grande sertão: veredas e primeiras estórias, de guimarães rosa: similaridade estrutural e dilemas...

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Kathrin Rosenfield, em Grande sertão: veredas – Roteiro de leitura, propõe a leitura de GSV a partir do estabelecimento de sete sequências narrativas. Em Desenveredando Rosa, a autora retoma esse raciocínio, apontando que o fluxo aparentemente ininterrupto da narrativa em GSV está marcado por modificações formais e temáti- cas que permitem estabelecer essas sete sequências, ordenando o texto primeiramente através de uma divisão mediana. Para além disso, Rosenfield estabelece comparação entre Grande sertão: veredas e Primeiras Estórias em termos de temática e estrutura. A autora defende que as Primeiras Estórias são uma espécie de modulação de temas fundamentais de Grande sertão: vere- das. A proposta de leitura é de que as Primeiras Estórias também sejam or- denadas através de uma divisão medi- ana, aqui o conto “O Espelho”, que guarda grandes se- melhanças com Grande sertão: veredas. A divisão mediana de GSV é como que uma pausa reflexiva, que reúne temas passa- dos e aponta o que virá, con- vidando o inter- locutor a seguir o relato. Ambos, Grande sertão: veredas e “O es- pelho”, são con- struídos em torno de um virtual diálogo, li- dando com a perplexi- dade diante do enigma da identidade. Em O lugar do mito, no capítulo “As formas do es- pelho – dilemas da repre- sentação”, Ana Paula Pa- checo propõe uma análise de “O espelho” que aponta para sua importância na leitura de Primei- ras Estórias, já que o conto gira em torno de uma questão central à poé- tica rosiana – a pergunta pela identi- dade. Além disso, a autora indica o descompasso entre este conto e o restante de Primeiras Es- tórias. Diferentemente dos outros contos, “O espelho” se passa em contexto urbano: o narrador-protagonista, vindo do interior, narra algo como uma experiência de perda de identidade, que parece identificável com o novo contexto em que se encontra. A partir da visão de si como imagem monstruosa em um jogo de espelhos, inicia-se a obsessão por descobrir-se como sujeito único, fora da cultura, da História e da própria natureza. Ana Paula Pacheco aponta que a estrutura de narra- dor em primeira pessoa falando a um interlocutor oculto em “O es- pelho” é simetricamente oposta ao que vemos em Grande sertão: veredas. Homero Araújo, em artigo intitulado “A terceira margem sobre a qual se equilibra Riobaldo”, propõe uma análise de Grande sertão: veredas apontando para uma espécie de luto pela pátria arcaica perdida para a moderni- zação, questão já apontada por Kathrin Rosenfield. Porém, Araújo indica que o contraste entre ar- caico e moderno não aponta conflito em Grande sertão: veredas, justamente devido à posição conciliatória do narra- dor Riobaldo, ex-jagunço e ser- tanejo relativamente letrado, nem arcaico nem moderno, que se desenha, assim como sua história, como travessia. A chave de leitura proposta por Homero Araújo é de que seja possível entrever alguma utopia na obra rosiana, de um Brasil em que arcaico e mod- erno se harmonizem, em uma espécie de progresso inocente (retomando a ex- pressão de Roberto Schwarz) presente na promessa de felicidade já enun- ciada pelos contemporâneos da Bossa Nova, por exemplo. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Homero José Vizeu. “A terceira margem sobre a qual se equilibra Riobaldo”. Conexão Letras - História, linguística & literatura, Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 6, n. 6, 2011, p. 55-62. PACHECO, Ana Paula. O lugar do mito: Narrativa e processo social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa. São Paulo: Nankin, 2006. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 2. ed. Rio de Ja- neiro: José Olympio Editora, 1958. ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. 14. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Desenveredando Rosa – A obra de J. G. Rosa e outros ensaios rosianos. Rio de Janeiro: Top- book, 2006. ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Grande sertão: veredas Roteiro de leitura. São Paulo: Edi- tora Ática, 1992 Grande sertão: veredas e Primeiras Estórias , de Guimarães Rosa: similaridade estrutural e dilemas da modernização o sertão é o mundo Após expor brevemente esses argumentos, gostaria de propor um passo adiante no raciocínio interpretativo, trazendo Primeiras Es- tórias também para este quadro da modernização brasileira. Se Grande sertão: veredas guarda certo caráter utópico conciliatório, em Primeiras Estórias não podemos apontar o mesmo efeito. Mesmo com as semelhanças estruturais e temáticas apontadas por Kathrin Rosenfield, podemos perceber, a partir da análise de Ana Paula Pacheco, especialmente, o quanto em Primeiras Estórias há outra noção do moderno, que agora aponta para o conflito. Autora: Mariana Klafke Orientador: Prof. Dr. Homero Araújo Bolsista CNPq

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Page 1: Grande sertão: veredas e Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa: similaridade estrutural e dilemas da modernização

Kathrin Rosenfield, em Grande sertão: veredas – Roteiro de leitura, propõe a leitura de GSV a partir do estabelecimento de sete sequências narrativas. Em Desenveredando Rosa, a autora retoma esse raciocínio, apontando que o fluxo aparentemente ininterrupto da narrativa em GSV está marcado por modificações formais e temáti-cas que permitem estabelecer essas sete sequências, ordenando o texto primeiramente através de uma divisão mediana. Para além disso, Rosenfield estabelece comparação entre Grande sertão: veredas e Primeiras Estórias em termos de temática e estrutura. A autora defende que as Primeiras Estórias são uma espécie de modulação de temas fundamentais de Grande sertão: vere-das. A proposta de leitura é de que as Primeiras Estórias também sejam or-denadas através de uma divisão medi-ana, aqui o conto “O Espelho”, que guarda grandes se-melhanças com Grande sertão: veredas. A divisão mediana de GSV é como que uma pausa reflexiva, que reúne temas passa-dos e aponta o que virá, con-vidando o inter-locutor a seguir o relato. Ambos, Grande sertão: veredas e “O es-pelho”, são con-struídos em torno de um virtual diálogo, li-dando com a perplexi-dade diante do enigma da identidade. Em O lugar do mito, no capítulo “As formas do es-pelho – dilemas da repre-sentação”, Ana Paula Pa-checo propõe uma análise de “O espelho” que aponta para sua importância na leitura de Primei-ras Estórias, já que o conto gira em torno de uma questão central à poé-tica rosiana – a pergunta pela identi-dade. Além disso, a autora indica o descompasso entre este conto e o restante de Primeiras Es-tórias.

Diferentemente dos outros contos, “O espelho” se passa em contexto urbano: o narrador-protagonista, vindo do interior, narra algo como uma experiência de perda de identidade, que parece identificável com o novo contexto em que se encontra. A partir da visão de si como imagem monstruosa em um jogo de espelhos, inicia-se a obsessão por descobrir-se como sujeito único, fora da cultura, da História e da própria natureza. Ana Paula Pacheco aponta que a estrutura de narra-dor em primeira pessoa falando a um interlocutor oculto em “O es-

pelho” é simetricamente oposta ao que vemos em Grande sertão: veredas.

Homero Araújo, em artigo intitulado “A terceira margem sobre a qual se equilibra

Riobaldo”, propõe uma análise de Grande sertão: veredas apontando

para uma espécie de luto pela pátria arcaica perdida para a moderni-zação, questão já apontada por Kathrin Rosenfield. Porém, Araújo indica que o contraste entre ar-caico e moderno não aponta conflito em Grande sertão: veredas, justamente devido à posição conciliatória do narra-dor Riobaldo, ex-jagunço e ser-tanejo relativamente letrado, nem arcaico nem moderno, que se desenha, assim como sua

história, como travessia. A chave de leitura proposta por Homero Araújo é de que seja possível entrever alguma utopia na obra

rosiana, de um Brasil em que arcaico e mod-

erno se harmonizem, em uma espécie de progresso inocente (retomando a ex-

pressão de Roberto Schwarz) presente na

promessa de felicidade já enun-ciada pelos contemporâneos da Bossa Nova, por exemplo.

REFERÊNCIASARAÚJO, Homero José Vizeu. “A terceira margem sobre

a qual se equilibra Riobaldo”. Conexão Letras - História, linguística & literatura, Porto Alegre: Universidade Federal

do Rio Grande do Sul, v. 6, n. 6, 2011, p. 55-62.PACHECO, Ana Paula. O lugar do mito: Narrativa e processo

social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa. São Paulo: Nankin, 2006.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 2. ed. Rio de Ja-neiro: José Olympio Editora, 1958.

ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. 14. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Desenveredando Rosa – A obra de J. G. Rosa e outros ensaios rosianos. Rio de Janeiro: Top-

book, 2006.ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Grande

sertão: veredas – Roteiro de leitura. São Paulo: Edi-

tora Ática, 1992

Grande sertão: veredas e Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa: similaridade estrutural

e dilemas da modernização

o sertãoé o mundo

Após expor brevemente esses argumentos, gostaria de propor um passo adiante no raciocínio interpretativo, trazendo Primeiras Es-tórias também para este quadro da modernização brasileira. Se

Grande sertão: veredas guarda certo caráter utópico conciliatório, em Primeiras Estórias não podemos apontar o mesmo efeito.

Mesmo com as semelhanças estruturais e temáticas apontadas por Kathrin Rosenfield, podemos perceber, a partir da análise de Ana

Paula Pacheco, especialmente, o quanto em Primeiras Estórias há outra noção do moderno, que agora aponta para o conflito.

Autora: Mariana Klafke Orientador: Prof. Dr. Homero AraújoBolsista CNPq