graphica-2013-tapete de serragem_desenhos, escalas e significados
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TAPETE DE SERRAGEM DA SEMANA SANTA EM OURO PRETO:
DESENHOS, ESCALAS E SIGNIFICADOS
Esequias Souza de Freitas
IFBA-Instituto Federal de Educação da Bahia [email protected]
Resumo Os tapetes de serragem têm sido, nas cidades de origem paroquial católica, uma expressão coletiva artesanal associada a cortejos em via pública. Na cidade de Ouro Preto-MG, os tapetes de serragem têm grande notabilidade na Semana Santa e manifestam-se como desenho em três distintas escalas –a do bairro, a da rua e a da casa– implicando em sentidos diversos para a memória coletiva e a divisão social do trabalho. A observação de sua execução permite perceber as ressignificações dessa tradição. Pode-se avaliar os princípios, técnicas e materiais utilizados, o que aponta para um saber que se incorpora como patrimônio imaterial da comunidade. Palavras-chave: tapete de serragem, desenho, Ouro Preto.
Abstract The sawdust carpets has been in traditional cyties of catholic parish origin a collective crafty expression linked to street parades. In Ouro Preto city, M.G., the sawdust carpets is greatly noticeable during Easter Weak and they are presented as designs in three distinct aspects – the neighborhood’s, the street’s and they home’s, implying various meanings for the collective memory and the social divisions of the work. Observing its performance permits one to perceive the significance of this tradition. One can evaluative the principles techniques, expertise and materials utilized, what points to a knowledge which incorporate itself as immaterial patrimony of the community. Key words: sawdust carpets, design, draw, Ouro Preto.
1 Introdução
Este estudo tem como objeto um tapete devocional, artefato ornamental efêmero, feito
sobre vias públicas, especialmente o realizado durante a Semana Santa na cidade de
Ouro Preto-MG. Ele se apresenta-se com especial interesse por consistir exemplo de
variadas técnicas de execução e fornecer diversos níveis de entendimento para o
desenho, em escalas específicas de abordagem, gerando múltiplas significações.
O tapete de serragem é típico, no Brasil, das festas de Semana Santa, Corpus
Christi e daquelas dedicadas aos santos padroeiros. Pressupõe-se haver, nas cidades
em que comparece, uma forte religiosidade1; em algumas cidades, como Ouro Preto, é
na Semana santa que ele alcança grande expressividade.
O tapete desperta interesse para investigação para além de seus aspectos
iconográficos, presentes em toda sua extensão; ou cenográficos, por compor
ambiência própria para um rito espetacularizado, ao longo das ruas perfiladas; mas
também por manifestar maneiras de produção espacial que utilizam modos próprios de
repropor momentaneamente a própria espacialidade da cidade, espacialmente
mediante uma atividade coletiva de desenho. Para a compreensão dessas estratégias
desenhísticas particulares, mostrou-se viável apresentar os recortes investigativos a
partir da definição de escalas, em que o nível de aproximação ao objeto seja revelador
de diferentes aspectos de um fenômeno complexo.
Procura-se aqui situar o tapete de serragem como artefato da cultura na história,
manifesto de modo quase caricato numa cidade que, tombada como patrimônio da
humanidade, remete fortemente a atenção para as qualidades de seu passado. Porém
a feitura e o desmanchamento do tapete promovem, como lugar de memória, uma
atualização ritualizada do passado, integrando tradições que encontram na festa
pública religiosa uma oportunidade singular.
Para entender o tapete como resultado de uma tradição herdada e adaptada pela
comunidade que o produz, imersa em significações e subjetividades –como os
aspectos da fé e do pertencimento grupal– se faz necessário perpassá-lo pelo prisma
da antropologia, não sendo possível determo-nos apenas em seus aspectos formais.
Suas configurações podem, com isso, ser esclarecidas pela atenção às suas
significações:
1 A expressiva presença da religiosidade católica de muitas cidades decorre, muitas vezes, dos seus modos de formação urbana e constituição da população. Em muitos casos as cidades provêm do crescimento de povoados organizados socialmente pelo papel articulador da estrutura paroquial. Muitas são as cidades brasileiras iniciadas dessa forma, especialmente aquelas que originárias do período colonial, em que o pertencimento a associações religiosas era a garantia de assistência social não desempenhada então pelo estado. Esse modo de organização tem expressão espacial típica.
O tapete como objeto que propõe um traçado na malha urbana, de extensão
quilométrica, requerendo a compreensão de sua produção como resultado de
relações sociais e soluções de trabalho coletivo ordenadas institucionalmente ou
no mínimo organizadas comunitariamente, na escala da cidade.
O tapete como recaracterização da rua, em extensão que se faz corresponder a
unidades de casas justapostas (normalmente com fachadas unidas à testada da
rua), envolvendo seus produtores a partir de suas relações de vizinhança e de
fraternidade paroquial.
O tapete como somatória de quadros isolados, ocupando segmentos de piso
correspondentes ao desdobramento das casas como rebatimento de suas
fachadas, requerendo observá-lo na escala de cada edificação individualmente,
que correspondem a relações de trabalho que se dão entre seus ocupantes.
Figura 1 Tapete de Serragem nas ruas de Ouro Preto-MG. Escalas de aproximação requerem
métodos próprios e revelam aspectos particulares de cada abordagem. (autor – Esequias Souza de Freitas / fonte – acervo do autor).
2 Estudos sobre o espaço urbano e a festa religiosa como memória de territorialidades
Entender o tapete de serragem da Semana Santa como expressão desenhística
cultural contemporânea em Ouro Preto requer olhar para uma sociedade modernizada
mas fortemente condicionada por permanências provenientes de seu processo de
formação. Como qualquer cidade contemporânea, Ouro Preto é sujeita a influências
exógenas e está em contínua transformação; mas se caracteriza (e constitui atração
turística mundial) por um sítio histórico mantido à custa de estratégias de salvaguarda
de seus traços mais originais, tendo-se em vista a sua configuração arquitetônico-
urbanística, relevante como patrimônio cultural da humanidade (SILVA, 2003, p.100).
Os tapetes de Ouro Preto provêm dos tempos fundacionais, quando chamada
ainda de Vila Rica, que cidade estava em fina sintonia com a mentalidade global de
sua época. Originada em terras provenientes da política expansionista imperial-
colonialista europeia do séc. XV e seguintes, sua formação é um fenômeno
inseparável da promoção de uma cultura contra reformista ibérica como estratégia de
caracterização de territórios, que tinha no senso estético orientado à apreciação de
fortes contrastes uma marca quase indelével.
Nesse contexto, as festas públicas constituíram um meio privilegiado de promoção
e expressão de um ordenamento social. O pesquisador mineiro Afonso Ávila identifica
a permanência significativa de diversos traços desse processo civilizatório como
“resíduos seiscentistas”, visíveis na atualidade por sua grande fixidez:
“O despertar latino-americano assistiu assim, com a aportagem da ideologia da contra reforma, à introdução e fixação das formas multifárias do barroco” (ÁVILA, 2006, p.24)
Esses traços têm na festa popular um componente reconhecido como verdadeira
mentalidade sobre a qual se sustenta uma ordem social:
“A festa barroca, no entender de Ávila, representa um fato civilizacional, uma forma mentis que se expressa através de uma cultura lúdica, sensorial e persuasória, com o que pôs em evidência a complexidade sociopolítica do fenômeno festivo, momento de reiteração da ordem política metropolitana, mas também promotor de novas possibilidades de, por exemplo, integração dos mulatos na sociedade mineradora”. (JANCSÓ, KANTOR, 2001, p.09).
O espírito festivo barroco encontrou reedições, pelos séculos, na fartura de datas
do calendário religioso católico, dedicadas ao louvor de seus santos e ocasiões
memoráveis. Mas é certo que o gosto pela folia não reconhecia os limites entre a
motivação de natureza religiosa e a oportunidade de diversão como fim em si mesma.
Nesse aspecto, Tinhorão (2000) localiza um importante dado para identificarmos no
tapete de serragem um elemento caracterizador do senso de espacialidade do
morador da cidade:
“Esse movimento no sentido do encaminhamento das festividades, da área limitada do interior dos templos para o céu aberto do espaço público, iria provocar desde logo um competente deslocamento da diretriz religiosa de tais manifestações (baseada no estímulo à fé e à
devoção) para objetivos profanos (cujo maior interesse era a afirmação do poder secular e a busca da diversão)”. (TINHORÃO, apud TINHORÃO, 2000, p.67).
A realização dos tapetes em via pública é inexoravelmente uma expressão de
demarcação territorial com fortes simbolismos, emigrados do plano da significação
religiosa para a profana. A importância da manutenção desses processos de desenhos
territoriais urbanos é facilmente entendida mediante a contribuição da geografia:
“A ocupação do território é vista como algo gerador de raízes e identidade: um grupo não pode mais ser compreendido sem o seu território, no sentido de que a identidade sócio cultural das pessoas estaria inarredavelmente ligada aos atributos do espaço concreto (natureza, patrimônio arquitetônico, “paisagem”)”. (SOUZA, 2000, p.84). “Aqui, o território será um campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que, a par de sua complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade: a diferença entre “nós” (o grupo, os membros da coletividade ou “comunidade”, os insiders) e os “outros” (os de fora, os estranhos ou os outsiders)”. (idem, p.86).
O fazer do tapete projeta os fiéis-festejadores de um espaço que inspira sujeição
(o templo, “propriedade divina”, início da celebração) para um espaço motivador da
conquista (a via pública, percurso da procissão), a rua como espaço de uma vivência
que se apresenta aos homens como ambiência de relações em que cada um consiga
granjear seu próprio sucesso, especialmente na vila que se edificava ao sabor do êxito
no garimpo, enriquecimento advindo do chão. Então o tapete acontece instalando essa
ambiência onde seu específico movimento de conquista espacial ritualizada oferece
recursos simbólicos que permitem-no representar outras dimensões de conquistas e
produções do espaço. Mas, tentando nos ater às propriedades do próprio evento de
realização do tapete devocional, verificamos que este se integra inseparavelmente
com a própria festa religiosa2, extravasada do templo, conforme analisa Marin:
“um processo coletivo que simultaneamente manipula o espaço por meio de certos movimentos em um certo tempo e produz seu espaço específico segundo regras e normas determinadas que ordenam esses movimentos e esse tempo valorizando-os.” (MARIN, 1994 apud. HANSEN, in JANCSÓ, KANTOR, 2001, p.735).
É a compreensão do tapete de serragem como representante da cultura festivo-
religiosa barroca, com claros sinais de permanência residual na sociedade
ouropretana contemporânea, que permite entender como a ocupação da rua pelo
2 Embora o interesse oportunista do mercado do turismo sobre o acontecimento religioso esteja fazendo com que o tapete venha sendo visto, em algumas localidades, como um atrativo de contornos independentes, um item de consumo como oportunidade para o registro de imagens, sacando-o de suas ricas possibilidades de significação e vivência, como a percepção das relações entre seus aspectos desenhísticos múltiplos e o meio em que se inserem, bem como da riqueza de sua variada produção com recursos essencialmente muito pobres.
tapete provê sentidos simbólicos que sacralizam o espaço extra-templário. Ruas
específicas, que descrevem desenhos determinados na malha urbana, indicam
pertencimentos territoriais, performaticamente representados como ato de conquista;
esse pertencimento é revelado pela ocupação da via pública por grupos sociais que
constroem o tapete (em tom de folguedo) e que o desmancham (por meio do cortejo
religioso).
Construir um tapete de serragem e percorrê-lo na procissão por trajetos
específicos da malha urbana significa, portanto, não apenas um ato de profissão de fé
multi-centenário; mas um mostrar-se publicamente como detentor de direitos de
ocupação de um espaço, proprietário de um perímetro anunciado ostensivamente pela
travessia, ato exploratório e afirmativo de desígnio. Assim, verifica-se que o tapete de
serragem, mais que uma manifestação de arte popular e ato devocional, indica
desenhos na cidade que não são imotivados, apontando a primeira escala de
compreensão que orienta nosso olhar na discussão do tapete.
3 O tapete da Semana Santa de Ouro Preto: três escalas, seus desenhos e significados.
O tapete de serragem da Semana Santa em Ouro Preto é um objeto plástico efêmero,
híbrido, representante de devoção religiosa, de pertencimentos territoriais,
ideologizado, codificado enquanto idéia e enquanto objeto. Ele responde a uma
demanda programada anualmente, a esquemas prévios de uma tradição religiosa, e
que decorre de um saber-fazer desenvolvido sobre as disponibilidades materiais que
constituem sua substância física. É sua construção que passamos a focalizar.
O tapete de serragem descreve um traçado sobre a cidade. Realiza-se
alternadamente pelas duas paróquias matrizes, de Antonio Dias e do Pilar, entre anos
pares e ímpares. A sua confecção revezada recupera ritualmente, da história de Ouro
Preto, a herança da rivalidade de povoados cujos embates entre os moradores
chegavam à violência física. O tapete constitui a referência ao imaginário em que essa
herança conflituosa se conformou mediante uma negociação operada no plano do
simbólico, resolvendo a precedência de direitos sobre a uma festa e sobre o desenho
que suas procissões realizam na cidade.
Se esse acordo puder ser entendido como um processo de acomodação de
tensões, o princípio pode ser estendido às adaptações de meios técnicos às limitações
impostas pelos recursos materiais. Nem sempre o tapete foi realizado com serragem.
Consta que o uso sistemático desse material se deu a aproximados 40 anos, com a
criação da FAOP - Fundação de Arte de Ouro Preto. Até então os materiais eram mais
variados, entre os quais se empregavam folhagens, flores e areias. Também papéis
picados multicoloridos, raspa de couro, cal, casca de arroz, borra de café e outros
subprodutos da cozinha. Esse trabalho de preparação dos materiais era lento e
decorria do esforço individual articulado em torno de um objetivo comum dos
paroquianos.
A introdução de serragem pigmentada se intensificou no final da década de 1960.
Nessa época, a FAOP, assumiu a responsabilidade de revitalizar a tradição
enfraquecida da festa e do tapete em Ouro Preto. Passou a preparar, com auxílio da
prefeitura, uma grande quantidade de serragem que era pigmentada e entregue
pronta, em grandes sacos, por trechos de rua, cujo intervalo permitisse calcular a
quantidade necessária de sacos para cobrir a área pela camada de serragem.
De pronto se verificou a automática recaracterização das relações de trabalho na
construção do tapete, se fixada a escala de observação que mantém sob
enquadramento a cidade. Se antes o tapete, como obra integral, poderia ser admitido
como a simples justaposição de partes componentes, provenientes do esforço de cada
casa/família residente no percurso, e que resultava no somatório de esforços
populares convocados por um sentido religioso-memorial, o tapete “moderno” é antes
de mais nada pensado como uma obra total, do percurso para as partes, na escala da
cidade, o que requer competente ação logística e planejamento prévio.
Desde então houve a interferência de uma organização gestora, amparado por
investimento do poder municipal3. Mas a garantia de sua realização exitosa dependia
do respeito ao rito processional do Domingo de Ressurreição, do respeito às tradições.
Atualmente o percurso definido é protegido pela intervenção da polícia,
proporcionando as interrupções do trânsito, no intervalo que se entende do início da
confecção do tapete (Igreja Matriz) até o fim do cortejo; bem como a limpeza das ruas
é programada para ação das equipes de garis, para devolver o espaço às suas
funcionalidades ordinárias cotidianas após o rito. Tudo isso ocorre entre as 22:00h de
Sábado de Aleluia até aproximadamente ao meio dia do Domingo de Páscoa,
incluindo a confecção e o desmanchamento do tapete.
Também quanto à qualificação da população para obter resultados esteticamente
interessantes no manuseio da serragem colorida, a FAOP oferece cursos de arte que
ampliam o repertório expressivo dos matriculados, e oficinas voltadas ao preparo da
serragem e sua utilização. Ora, essa prática antes era transmitida entre gerações por
tradição, num processo não regulamentar. A ação pedagógica e de condução técnica
3 Talvez até reeditando uma situação colonial, quando algumas festas religiosas, como a de Corpus Christi, recebiam recursos oficiais para a sua realização, cuja destinação era acordada na Câmara.
da FAOP não impede, no entanto, que entre muitos participantes a confecção continue
acontecendo localmente como do modo “clássico”.
As relações de trabalho envolvidas na realização do tapete de serragem, quando
vistas na escala da cidade, focando os bairros em que acontece, revelam a
importância das instituições públicas para o êxito do desenho do tapete como obra
integral; elas atuam também no resgate de outras associações populares e
expressões culturais minoritárias periféricas, por meio de programas de salvaguarda e
estímulo a tradições populares ameaçadas, alimentados igualmente por verbas
públicas. Às iniciativas institucionais como da FAOP, instrumentalizando tecnicamente
o poder público, e da Igreja e a outras associações religiosas, somam-se esforços
pontuais de muitos indivíduos em realizações de grande significação pessoal.
Aproximando a atenção a uma escala de intervalos menores do tapete, tem-se
nos lances de visada da um exemplos de subseção de grande interesse para análise.
Grupos se constituem das relações de vizinhança, dando conexão perceptível entre
trabalho e produto manual. A obra vista nessa escala orienta a observação a
determinados aspectos que se doutra distância não se revelariam para o desenho dos
padrões e suas interfaces.
Se o desenho do tapete numa extensão quilométrica permite calcular o uso de
matéria prima em termo de volume de material (mais de 2000 sacas), mão de obra
para a distribuição, policiamento e limpeza pública posterior, é apenas a uma distância
mais próxima que se verifica a dinâmica da construção, que leva os vizinhos a, por
exemplo, permutarem entre si punhados de serragem de cores diversas. Isso decorre
basicamente do fato de que, ao preparar as toneladas de serragem para serem
deixadas por caminhões às portas das casas, os operários depositam-na calculando,
por experiência, de quantos em quantos metros ficarão conjuntos de dez a vinte
sacos, segundo a variação da largura das ruas.
Ora, essa distribuição apressada, no dia da execução do tapete, não se ocupa de
detalhes como a divisão equânime de cores. É isso o que leva alguns moradores a
terem disponível para o tapete à porta de sua casa uma grande quantidade de
vermelho, ou outros de azul, e outros de simplesmente não terem saco algum deixado
exatamente à sua porta, mas de verem os vizinhos de lado superprovidos de material.
Nesse ponto começa um interessante jogo de consultas, favores e barganhas.
É comum ouvir-se dizer de alguns moradores que, ao verificar pela comunicação
porta-a-porta que algumas cores da serragem distribuída naquele ano são fartas e
outras raras, sorrateiramente se põe a guardar para dentro de casa os sacos de cores
mais escassas, ou põem-se a vigiar a dádiva colocada ao acaso sob seus cuidados,
até que chegue a hora de interromper-se o trânsito para liberar-se a confecção dos
tapetes. O interessante relacionamento inclui pedir e emprestar não apenas os
materiais, mas o talento de desenhar sobre o chão, o apoio de mão de obra mais
comum –a de deposição da serragem em si, que constitui a alma da confecção–, e o
vai-e-vém de algumas gabaritos ou moldes, que ajudam a repetir com mais exatidão
os desenhos apropriados como padrões.
Figura 2: Tapetes sendo executados por vizinhos integrantes Paróquia do Pilar,no ano de 2008. (autor – Esequias Souza de Freitas / fonte – acervo do autor).
Esse conjunto de atitudes e ações constitui condição de envolvimento entre
vizinhos que afirmam entre si seus vínculos, sua unidade grupal e sua pertinência ao
lugar que, na ocasião da construção do tapete, ajudam a demarcar. Esse lugar é,
basicamente, um trecho de rua, que pode ser particularizado, por exemplo, pela
extensão entre dois cruzamentos, ou pela proximidade a um morador muito influente,
ou ainda pela influência de algum símbolo prestigioso demarcador da paisagem, um
monumento: chafariz, cruzeiro, capela, ou uma casa em particular.
A terceira escala de observação decorre de uma aproximação ainda maior ao
tapete em construção, visando os segmentos frontais às casas. Isso nos faz examinar
a maneira como os habitantes da casa se articulam entre si para fazer do tapete uma
projeção pública da identidade particular da família. Pois o tapete, habitualmente,
espraia-se no chão da rua na projeção frontal da casa, como um rebatimento da
fachada no plano horizontal do pavimento.
Essa verificação tem consequências que ainda interessam à compreensão do jogo
entre vizinhos, pois muitas vezes as famílias desdobram-se em gerações e
casamentos que ampliam a nuclearidade original, e vão ocupando imóveis adjacentes
numa mesma rua. Não obstante, é a figura matriarcal que habitualmente integra os
parentes em torno do objetivo comum que é a construção do tapete, oportunizando um
reencontro anual da parentela mais distante, celebrando a Páscoa. Por essa
característica auto afirmativa, muitas famílias preferem usar um desenho
repetidamente, pelo uso de gabaritos ou moldes, que não apenas apresentam a
conveniência de facilitar a realização dos desenhos, como representam a permanência
da memória do grupo no local indicado como seu: criam uma marca.
Alguns desenhos, quando não predestinados à repetição pelos gabaritos, são
escolhidos de última hora. Mas normalmente o tapete representa oportunidade de se
escolher em família, e com alguma antecedência, algum assunto que pode ter
natureza sígnica na imaginária religiosa –uma pomba, uma cruz, uvas, flores,
custódias e hóstias, um sagrado coração, um cordeiro etc.– ou ser simplesmente um
motivo decorativo, divertimentos geométricos, interpretações gráficas interessantes
realizadas a partir dos temas apresentados (Figura 2).
Figura 3: Tapetes da paróquia da Conceição (2009): trecho fragmentado de motivos diante de casas estreitas / mandala / cruz radiante formada de bandeirolas.
(autor – Esequias Souza de Freitas / fonte – acervo do autor).
É possível ainda encontrar flâmulas com inscrições, cuja mensagem pode ter
conteúdo religioso, de bons desígnios ou mesmo de crítica política.
Durante a execução do tapete, outras funções revelam uma destinação de papéis
quase natural. Os homens adultos carregam os sacos pesados, cheios de serragem
úmida, aos pontos de onde serão distribuídas. As mulheres muitas vezes lideram as
atividades tanto quanto participam, e as crianças, orientadas, se ocupam de detalhes
dos desenhos. Todos, em um momento ou outro, deitam a serragem no chão, ato
essencial da confecção do tapete. A importância da integração familiar na escala do
segmento no tapete se mostra também em que, com o envolvimento de gerações
nessa atividade, se dá a transferência da tradição e das técnicas, em meio a um ato
prático de educação religiosa –não doutrinariamente, mas religiosamente em
essência– no sentido do respeito ao sentimento de devoção familiar.
4 Considerações finais
O tapete da Semana Santa dedicado à celebração da Ressurreição no Domingo de
Páscoa é uma tradição cristã católica. Sua prática tem recebido uma série de adições
ressignificativas, e em Ouro Preto-MG, é particularmente importante a dinâmica que
envolve as duas paróquias das Igrejas Matrizes, do Pilar e da Conceição, “rivais” na
execução do tapete, que indicam por meio dessas obras gráficas quilométricas seus
territórios de influência, delineados no urbano.
Seus fiéis procuram se superar na realização de tapetes mais bonitos a cada ano,
mas dependem de uma estrutura logística de provisão da matéria prima que
caracteriza a escala da cidade e bairro da iniciativa organizacional do município
através da Secretaria da Cultura e Turismo (Prefeitura de Ouro Preto). Os materiais (a
serragem colorida, majoritariamente) são fornecidos em quantidade e variedade
determinada, e seu uso racionado demonstra que, conquanto seja enorme o volume
produzido, às vezes ainda beira a escassez, dada a monumentalidade dos tapetes.
Estratégias de compensação das dificuldades de disponibilidade os materiais são
ensaiadas ao nível das relações de vizinhança. Aí se verificam parcerias e
concorrências que têm implicação direta no resultado plástico do tapete de serragem
que cada grupo que pertence a cada paróquia elabora. Em uma escala de
aproximação ainda maior, é no plano das ações familiares e de vizinhança que se
desenrolam as decisões que determinam o tema do tapete e o tratamento que lhe será
dado como desenho individual dos segmentos.
O tapete de serragem da Semana Santa em Ouro Preto é, portanto, objeto que se
revela Desenho em diversos aspectos, e a escala de aproximação do olhar
investigativo determina a legibilidade de diferentes dados de sua materialidade e
significação, requerendo abordagens que implicam procedimentos metodológicos
adequados a cada situação.
Agradecimentos
A cada ouropretano(a) anônimo que, nas madrugadas do Sábado de Aleluia em 2008
e em 2009, dedicaram tempo para entrevistas mesmo sob o sereno gelado das ruas
de Ouro Preto. A cada ouropretano(a) amigo que, recebendo-me em seus locais de
trabalho e casas, dedicaram tempo para discorrer sobre o sentido do tapete de
Semana Santa, como cidadãos religiosos, artistas populares ou simplesmente
admiradores dessa obra.
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