegá-los à
Administração e ao Presidente. A não abdicação de qualquer espécie de poder de soberania
era questão essencial para o Congresso, tendo sido objeto de discussão no final de 1944 no
tocante às Nações Unidas. O sistema de veto no Conselho de Segurança, que assegura aos
membros detentores deste poder a proteção a qualquer risco para a própria soberania
nacional, acabou por permitir a superação das dificuldades de ratificação pelo Congresso
norte-americano do acordo da Conferência de São Francisco que aprovou a carta das
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Nações Unidas, em junho de 1945. O voto por cotas no FMI e no BIRD também garantiu a
segurança considerada necessária pelos Estados Unidos.
Um Acordo Provisório entre 23 países, inclusive os EUA, definiu a adoção do
trecho relativo a Carta de Havana para as negociações de tarifas e regras sobre o comércio
internacional; mais tarde, ele passou a ser denominado Acordo Geral sobre Tarifas e
Comércio (General Agreement on Tariffs and Trade - GATT ). Depois de 1947, o GATT
tornou-se efetivamente, pelo direito consuetudinário um órgão internacional. Com sede em
Genebra, forneceu sistematicamente a base institucional para a consolidação de diversas
rodadas de negociações multilaterais sobre comércio internacional, zelando por seu efetivo
cumprimento até o final da Rodada Uruguai, concluída com a criação da Organização
Mundial do Comércio (OMC), em 1995. Tanto o GATT quanto a OMC tiveram e têm o
objetivo de liberalizar o comércio entre os países-membros. As prescrições básicas doGATT incluíam a abolição do uso de quotas, assim como de restrições quantitativas ou
quaisquer outras barreiras ao comércio internacional, sendo as tarifas aduaneiras o único
instrumento permitido, com a condição de serem paulatinamente reduzidas.
O resultado do conjunto das normas e regras formuladas por essas instituições de
governança global no pós-45, patrocinadas pelos EUA, foi a consolidação de um ciclo
virtuoso de crescimento econômico baseado no fordismo como modo de produção e na
intervenção do Estado na economia, tanto como gerador de infra-estrutura básica, quanto de
provedor direto e indireto de capitais a baixos custos. O Estado seria também responsável
pela criação e sustentação de uma ampla rede de benefícios sociais à sua população, que
viabilizaria aquele círculo virtuoso, tendo como pressuposto a continuidade do consumo.
O objetivo desta estratégia foi gerar desenvolvimento tendo como base a
manutenção constante de demanda, ou seja, a procura por novos produtos incentivaria as
empresas a investirem crescentemente na produção, seja para o aumento de escala, seja
para a renovação tecnológica. A inventividade associada à produção de novos produtos
para o mercado traria retorno em termos de remuneração do capital através da ampliação do
mercado associado à emergência de consumidores, os quais viveriam num contexto de
pleno emprego e com benefícios sociais relativamente garantidos pelo Estado.
Pelo menos até a metade dos anos 60 foi possível a retroalimentação desse ciclo, o
que levou Hobsbawm (1995) a considerar esta fase como a “Era de Ouro do Capitalismo”.
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É verdade que, no mesmo período, a prevalência dos Estados Unidos no plano político foi
contestada em diferentes terrenos, mas a força econômica do sistema revelou-se efetiva e
não pareceu ameaçada pela diminuição relativa do peso do país. O ressurgimento europeu
ocidental e japonês, ainda nos anos 50, apenas serviu para mostrar o vigor da economia
mista, ou do embedded capitalism.
Como sabemos, o adensamento da globalização, que passou a demandar novas
estruturas de governança global no final do século XX, contribuiu para desarticular esse
modelo de desenvolvimento e, com ele, a capacidade de governabilidade da maioria dos
Estados nacionais, minando-lhes o papel de gestor da coisa pública. Os mecanismos de
governança global que sustentaram a reconstrução no pós-Segunda Guerra Mundial,
sobretudo por meio da promoção da retomada da capacidade de governabilidade dos
Estados nacionais, passaram a demonstrar seus limites a partir da crise dos anos 1970,aprofundando-se nos anos 1980. O Estado soberano, tal como era conhecido até então,
passou a sofrer mudanças significativas, que tinham o fim último de adequar o
comportamento estatal ao novo contexto internacional permeado por uma agenda
“neoliberal”. O cerne dessa agenda encontra-se condensado no slogan “menos estado e
mais mercado”. O Estado passou a limitar-se a exercer funções fundamentais na lógica
liberal. Com isso ele foi perdendo parcelas significativas da sua soberania vis-à-vis
instituições de governança global, as quais passaram a propor novas normas e regras
internacionais que, na prática, levaram à redução da capacidade de governabilidade dos
Estados nacionais. As estruturas de governança global no final do século XX produziram
normas e regras a serem seguidas pelos Estados soberanos. Logo, fragilizando-os diante da
lógica da globalização.
No entanto, se governança significa conceitos e práticas internacionais que atendem
apenas aos interesses de um número restrito de nações, ela terá poucas possibilidades de se
consolidar em longo prazo. Daí a importância de analisar como o FMI, o BM, a OMC e a
ONU têm influído e colaborado na governança global contemporânea; basta verificar se
essas instituições procuram atender apenas aos interesses sistêmicos de governança dos
maiores atores envolvidos ou, mais ainda, do atual país hegemônico, os Estados Unidos, em
contraposição ao que ocorreu no pós-Segunda Guerra Mundial quando as instituições de
governança global serviram exatamente para reforçar a capacidade de governabilidade do
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Estado soberano em prol do desenvolvimento econômico. Na próxima seção, discutiremos
essa questão à luz da realidade contemporânea.
2. Governabilidade e Interesses Hegemônicos na Globalização
Antes de tudo, vamos definir o que entendemos aqui por hegemonia. Utilizando
conceitos de Giovanni Arrighi e Antonio Gramsci, designamos hegemonia como a
liderança associada à capacidade de um Estado de se apresentar como portador de um
interesse geral, e ser assim percebido pelos outros, ainda que as teses que defenda e as
ações que pratique beneficiam mais a si mesmo. Portanto, a nação hegemônica é aquela que
conduz o sistema de nações a uma direção desejada por ela; mas, ao fazê-lo, consegue ser
percebida como buscando o interesse geral. Para tanto, as soluções oferecidas pela naçãohegemônica devem criar contínuas condições de governabilidade dos Estados nacionais,
respondendo à demanda das outras nações pressionadas por suas próprias tensões. Se isso
não ocorrer, e os interesses perseguidos visarem unicamente objetivos do próprio
hegêmona, esse sistema de poder transforma-se em tirania imperial; e ela só poderá ser
mantida com graus variáveis de coerção.
De fato, a partir das duas décadas finais do século XX, como indicamos, passou a
imperar uma nova lógica global. A intensa aceleração da globalização dos mercados e a
abertura dos grandes países da periferia a produtos e capitais internacionais, a partir dos
anos 1980, coincidiram com a necessidade das corporações transnacionais de ampliarem
seus mercados e sua produção de modo a operar com as maiores escalas e os menores
custos possíveis. A manutenção da liderança tecnológica exigia geração de caixa cada vez
maior para investimento em tecnologia de ponta. E as tecnologias da informação
possibilitavam um fracionamento intenso da lógica de fabricação, em busca de facilidades
de produção onde quer que estivessem, fossem elas proximidade dos mercados, mão-de-
obra barata, flexibilidade das normas ambientais, economias fiscais ou clusters
tecnológicos. O capitalismo global apossou-se por completo dos destinos da tecnologia,
orientando-a exclusivamente para a criação de valor econômico. A liderança tecnológica
passou basicamente a determinar os padrões gerais de acumulação. As conseqüências dessa
autonomização da técnica com relação a valores éticos e normas morais definidos pela
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sociedade é um dos mais graves problemas de governabilidade com que tem de se
confrontar este novo século. Precisa-se urgentemente definir esferas de governabilidade
sobre essa questão, a qual, na atualidade encontra-se na órbita privada.
A globalização contemporânea, regida pela lógica econômica e apoiada pelas
instituições internacionais, é uma força normativa e política decisiva. Com isso, os
conceitos de soberania e nacionalismo que prevaleceram durante o século XX tem sido
confrontados com a progressiva tensão entre protecionismo e abertura. No novo padrão o
regime neoliberal decide, através de instrumentos como o investiment-grade – que
considera basicamente a avaliação final quanto à competência de um país de pagar as suas
dívidas internacionais – quem se comportou conforme as expectativas e, assim, quem estará
incluído ou excluído do jogo global; esses últimos sofrerão as duras sanções do fluxo de
investimentos internacionais. São condições indispensáveis para uma boa pontuação: gestãomonetária de acordo com as regras do FMI, reformas políticas ditadas por objetivos
econômicos, metas rígidas de inflação, orçamento superavitário, liberação do comércio,
liberdade de capitais, Estado social reduzido ao mínimo. Se essas políticas conduzem a
crises – a Argentina recente foi um exemplo paradigmático – o país que assuma sozinho o
risco de ter se comportado como lhe foi sugerido. O sistema internacional lava suas mãos.
Ou seja, as mesmas instituições de governança global no pós-Segunda Guerra Mundial que
foram, em grande medida, responsáveis pela retomada da capacidade de governabilidade
dos Estados nacionais, na atualidade, pregam exatamente o oposto.
Por outro lado, os Estados nacionais vêem-se pressionados em duas frentes: pelas
exigências de um Estado mínimo, onde sua autonomia se reduz a opções restritas à
aplicação das normas neoliberais; e pela desregulação dos mercados, privatização dos
serviços e deterioração progressiva do quadro social, que – ao contrário - exigem um
Estado forte e um aparato regulador muito eficiente, até para ter o poder de impor à
sociedade civil condições desvantajosas. Por outro, os Estados são obrigados a buscar cada
vez mais intensamente baixar os custos dos seus fatores de produção para atrair partes das
cadeias produtivas globais a seus territórios, numa estratégia de especialização fortemente
competitiva que estimula um rebaixamento geral dos preços daqueles fatores entre Estados
concorrentes, especialmente dos custos gerais da mão-de-obra e dos tributos. É dessa
maneira que a China está ocupando o lugar do México com sua capacidade de oferecer
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grandes bases de produção industrial com mão-de-obra extremamente barata e bem
qualificada aos Estados Unidos. Para competir, o México terá que reduzir ainda mais seus
custos, provocando novas quedas em outros países, e assim sucessivamente. Esse spillover
negativo se traduz em médio e longo prazos em menor capacidade de governabilidade.
A diversidade do mercado de trabalho internacional está se convertendo em novo
elemento para a superioridade do capital, através da utilização de novas tecnologias
flexíveis e abertas. Para tanto, dadas as possibilidades de ampla fragmentação geográfica
das cadeias produtivas permitidas pelas tecnologias da informação, é possível utilizar as
grandes reservas de mão-de-obra barata existentes nos países da periferia sem ter de arcar
com suas infinitas demandas de welfare e sua capacidade de gerar tensões sociais nos
países centrais se esses tivessem que absorvê-las. A tecnologia acabou transformando-se
basicamente em expressão das relações de poder, já que a necessidade de inovação – querealimenta o ciclo da acumulação – exige a contínua ampliação da participação das grandes
corporações nos mercados globais. É por ela que se obtém o controle dos processos e dos
fatores de produção e que se apropria e se concentra a riqueza mundial.
Essa nova lógica global implica num novo tipo de jogo de poder que introduz imensos
desafios na prática da política mundial e tem características bem mais complexas que as
que vigoravam durante a época da guerra-fria. Numa metáfora muito competente, Ulrich
Beck chama essa nova realidade de metajogo. No antigo esquema, o exercício da política
era feito basicamente com a aplicação das regras em curso; o metajogo introduz novos e
múltiplos paradoxos: as regras não são mais relativamente estáveis, modificam-se no curso
da partida, confundindo categorias, cenários, dramas e atores.
O antigo jogo nacional-global era dominado por regras de direito internacional que
partiam do pressuposto histórico de que os Estados poderiam fazer o que quisessem com os
seus cidadãos dentro de suas fronteiras. Essas regras tendem a ser progressivamente
contestadas. O conceito-fetiche de soberania é posto em xeque. Mas quem decide hoje as
regras a aplicar? Nesse novo contexto, o nacionalismo como conceito metodológico torna-
se extremamente custoso e oblitera a visão prospectiva, impedindo que se descubram novas
estratégias e recursos de poder. A primeira condição para desobstruir essa visão e ampliar
os espaços do olhar é aceitar a realidade de que estamos definitivamente inseridos numa
nova – e muitas vezes perversa – realidade global. Ela implica na assunção de uma visão
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cosmopolita do cidadão e das instituições públicas e privadas, que passam a integrar
inevitavelmente – ainda que com ceticismo e realismo – a lógica global. É essa atitude
realista que maximiza as possibilidades de ação dos jogadores do metajogo mundial.
Revertendo o princípio marxista, é essa nova essência que determinará a consciência do
futuro espaço de ação.
Nas alianças de geometria variável – intensamente cambiantes – vigorantes no
metajogo global, o aliado de hoje pode ser o inimigo de amanhã. Ainda assim, há blocos de
interesse definindo conflitos de fundo. Um desses conflitos opõe corporações
multinacionais a movimentos sociais. As grandes corporações – com seu imenso poder –
definem a direção dos vetores tecnológicos – e, portanto, o grau de empregabilidade da
economia –, a distribuição mundial da produção e os produtos a serem fabricados ou
considerados objetos de desejo. Com isso, elas ficam continuamente expostas àsconseqüências negativas que se podem atribuir a esse enorme poder, a saber: a degradação
ambiental, os efeitos da utilização de transgênicos e produtos químicos na alimentação, o
desemprego e o crescimento da informalidade, a propaganda enganosa, etc. Por
decorrência, quanto mais crescerem e se concentrarem, mais essas empresas gigantes
dependerão da legitimação dos atores públicos (agências reguladoras, atores da sociedade
civil, serviços de proteção ao consumidor etc.) para manterem seu espaço mercadológico e
sua margem de lucro. Podemos afirmar que a governança prevalecente hoje na esfera
internacional é muito fluída e atende aos interesses de legitimação da ação dessas grandes
corporações. Ela não gera governabilidade democrática efetiva. Dessa maneira, se faz
necessário elaborar instrumentos e mecanismos mais impositivos para garantir
governabilidade sistêmica efetiva, que limitem a liberdade ampla que as corporações
transnacionais possuem hoje para agir em detrimento da esfera pública seja local, nacional
ou global.
Outro conflito de fundo é o da economia global contra os Estados nacionais. O campo
do capital é muito forte e não tem necessidade de se organizar num ator capitalista global
para fazer jogar seu poder contra os Estados. O capital é aqui entendido como um conjunto
de atores heterogêneos, não necessariamente coordenados (empresas isoladas, fluxos
financeiros, organizações supranacionais – FMI, OMC, Banco Mundial) que, garantindo
seu lugar dominante, fazem pressão explícita ou sutil sobre os Estados, acelerando assim a
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dissolução do velho jogo referenciado no Estado-nacional. Por outro lado, o capital alia-se
freqüentemente com seus Estados nacionais de origem buscando seu apoio para estender
sua influência mundo afora. Contemporaneamente, essa aliança está mais forte do que
nunca nos países centrais em seus acordos comerciais e nas suas diretivas ou pressões sobre
as instituições internacionais. Isso não impede que até uma nação hegemônica como a
norte-americana encontre-se, de repente, com um imenso déficit comercial presenteado ao
país pela estratégia autônoma de fragmentação global da produção que suas grandes
corporações adotaram para minimizar seus custos e melhorar seus lucros.
O principal instrumento de poder das corporações transnacionais e do capital global é
a capacidade de dizer não: saio, não entro, não fico mais. Essa decisão constitui-se num ato
político por excelência e basta para originar imensos traumas. O critério de dizer sim segue
um padrão: orientação neoliberal do governo, tamanho relativo e ritmo de crescimento dasdívidas interna e externa, ortodoxia monetária e fiscal etc. O metapoder da economia
mundial face aos Estados nacionais consiste, pois, na opção-saída.
Os atores da economia global são extremamente eficazes e flexíveis no exercício
desse poder, operando com sanções e recompensas. O poder de não investir é brandido
como uma imensa ameaça. O que sanciona esse poder é o princípio da não alternativa. A
economia neoliberal é o que há disponível para aqueles que quiserem fazer parte do mundo
global. No entanto, a vulnerabilidade desse imenso poder reside na sua legitimação social,
já que o metapoder da economia global é extensivo, difuso e não autorizado, não dispondo
de legitimidade própria. A utilização continuada das formas de ameaça e sanção por parte
dos capitais e investimentos globais abre espaço para crises de legitimidade do próprio
capital. O poder no longo prazo não pode prescindir dessa legitimidade; sua estabilidade
repousa em grande parte sobre a evidência da aprovação social, caso contrário ela gera
violência e anarquia. Daí decorre o papel essencial das instituições democráticas, que não
pode se constituir na legitimação geral do poder e da dominação dos mais fortes, mas na
obtenção de um consenso que sancione o exercício do poder e da dominação em benefício
de uma governabilidade que seja entendida como socialmente benéfica.
Outro grave problema é o aumento contínuo de pobreza e concentração de riqueza
mundo afora. Os neoliberais insistem em afirmar que, graças à liberalização econômica,
pela primeira vez em mais de um século a pobreza mundial e a desigualdade de renda
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teriam caído durante as duas últimas décadas, provando a tese de que quanto mais abertas
as economias, mais prósperos seus países. Assim, os agentes econômicos, impulsionados
pela OMC (Organização Mundial do Comércio), estariam fazendo crescer a riqueza e
distribuindo-a melhor. Para provar essa tese eles tentam se apoiar no jogo complexo das
estatísticas internacionais, marcadas por alterações metodológicas e incompatibilidades de
comparação. Quanto à desigualdade, a questão é ainda mais complicada. Em primeiro
lugar, os números disponíveis são sempre sobre renda (fluxo) e não incluem a riqueza
(estoque). As distorções aí são muito agravadas, dado que a classe social com maior
estoque de bens (ativos fixos ou recursos monetários) tem a oportunidade de concentrar
muito mais que proporcionalmente seu patrimônio mediante utilização de instrumentos
operacionais (serviços bancários especiais, liberdade de circulação mundial dos recursos,
hedges, etc.) que os mais pobres não têm. Em regimes de turbulência cambial ou altas taxasde juros é justamente essa categoria social que consegue efeitos expressivos de
multiplicação patrimonial; ou, na pior hipótese, de melhor proteção contra perdas relativas.
Tais atores clamam por governança global, mas nem sequer pensam em governabilidade.
Estudos do Banco Mundial defendem que quanto mais aberto o país ao comércio, e
mais globalizado, mais riqueza ele tende a gerar. Curioso que, agora, os exemplos citados
são a China e a Índia, a primeira tão avessa a medidas e recomendações neoliberais
clássicas. Mas o argumento do Banco Mundial sobre os efeitos benignos da globalização no
crescimento, na pobreza e na distribuição de renda não sobrevive a um exame mais
profundo. Ele foi questionado por um estudo recente de Robert Hunter Wade sobre a
relação entre abertura econômica e igualdade da renda. Este estudo demonstra que entre os
subconjuntos dos países com níveis baixos e médios de renda, os níveis mais elevados de
abertura de comércio são associados com mais desigualdade; e que só nos países de renda
mais elevada a abertura está ligada à igualdade. Ou seja, quanto mais alta for a renda média
do país, mais ele se beneficia com a globalização; e não o contrário.
Os números relativamente otimistas do Bird sobre a evolução da pobreza no mundo
precisam sempre ser lidos com extremo cuidado. Tentando justificar alguns dos fracassos
resultantes da aplicação de suas políticas, as instituições internacionais fazem manobras
para provarem que a miséria diminuiu por conta dos processos de liberalização por eles
defendidos. Para padronizar um critério, em meio ao caos metodológico, criou-se um novo
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padrão de pobreza: pessoas vivendo com menos de 1 dólar por dia são ditas miseráveis e
com menos de 2 dólares por dia são classificadas como pobres. As conclusões do
dogmático Banco Mundial são taxativas: a pobreza reduziu-se no mundo de 1987 a 2001,
coincidentemente o período em que a abertura global fez-se regra. O número de pobres caiu
de 60% para 53% da população; quanto ao percentual de miseráveis, reduziu-se de 28%
para 21%. Para além da discussão sobre se essa redução é verdadeira, os percentuais são
por si só brutais e absolutamente incompatíveis com os padrões civilizacionais e avanços
tecnológicos disponíveis, especialmente quando encontramos regiões imensas como o sul
da Ásia e a África subsahariana com mais de 76% de pobres, tendo essa última 47% de
miseráveis. No entanto, examinando com o mínimo de cuidado a versão otimista dos dados
consolidados divulgados, encontramos um revelador disparate: é o caso excepcional da
China, responsável por 20% da população mundial. Sem ela e sem a Índia, os númerosmostram tendências diferentes. Claro está que este país passa por uma fase notável,
crescendo a altas taxas há mais de dez anos; mas também é óbvio que isso pouco tem a ver
com a modelagem padrão sugerida pelo FMI e pelo Banco Mundial. Muito pelo contrário.
A China evita aderir a esquemas de governança que possam limitar sua capacidade de
governabilidade.
Na verdade, desde a Inglaterra do século XIV até os NICs (New Industrialized
Countries) asiáticos do fim do século XX, os países em saltos de desenvolvimento
utilizaram insistentemente políticas industrial, comercial e tecnológica ativas – muito além
da mera proteção tarifária – para promover o crescimento de suas atividades econômicas
públicas e privadas. Ha-Joon Chang, após fazer uma minuciosa análise das políticas e
resultados alcançados nas últimas décadas por países que “deram certo”, lembra que “o
problema comum enfrentado por todas as economias em catch-up é que a passagem para
atividades de maior valor agregado, que constitui a chave do processo de desenvolvimento,
não se dá espontaneamente”. A razão é que há discrepâncias entre o retorno social e
individual de investimentos nas atividades de alto valor agregado – ou indústrias nascentes
– nessa fase, tornam-se necessários mecanismos para socializar o risco envolvido desses
investimentos. Uma grande multiplicidade de instrumentos de política pública foi e pode
ser usada. Os países bem-sucedidos são, tipicamente, os que se mostraram capazes de
adaptar o foco de suas políticas às diferentes situações.
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É importante salientar que todos os atuais países centrais recorreram – e ainda
recorrem - ativamente a políticas industrial, comercial e tecnológica intervencionistas a fim
de promover as indústrias nascentes, muitos deles com mais vigor do que os atuais países
em desenvolvimento. Assim, o pacote de “boas políticas” atualmente recomendado pelas
instituições que exercem o papel de realizar uma governança global, enfatizando os
benefícios do livre-comércio e de outras políticas do laissez-faire, conflita com a
experiência histórica, como já vimos aqui. Os acordos da OMC – que restringem a
capacidade dos países em desenvolvimento de pôr em práticas políticas industriais ativas –
não passam de uma versão contemporânea e multilateral dos “tratados desiguais” que a
Inglaterra e outros países centrais costumavam impor aos países dependentes da época.
Seus dados mostram claramente o ínfimo crescimento econômico verificado nos países em
desenvolvimento, nas últimas duas décadas, justamente quando a maioria deles passou por“reformas políticas” neoliberais que se mostraram incapazes de cumprir a sua grande
promessa de crescimento econômico. A desigualdade da renda aumentou e a prometida
aceleração do crescimento não se verificou, ao contrário do período entre 1960 e 1980, no
qual predominaram as políticas “ruins” e o crescimento desses países ocorreu. Assim, no
período mencionado, o PIB per capita de 116 países de seu universo cresceu num ritmo de
3,1% anuais, ao passo que, entre 1980 e 2000, a taxa de crescimento reduziu-se para apenas
1,4% ao ano. Os países em desenvolvimento cresceram muito mais rapidamente no período
em que aplicaram políticas chamadas “ruins” do que nas duas décadas seguintes, quando
passaram a adotar as “boas” sugeridas pelas atuais instituições de governança global. O
mais interessante é que essas políticas “ruins” são basicamente as que os hoje países ricos
aplicaram quando estavam em desenvolvimento, o que é mais um argumento a favor da
idéia de que os países centrais estariam, ainda que não necessariamente de forma
intencional, impedindo a ascensão da periferia.
Outra constatação importante é que a maioria das medidas institucionais atualmente
recomendadas aos países em desenvolvimento como parte do pacote de “boa governança”
foi, na verdade, resultado – e não causa – do desenvolvimento econômico dos países
centrais. As regras consideradas “boas” para o desenvolvimento, incluindo regimes de
direitos de propriedade, banco central independente e outras recomendações “da melhor
prática” (o que geralmente significam padrões das instituições anglo-americanas) são de
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fato úteis? Na verdade, a conclusão é que as instituições “boas” só produzem crescimento
quando associadas a políticas igualmente “boas”. Assim, ao exigir dos países em
desenvolvimento padrões institucionais que eles mesmos não tinham quando estavam em
estágios comparáveis de desenvolvimento, os países ricos estão usando, efetivamente, dois
pesos e duas medidas. Por exemplo, “para manter um padrão global de direitos de
prioridade e instituições de governança empresarial, os países em desenvolvimento são
obrigados a formar um gigantesco exército de advogados e contadores de nível
internacional. Isso significa que terão, inevitavelmente, menos dinheiro para gastar em
coisas como a formação de professores ou engenheiros industriais, que podem ser muito
mais necessários em seu estágio de desenvolvimento”.
Seria necessária, pois, uma mudança significativa nas condicionantes que vinculam a
ajuda financeira do FMI, do Banco Mundial e dos governos dos países centrais; reescreveras regras da OMC e de outros acordos multilaterais de comércio de modo a permitir um uso
mais ativo dos instrumentos de produção da indústria nascente como as hoje amaldiçoadas
tarifas e os subsídios. Exigir apenas que se proíba uniformemente a todos o uso desses
instrumentos pode prejudicar ainda mais os países da periferia, incapazes de competir na
maioria dos produtos que agregam valor.
Precisamos permitir que os países em desenvolvimento adotem políticas e instituições
mais apropriadas ao seu estágio de desenvolvimento e permitir que cresçam mais
rapidamente, como deveras aconteceu nas décadas de 1960 e 1970. Isso há de beneficiar
não só os países em desenvolvimento mas, em longo prazo, também os desenvolvidos, à
medida que aumentar o comércio e as oportunidades de investimento.
Questão de fundo muito importante, aliás, sobre as chamadas teses hegemônicas é a
da abertura geral para o comércio, da qual a OMC é o agente principal. Muito se fala – e se
batalha – sobre a necessidade de que os países abram seus mercados irrestritamente. As
nações periféricas centram suas lutas nas ações para que EUA e União Européia retirem
seus subsídios agrícolas. Com isso, elas abrem espaço para que aqueles países ou blocos
exijam abertura geral dos mercados mais pobres para produtos industriais e serviços,
inclusive financeiros. Trata-se de uma armadilha perigosa. No curto prazo, é claro que os
países mais pobres podem ganhar com alguns acessos a mercados agrícolas restritos,
embora nessa matéria as concessões sejam mínimas. Mas, no longo prazo, uma abertura
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geral dos mercados mundiais evidentemente propiciará muito mais ganhos aos países
grandes que aos pobres, já que os primeiros serão sempre muito mais competitivos
justamente nos produtos mais sofisticados e de maior valor adicionado. A governança que
pode parecer útil também aos interesses dos menos desenvolvidos, no momento seguinte
apresentará a conta impondo custos enormes às suas economias, rebaixando ainda mais a já
debilitada capacidade de governabilidade do Estado nacional dos países periféricos.
Uma tese que avançaria na linha contrária, ou seja, desmascararia a hipocrisia que
encobre as verdadeiras intenções hegemônicas, seria os Estados da periferia se articularem
para exigir mobilidade total da mão-de-obra internacional de qualquer origem em
contrapartida a uma eventual liberalização geral dos mercados, ou seja, uma política de
igualdade em matéria de mobilidade entre o capital e o trabalho. Se, por exemplo, todos os
países do mundo abrissem seus mercados para especialistas em informática de qualquer parte, o jogo começaria a ficar mais equilibrado. Claro está que os primeiros a reagirem
violentamente serão os sindicatos dos países ricos.
David Held lembra que, em matéria de tributos, direitos e normas do trabalho, não é a
igualdade – mas sim a desigualdade – entre os Estados que otimiza as estratégias
competitivas de substituição na economia mundial. Com isso pode-se jogar os Estados uns
contra os outros, substituí-los e maximizar a estratégia opção-saída. Quanto mais
desregulada a economia de um país, mais fácil utilizá-la. Seria necessário, pois, reformar
drasticamente a governança econômica global; o desenvolvimento econômico deveria ser
considerado apenas como um meio para a melhora das condições sociais globais, e não um
fim em si mesmo. E a democracia social deveria buscar um equilíbrio entre mercados
abertos, governos fortes, proteção social e justiça distributiva em nível global, incluindo
planos de redução de pobreza e proteção aos vulneráveis, que sofrem depreciação das
condições básicas de vida tanto no norte como no sul.
A América Latina, mais do que qualquer outra região do mundo, com exceção da
África subsahariana, tem sofrido as graves conseqüências da globalização dos mercados e
das finanças. O discurso hegemônico neoliberal do pós-guerra fria gerou a aplicação de um
receituário de políticas públicas e econômicas cujos resultados na região – para além da
ajuda no controle das situações hiperinflacionárias no Brasil, na Argentina e no Peru –
foram decepcionantes. A conseqüência dessas políticas foi um aumento significativo da
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exclusão social, em meio a uma sucessão de crises que afetou boa parte dos grandes países
da periferia. Enquanto isso, a marcha acelerada da globalização constrangia
progressivamente o poder dos Estados nacionais, subordinando-os a metas monetárias
rígidas que os impediram de praticar os princípios keynesianos que vigoraram na maior
parte da segunda metade do século que findou.
O fato é que – como já vimos – participar das cadeias produtivas não é mais uma
opção para os grandes países da periferia, tais como México, Brasil e Argentina; tal
participação passa a ser uma obrigação imposta pela lógica global, já que ficar fora delas é
ainda pior. Esses países, na intensa disputa por capital e investimento internacionais, são
obrigados a baixar cada vez mais os custos dos seus fatores de produção para atrair partes
das cadeias produtivas das grandes corporações transnacionais; a competição predatória
decorrente paga um alto preço com a redução progressiva de margens de ação, erosão dasoberania nacional e das condições de governabilidade. Governos e opinião pública vão se
transformando em espectadores e a legitimação democrática vai se enfraquecendo. Esse é
um campo aberto para o populismo e para arremedos de democracia, tão recorrentes na
América Latina.
Na verdade, os países centrais insistem em proibir os grandes países periféricos de
usarem precisamente as mesmas políticas que funcionaram com eles no passado, quando
elas os ajudaram a transformarem-se em países ricos. Fazem isso não mais pela força, mas
pelos mecanismos de governança global que escondem a lógica hegemônica.
A alteração desse quadro passa pelo reconhecimento de que as instituições
promotoras de governança global são espaços nos quais as lutas contemporâneas por
prosperidade e poder são travadas. Diversos atores procuram moldá-la de acordo com seus
interesses, visando a maximização de seus objetivos. Hoje os atores privados estão dando o
tom das políticas a serem implementadas pelos atores públicos. Isso tem gerado um tipo de
governança global favorável aos interesses dos mais fortes e que debilita a capacidade de
governabilidade dos Estados periféricos em prol das corporações transnacionais globais.
Estas vêm tendo a capacidade de ocupar os vários espaços de governança global
multicêntrica, tais como a Multilayered (níveis: supraestatal, transnacional, nacional e
subnacional); a Multidimensional (governos, diversas agências estatais ou não, empresas,
associações civis, etc.); e a Multi-actor (ONGs em geral). De modo que a partir deles essas
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grandes corporações procuram criar políticas para multiplicar seus ganhos
independentemente dos problemas que geram. Nesse sentido, na próxima seção,
buscaremos sintetizar o modelo de governança global que vem sendo promovido pelos
Estados Unidos desde o pós-Guerra Fria, acentuado no pós-11 de setembro.
3. A opção atual dos EUA de governança global
Como vimos, os EUA organizaram sua hegemonia no pós-Segunda Guerra Mundial
com base numa arquitetura institucional que lhe permitiu exercê-la de forma benevolente,
sustentada num conjunto de regimes e instituições multilaterais de governança global.
Entretanto, após a crise econômica e militar de 1973, o primeiro movimento dos EUA foi
abandonar esse framework institucional de governança global. Obviamente, o sistema nãose sustentou sem o seu apoio e abriu espaço a um novo modelo de governança que não se
baseia mais num “regime internacional”, mas basicamente no poder discricionário
unilateral dos EUA.
Depois dos anos 1980, e ainda hoje, os EUA procuraram arbitrar isoladamente o
sistema econômico internacional, promovendo a abertura e a desregulação das economias
nacionais, o livre-comércio e a convergência das políticas macroeconômicas de quase todos
os países capitalistas relevantes. Mantiveram e aumentaram ainda sua capacidade industrial,
tecnológica, militar, financeira e cultural. Entretanto, diferentemente de exercer a
hegemonia benevolente, essa ação norte-americana vem provocando um período de grande
instabilidade econômica e financeira, e a maior parte da economia internacional entrou num
período de baixo crescimento prolongado, com a notável exceção dos próprios Estados
Unidos e da China e mais alguns poucos países asiáticos.
No tocante a questão político-militar, depois do fim da Guerra Fria, os EUA se
tornaram uma liderança incontrastável e uma espécie de super-Estado. As teses que
sustentam a hipótese do império afirmam que essa situação poderia criar condições de paz
perpétua no sistema internacional. Mas, o que vem ocorrendo é o aumento do número das
guerras e uma acelerada regressão no campo da legislação internacional. Depois de 2001,
essa tendência se acentuou. Estamos presenciando uma reversão da utopia liberal dos 1990
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e, cada vez mais, um distanciamento do mundo de qualquer espécie de hegemonia
benevolente ou de governança global.
Para José Luís Fiori, os EUA vêm defendendo, há duas décadas, a desregulação de
todos os mercados e sistemas de comunicação, energia e transportes. E vem abandonando,
sucessivamente, todos os acordos, compromissos e regimes internacionais que afetem sua
capacidade de ação unilateral. “Sua moeda, agora, é rigorosamente universal e não obedece
nenhum regime, apenas às decisões soberanas do FED. Sua economia nacional conquistou
espaços fundamentais na direção da globalização da sua moeda, dívida e sistema de
tributação”. Resta às outras Grandes Potências redefinirem seus interesses e espaços de
influência à sombra do hiperpoder norte-americano.
Entretanto, para construir seu conceito de governança global, os EUA desenvolvem
relações bilaterais e multilaterais, mas não deixam de agir unilateralmente se aoportunidade assim exigir. A liderança internacional é exercida, sobretudo no sentido de
induzir as organizações internacionais a estabelecerem metas rígidas para os países
cumprirem rigorosamente suas funções na perspectiva da reafirmação do papel global dos
EUA. Para tanto, é preciso que esses países também assumam responsabilidades. No
campo político-militar, a ação preventiva está totalmente integrada com essa opção de
governança global.
Diante desse quadro internacional, urge ainda mais a necessidade da cooperação
bilateral entre União Européia e América Latina para buscar equilibrar o poder unilateral
dos EUA e induzi-los a construir novos esquemas de governança global, nos quais eles
exerçam uma hegemonia benevolente que passa ser afirmada em consonância com a
necessidade de solução dos problemas globais.
4. Alternativas à Governança Global
Segundo Held (2004), para a solução do déficit de governabilidade se faz necessário
enfrentar quatro grandes desafios para estabecer uma efetiva governança global, a qual
deve se opor a opção atual dos EUA. O primeiro deles refere-se à questão do
accountability. Esse desafio coloca-se devido ao emaranhado de instituições de governança
em vários níveis, áreas e com diversos atores, estatais e/ou não-estatais, frente ao princípio
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da soberania territorial. Uma vez que essas instituições visam lidar com problemas que
extrapolam limites fronteiriços, interessando a comunidades de destino, a
representatividade baseada na soberania territorial dos Estados fica deslocada. De fato, a
cooperação internacional é cada vez mais necessária, mesmo para os Estados mais
poderosos. Em muitos casos, as demandas das comunidades que necessitam de cooperação
internacional não podem ser adequadamente tratadas de acordo com o princípio da
soberania.
O segundo desafio à governança global consiste em preencher dois gaps para o
fortalecimento das instituições políticas internacionais, portanto, da cooperação:
institucionalização e incentivos. No primeiro, é preciso desenvolver maneiras melhores e
mais justas de se definir quem é o responsável pelo quê, no tocante aos problemas
internacionais, e a quem devem os responsáveis prestar contas. No outro, é necessárioencontrar modos de incentivar atores estatais e não estatais a criarem e manterem bens
públicos globais, tendo em vista a possibilidade de free riders, da falta de compromisso dos
atores, etc.
O terceiro desafio é ético-moral. Embora a governança global seja multicêntrica, com
a participação de diversos atores, o sistema funciona de maneira mais eficiente para os
Estados mais poderosos. Ao privilegiá-los, a capacidade do sistema de lidar com situações
globais que afetem os países da periferia (erradicar pobreza, epidemias) é drasticamente
reduzida. A “passiva indiferença” das sociedades prósperas precisa ser revertida.
A identidade é o quarto grande desafio. Embora a criação e o desenvolvimento de
instituições regionais e globais avance, com exceção de algumas elites, a maioria da
população tem sua identidade e fidelidade ligadas às comunidades territoriais, étnicas e
nacionais. A idéia de comunidade de destino precisa ser difundida para que as pessoas
tenham uma referência mais cosmopolita. Caso contrário, os desafios à governança global
podem tornar-se críticos a ponto de haver uma reversão no próprio processo político
globalizante. Então, o nacionalismo extremado poderia ressurgir como principal valor das
sociedades. O problema é que, embora o nacionalismo possa e deva continuar como
elemento cultural, somente uma orientação cosmopolita é adequada para solucionar os
desafios da governança global.
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Como notamos, a agenda internacional passa a ter um forte foco na solução de
problemas que transcendem fronteiras e ligam comunidades de destino para o bem ou para
o mal. No entanto, não é possível afirmar que a agenda esteja isenta de relações de poder e
de interesse. Certamente, o espaço para o predomínio político na atualidade é o da
governança global, e esta é multicêntrica, ou seja, é uma estrutura complexa formada por
instituições e regimes específicos para determinadas issue-areas. O problema está em fazer
essas instituições promotoras da governança global voltarem a prescrevem pacotes de
medidas políticas e econômicas para os países em desenvolvimento que sejam eficazes na
geração de governabilidade, recolocando-os na trajetória do desenvolvimento.
Para tanto, é necessário reinventar instrumentos e mecanismos de governança
democrática na esfera global. Por exemplo, os acordos TRIPs (Trade-Related Aspects of
Intellectual Property Rights) deveriam ser reformulados, permitindo que países emdesenvolvimento tenham sistemas flexíveis e de curto prazo de propriedade intelectual. A
prioridade deveria ser a saúde pública e não a proteção aos donos de patentes. Quanto à
OMC, cláusulas sociais poderiam ser estabelecidas em seu âmbito com o intuito de
erradicar o trabalho forçado e o infantil, garantir o direito à greve e fortalecer a liberdade de
criação e atuação de sindicatos. Tais medidas não teriam a intenção de prejudicar as
vantagens comparativas dos países pobres e em transição em questões de custo de
produção, mas sim de garantir condições básicas de trabalho; além disso, deveria ser
aumentada a capacidade dos países em desenvolvimento em participar de maneira mais
efetiva das negociações comerciais.
Seria ainda necessária uma instituição financeira internacional – mantida pelos países
ricos – que garantisse recursos de longo prazo aos países pobres como suplemento aos
programas de ajuda internacional para o desenvolvimento. Outro mecanismo seria a
taxação em níveis regionais e globais, baseada em consumo de energia e emissão de gás
carbônico. O mercado de capitais deveria ter sua abertura feita de forma gradual e
controlada, como peça-chave na estratégia econômica. A transparência, o controle da
corrupção, o cumprimento da lei e o desenvolvimento de capacidade de monitoramento
seriam essenciais, bem como ampla reforma das instituições internacionais existentes,
incluindo mudanças no sistema de votação do FMI.
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No tocante à ONU é de máxima urgência uma ampla reforma que revigore sua força
normativa, seu alcance global e seu poder de agregação. Nessa direção, é necessário
consenso no Conselho de Segurança sobre a definição do que é terrorismo, do
fortalecimento da capacidade dos Estados em combatê-lo e, principalmente, de um acordo
de como pode e como será usada a força contra os terroristas e/ou Estados que lhes dão
guarida. Deve-se também reforçar as estruturas multilaterais de governança global para o
controle de armas biológicas, químicas e nucleares para impedir a escalada de sua
proliferação. Outro fator importante é assegurar o êxito da tarefa de construção de paz
duradoura em países devastados por guerras, bem como durante a reconstrução tratar de
auxiliar na construção de instituições que integrem a proteção aos Direitos Humanos a um
Estado de Direito Democrático, pois os povos devem ter direito de se autogovernar por
meio de instituições democráticas.Mais importante é a dimensão econômico-social. A ONU deve ser indutora de
aperfeiçoamentos das instituições governamentais que sejam elementares para a promoção
e geração de desenvolvimento. Deve trabalhar em cooperação com os países desenvolvidos
e outras instituições internacionais para garantir o cumprimento das Metas do Milênio
(erradicar a extrema pobreza e a fome; atingir o ensino básico universal; promover a
igualdade entre os sexos e a autonomia da mulher; reduzir a mortalidade infantil; melhorar
a saúde materna; combater o HIV/AIDS, malária e outras doenças; garantir a
sustentabilidade ambiental; e estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento).
Nesta perspectiva, deve trabalhar para que suas aspirações se traduzam em operações, as
quais devem ocorrer de modo multifacetado, passando da garantia de maior acesso a
mercados para países em desenvolvimento e Países de Menor Desenvolvimento Relativo
(PMDR), ao alívio da dívida externa de países pobres e, sobretudo, ao aumento da
assistência oficial ao desenvolvimento. Em suma, isso significa dar condições para que as
nações em desenvolvimento e pobres ampliem sua capacidade de governabilidade com
apoio da ONU articulada a políticas de desenvolvimento econômico-social com
democracia. Permitindo a população mundial melhorar seus padrões de vida com maior
liberdade política.
Vamos, em seguida, sintetizar os papéis que têm sido desempenhados por algumas
das instituições multilaterais e suas conseqüências à governança global.
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5. Instituições multilaterais e Governança Global
5.1. O caso da ONU†
O texto de Ricupero argumenta que a melhoria de condições básicas de
desenvolvimento internacional é capaz de produzir melhor governança global.
Concentrando-se no caso latino-americano, argumenta que a UNCTAD, a CEPAL e o
PNUD advogam há muito tempo, junto à União Européia, a liberalização agrícola
fundamental para a promoção do desenvolvimento e ajudar numa governança global que
amplie a capacidade de governabilidade dos países na América Latina.
O autor difere duas formas por meio das quais a ONU influencia a governança
global: assessoria em política macroeconômica ou em áreas específicas como políticacomercial, industrial e regionalização, geralmente concentrada na UNCTAD, por um lado,
e projetos de cooperação técnica, viabilizados pelo PNUD, por outro. A partir disso, traça
breve abordagem histórica da influência das instituições econômico-sociais da ONU na
América Latina em três fases. Na primeira, que vai dos anos 1940 aos 1980, é o período de
hegemonia da CEPAL, a qual advogava a substituição de importações, proteção doméstica
contra importações e um mercado dirigido. A CEPAL, que pode ser entendida como
precursora da UNCTAD, também incentivou o regionalismo como maneira de promoção de
desenvolvimento, inspirada basicamente no modelo europeu. As sugestões da UNCTAD
contribuíram para o desenvolvimento dos países latino-americanos, com particular destaque
para a captação de investimentos estrangeiros, sobretudo europeus.
A UNCTAD conseguiu benefícios, direta ou indiretamente, em termos de
governança global para os países em desenvolvimento até, pelo menos, os anos 1980. Os
principais exemplos são a exceção aos princípios da não-discriminação e da nação mais
favorecida, o tratamento especial e diferenciado, e o Sistema Geral de Preferências. Esses
princípios foram consagrados no GATT, mas a participação da UNCTAD foi fundamental.
Com relação à América Latina, a UNCTAD negocia acordos específicos para a
estabilização do preço de commodities.
†Síntese das conclusões do paper do Embaixador Rubens Ricupero, preparado para o IEEI. Ricupero foisecretário geral da UNCTAD e Ministro da Fazenda do Brasil.
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Na segunda fase, a influência das instituições econômico-sociais da ONU sobre os
países em desenvolvimento, especificamente os da América Latina, entrou em declínio
entre 1982 e 1990, como um claro reflexo da crise da dívida dessa década, bem como das
mudanças no modelo de governança global promovido pelos Estados Unidos desde então.
O FMI e o Banco Mundial passaram a exercer maior influência sobre esses países seguindo
a reação neoconservadora na Grã-Bretanha e Estados Unidos. Adicionalmente, a queda do
muro de Berlim e as modificações tecnológicas e nas estruturas produtivas potencializaram
a influência dos neoconservadores.
A terceira fase tem início em meados de 1995, com crítica das instituições da ONU
ao Consenso de Washington. Nesse período há a retomada de sua influência. As crises
financeiras dessa década, especialmente a da Argentina, fortaleceram a UNCTAD, que
desde 1990 vinha apontando a inconsistência de vários traços da liberalização econômicados países em desenvolvimento. Paralelamente, o PNUD desenvolveu novos conceitos de
desenvolvimento, como o de “desenvolvimento humano”. Esses conceitos tiveram
impactos nas instituições de Bretton Woods e ganharam o apoio internacional para a causa
da erradicação da pobreza como meta da cooperação econômica internacional. A
Declaração do Milênio, as Metas de Desenvolvimento do Milênio e a Rodada Doha são
exemplos disso.
Outros dois exemplos de destaque que mostram a influência da ONU na governança
global, especificamente na América Latina são: primeiro, o desenvolvimento sustentável.
Na América Latina, apesar de problemas ambientais persistirem, as ações e conferências
das Nações Unidas impulsionaram movimentos de ONGs, associações e partidos verdes
que pressionam pela proteção ambiental e desenvolvimento sustentável, e os governos
nacionais se mostram receptivos a essas idéias. O segundo tema é o de direitos básicos,
como democracia, igualdade de sexos, direitos da criança e luta contra o racismo, os quais
se tornaram parte de políticas públicas na região graças a atuação da ONU. Evidentemente
esses direitos ainda encontram problemas, mas a atuação das Nações Unidas foi
fundamental para trazê-los à agenda global e regional.
Retomando a questão econômica, a CEPAL e a UNCTAD têm diagnósticos e
soluções parecidas para os países latino-americanos: crescimento econômico com mais
investimentos e taxas de câmbio e de juros menos voláteis e mais favoráveis, assim como
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políticas de competitividade, tecnologia e comercial melhores. O crescimento econômico,
no entanto, deve ser acompanhado de distribuição de renda e combate à pobreza, com
priorização de investimentos em educação, saúde pública e saneamento, devidamente
avaliados em termos de qualidade e eficiência. Na opinião de Ricupero, essas políticas
fariam parte de uma boa governança global. O sucesso delas é de responsabilidade primária
dos governos nacionais, os quais devem ter a capacidade de governabilidade para
implementá-las, mas a orientação multilateral proporcionada pela ONU é de grande valia.
5.2. O caso do FMI e do Banco Mundial‡
No caso das instituições multilaterais financeiras responsáveis pela governança
global dessa área, vamos destacar o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o BancoMundial (BM). Estas instituições alimentaram o mito de que suas orientações seriam
“neutras”, isentas das opções políticas dos Estados, porque se baseariam na racionalidade
de análises puramente técnicas. Entretanto, as condicionalidades impostas em suas
operações financeiras e o poder de mobilização política e ideológica derivada da incessante
atividade de seu corpo técnico acaba gerando interferências claras nas políticas de países da
periferia, tornando-as alinhadas aos interesses hegemônicos, especialmente dos Estados
Unidos que possui as maiores cotas e amplo controle sobre o corpo de funcionários do
banco.
Ao contrário do que ocorre, uma definição de governança global implica que o
sistema leve em consideração o interesse de todos. As instituições cujo processo decisório é
o consenso, como a OMC, têm nessa preocupação uma razão de ser, pois assim espera-se
obter legitimidade por meio do multilateralismo democrático. Mas essa preocupação não
permeia o FMI e o BM. Nesse sentido, a cooperação com países da União Européia, que
possuem acesso e poder nas instâncias decisórias dessas organizações, seria fundamental
para modificar os processos de tomada de decisão e garantir legitimidade a essas
organizações intergovernamentais centrais do sistema internacional.
‡ Síntese das conclusões do paper do Professor Carlos Eduardo Carvalho, preparado para o IEEI-BR.Carvalho é professor da PUC- São Paulo e coordenador do Programa de Estudos Pós-Graduados emEconomia Política dessa mesma instituição.
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O quadro de desregulamentação e flexibilização financeira e cambial
contemporâneo acentuou a capacidade norte-americana em conduzir essas instituições
internacionais a proporem mecanismos de governança global que induzam políticas nos
países periféricos que sejam convergentes com os interesses dos Estados Unidos. A partir
de então, alinhado às idéias neoliberais, o FMI - em parceria com o FED - passou a
desempenhar o papel de disciplinador de um conjunto de “países rebeldes” e instituições
financeiras em dificuldade que atuam sem regras claras, em mercados desregulamentados
sem instrumentos de controle e de garantias. Nesse contexto, a sugestão de políticas de
ajuste monetaristas, bastante restritivas e pró-ciclicas, agravam os efeitos sistêmicos
desestabilizadores globais, aumentando a fragilidade financeira e cambial dos países
periféricos. Essas políticas de ajustes se tornam um remédio amargo com resultados
duvidosos, elevados custos econômicos e sociais, ao mesmo tempo em que preservavam osinteresses dos credores internacionais e dos rentistas locais. Além disso, transferiram para
os países periféricos os ônus e os custos da crise gerada pela adoção do receituário
prescrito, bem como as responsabilidades e obrigações tanto de recuperação das respectivas
economias quanto da criação de mecanismos que evitem uma repetição das crises; ou seja,
que protejam suas economias contra a instabilidade financeira e cambial internacional. Em
resumo, essas instituições de governança global atualmente promovem a
desgovernabilidade dos Estados mais frágeis na cena internacional.
Paralelamente, o BM foi um dos principais promotores das políticas de abertura,
desregulamentação e privatização, recomendadas de modo uniforme e padronizado para
todos os países, que - ao serem aplicadas - aumentam a exposição à instabilidade financeira
e cambial. Em troca da adoção dessas políticas, os países periféricos receberam escassos
recursos a serem aplicados em políticas públicas de baixo impacto em contextos de extrema
miséria; ou vieram como cooperação técnica internacional voltada ao aparelhamento da
administração pública para ampliar sua capacidade de arrecadação de impostos que
acabaram garantindo, no momento de crises, a ampliação de recursos para o pagamento aos
credores.
O caso que melhor exemplifica esse modus operandis das instituições internacionais
no estabelecimento de governança global favorável aos interesses hegemônicos,
especialmente dos Estados Unidos, é o da Argentina. Durante uma década, as elites
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governamentais argentinas aplicaram o receituário do FMI e do Banco Mundial por meio
do Plano de Conversibilidade. Em inúmeras ocasiões o país foi elogiado e citado
entusiasticamente por esses organismos como exemplo a ser seguido. Aos primeiros sinais
da gravidade da crise decorrente, nem FMI nem Banco Mundial buscaram auxiliar o país.
Colocaram-se como impotentes, assistindo a agonia que se traduziu na catástrofe
econômica e social de 2001-2002. O governo argentino acabou sendo apontado, após o
colapso do regime de conversibilidade tão aplaudido no passado, como único responsável
pela crise. A inadequação das políticas de governança global e das condutas derivadas do
FMI e do Banco Mundial jamais foi ventilada. Mas, logo depois, durante o contencioso que
se seguiu graças à operada pela Argentina – e a proposta de renegociação da dívida externa
- o Banco Mundial calou-se, enquanto o FMI pressionou o governo argentino para que ele
atendesse aos interesses dos credores privados. Mas, antes, tratou de garantir que seusempréstimos fossem honrados. Habilmente, o governo argentino responsabilizou a
moratória pelos erros e fatos passados induzidos pelos mecanismos de governança global
da comunidade financeira internacional, em especial do FMI e Banco Mundial. Isso lhe
permitiu, ainda que isolado e pressionado por várias frentes, renegociar a dívida externa
com os credores privados de modo exitoso.
Esse processo demonstra claramente as conseqüências dos frágeis mecanismos de
governança global quando eclodem conflitos sérios em torno dos principais temas
financeiros característicos de nossa época. E indicando a necessidade do estabelecimento de
mecanismos efetivos de governança global que imponham limites e normas às ações das
instituições e dos credores financeiros nos países periféricos.
Além do mais, fragilidade financeira e cambial dos países da periferia é agravada
pelos efeitos desestabilizadores dos fluxos de capitais, dos efeitos pró-cíclicos das políticas
de ajuste do FMI e das "reformas estruturais" propostas pelo BM. A insistência do FMI em
exigir ajustes recessivos e pró-cíclicos nos momentos de crise dos países da periferia tende
a aprofundá-la, com efeitos desagregadores de natureza social e política. Em primeiro
lugar, porque as contas públicas são obrigadas a fortes ajustes nos momentos em que
precisariam ser flexibilizadas para facilitar a ação do setor público e a redução dos
constrangimentos financeiros do setor privado. Em segundo, porque as medidas recessivas
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aprofundam as dificuldades financeiras das empresas e dos indivíduos, agravando a
solvência das carteiras de crédito das instituições bancárias locais.
5.3. O caso da OMC§
Uma das razões importantes para o atual déficit sistêmico de governança é a
expansão acelerada dos mercados, em virtude da globalização, sem que houvesse
correspondência na capacidade de construção de instituições políticas eficazes na
regulamentação e na coordenação de atividades e comportamentos de novos atores na arena
internacional. Em muitas ocasiões, a falta de definição do papel de cada instituição conduz
à produção de resultados insatisfatórios de governança global. A OMC, originalmente
criada para cumprir o papel de governança global na esfera comercial, é um bom exemplodessa situação. Sua agenda de negociações veio incorporando, desde 1995, uma série de
outros assuntos que extrapolam sua competência original: investimento externo direto,
serviços, direitos de propriedade intelectual, compras governamentais, meio ambiente,
questões trabalhistas, etc. Como conseqüência, desde o início da Rodada Doha - chamada
como a rodada do desenvolvimento -, vem enfrentando impasses quase insolúveis em
virtude de posições negociadoras radicalmente opostas de seus membros - países
desenvolvidos e em desenvolvimento - em diversas matérias. No que se refere ao comércio
agrícola internacional, os países desenvolvidos não querem abrir mão da prerrogativa de
garantir apoio doméstico à produção de alimentos. Essa prática traduz-se em intensos
subsídios indiretos à exportação, prejudicando os países mais pobres que dependem – em
grande parte - da produção agrícola para o seu crescimento. Como contrapartida, os países
periféricos se recusam a negociar temas de interesse dos países desenvolvidos; entre outros,
investimentos externos, competição, questões trabalhistas, meio ambiente, serviços,
compras governamentais, etc. O resultado é o impasse e a paralisação da instituição.
Essa dinâmica tende, por um lado, a limitar a capacidade de exercício de
governança global da OMC na questão do comércio; por outro, a induzir os países,
principalmente os mais desenvolvidos, a buscarem outras opções, outros fóruns de
§ Síntese das conclusões do paper da Professora Vera Thorstensen, preparado para o IEEI. Thorstensen éconsultora da Missão Brasileira em Genebra na OMC desde 1995.
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negociações e negociações bilaterais para a solução desses impasses, os quais podem
produzir regras que contrariam muitas vezes a primazia do multilateralismo na geração de
governança global. Essa governança, como um bem público internacional, seria a condição
para o enfrentamento comum dos problemas mundiais, a requerem crescentemente
cooperação, coordenação supranacionais para serem resolvidos.
Um bom exemplo é a questão dos investimentos externos. Os países desenvolvidos
buscam criar regras em várias organizações internacionais concomitantemente, gerando
sobre o tema um framework institucional confuso, contraditório e pouco coordenado que
não leva a nenhum avanço nas negociações internacionais, especialmente em benefício dos
países que sofrem os impactos negativos da instabilidade global derivada da ampla
desregulamentação financeira. O objetivo estratégico dos países mais ricos parece ser fazer
prevalecer o status quo, permitindo um avanço adicional do processo de desregulamentaçãoque favorece os mais fortes. Acabam entrando nesse jogo o FMI, o Banco Mundial, e a
OCDE, em oposição aberta à necessidade de controle de capitais proposta por outras
agências da ONU e pelos países mais pobres na Rodada Doha da OMC.
No que toca à competição, o objetivo é desenvolver uma estrutura multilateral
voltada para assegurar que os ganhos produzidos pela liberalização não sejam erodidos por
comportamento anticompetitivo dos atores privados. Porém, o tema foi excluído da atual
rodada por não ser considerado prioridade entre os países em desenvolvimento. O tema de
padrões trabalhistas não contabiliza sucessos no âmbito da OMC. As propostas de inclusão
desses padrões, desde a fundação do GATT, falharam por diversos motivos, mas um
constante é a preocupação de se tornarem barreiras não-tarifárias.
Na relação entre comércio e meio ambiente existem opiniões polêmicas e
contrastantes. Alguns temem que normas ambientais restrinjam exportações, enquanto
outros são favoráveis a critérios mais rígidos de proteção ambiental. Embora a OMC não
tenha um acordo específico para o tema, existem várias regras dispersas sobre ele pelos
acordos. Os países desenvolvidos exigem respeito às normas de proteção ao meio ambiente
no processo de produção como condição para a entrada de produtos dos países menos
desenvolvimentos em seus mercados. Para tanto, utilizam-se de jurisdição do CDB
(Convention on Biological Diversity). Entretanto, empresas transnacionais constantemente
apropriam-se ilegalmente de riquezas biológicas e naturais dos países mais pobres,
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patenteando-as internacionalmente e exigindo seu cumprimento baseado nas normas das
TRIPS, com apoio irrestrito dos seus países de origem A mesma dinâmica também se
reproduz na questão do comércio e trabalho.
A questão TRIPS só fugiu desse padrão no caso da AIDS. Nesse caso, sob forte
pressão de países mais pobres interessados e apoio de ONGs, houve coordenação inter e
intra-organizações internacionais - OMC, OMS e OMPI - para a solução do impasse entre
respeitar-se os acordos de direito de propriedade intelectual ou flexibilizá-los. Isso permitiu
aos países com risco epidêmico definirem situações de emergência nacional nas quais
tornou-se permitido quebrar patentes de medicamentos em prol do interesse público. Essa
posição sagrou-se vitoriosa quando, em 2001, assinou-se um acordo entre as três
instituições permitindo a quebra de patentes em casos específicos, desde que haja
comunicação prévia aos detentores dos direitos de propriedade intelectual. Tratou-se, pois,de experiência bem sucedida em favor da geração de bens públicos globais, que poderia ser
ampliado em outros casos.
Por fim, a questão de comércio e padrões de produtos - isto é, as características de
um produto como critério para sua comercialização - é tema conectado à globalização da
produção. Argumenta-se que padrões técnicos e de qualidade são necessários por diversos
motivos, da proteção à saúde dos consumidores até a uniformização de especificações para
consumo global, mas há a preocupação de tais padrões se tornarem barreiras ao comércio.
O tema conta com acordo no âmbito da OMC, mas seu debate não está concluído.
A governança do comércio internacional e de temas relacionados a ele é desafio que
não pode ser superado exclusivamente pela OMC. É preciso coordenação com outras
organizações internacionais. Particularmente, a OMC precisa lidar com desafios peculiares
para melhorar seu desempenho, como o processo decisório, o Mecanismo de Solução de
Controvérsias e a participação da sociedade civil. No que toca especificamente à
coordenação internacional, Thorstensen argumenta que há avanços, mas grandes
dificuldades. Dentre as dificuldades estão a escolha das organizações globais e regionais a
participarem como observadoras, muitas vezes bloqueadas por motivos políticos; a
participação efetiva dessas organizações nos processos da OMC, as quais não são
convidadas para as reuniões informais, que são onde as decisões importantes ocorrem; e os
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impactos das decisões de outras organizações internacionais sobre a OMC que, por não
poderem ser impostas à essa organização, demandam cooperação.
O sistema comercial não se limita ao âmbito multilateral, entendido como algo
mundial. Conta com a participação paralela, algumas vezes integrada e outras
contraditórias, de sistemas regionais, os quais também definem regras e buscam governar
fenômenos e relações no plano regional. Estima-se que são cerca de 300 os acordos
comerciais regionais. Analistas dividem-se quanto à influência dos blocos regionais para o
sistema multilateral. Uns entendem que são contrários à globalização, outros que vão ao
encontro dela. Uma interpretação corrente é que os acordos regionais são impulsionados
pela insuficiência das regras da OMC e outras organizações em alguns temas.
Para a autora, a prevalência dos impasses já citados está conduzindo os países
desenvolvidos a apostarem em estratégias bilaterais e regionais de negociações. Proliferam-se acordos regionais e bilaterais que tendem a comprometer as vantagens já alcançadas pela
agenda multilateral da OMC, minando seu papel de governança global. Os EUA vêm
apostando intensamente nessa direção, utilizando seu poder e o tamanho de seu mercado
para concluir inúmeras negociações isoladas para evitar os constrangimentos do
multilateralismo: é o caso dos acordos recentes com Israel, Chile e países andinos latino-
americanos. O mesmo vem ocorrendo com a União Européia na sua expansão para o Leste
e com México e outros países.
Diante desse cenário, “the commitment of nations to multilateralism, universal
values and common goals are vitally conditioning the quality of global governance”.
Portanto, somente a retomada de intensas negociações “among representatives of members
of all related organisations and a constant dialogue among them can” tentar superar o
impasse atual e “create the conditions for global agreements” .
6. Cooperação Bilateral União Européia-América Latina: Perspectivas à Governança
É sabido que União Européia e América Latina compartilham valores como
democracia, direitos humanos, meio ambiente, Welfare State e multilateralismo. Mas essa
condição não tem sido suficiente para compatibilizar interesses dos Estados e das
sociedades dos blocos, já que em inúmeras ocasiões essas regiões encontraram-se em
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posições opostas. Apesar disso, a parceria com a UE com vistas à harmonização de
posições e ações nos foros internacionais poderá significar um incremento no poder dos
países da América Latina e uma oportunidade para a ampliação do espaço estratégico da
UE. Um eixo euro-latino-americano em torno daqueles valores teria um razoáve