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OS DESTRUIDORES Graham Greene [tradução de Christian Schwartz 1 ] 1 Foi numa véspera de feriado em agosto que o último dos membros a ser recrutado se tornou o líder da gangue de Wormsley Common. Ninguém além de Mike se surpreendeu, mas, aos nove anos, Mike se surpreendia com tudo. “Se você não fechar essa boca”, certa vez alguém lhe disse, “vai acabar engolindo um sapo.” Depois dessa, Mike mantinha os dentes bem cerrados sempre, exceto quando a surpresa era muito grande. O novo membro já estava na gangue desde o começo das férias de verão, e todos reconheciam possibilidades em seus silêncios pensativos. Nunca desperdiçava sequer uma palavra, nem para dizer o nome, até que alguma regra o obrigasse a isso. Dizer “Trevor”, para ele, tinha sido como enunciar um fato, e não, como teria sido para os outros, a expressão de uma vergonha ou de um desafio. E tampouco alguém riu, só Mike, que, vendo-se sem companhia e deparando-se com o olhar sombrio do recém-chegado, abriu a boca e novamente a calou. Várias poderiam ser as razões para que T., conforme passou a ser chamado a partir dali, fosse alvo de gozação – havia o nome (substituído pela inicial porque, do contrário, não teriam como evitar rir dele), e o fato de seu pai, antes arquiteto e agora escriturário, ter “descido na vida” e de sua mãe se achar melhor do que os vizinhos. Que mais senão uma estranha aura de perigo, de imprevisível, poderia tê-lo entronizado na gangue sem alguma ignóbil cerimônia de iniciação? O bando se encontrava todas as manhãs num estacionamento improvisado, o local onde explodira a última bomba do primeiro dos grandes bombardeios. O líder, 1 Christian Schwartz é professor, jornalista e tradutor de vários autores, entre eles Jonathan Coe, Philip Pulmann, Matt Haig, Dinaw Mengestu, Hanif Kureishi, Philip Roth, Sam Shepard, Lou Reed, Nathaniel Hawthorne e F. Scott Fitzgerald. Atualmente cursa doutorado em História Social na Universidade de São Paulo (USP), com projeto sobre tradução cultural.

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OS DESTRUIDORESGraham Greene

[tradução de Christian Schwartz1]

1

Foi numa véspera de feriado em agosto que o último dos membros a ser recrutado se tornou o líder da gangue de Wormsley Common. Ninguém além de Mike se surpreendeu, mas, aos nove anos, Mike se surpreendia com tudo. “Se você não fechar essa boca”, certa vez alguém lhe disse, “vai acabar engolindo um sapo.” Depois dessa, Mike mantinha os dentes bem cerrados sempre, exceto quando a surpresa era muito grande.

O novo membro já estava na gangue desde o começo das férias de verão, e todos reconheciam possibilidades em seus silêncios pensativos. Nunca desperdiçava sequer uma palavra, nem para dizer o nome, até que alguma regra o obrigasse a isso. Dizer “Trevor”, para ele, tinha sido como enunciar um fato, e não, como teria sido para os outros, a expressão de uma vergonha ou de um desafio. E tampouco alguém riu, só Mike, que, vendo-se sem companhia e deparando-se com o olhar sombrio do recém-chegado, abriu a boca e novamente a calou. Várias poderiam ser as razões para que T., conforme passou a ser chamado a partir dali, fosse alvo de gozação – havia o nome (substituído pela inicial porque, do contrário, não teriam como evitar rir dele), e o fato de seu pai, antes arquiteto e agora escriturário, ter “descido na vida” e de sua mãe se achar melhor do que os vizinhos. Que mais senão uma estranha aura de perigo, de imprevisível, poderia tê-lo entronizado na gangue sem alguma ignóbil cerimônia de iniciação?

O bando se encontrava todas as manhãs num estacionamento improvisado, o local onde explodira a última bomba do primeiro dos grandes bombardeios. O líder, conhecido como Neguinho, afirmava tê-la ouvido cair, e ninguém era capaz de fazer as contas para apontar que, na tal data, ele devia ter um ano de idade, um bebê dormindo tranquilo numa das plataformas da estação subterrânea de Wormsley Common. Num dos lados do estacionamento, jazia a primeira casa reocupada da Vila Northwood, a de número 3 – jazia, literalmente, porque tinha sido bastante danificada pela bomba e as paredes laterais eram sustentadas por vigas de madeira. Uma bomba menor e outras incendiárias haviam caído mais além, de modo que a casa permaneceu de pé feito um dente amolecido e ali ficou, amparada nos resquícios da parede do vizinho, num friso do teto, nos restos de uma lareira. T., cujas palavras se limitavam a praticamente “sim” e “não” na votação diária dos planos de ação propostos por Neguinho, daquela vez surpreendeu toda a gangue ao dizer, ruminando pensamentos: “Meu pai me disse que foi Wren quem construiu aquela casa”.

“Quem é Wren?”“O cara que projetou a Catedral de St. Paul.”“E daí?”, falou Neguinho. “É só a casa do Velho Casmurro.”Velho Casmurro – cujo nome verdadeiro era Sr. Thomas – algum dia havia sido

um empreiteiro e decorador. Morava sozinho na casa estropiada, muito discreto: uma

1 Christian Schwartz é professor, jornalista e tradutor de vários autores, entre eles Jonathan Coe, Philip Pulmann, Matt Haig, Dinaw Mengestu, Hanif Kureishi, Philip Roth, Sam Shepard, Lou Reed, Nathaniel Hawthorne e F. Scott Fitzgerald. Atualmente cursa doutorado em História Social na Universidade de São Paulo (USP), com projeto sobre tradução cultural.

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vez por semana era possível vê-lo atravessando a pracinha, depois de ter ido buscar pão e fazer a feira, e certa vez, quando os meninos brincavam no estacionamento, espiou-os por sobre o muro semidestruído do quintal.

“Acabou de ir no banheiro”, comentou um dos garotos, pois era de conhecimento geral que, desde os bombardeios, o encanamento da casa não funcionava bem, mas o Velho Casmurro era pão-duro demais para se permitir botar dinheiro no imóvel. Conseguiu redecorá-lo a preço de custo, mas nunca fora encanador. O banheiro era uma casinha de madeira – na porta, um buraco no formato de uma estrela – que ficava nos fundos do estreito quintal: tinha escapado da explosão que esmagara a casa vizinha e arrancara as esquadrias da própria casa de número 3.

Mais surpreendente foi a aparição seguinte do Sr. Thomas. Neguinho, Mike e um menino magro e de aspecto amarelado, o qual por alguma razão era chamado pelo sobrenome, Summers, o encontraram na pracinha, voltando das compras. O Sr. Thomas os abordou. Soturno, disse: “Vocês são daquele bando que brinca no estacionamento?”

Mike já ia responder quando Neguinho o impediu. Como líder, tinha responsabilidades. “E daí se a gente for?”, falou, ambíguo.

“Tenho uns chocolates”, disse o Sr. Thomas. “Eu mesmo não gosto. Taí. Não dá pra todo mundo, acho. Nunca dá”, ele acrescentou, com uma convicção sombria. E entregou aos meninos três pacotes de Smarties.

A gangue ficou confusa e perturbada com a atitude do velho, tentavam achar uma explicação. “Aposto que estavam caídos no chão e ele juntou”, alguém sugeriu.

“Surrupiou e depois ficou se cagando”, outro pensava alto.“Isso é propina”, falou Summers. “Está querendo que a gente pare de bater bola

no muro dele.”“Vamos mostrar pro velho que a gente não aceita propina”, disse Neguinho, e

então dedicaram a manhã toda a brincar de paredão, jogo para o qual apenas Mike era considerado muito novo. Nem sinal do Sr. Thomas.

No dia seguinte, T. embasbacou a todos. Chegou atrasado ao encontro e a votação sobre a ação do dia aconteceu sem ele. Por sugestão de Neguinho, formariam duplas que se dispersariam tomando ônibus ao acaso, para ver quantos trajetos cada um era capaz de fazer sem pagar passagem, às expensas de motoristas distraídos (a operação deveria acontecer aos pares para evitar que alguém trapaceasse). Cada dupla combinava sua área de atuação quando T. chegou.

“Onde você estava, T.?”, perguntou Neguinho. “Não pode mais votar agora. Você conhece as regras.”

“Eu estava lá”, respondeu T. Mirava o chão, como se tivesse pensamentos a esconder.

“Onde?”“Na casa do Velho Casmurro.” A boca de Mike se abriu e, em seguida, se

fechou de novo com um clique. Tinha se lembrado do sapo.“Na casa do Velho Casmurro?”, falou Neguinho. Não havia nada nas regras que

proibisse aquilo, mas ele tinha a sensação de que T. palmilhava terreno perigoso. Cheio de expectativa, quis saber: “Você arrombou?”

“Não. Bati a campainha.”“E o que você disse?”“Que eu queria ver a casa dele.”“E o que ele fez?”“Me mostrou a casa.”“Você surrupiou alguma coisa?”“Não.”

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“Então pra que fez isso?”A gangue tinha se reunido em torno dos dois: era como se um tribunal

improvisado estivesse a ponto de se formar para o julgamento de um litígio. T. falou: “É uma linda casa”, e sem olhar nos olhos de ninguém, ainda com os seus pregados no chão, lambeu os lábios para um lado, depois para o outro.

“Como assim, uma linda casa?”, perguntou Neguinho, escarnecendo.“Tem uma escadaria de uns duzentos anos de idade que parece um saca-rolhas.

Não tem nada segurando ela no ar.”“Como assim, não tem nada segurando? Ela flutua?”“Tem a ver com forças opostas, o Velho Casmurro disse.”“Que mais?”“Forração nas paredes.”“Que nem no Blue Boar?”“Duzentos anos de idade.”“O Velho Casmuro tem duzentos anos?”Mike riu de repente e logo se calou outra vez. A reunião tinha um tom sério.

Pela primeira vez desde que T. dera as caras no estacionamento, no primeiro dia das férias, ele se achava em posição perigosa. Bastaria alguém mencionar seu nome verdadeiro ali e a gangue não largaria mais do pé dele.

“Pra que você fez isso?”, perguntou Neguinho. Estava sendo justo, não tinha ciúme, queria ansiosamente manter T. no bando, se pudesse. A palavra “linda” era o que o havia inquietado – aquilo pertencia a outro mundo, em termos de classe social, um mundo que ainda era possível encontrar, como paródia, no Wormsley Common Empire, num sujeito de cartola e monóculo com um sotaque entojado. Neguinho se sentiu tentado a dizer: “Meu querido Trevor, bom amigo”, com uma afetação dos infernos. “Se você tivesse arrombado...”, falou, com tristeza – isso, sim, seria uma ação digna da gangue.

“Fiz melhor”, respondeu T. “Descobri coisas.” Continuava a encarar os próprios pés, sem levantar a vista para ninguém, como que absorto em algum sonho que não desejava – ou tinha vergonha de – compartilhar.

“Que coisas?”“O Velho Casmurro vai ficar fora a partir de amanhã e o feriado inteiro.”Aliviado, Neguinho disse: “Então podemos ir lá e arrombar, é isso?”“E surrupiar uns troços?”, alguém quis saber.Neguinho retomou: “Ninguém vai surrupiar troço nenhum. Arrombar já está de

bom tamanho, né? A gente não quer ter problemas com a lei.”“Não estou querendo roubar nada”, falou T. “Tenho uma ideia melhor.”“Qual?”T. tirou do chão um olhar plúmbeo e nublado como aquele dia pardacento de

agosto. “Vamos derrubar a casa”, disse. “Destruir.”Neguinho soltou uma risada avulsa e, feito Mike, se calou, perturbado por aquele

olhar sério e implacável. “E a polícia no meio disso?”, perguntou.“Nem vai perceber. A gente destrói de dentro pra fora. Descobri um jeito de

entrar.” Falava com uma espécie de intensidade: “Vamos agir que nem vermes, vocês não percebem?, que nem vermes numa maçã. Quando sairmos de lá, não vai ter mais nada, nem escadaria, nem forração, nada além das paredes, e aí arrumamos um jeito de derrubá-las.”

“A gente ia acabar no xilindró”, falou Neguinho.

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“E quem ia poder provar? E, também, não vamos ter roubado nada.” Sem a menor centelha de entusiasmo, acrescentou: “Não teria nada pra roubar depois que terminássemos”.

“Nunca ouvi falar de alguém que foi pro xilindró por destruir coisas”, disse Summers.

“Não ia dar tempo de fazer”, falou Neguinho. “Já vi arrombadores em ação.”“Somos em doze”, retrucou T. “A gente se organiza.”“Nenhum de nós sabe como...”“Eu sei”, disse T. Encarou Neguinho. “Você tem um plano melhor?”“Hoje”, falou Mike, cheio de dedos, “a gente ia pegar uns ônibus de graça...”“Ônibus de graça”, atalhou T. “Você não precisa participar, Neguinho, se

prefere...”“A gangue tem que votar.”“Coloque em votação, então.”Sem jeito, Neguinho disse: “A proposta é amanhã e no feriado a gente destruir a

casa do Velho Casmurro”.“Topo, topo”, falou um menino gordo chamado Joe.“Quem é a favor?”T. disse: “Está aprovado”.“Por onde a gente começa?”, perguntou Summers.“Ele vai dizer pra vocês”, falou Neguinho. Era o fim de sua liderança. Foi até os

fundos do estacionamento e começou a chutar uma pedra, driblando para um lado, depois para o outro. Havia apenas um velho Morris estacionado por perto, pois, fora os caminhões, eram poucos os carros deixados ali: sem alguém que os olhasse, não era seguro. Neguinho deu uma voadora contra o único carro, tirando um pouco de tinta do para-lama traseiro. Ao longe, sem prestar mais atenção a ele do que prestaria a um estranho, o restante da gangue rodeava T.; Neguinho tomava consciência, sombrio, do caráter volúvel de uma ascendência. Pensou em voltar para casa, em nunca mais aparecer, em deixar que todos eles descobrissem como era frágil a liderança de T., mas e se, no fim, o que T. propunha fosse possível – nada parecido havia sido tentado até então. A fama da gangue do estacionamento de Wormsley Common certamente se espalharia por toda Londres. Haveria manchetes nos jornais. Até as gangues de adultos que controlavam as apostas da luta livre e os feirantes da cidade escutariam respeitosos a história de como a casa do Velho Casmurro fora destruída. Movido pura e simplesmente pela ambição altruísta de que a gangue ficasse famosa, Neguinho voltou para perto de T., que estava parado à sombra do muro do Velho Casmurro.

Dava suas ordens com decisão: era como se tivesse carregado aquele plano a vida inteira, ponderando-o e amadurecendo-o, e agora, aos quinze anos, nas dores da adolescência, o plano se cristalizasse. “Você”, ele disse para Mike, “traga uns pregos bem grandes, os maiores que conseguir encontrar, e um martelo. Alguém mais que possa trazer um martelo e uma chave de fenda? Vamos precisar de muitos. Formões também. O maior número possível. Alguém que traga um serrote?”

“Eu posso trazer”, falou Mike.“Não um de brinquedo”, disse T. “Um de verdade.”Neguinho se deu conta de que levantava a mão como se fosse um integrante

qualquer da gangue.“Certo, você traz um serrote, Neguinho. Mas tem um problema. Precisamos de

um arco de serra.”“O que é um arco de serra?”, alguém perguntou.“Tem pra vender na Woolworth’s”, falou Summers.

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O menino gordo chamado Joe, desaminado, disse: “Sabia que isso ia virar uma lista interminável”.

“Eu mesmo consigo uma”, falou T. “Não quero dinheiro de vocês. Mas não tenho como comprar um martelo de forja.”

Neguinho disse: “Estão reformando o número 15. Sei onde os caras vão deixar as ferramentas durante o feriado”.

“Então é isso”, falou T. “A gente se encontra aqui às nove em ponto.”“Vou ter que ir na missa”, lembrou Mike.“Pule o muro e assobie. Botamos você pra dentro.”

2

No domingo de manhã todos apareceram pontualmente, até Mike, menos Neguinho. Mike tinha dado uma sorte. Sua mãe ficara indisposta, o pai estava cansado da noitada de sábado e ele foi mandado sozinho à igreja, não sem ouvir muitas advertências sobre o que aconteceria caso se extraviasse. Neguinho tivera dificuldades para surrupiar o arco de serra e também para achar o martelo de forja nos fundos do número 15. Chegou à casa por uma viela que dava no quintal, com medo da ronda policial na rua da frente. Os ciprestes cansados ofereciam trégua contra o sol que chamava chuva braba: mais um feriado úmido era tramado no Atlântico, já se anunciando nos redemoinhos de poeira sob as árvores. Neguinho escalou o muro e saltou para o quintal do Casmurro.

Não havia sinal de ninguém em parte alguma. A casinha do banheiro se erguia como uma sepultura num cemitério abandonado. As cortinas estavam fechadas. A casa, adormecida. Neguinho foi se chegando, com a serra e o martelo. Talvez ninguém tivesse aparecido, afinal: o plano fora uma louca invenção: o dia seguinte os trouxera de volta à razão. Mas, ao se aproximar da porta dos fundos, pôde distinguir uma confusão de sons, pouco mais do que o fervilhar de uma colmeia: uns clique-claques, uns tum-tum-tuns, arranhares, rangeres, de repente o lamento de um estalido. Pensou: o negócio é pra valer, e assobiou.

Abriram a porta dos fundos para ele, que entrou. De imediato teve uma impressão de organização, bem diferente do antigo estilo cada-um-por-si de sua liderança. Passou um tempo circulando do andar de baixo ao de cima, e depois de volta, à procura de T. Ninguém lhe dirigia a palavra: ele sentia no ar uma grande urgência, e já começava a vislumbrar o resultado do plano. O interior da casa estava sendo cuidadosamente demolido sem que as paredes externas denunciassem a ação. Summers, com um martelo e um formão, arrancava os rodapés da sala de jantar, no térreo: já havia arrebentado a forração da porta. Naquele mesmo cômodo, Joe levantava os tacos do parquê, deixando expostas as tábuas do assoalho que recobriam, abaixo, a adega. Espirais de fios elétricos saíam dos rodapés danificados, e Mike, sentado no chão, divertia-se em cortar a fiação.

Na escadaria curvilínea, dois membros da gangue se empenhavam na destruição do corrimão com uma inadequada serra de brinquedo – quando viram Neguinho com a de verdade, com gestos sinalizaram que a emprestasse. Ao voltar ao local, mais tarde, Neguinho se deparou com metade do corrimão largada no vestíbulo. Por fim, foi encontrar T. no banheiro – estava ali, cara de poucos amigos, ouvindo os sons que subiam para aquele que era o mais abandonado dos cômodos da casa.

“Você levou a coisa a sério mesmo”, disse Neguinho com espanto. “O que vai acontecer?”

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“A gente está apenas no começo”, falou T. Olhou para o martelo de forja e deu instruções. “Você fica aqui e quebra a banheira e a pia. Não se preocupe com o encanamento. Isso fica pra depois.”

Mike apareceu na porta: “Terminei com a fiação, T.”, disse.“Muito bem. Só dê umas voltas por aí agora. A cozinha fica no porão. Quebre

tudo que conseguir achar de porcelana e copos e garrafas. Não abra as torneiras – não queremos causar uma enchente – por enquanto. Depois vá a cada um dos quartos e revire as gavetas. Peça ajuda pra um dos outros pra arrombar as que estiverem trancadas. Destrua todos os papeis e enfeites que encontrar. É bom trazer uma faca da cozinha. O quarto fica aqui em frente. Rasgue todos os travesseiros e lençóis. Está bom por agora. E você, Neguinho, quando terminar aqui, quebre o gesso do corredor com o martelo de forja.”

“O que você vai fazer?”, perguntou Neguinho.“Estou procurando alguma coisa especial”, disse T.Era quase hora do almoço quando Neguinho terminou e saiu em busca de T. O

caos avançava. A cozinha era uma confusão de vidro e porcelana quebrados. A sala de jantar estava sem o parquê, os rodapés arrancados, a porta retirada das dobradiças, e os destruidores haviam se transferido para o andar superior. Riscas de luz entravam pelas persianas nas quais trabalhavam com o afinco de criadores – e, no fim das contas, a destruição é uma forma de criação. Um tipo de imaginação havia vislumbrado aquela casa do jeito que estava agora.

Mike falou: “Preciso ir pra casa almoçar”.“Quem mais?”, quis saber T., mas todos os outros, usando de uma desculpa ou

outra, tinham trazido seus farnéis.Acamparam nas ruínas da sala e trocaram sanduíches para os quais não tinham

apetite. Meia hora de almoço e já estavam de volta ao trabalho. Quando Mike retornou, tinham alcançado o sótão, e os estragos mais aparentes já estavam completos. As portas todas arrancadas, assim como os rodapés, os móveis saqueados e rachados e arrebentados – ninguém teria podido dormir na casa, a não ser numa cama feita de pedaços de reboco. T. deu suas ordens – todos ali às oito da manhã seguinte – e, para evitar chamar a atenção, pularam um de cada vez o muro do quintal de volta para o estacionamento. Apenas Neguinho e T. ficaram para trás; a luz do dia havia praticamente ido embora e, quando tentaram ligar um interruptor, nada aconteceu – Mike tinha cumprido sua tarefa à risca.

“Achou aquela cosa especial?”, perguntou Neguinho.T. assentiu. “Vem cá”, ele disse, “olha isso.” De ambos os bolsos sacou maços

de libras. “As economias do Velho Casmurro”, falou. “Mike rasgou os colchões, mas não viu.”

“O que você vai fazer? Dividir?”“A gente não é ladrão”, disse T. “Ninguém vai roubar nada desta casa. Guardei o

dinheiro pra nós dois – uma comemoração.” Ajoelhou-se no chão e contou as notas – setenta libras no total. “Vamos queimar”, continuou, “uma por uma”; cada nota foi erguida na vertical e, revezando-se, passaram a acender cada uma pela parte de cima, de modo que a chama queimasse devagar até alcançar-lhes os dedos. A cinza flutuava no ar e descia sobre cabeças agora envelhecidas. “Queria ver a cara do Velho Casmurro quando a gente tiver acabado o serviço”, falou T.

“Você odeia ele tanto assim?”, quis saber Neguinho.“Claro que não”, respondeu T. “Se odiasse, não teria graça.” A última nota em

chamas iluminou seu rosto pensativo. “Todo esse negócio de amor e ódio”, disse, “é frescura, besteira. Só o que há no mundo são coisas, Neguinho”, e olhou ao redor, para

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o cômodo apinhado dos vultos estranhos de pedaços de coisas, de coisas despedaçadas, de ex-coisas. “Vou correr pra casa, Neguinho”, falou.

3

A destruição maior começou na manhã seguinte. Dois dos meninos estavam faltando – Mike e um outro, pois os pais deles tinham resolvido viajar para Southend e Brighton, apesar dos pingos de chuva quente começando a cair e do ribombar de trovão para os lados do estuário, parecido com os primeiros disparos dos antigos bombardeios. “Temos que nos apressar”, falou T.

Summers estava inquieto. “Já não fizemos que chega?”, perguntou. “Ganhei um conto pra jogar nas máquinas. Isto aqui é que nem trabalho.”

“Mal começamos”, disse T. “Ora, ainda temos os assoalhos todos e a escada. Não tiramos uma única janela. Você votou como todo mundo. Vamos destruir esta casa. Não vai ter sobrado nada quando terminarmos.”

Recomeçaram pelo térreo, arrancando as tábuas do assoalho próximas à parede externa e deixando expostas as vigas, que então serraram; recuaram para o corredor enquanto o que havia sobrado do assoalho adernava e submergia. Tinha aprendido com a prática, e o segundo andar desabou mais facilmente. Chegada a noite, uma estranha alegria tomou conta dos meninos ao olharem para o grande vazio que se tornara a casa. Haviam corrido riscos e cometido erros: quando se lembraram das janelas, era tarde demais para conseguir chegar a elas. “Uau”, falou Joe, e soltou uma moedinha naquele poço seco atulhado de destroços. Ouviram-na quicar e rodopiar em meio ao vidro quebrado.

“Por que começamos com isso?”, perguntou Summers, estarrecido; T. já estava de volta ao térreo, afastando o entulho e abrindo espaço junto à parede externa. “Abram as torneiras”, falou. “Já está escuro demais, não se enxerga nada, e de manhã não vai mais adiantar.” A água os apanhou na altura da escada e despencou para os cômodos já sem chão.

Foi quando ouviram Mike assobiar nos fundos. “Tem alguma coisa errada”, disse Neguinho. Dava para escutar a respiração urgente do outro quando lhe abriram a porta.

“Os tiras?”, quis saber Summers.“O Velho Casmurro”, respondeu Mike. “Está vindo pra cá.” Baixou a cabeça à

altura dos joelhos e resfolegou. “Vim correndo”, falou com orgulho.“Mas como?”, reagiu T. “Ele tinha me dito que...” E protestou com a fúria da

criança que nunca fora: “Não é justo”.“Ele tinha viajado pra Southend”, disse Mike, “e estava no trem, voltando.

Muito frio e chuva, ele falou.” Parou para observar a água. “Caramba, vocês fizeram uma tempestade aqui. O teto está vazando?”

“Quando tempo ele vai demorar?”“Cinco minutos. Escapei da minha mãe e corri pra cá.”“Melhor a gente cair fora”, disse Summers. “Já fizemos que chega mesmo.”“Ah, não, não fizemos. Qualquer um podia ter feito isso –” “Isso” era o buraco

vazio dentro de uma casa destruída e destituída de tudo menos as paredes. Mas as paredes poderiam ser reutilizadas. Fachadas tinham valor. Seria possível reconstruir todo o interior, e mais bonito do que antes. Aquilo ali voltar a ser um lar. T. falou com raiva: “Precisamos terminar. Não se mexam. Me deixem pensar”.

“Não dá tempo”, disse um dos meninos.

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“Tem que ter um jeito”, disse T. “Não dá pra gente chegar até aqui e...”“Já fizemos muito”, falou Neguinho.“Não. Não fizemos. Alguém vigia aqui na frente.”“Não tem como fazer mais nada.”“Ele pode chegar pelos fundos.”“Vigiem os fundos também.” T. passou a um tom de súplica. “Me deem um

minuto só que vou resolver. Juro que vou dar um jeito.” Mas, perdida a ambiguidade que era sua característica, a autoridade tinham ido embora também. Ele era só mais um da gangue. “Por favor”, continuou ele.

“Por favor”, debochou Summers, e súbito, usando o nome fatal, deu o golpe de misericórdia. “Corra pra casa, Trevor.”

T. ficou parado, de costas para o entulho, como um boxeador golpeado até ficar grogue contra as cordas. Estava sem palavras, vendo seus sonhos vacilarem e escapulirem. Então, antes que o bando tivesse tempo de começar a rir, Neguinho tomou uma atitude e fez Summers recuar, empurrando-o. “Vou vigiar a frente, T.”, disse, e cautelosamente abriu a persiana do vestíbulo. A pracinha se estendia ali em frente, úmida e cinzenta, as lâmpadas dos postes refletindo nas poças.

“Alguém está vindo, T. Não, não é ele. Qual é o seu plano, T.?”“Diga pro Mike ir até a casinha do banheiro e se esconder bem junto dela.

Quanto ele ouvir meu assobio, tem que contar até dez e começar a gritar.”“Gritar o quê?”“Ah, ‘socorro’, qualquer coisa.”“Entendeu, Mike?”, falou Neguinho. Tinha voltado a ser o líder. Deu uma

espiada rápida pela persiana entreaberta. “Ele está vindo, T.”“Rápido, Mike. A casinha do banheiro. Você fica aqui, Neguinho, vocês todos,

até eu gritar.”“Onde você vai, T.?”“Não se preocupe. Vou dar um jeito nisso. Falei que ia, não falei?”O Velho Casmurro avançava mancando pela pracinha. Tinha lama nos sapatos e

parou para raspar as solas no meio-fio. Não queria embarrar a casa, que jazia instável e escura em meio aos locais bombardeados, salva por um triz da destruição, ele acreditava. Até a claraboia no alto da porta da frente sobrevivera intacta ao impacto da bomba. Um assobio soou em algum lugar. Ele não confiava em assobios. Uma criança gritava: parecia vir do quintal de sua própria casa. Então um menino saiu correndo para a rua, vindo do estacionamento. “Sr. Thomas”, chamava, “Sr. Thomas.”

“O que foi?”“Sinto muitíssimo, Sr. Thomas. Um menino da turma ficou apurado, aí a gente

pensou que o senhor não se importaria, e agora ele não consegue sair de lá.”“Como assim, garoto?”“Ficou preso no seu banheiro.”“Ele não tinha nada que – já não te vi antes?”“O senhor me mostrou sua casa.”“É mesmo. Mostrei mesmo. Isso não te dá o direito de...”“Venha logo, Sr. Thomas. O menino vai sufocar.”“Bobagem. Não tem como sufocar. Espere, que antes preciso colocar minha

mala pra dentro de casa.”“Eu carrego sua mala.”“Ah, não, não precisa. Eu mesmo carrego.”“Por aqui, Sr. Thomas.”“Não consigo chegar ao quintal por aí. Preciso passar por dentro de casa.”

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“Mas o senhor pode, sim, entrar por aqui, Sr. Thomas. A gente sempre entra.”“Sempre entra?” Seguiu o menino com uma fascinação escandalizada. “Mas

quando? Que direito vocês...”“Está vendo...? O muro é baixo.”“Não vou ficar pulando muro pra entrar no meu próprio quintal. Isso é absurdo.”“É assim que a gente faz. Um pé aqui, outro lá, e pronto.” O menino botou a cara

ali, espiando, um dos braços esticados, e o Sr. Thomas viu sua mala ser apanhada e colocada para o outro lado do muro.

“Me devolva minha mala”, disse. Da casinha do banheiro, um menino gritava e gritava. “Vou chamar a polícia.”

“Está tudo certo com a sua mala, Sr. Thomas. Pode ver. Um pé aí. À sua direita. Agora um pouco acima. À sua esquerda.” O Sr. Thomas escalava o muro do próprio quintal. “Aqui está sua mala, Sr. Thomas.”

“Vou mandar aumentar este muro”, o Sr. Thomas falou. “Não quero mais esse negócio de vocês vindo aqui usar o meu banheiro.” Tropeçou na trilha do quintal, mas, tomando-o pelo cotovelo, o menino o amparou. “Obrigado, obrigado, meu rapaz”, murmurou, automaticamente. Alguém gritou novamente na escuridão. “Estou indo, estou indo”, devolveu o Sr. Thomas. E, dirigindo-se ao garoto a seu lado: “Não estou sendo intransigente. Também já fui menino. Mas desde que as coisas sejam feitas como devem. Não me importo que vocês brinquem aí nos sábados de manhã. Gosto de companhia, às vezes. Só que tudo como deve ser. Um de vocês pede pra ir lá atrás, digo sim. Outras vezes vou dizer não. Não vou estar a fim. E vocês vão entrar pela porta da frente pra sair no quintal. Nada de pular muros.”

“Tire ele daí, Sr. Thomas.”“Ele não corre nenhum perigo no meu banheiro”, disse o Sr. Thomas,

caminhando aos tropeços no quintal. “Ah, meu reumatismo”, falou. “Sempre piora por essa época. Tenho que tomar cuidado. Tem umas pedras soltas ali. Me dê a mão. Sabe o que dizia o meu horóscopo ontem? ‘Evite qualquer atividade na primeira metade da semana. Risco de uma queda séria.’ Pode acontecer nesta trilha”, continuou o Sr. Thomas. “Esses textos falam por parábolas e duplos sentidos.” Parou junto à porta do banheiro. “Qual é o problema aí dentro?”, inquiriu. Não houve resposta.

“Talvez ele tenha desmaiado”, disse o menino.“Não no meu banheiro. Venha, você aí, saia”, o Sr. Thomas falou, e deu um

forte encontrão na porta, a ponto de quase cair quando ela facilmente se abriu. Uma mão primeiro o amparou, em seguida o empurrou com força. Ele deu com a cabeça na parede oposta e caiu com todo o peso no chão. A mala acertou-lhe o pé. Uma mão puxou a chave da fechadura e a porta bateu. “Me deixe sair”, ele gritou, e ouviu o ruído da chave girando na fechadura. “Uma queda séria”, pensou, e se sentiu trêmulo e confuso e velho.

Uma voz lhe falou, suave, pelo buraco em formato de estrela na porta. “Não se preocupe, Sr. Thomas”, a voz disse, “se o senhor ficar quieto, não vamos machucá-lo.”

O Sr. Thomas enfiou a cabeça entre as mãos e ponderou. Tinha notado que havia apenas um caminhão no estacionamento, e estava certo de que o motorista não voltaria para buscá-lo antes do amanhecer. Dali, ninguém o escutaria na rua da frente, e a viela dos fundos raramente tinha movimento. Qualquer um que passasse por ela estaria voltando apressado para casa, e não pararia para verificar o que certamente ia imaginar que fossem os gritos de um bêbado. E, se berrasse “socorro”, quem, numa noite de feriado solitária, teria coragem de investigar? O Sr. Thomas ficou ali, sentado no banheiro, a ponderar com a sabedoria da idade.

Passado um tempo, pareceu-lhe ouvir ruídos no silêncio – eram abafados e vinham dos lados da casa. Ficou de pé e espiou pelo buraco de ventilação – numa das

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persianas entreabertas, enxergou uma luz, não a luz de uma lâmpada, mas a luz bruxuleante que talvez fosse a de uma vela. Então teve a impressão de que escutava o som de marteladas e coisas sendo arranhadas e lascadas. Imaginou arrombadores – talvez tivessem usado o menino, mas por que arrombadores se dedicariam a algo que, mais e mais, soava como uma forma clandestina de carpintaria? O Sr. Thomas experimentou um grito, mas ninguém respondeu. Não teria sido suficiente nem mesmo para que seus inimigos o escutassem.

4

Mike tinha ido para a cama, mas o restante deles ficou. A questão da liderança não dizia mais respeito à gangue. Com pregos, formões, chaves de fenda, qualquer coisa que tivesse ponta afiada, percorreram as paredes internas trabalhando na argamassa entre os tijolos. Começaram de uma altura muito grande, e foi Neguinho quem, ao alcançar a camada isolante próxima à fundação, se deu conta de que teriam a metade do trabalho se tratassem de minar os rejuntes logo acima do isolamento. Foi uma longa, cansativa e monótona tarefa, mas finalmente estava acabada. A casa dilapidada jazia ali, equilibrada sobre alguns centímetros de argamassa entre a camada isolante e os primeiros tijolos.

Faltava a mais perigosa etapa de todas, a céu aberto, num dos extremos da área dos bombardeios. Summers foi colocado de vigia, para avisar se alguém passasse na rua, e o Sr. Thomas, sentado na casinha do banheiro, agora ouvia claramente um som de serra. Não vinha mais dos lados da casa, e isso o reconfortou um pouco. Ficou menos preocupado. Talvez os outros ruídos também não fossem nada de mais.

Uma voz lhe falou pelo buraco. “Sr. Thomas.”“Me deixe sair”, disse o velho, severo.“Pegue este cobertor”, falou a voz, e um rolo cinzento foi introduzido no buraco

e se abriu sobre a cabeça do Sr. Thomas.“Não é nada pessoal”, continuou a voz. “Queremos que o senhor passe a noite

com conforto.”“A noite”, repetiu o Sr. Thomas, incrédulo.“Aqui”, disse a voz. “Pãezinhos – passamos manteiga neles – e rolinhos de

salsicha. Não queremos que o senhor passe fome, Sr. Thomas.”O velho suplicava, desesperado. “Chega dessa brincadeira, garoto. Me deixe sair

que não conto nada. Tenho reumatismo. Preciso de um lugar confortável pra dormir.”“O senhor não encontraria conforto em casa, não mesmo. Não mais.”“Como assim, garoto?”, mas os passos se afastaram. Restou apenas o silêncio da

noite: nenhum som de serra. O Sr. Thomas tentou mais uma vez gritar, mas o silêncio, em resposta, o desencorajou e repreendeu – muito longe dali, uma coruja berrou e, num bater de asas abafado, voou de volta à imensidão silenciosa.

Às sete, na manhã seguinte, o motorista apareceu para buscar seu caminhão. Subiu à cabine e tentou dar a partida no motor. Ouvia vagamente uma voz que chamava, aos gritos, mas não era com ele. O motor finalmente respondeu, e o motorista deu ré no caminhão até encostá-lo à grande escora de madeira em que se apoiava a casa do Sr. Thomas. Assim poderia sair em linha reta para a rua, sem ter de manobrar. O caminhão avançou, foi momentaneamente seguro, como se alguma coisa o puxasse para trás, e em seguida voltou a se mover adiante, provocando um longo e troante estrondo. O motorista se espantou com aqueles tijolos que despencavam, enquanto pedras atingiam o teto da cabine. Freou. Ao desembarcar, viu uma paisagem subitamente alterada. Não havia mais casa junto ao estacionamento, apenas uma montanha de entulho. Contornou

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o caminhão para verificar o estrago na traseira e descobriu ali uma corda que, na outra ponta, dava a volta em parte de uma viga.

O caminhoneiro novamente percebeu alguém chamando. Os gritos vinham da construção de madeira, a coisa mais parecida com uma casa naquela desolação de tijolos quebrados. O homem escalou a parede derrubada e destrancou a porta. O Sr. Thomas saiu do banheiro. Enrolava-se num cobertor cinzento salpicado de farelos. Soltou um lamento alto. “Minha casa”, disse. “Cadê minha casa?”

“E eu é que sei?”, falou o caminhoneiro. Pôs os olhos nos escombros de uma banheira e no que antes fora uma cômoda e começou a rir. Não tinha sobrado nada em parte alguma.

“Como se atreve a rir?”, disse o Sr. Thomas. “Era minha casa. Minha casa.”“Desculpe”, respondeu o caminhoneiro, esforçando-se heroicamente, mas,

quando lembrou do súbito tranco no caminhão, do estrondo dos tijolos que despencavam, voltou a se sacudir de riso. Uma hora a casa estava lá, de pé, toda digna no meio do local dos bombardeios, feito um senhor de cartola, e aí catabum, não sobra nada – nadinha. O homem falou: “Desculpe. Não consigo me conter, Sr. Thomas. Nada pessoal, mas o senhor tem que admitir: é engraçado”.