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1 GRAYSCALE PHOTOGRAPHY pure monochrome José Bezerra | Cristiano Mascaro | Rosângela Andrade | Marcio Lambais | Marco Cavalheiro Edição 1 | Fev 2016

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Revista de fotografia exclusivamente P&B. Entrevistas com José Bezerra, Cristiano Mascaro e Rosângela Andrade; mais artigos de Marco Cavalheiro e Marcio Lambais.

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GRAYSCALE PHOTOGRAPHYp u r e m o n o c h r o m e

José Bezerra | Cristiano Mascaro | Rosângela Andrade | Marcio Lambais | Marco Cavalheiro

Edição 1 | Fev 2016

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Em fevereiro de 2014 eu lancei minha primeira revista de fotografia, a Fotografia et al, e no mês seguinte veio a Outscape Photography. Minhas motivações para o lançamento de cada uma delas estão bem descritas em suas respectivas edições de estreia. O mais importante aqui é a capa da primeira edição da Fotografia et al; trata-se de uma imagem aérea magnífica da cidade de Santos, em P&B, de autoria do Araquém Alcântara, entrevistado de honra daquela edição. A fotografia P&B sempre teve um espaço relevante nas revistas, mas ainda era pouco e por isso resolvi colocar em prática um plano antigo, uma revista exclusivamente de fotografia P&B.

É com muito orgulho que apresentamos a Grayscale Photography! O lema escolhido para revista apenas reforça a clareza do nome: pure monochrome. Da capa à contracapa, exclusivamente P&B; em nossas páginas, as únicas cores serão as da escala de cinza. Sim, nós sabemos que monocromático pode ser de qualquer cor, mas aqui não, aqui só P&B.

A Grayscale Photography nasce com a mesma filosofia de suas irmãs mais velhas; abrir espaço para os novos fotógrafos, sem deixar de prestar homenagem aos grandes mestres e, acima de tudo, colocar a fotografia em evidência. Mas ao contrário das outras duas revistas, a Grayscale Photography não irá limitar as imagens com margens, usaremos a altura máxima da página de 21 cm, e se, proporcionalmente, a largura exceder os 25 cm, a imagem irá avançar na página ao lado.

Outra característica em comum entre as revistas é sua natureza colaborativa. Todas são online, gratuitas e feitas a partir de colaborações preciosas de fotógrafos e amigos, em outras palavras, são - literalmente - feitas pelos leitores. Se você quiser participar desse projeto, entre em contato.

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Nossa edição de estreia traz na capa José Bezerra, um novo talento da fotografia documental. Natural de Mossoró, José Bezerra dedica grande parte da sua fotografia a documentação do povo

da sua terra. O entrevistador foi Mario Amaya, um colaborador de longa data e muito experiente no mercado editorial fotográfico. O resultado é uma entrevista sensacional, ilustrada com muitas

imagens incríveis.

Mas primeiro, vem um dos maiores nomes da fotografia brasileira, Cristiano Mascaro. Tive a honra de visitar o Cristiano em sua casa para uma manhã inteira de conversa. São mais de 2 horas de

áudio que deram a origem a dois artigos. O primeiro, que apresentamos aqui nesta edição, é uma entrevista um pouco diferente, sobre como ele vê a fotografia e o trabalho que vem desenvolvendo

a mais de 50 anos. O segundo é um pouco mais tradicional, de perguntas e respostas, e que será publicado com exclusividade no website da FEA Editora.

Nesta edição temos um presente especial, uma entrevista extra, com a Rosângela Andrade. Para quem está no mundo da fotografia desde a época em que o filme reinava soberano, Rosângela

dispensa apresentações. Rosângela tem um laboratório de revelação de filmes em São Paulo e trabalha exclusivamente com P&B. Imagens capturadas em filme pelos maiores fotógrafos do país

ganharam vida em seu laboratório. A Rosângela foi entrevistada pela Lila Souza, que já havia participado da primeira edição da Fotografia et al e volta agora, na estreia de outra revista.

Marcio Lambais, outro colaborador assíduo, assina um artigo sobre Bombay Beach, nos EUA; e Marco Cavalheiro, um estreante, nos brinda com um artigo sobre Paris. Seja bem-vindo Marco! E fechando a revista, um artigo de autoria do mestre, Cristiano Mascaro, onde ele conta um pouco

mais sobre sua relação com a fotografia P&B.

Para finalizar, meus sinceros agradecimentos ao Cristiano Mascaro, Mario Amaya, José Bezerra, Lila Souza, Rosângela Andrade, Marcio Lambais, Marco Cavalheiro e todos as outras pessoas que, de

alguma forma, participaram da criação de mais essa revista. Muito obrigado!

Carlos Alexandre Pereira

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Carlos Alexandre, fotógrafo de expedições e explorações urbanas, com uma paixão por fotografia P&B que se reflete no seu portfólio quase monocromático. Autor de artigos e palestrante de workshops sobre fotografia.

A Grayscale Photography é uma publicação da FEA Editora. Nossas revistas são publicações digitais distribuidas gratuitamente online. Por essa razão estamos sempre em busca de novos colaboradores.

Se você possui alguma sugestão de artigo ou deseja colaborar com nossas revistas, entre em contato através do email [email protected]

Para participar de nossa Galeria de Imagens, mande suas imagens para [email protected]

FEA Editorawww.feaeditora.com

EdiçãoCarlos Alexandre Pereira

Projeto GráficoCarlos Alexandre Pereira

RevisãoMarcela Zullo

[email protected]

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Marcio Lambais é Engenheiro Agrônomo com doutorado em ciências pela University of Texas, atua como Professor Titular na USP. Iniciou na fotografia em 1978 e já participou de diversas exposições. Sua especialidade são imagens de paisagens, capturadas em grandes parques nacionais.

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Cristiano Mascaro, dispensa apresentações... mas você vai ficar conhecendo muito dessa figura fantástica no primeiro artigo desta edição. Cristiano colaborou também assinando a coluna que fecha a revista. No momento ele está em Portugal fotografando, então o Fernando Costa Neto da DOC Galeria gentilmente cedeu esta imagem. O crédito para foto é de Thays Bittar/DOCFoto. Muito obrigado Fernando e Thaís!

Fotógrafo autoral, impressor, professor de inglês e publicitário, nem sempre nesta ordem. Marco Cavalheiro é apaixonado por imagens em preto e branco e viagens, e dedica seu tempo entre a sala de aula e o ateliê de impressão.

Lila Souza é arquiteta, urbanista, especialista em fotografia e mestre em multimeios. Pesquisa fotografia desde 2005 e atualmente é a responsável pelo canal de fotografia na eduK.

Com 20 anos de experiência em jornalismo, artes e marketing, Mario Amaya envolveu-se cedo com a fotografia digital, escrevendo sobre o lado técnico das imagens. Dedica-se a fotografia de arquitetura, viagens e flagrantes urbanos, tendo lançado em 2014 o livro “I Shoot SP+NY”.

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Andrea Goldschmidt, Procissão das Almas, Mariana, 2015

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Ronaldo Azambuja, Onipresente, Florianópolis, 2015

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Cacá Dominiquini, Juliana e Theo, Campinas, 2015

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Armando Vernaglia Jr, Viaduto do Chá, SP, 2013

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Tayna Gomes, Desconhecido Escuro, São Paulo, 2016

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Tayna Gomes, Desconhecido Escuro, São Paulo, 2016

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Felipe Fontoura, Proporções Parisienses, Paris, 2012

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Marcela Zullo, Cookery Book with Eggs, Campinas, 2016

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João Eduardo Ferreira Neto, Palácio da Música Belkiss Spenzièrino, Goiânia, 2016

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Cristiano MascaroPor Carlos Alexandre Pereira

Cristiano Mascaro é um dos maiores fotógrafos brasileiros com mais de 50 anos de experiência profissional e um trabalho sólido e referência mundial dentro da fotografia urbana e de arquitetura. Nasceu em Catanduva, em 1944 e logo mudou-se para São Paulo. Formou-se em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde também obteve o grau de mestre, com a tese “O Uso da Fotografia na Interpretação do Espaço Urbano”, em 1986, e o de doutor, com a tese “Fotografia e Arquitetura”, em 1995.

Iniciou sua carreira fotográfica profissional pela revista Veja em 1968, onde permaneceu por quatro anos. Depois dividiu seu tempo como fotógrafo e professor universitário, além de ter dirigido o Laboratório de Recursos Audiovisuais da Universidade de São Paulo entre 1974 e 1988.

Já expôs em vários lugares do Brasil e do mundo, como Paris, Zurique, Londres, Milão, Nova York e Wolfsburg. 72 de suas imagens fazem parte do acervo da Pinacoteca de São Paulo e tantas outras da Coleção Pirelli/MASP de fotografia. Até a data desta entrevista já havia lançado 14 livros, incluindo o recém lançado “Rio Revelado”.

Para esta entrevista, tive a honra de visitá-lo em sua casa. Cheguei no horário combinado, às 9 horas de um sábado um pouco chuvoso e muito quente. Cristiano mora um pouco afastado da cidade São Paulo, em um lugar com muito verde. Assim que cheguei fomos para o seu escritório, uma construção separada da casa com uma área envidraçada de frente para uma mata, uma mesa de trabalho grande, uma estante com livros e muitas fotos nas paredes. Foram quase três horas de conversa sobre fotografia, sua carreira, seus livros e seus planos para o futuro.

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Cristiano Mascaro é o terceiro fotógrafo da sua geração que entrevisto pessoalmente, os primeiros foram Araquém Alcântara e Claudio Edinger, e todos três tem uma coisa em comum: uma paixão

quase adolescente pela fotografia. Eu recomendo a todos que tiverem a oportunidade, de conversar com um fotógrafo do calibre destes três, é uma experiência revigorante e enriquecedora!

Mas entrevistar um profissional consagrado como Cristiano Mascaro é também um desafio editorial, e por essa razão quis fazer algo um pouco diferente. Ao invés de chegar com um roteiro de

perguntas já respondidas a exaustão pelo entrevistado, selecionei algumas imagens do seu portfólio e as levei impressas para a nossa conversa. Cada imagem foi o início de um bate-papo sobre um

determinado aspecto da visão que o Cristiano tem da fotografia. Tenho gravado em áudio mais de duas horas de uma conversa deliciosamente descompromissada sobre fotografia, de idas e vindas, divagações e constatações. Infelizmente precisei editar bastante, se não teríamos um livro no estilo

“Memórias”. O resultado final ficou excelente, mas não acreditem na minha palavra, leiam e tirem suas próprias conclusões!

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Você é formado em arquitetura, o que certamente influenciou a sua fotografia. Mas quando você fotografa uma casa, o que te atrai mais, a arquitetura ou a personalidade?

É mais no sentido antropológico da coisa. Até porque essas casas que fazem parte do meu trabalho autoral, não são casas de arquitetura premiada, de arquitetos renomados. Essa foto, por exemplo, foi durante um trabalho muito grande que eu fiz em 1990, no começo da revista Claudia, em que fotografei as casas brasileiras. E para mim, as casas brasileiras não são essas em que o proprietário contrata um arquiteto e depois um decorador. É aquela casa, digamos assim, de caráter mais impessoal, onde você não identifica quem é que vive ali. E nesse trabalho que durou uns dois meses mais ou menos, eu viajei o Brasil inteiro, fui de Belém até Pelotas batendo nas portas, literalmente. Naquela época, em 1990, isso era possível. Eu batia na porta de uma casa que eu via que tinha o espírito da pessoa, que havia sido construída aos poucos. Não era uma casa em que a pessoa entra e compra tudo de uma vez. A minha casa é assim; eu nunca entrei numa casa de móveis e comprei sofá, mesa, cadeira; foi tudo garimpado ao longo do tempo; e isso tem a ver com a personalidade das pessoas.

Então o que a gente encontra aqui, esse vaso de planta em forma de cisne de louça branco, o calendário ao fundo junto com a propaganda eleitoral, isso é o universo, e o meu compromisso com o trabalho era retratar o jeito do brasileiro morar; o título da matéria era algo assim também, o jeito do brasileiro morar, não me lembro agora exatamente.

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Uma das aventuras mais incríveis nesse trabalho, foi quando entrei numa casa em Ouro Preto; o que já era a primeira vitória, conseguir entrar na casa, que naquela época ainda era muito mais fácil do que hoje. Bom, entrei na casa e aí dei aquela primeira olhada e achei que a casa estava

pouco interessante e a moça que me atendeu era uma empregada doméstica que estava sozinha na casa, ela me disse “Peraí que eu vou fazer um vaso, porque a casa tá um pouco sem graça”. Todo

fotógrafo é um pouco ansioso, já fica com pressa de ir para outro lugar, mas eu achei que seria indelicado e deixei que ela fosse arrumar o vaso. Ela se encaminhou para os fundos da casa e eu

percebi que ela pegou um facão, e fiquei ouvindo aquele barulho dela cortando talos de plantas, fiquei pensando “o que será que ela vai fazer?”. Ela veio com um vaso que é uma das coisas que

mais adoro.

Isso para mim é fantástico, eu nem acreditava nela, e de repente ela vem com um vaso feito na hora, pensei até que ela podia dar aula de Kebana na Universidade de Kyoto. Você tem que estar predisposto a surpresas, não sair com uma ideia fixa sobre o que você vai fazer, por mais esperto

que você se ache, a vida comum te oferece surpresas incríveis. E assim vai, a fotografia que eu prezo acontece não só casualmente, mas também tem uma carga enorme de intuição, que não é cerebral,

mas é dirigida pelo conhecimento que vai sendo acumulado com a experiência. É como um radar, onde a gente busca uma coisa que não sabe bem o que é, mas sabe quando encontra. Então é

dessa forma que eu vou fazendo essas imagens.

Você seguiu os passos de Kertész, não é? Se não me engano, quando ele trabalhava para revista Life, também fez um trabalho fotografando as casas americanas.

Certamente. Tem uma foto que eu adoro, Chez Mondrian. O Kertész foi o segundo fotógrafo a me influenciar. O primeiro foi Cartier-Bresson, que causou o maior impacto na minha vida quando

peguei casualmente um livro dele e que me despertou para fotografia. Depois teve o Kertész e o Robert Frank, não necessariamente nessa ordem. Eu li uma vez em uma revista de fotografia que ele

era considerado o descobridor da calçada e eu achei isso interessante. Não sei porque fiquei com a ideia na cabeça de que em Paris ele morava no primeiro andar, por isso pensava “Vou descer para

rua!”; e aí descia as escadas e ia para rua fotografar. As primeiras fotos dele são de 1914, incrível não é, com a tecnologia da época fazer o tipo de fotografia que ele fazia.

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Qual a importância da luz na sua fotografia?

Olha, na verdade, eu às vezes fico querendo me livrar dessa ditadura da luz. Dessa luz bonitinha, da luz que resvala pelas fachadas dos prédios e tal. Mas fundamentalmente, a fotografia é a captura da luz, e não importa se ela é suave, dura, feia, bonita. Não que eu saia em busca da luz, mas ela acaba estando lá da mesma forma. Eu gosto de acordar cedo para ter tempo de observar a cidade, e com isso vejo a luz invadindo a cidade e as mutações que ocorrem. Durante a maior parte do dia a luz não modifica muito a cidade, mas no amanhecer e no anoitecer, a luz causa mutações, mudanças bem rápidas na cidade. Eu acho isso muito interessante.

Eu tenho o costume de chegar bem cedo nos lugares, para aproveitar bem as oportunidades e ter certeza de que não perdi nada. Antigamente, quando ia fotografar no centro de São Paulo e entrava nos edifícios comerciais, eu costumava chegar antes das pessoas que trabalhavam lá. Se eu chegasse depois, eu me sentia um estranho ali e isso me incomodava. Se eu chegasse antes de todo mundo, eu não ficava com essa sensação e ficava à vontade para ir andando pelos corredores fotografando as salas e lojas.

E a São João tem uma importância muito grande para mim. Quando eu era garoto morava em Perdizes e naquela época não era comum ter carro, apenas as famílias mais ricas tinham carros importados. Só mais tarde, na década de 60, que meu pai comprou uma Kombi para levar toda a família em passeios. Então eu andava muito a pé, e foi nessa época que eu descobri e conheci a cidade. O fato de eu ter feito arquitetura evidentemente aprofundou meu interesse pela cidade. Eu saía da minha casa e invariavelmente pegava a São João que me levava até a escola, ao cinema, a lanchonete, enfim, aos locais que eu frequentava.

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Nessa foto da Avenida São João eu estava fazendo um trabalho para o Banespa. Eu sempre aproveitei os trabalhos encomendados para fazer também as minhas fotos autorais. É uma forma

bastante comum de desenvolver um trabalho autoral; ‘pegando carona’ em trabalhos remunerados que te levam aos lugares onde você pode aproveitar e fazer as próprias imagens. Mas era

aniversário do Banespa e eu estava produzindo um livro para eles, então tive essa facilidade para fazer a foto, se bem que naquela época o edifício era aberto ao público. Era muito fácil subir nos edifícios, fiquei amigo de vários zeladores de prédios do centro de São Paulo, hoje em dia é tudo

mais complicado, você precisa mandar um email, pedir autorização, uma burocracia danada.

A Avenida São João tem essa luz característica porque ela está na direção leste-oeste e nesse ponto à tarde, você tem essa contraluz do pôr do sol refletida no asfalto, muito bonita. É uma das

fotos que eu mais gosto e tenho várias versões dela, ali tem uma outra versão que eu fiz do alto do Jaraguá (e aponta para um mural na parede com várias fotos impressas). Essa foto do Jaraguá ficou valendo durante anos como a minha foto da São João, até que um dia olhando os contatos, eu pensei “não, acho que essa do Banespa tem um enquadramento melhor do que a foto feita do

Jaraguá”, e troquei, passei a usar esta feita do alto do Banespa.

As duas fotos foram feitas no tempo da Hasselblad. Se a gente pode ter alguma coisa de idolatria por um equipamento, ou marca, que tenha por um como a Hasselblad. Ela foi uma câmera muito

querida. Na época em que comprei a primeira ela era famosa por ter ido para Lua. Eu vi os anúncios da câmera sendo usada pelos astronautas na lua, meu pai ia viajar para Europa e eu encomendei

uma para ele.

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Você ainda tem a Hasselblad?

Tenho, claro, está ali naquele cantinho. Eu tenho três na verdade. Tenho uma SWC com uma grande angular maravilhosa, e depois dois corpos dessa CM. A primeira delas eu comprei em 1966. Essa câmera tem uma qualidade ótica muito boa. Eu estava vendo o documentário da Vivian Meyer onde o Szarkowski, ex-curador do MoMa, dizia que ela conseguia tirar fotos das pessoas sem incomodar elas por causa da câmera que ela usava, que operava na altura da cintura e o fotógrafo olhava o visor por cima, ao contrário das câmeras que você põe no rosto para olhar pelo visor. E a Hasselblad é a mesma coisa, você posiciona a câmera na altura da cintura para fazer a foto.

Mas eu logo aprendi que precisava trabalhar com ela no tripé, e aí ficava com cara de fotógrafo mesmo. Mas curiosamente, como fazia muita foto de arquitetura, o pessoal pensava que eu era na verdade um topógrafo, principalmente na época em que estava começando as obras para o metrô de SP. O pessoal pensava que estava fazendo medição de ruas, e logo pensavam “Vão derrubar minha casa, vão desapropriar!”

Eu nunca tive nenhum problema de assalto – deixa eu bater na madeira aqui – sempre tive muita sorte nesse sentido. Hoje eu sinto um receio bem maior, porque as câmeras digitais viraram de conhecimento público então são mais facilmente identificadas e mais visadas, pelo valor delas e pela facilidade de uso até. Se o cara roubar uma Hasselblad não vai nem saber o que fazer com aquilo.

Mas eu acho importante essa informação do tripé, porque quando eu saí da Veja, onde eu trabalhava com uma 35mm, eu logo comprei a Hasselblad e no início tentava usar ela como uma 35mm, na mão, com mobilidade, agilidade. Logo vi que não ia dar, que precisava do tripé e calma para fazer a foto. E isso influenciou na minha fotografia, porque não poderia mais ir atrás daquela foto ‘roubada’, Bressoniana. Teria que fazer uma foto mais pensada. E isso norteia meu trabalho até hoje, que é uma mistura – não sei exatamente em que proporção – entre a minha formação acadêmica como arquiteto, e a minha experiência profissional como jornalista. O jornalista tem que fazer a foto em qualquer circunstância, você precisa da foto chova ou faça sol. Acha que essas duas coisas se somaram e misturaram bem, imagino, espero, e eu aprendi a ser mais esperto para conseguir a foto que queria. Às vezes você precisa ser um pouco ousado para fazer a foto que você imaginou, e eu aprendi isso enquanto era jornalista.

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Como é entrar na intimidade das pessoas?

Pois é, eu sinto uma frustração muito grande porque eu descobri o retrato quando comecei a trabalhar com a Hasselblad. A maioria dos retratos que fiz tem esse aspecto quadrado do formato médio. Em 1975, eu e o Pedro Martinelli propusemos ao José Mindlim, o Secretário da Cultura na época, de fazer uma documentação do bairro do Brás. Eu e o Pedro somos netos de italianos e o Brás, sendo o bairro que abrigou os imigrantes italianos que chegavam a São Paula pela Estação

Roosevelt e por ali se estabeleciam, tem um grande apelo para nós.

E curiosamente, foi quando o metrô estava chegando naquela região da cidade, que mesmo sendo aéreo naquele trecho, foi feita uma grande derrubada de prédios. Não sei porque aqui em São

Paulo cada estação tem que ser um prédio monumental, quando uma pequena portinha para o subterrâneo já resolveria. Em qualquer lugar do mundo o metrô é só um buraquinho na calçada,

aqui eles fazem esses prédios enormes. Deve ser para desviar verba, não é?

Bom, então eu e o Pedro propusemos o trabalho. Só fazendo um parêntese, deve ter sido um dos primeiros coletivos, que agora está tão na moda, foi um minicoletivo. ;) Mas voltando, na época eu estava começando a fotografar com a Nikon, e o Pedro também. Eu disse ao Pedro que tinha uma

Hasselblad e que ia usá-la nesse trabalho. Seria uma forma de diferenciar o nosso trabalho também pelo equipamento, além das nossas perspectivas pessoais, e torná-los complementares ao invés de

concorrentes, eu com a Hasselblad e ele com a Nikon, dois formatos diferentes. Além disso eu estava curioso a respeito da Hasselblad, que desde que comprei tinha ficado guardada, já a quase dois

anos.

De cara percebi que era uma coisa muito interessante por causa das pessoas com quem eu cruzava nessa ‘bateção’ de porta em porta. Me lembro perfeitamente do primeiro retrato que eu fiz no início

desse trabalho. Estava andando muito tranquilamente ali na zona cerealista do Brás, sem ter que me preocupar com assaltos, apreciando toda aquela movimentação de caminhões descarregando,

pessoas indo e vindo atarefadas. De repente eu vejo na calçada um caminhão cheio de sacos de farinha. Os carregadores que descarregavam o caminhão, todos sujos de farinha, levando os

sacos para dentro de um depósito. Eu achei aquilo interessante e entrei ali e fiquei observando a movimentação. É engraçado que as pessoas naquela época não estranhavam nada, ninguém me

impediu ou questionou, se fosse hoje eu nem conseguiria entrar.

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O depósito era um corredor de uns 30 metros e eles estavam empilhando os sacos no fundo. E nesse percurso onde eles iam e vinham, tinham dois carregadores bem peculiares sempre andando juntos, já meio ‘bife à milanesa’. Parei os dois e falei que queria fotografar eles porque eram duas figuras maravilhosas. Eles acharam meio estranho o comentário e tal, e os outros todos que estavam ali começaram a fazer piadas “vão sair na playboy!”.

Essa é uma situação que me fascina e com a qual eu aprendi rapidamente a lidar; você se relacionar com a pessoa de forma tão envolvente, que apesar de estarmos rodeados pelos outros carregadores que pararam o trabalho para nos observar e fazer piadas, era como se estivéssemos em uma redoma, isolados do resto, concentrados apenas em fazer a foto. E se eu tivesse contratado dois modelos profissionais, eles jamais iriam se comportar de forma tão natural como aqueles dois. Um colocou o cotovelo no ombro do outro, o fundo da parede combinava perfeitamente com os corpos deles.

Evidentemente eu já conhecia o trabalho do Irving Penn, que faz um trabalho muito mais de estúdio, mas que me marcou muito. Foi justamente nesse período em que costumava entrar nas pensões. No Brás havia muitos casarões antigos de italianos que enriqueceram; mas como o bairro estava sendo rasgado pelas obras do metrô, os proprietários deixaram o bairro e estes casarões viraram cortiços, com muitas famílias morando. E eu entrava nestes cortiços tranquilamente. Não havia perigo algum, eram apenas pessoas trabalhadoras, muito predispostas a te ajudar. E assim fiz vários retratos bastante peculiares, de pessoas sentadas ou deitadas na cama; tem até um com a toalha amarrada na cintura porque tinha acabado de sair do banho. Eu entrava em umas padarias que faziam doces, com cozinhas que eram um horror. Hoje tem aquelas plaquinhas “visite nossa cozinha”, naquela época não tinha nada disso. Fiz a foto do rapaz fazendo uns sonhos; aquele doce cortado ao meio com a gororoba amarela lá dentro; a mão dele estava imunda, os dedos todos grudados com excesso de doce.

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A grande maioria dos retratos que você fez são dessa época, não é mesmo?

Era um período, em que eu tinha uns 30 anos mais ou menos – e hoje para mim isso é ser muito jovem – e que estava bastante entusiasmado com a descoberta de uma nova forma de ver o mundo,

aquela que não era mais a pauta da revista. Tem um pequeno trecho do livro ‘Rio Revelado’, em que o Pedro Vasquez pinçou do Jean Jacques Rousseau, uma pequena frase muito bem escrita: “Os

devaneios do caminhante solitário”; onde ele descreve ele mesmo; “O que a natureza quis que eu fosse”. Você está livre para ser o que quiser. Essas circunstâncias todas me levaram a fazer muitos

retratos. Consegui com que as pessoas não tivessem nenhum pudor ou reserva; e nem eu, porque às vezes quando você é muito jovem fica envergonhado ou sem jeito. Quando você está apaixonado,

quando você sente aquela adrenalina ao fazer algo excitante, tudo isso desaparece.

Eu nunca contei, mas devo ter uns quinhentos retratos, tenho muito mais na verdade, mas tenho mais ou menos uns quinhentos que não teria vergonha de mostrar. ;) Felizmente no livro da

Ipsis tem alguns retratos. Fiz também algumas exposições onde eles foram mostrados e, gostaria muito de fazer um livro de retratos, mas infelizmente acho que não conseguiria por conta dessa

insegurança que as pessoas sentem hoje em dia; o medo da internet, o diabo da lei de direito de uso da imagem. Hoje se eu for naquele depósito de farinha vão chamar o guarda, vou levar uma bronca.

Em um shopping center não consigo nem entrar com a câmera, se for com o celular ninguém fala nada, mas a câmera não pode. Existe essa vigilância toda em cima da gente que nos impede de

fazer um trabalho como esse que eu fiz.

Uma vez eu estava na calçada do shopping Iguatemi fotografando um outro edifício e veio um segurança dizer que eu não podia fotografar ali. Porra, eu estava na calçada, como não pode!? E

daí aquela história, eu não quero criar caso, mas acabo criando porque fico muito bravo com essas coisas estúpidas.

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Qual a importância das linhas no seu trabalho?

Uma vez alguém observou que nas minhas fotos, como naquela da Avenida São João, sempre tem um eixo. Raramente minhas fotos tem uma angulação lateral. Eu não sei se isso é intuitivo... na verdade eu nunca fiz uma análise aprofundada sobre minhas fotos como essa que estamos fazendo agora. Bibliotecas sempre foram espaços sagrados para mim. Já tinha feito fotos no Real Gabinete de Leitura de Portugal, um lugar impressionante; e em março (2016) volto a Portugal para fotografar duas outras bibliotecas também sensacionais.

A fotografia é feita de várias coisas: a luz, a composição, o momento decisivo – que nesse caso não se aplica. Eu acho que o que me leva a fotografar dessa forma é o que eu entendo como sendo expressivo. Essa imagem se assemelha muito a outra que fiz do teto da Biblioteca Nacional, que apesar de ser de uma biblioteca, não mostra nenhum livro. Teve uma pessoa que comprou estas duas fotos para coloca-las lado a lado; porque elas dialogam de uma certa maneira.

A organização dessas linhas, das luzes, tudo isso vêm de uma forma intuitiva. Eu chego no local e a escolha é feita em função da soma ideal destes fatores todos. Então eu não saberia dizer qual a importância individual das linhas. Aqui elas estão dessa forma organizada, bem definidas, mas nem todas as minhas fotos são assim, eu lembro que quando me falaram que minhas fotos são dessa forma, isso me incomodou um pouco, mas a verdade é que muitas delas são assim mesmo.

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Talvez uma influência da arquitetura?

Talvez... O Eder Chiodetto fala no prefácio do livro da Coleção Ipsis que até os meus retratos são estruturados como uma forma arquitetônica, tanto que ele escolheu para capa o retrato de um

halterofilista onde os braços dele se assemelham a pilares. O Walter Carvalho, diretor de cinema e de fotografia, além de fotógrafo, também observou isso. São fatos interessantes, mas não é algo que

eu busco conscientemente quando estou fotografando. A intuição é algo que vêm do conjunto de referências que você tem, da soma do seu conhecimento.

O desafio do desenhista é o papel em branco, onde ele precisa criar algo a partir do nada. O desafio do fotógrafo é criar algo a partir do que já existe, e muitas vezes algo que você não tem controle.

Quando você encontra a composição certa, vem o maldito ônibus e para na sua frente; quando finalmente está tudo certo, a luz muda; enfim, são muitas variáveis que você não tem controle e é

esse desafio que me interessa. É isso que me move. Esse negócio de chegar no lugar e arrumar tudo bonitinho; fotografar o meu próprio corpo, como está na moda agora; nada disso me interessa, meu negócio é caminhar na rua e ver o mundo real e tentar transformá-lo em outra coisa que não seja o

óbvio. Esse é o meu fascínio.

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Como você identifica um detalhe relevante em meio a banalidade?

Isso tem tudo a ver com o que eu acabei de falar sobre as minhas motivações na fotografia. Andar na rua, encontrar elementos do mundo real, do cotidiano, e tentar transformá-los em algo diferente. Essa imagem por exemplo, é uma caixa de luz, mas poderia ser uma máscara africana, tudo depende da forma como você apresenta ela.

Tem uma fotografia da escada rolante, de 1981, que me marcou muito. Foi no início dessa minha busca por coisas utilitárias que podem ser interpretadas de outra forma. A escada rolante está lá, serve apenas para levar as pessoas para cima e para baixo. Mas nesse dia estavam desligadas, e quando cheguei lá em cima estava ‘cansado pra burro’.

Eu normalmente levava as duas Hasselblads, um tripé enorme e todo o resto do equipamento. Eu carregava tudo em um carrinho desses de levar mala em aeroporto que eu havia comprado, porque nessa época não tinha assim tantas opções para fotógrafos. Para andar na calçada tudo bem, se bem que nossas calçadas são um terror de se caminhar, pior ainda de levar carrinhos; mas nas escadas era ainda mais complicado.

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Mas como estava dizendo, quando cheguei lá em cima eu coloquei tudo no chão e me apoiei no parapeito para descansar e nisso olhei para baixo e vi essa cena. Na hora pensei “Preciso

fotografar isso!” E assim como o goleiro, o fotógrafo também precisa ter sorte, não basta apenas a competência. Digo isso porque na Hasselblad você olha por cima da máquina e não por trás dela; e quando eu apontava a câmera para baixo no tripé eu não conseguia olhar no visor. Então tive que

tirar ela do tripé e apoiar no parapeito e mesmo assim não consegui olhar. Eu estava usando um Tri-X de ASA 400 e como lá tinha bem pouca luz precisei ajustar para 1/8s. E se você olhar a foto;

que não tem corte nenhum, está idêntica ao negativo; ela está exatamente no eixo, como se fosse o eixo da foto da Avenida São João.

Então é isso, você ter a surpresa de descobrir essas coisas pelo caminho. Eu nunca tive muita atração pelos belos lugares, nem pelos horrendos. Meu negócio é a vida cotidiana. É onde você tem

que cavar para tirar leite de pedra, para transformar o comum em algo luminoso.

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Qual a relevância em fotografar um assunto icônico, já muitas vezes fotografado?

Essa foto é resultado dessa minha missão de fotografar algo comum sob uma outra luz. Não lembro exatamente qual era a pauta, se era um contrato ou algo pessoal, mas eu tinha que fotografar o COPAN. Eu tenho fotos dele de vários ângulos. Uma vez eu subi no Hotel Hilton para fotografar ele por inteiro, e fiquei lá esperando anoitecer porque daquele ângulo não se via esses detalhes arquitetônicos, apenas as janelas de frente, então quando anoitece elas vão se acendendo aos poucos. Eu achei que poderia ser um resultado interessante, mas eu estava com a 35mm – algumas vezes é indiferente o tipo de equipamento, mas em outras o formato do equipamento faz diferença – só sei que não aproveitei nenhuma das fotos que fiz nesse dia com essa câmera. Essa foto eu fiz com a Hasselblad e uma tele bacana, tem as três zonas de luz, e num momento em que o COPAN ainda estava bem cuidado, apesar de já poder notar algumas pastilhas faltando na fachada.

O livro “Rio Revelado” por exemplo, é sobre uma cidade que já foi exaustivamente fotografada, o Rio de Janeiro. Não é uma questão de você se achar diferente, ser pretensioso, é apenas você querer realizar um trabalho com a sua marca, a sua visão. As cidades te oferecem uma surpresa atrás da outra. Você não precisa nem caminhar, basta ficar parado em uma esquina que as coisas acontecem com uma dinâmica incrível. E esse é o meu desafio.

A gente só precisa tomar o cuidado – principalmente na foto de arquitetura – de não cair na visão literal. Muitas vezes é importante você ser bem claro; como para uma revista de arquitetura, o artista é o arquiteto, não o fotógrafo. Mas quando a fotografia é sua, você precisa imprimir a sua visão.

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José BezerraPor Mario Amaya

No seu desenvolvimento fotográfico, acho notável a sua transição do tema paisagem para o tema do ser humano. Inicialmente o tema era a paisagem natural, e hoje é retratar as pessoas em seus ambientes, penetrando em seu universo e, a partir disso, criar imagens que expressam a visão do mundo e o senso de dignidade existencial que todas possuem. Essa imersão representa um diferencial importante, uma vez que além da técnica e do senso de oportunidade o fotógrafo tem que saber viver o seu assunto.

Hoje procuro ao máximo conviver realmente com o ambiente que estou fotografando. Seja no alto de uma serra ou nas comunidades ribeirinhas. Entrar nas casas e alcançar a intimidade dos seus residentes é também dedicar-se a entender o outro, para tão somente compreender aquele que está sendo fotografado. É mais trabalhoso? Sim. Mas o retorno emocional e de entendimento sobre o tema é riquíssimo. Afinal, compreendo que, se um fotógrafo não souber falar sobre aquilo que está fazendo, se ele não se envolver, se não buscar essa compreensão humana ao retratar humanos, o trabalho dele será uma farsa. Os trabalhos que se sustentam apenas da estética, a meu ver, não possuem valor documental. Pois o fotógrafo é antes de tudo uma testemunha de seu próprio trabalho.

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José Bezerra, Reparo da Cerca, Acarí RN, 2014

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José Bezerra, Pescadores Artesanais, Tibau RN, 2014

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O que temos muito, e que vemos nos fóruns de fotografia, de forma impossível de ignorar, são pessoas de apuro técnico e equipamentos avançados que não se envolvem com seus

sujeitos; seja por distanciamento, seja por tratarem as pessoas no quadro como meros elementos de composição. Mesmo numa cidade grande, com grande variedade de detalhes, é impressionante a dificuldade de o fotógrafo ser original sem empregar artifícios de lentes e luzes. Quando a pessoa está em seu próprio meio e não precisa fazer uma imersão, é bem

complicado para ela desafiar seus limites.

A dificuldade de imersão realmente é muito comum. Esse distanciamento começa a nos ser ensinado na infância, quando nos pedem para “não conversarmos com estranhos”. Isso não soa

familiar? Claro, fazemos isso por cautela, temerosos pela violência. Mas em algum momento de nossas vidas, isso precisa ser desconstruído.

Acho interessante a sua afirmação de que não sente necessidade de viajar para longe e “repetir o que já tem tantos fazendo” no exterior, uma vez que a vida tradicional no campo brasileiro, sendo tão rica, possui relativamente poucos estudiosos visuais como é seu caso.

Há pessoas que interpretam erroneamente essa afirmação. Não sou contrário ao fotógrafo viajante. Eu só afirmo que isso apenas não basta. A viagem tem que começar na sua própria cabeça. Assim

que percebemos isso, é possível compreender que esta viagem pode ser em qualquer lugar, inclusive no seu próprio bairro ou vizinhança.

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Os estudantes de grupos de estudo de fotografia travam completamente quando são perguntados sobre “O que você quer realizar com a sua fotografia”.

Costumo dizer que o fotógrafo ou estudante de fotografia deve responder a si mesmo duas perguntas básicas: qual é o objetivo de sua fotografia; e até onde você está disposto a ir por ela? Se não conseguir encontrar uma resposta, é hora de refletir. E não existe uma resposta certa ou errada; existe a resposta de cada um, que inclusive pode ser mais de uma ou mudar a qualquer momento.

Pode ser que a fotografia, afinal, não seja para certa pessoa o canal de expressão mais adequado ou eficaz. Sei de seu passado na pintura e a decorrente insatisfação com a falta de fluência da linguagem, a necessidade de uma elaboração morosa... Mas é digno de nota que muitos dos “grandes mestres” da fotografia tinham noções sólidas de Belas Artes antes de se aventurarem com fotos, onde conta a agilidade para conceber e praticar. É como se essa base em artes deixasse o fotógrafo mais pronto para fazer a sua captura sem vacilação.

Concordo. E ela contribui muito. Perdi as contas de quantas horas dediquei-me a ver documentários, ler artigos ou mesmo buscar imagens de diferentes pintores de várias épocas. Essa base de entender porque as coisas estão posicionadas em tais lugares em detrimento de outros, a inserção de símbolos sagrados e a lapidação nas expressões faciais, acaba tendo um impacto imenso na obra de quem as vê.

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José Bezerra, Um Dedinho de Prosa, Upanema RN, 2015

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José Bezerra, Roteiros de Uma Luta, Campo Grande RN, 2016

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E conta também na universalidade da imagem. Um espectador de quase qualquer lugar do mundo não vai ter dificuldade em “entender” a sua imagem, mesmo considerando-se uma

variedade de interpretações possíveis, porém com menos espaço de ambiguidade que a pintura.

Sim. Acabei chamando isso de “elos universais”.

Agora, imagine alguém fascinado pelo seu novo equipamento que, na hora de “criar” uma foto, procura uma parede e espera passar alguém na frente. Parece não ter estímulo ou coragem de trazer para fora seu mundo interior. O resultado seria muito diferente! Será

que as pessoas em geral têm medo de mostrar o que sentem por dentro e acharem-se muito estranhos. Ou pior talvez, muito iguais a todo mundo, no contexto de uma sociedade que

insiste que cada um deve ser “especial”?

Acredito que não trazem seu mundo interior para fora porque não o conhecem. Ocorreu algo assim em uma oficina de fotografia, quando um fotógrafo fez uma fotografia semelhante ao que você

descreveu. Perguntei o que aquela imagem representava pra ele. O fotógrafo olhou pra mim e disse; “Representa uma pessoa andando”. Então, perguntei novamente: “O que esta imagem quer dizer? O que estaria pensando este ser fotografado?” Então o fotógrafo, meio desdenhoso, falou: “E isso

importa?”.

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O fotógrafo provavelmente estaria pensando assim: 1/250 para congelar o passo, f/11 para não dar aberração nos cantos... Piadinhas à parte, cabe também pensar que várias das profissões que aparecem em suas fotos estão inalteradas há décadas ou séculos; existe uma pureza no ato, uma destilação.

Quando estou documentando trabalhos artesanais, costumo pedir para dormir na casa de algum trabalhador. Quero entender sua rotina, como é sua casa, como se relaciona com a família, com os vizinhos. Quero provar de sua comida, conversar e brincar com seus filhos. Fotografar hoje não é o suficiente. Ela é a parte final de um processo que precisa de experimentação dos diversos sentidos. Quando chego a um local onde nunca estive antes, invisto um bom tempo para conversar. Explicar todo os procedimentos que farei. E adianto que farei coisas estranhas, como sair no meio da refeição para afastar-me da mesa e fazer uma fotografia daquele momento. Caminhar sem fazer barulhos, para não quebrar a espontaneidade. Enfim, tenho que deixar claro tudo o que poderei fazer, de modo que para eles não soe abusivo, esquisito, a ponto de provocar aversão. Tenho que ter intimidade suficiente para ser como uma pessoa comum, que de fato sou. Mas naquele momento, a câmera traz uma carga forte que denota invasão. Mas através da comunicação não-violenta, consegui ótimos resultados em alcançar este nível de intimidade.

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José Bezerra, Estou Com Frio, Portalegre RN, 2015

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José Bezerra, Uma Questão de Fé, Campo Grande RN, 2015

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Sempre tem o problema do artefato. A câmera é um olho alienígena. Fotógrafos ficam tão habituados que não notam seu impacto entre pessoas leigas.

Verdade. Mas incomoda muito. Eu particularmente não gosto de ser fotografado. Mas permito ocasionalmente. O que parece ser uma incoerência de minha parte.

Adianta tentar usar uma máquina menor? Vejo alguns migrarem de DSLRs para mirrorless com esse argumento.

Olhe, uma câmera mais discreta pode até reduzir o impacto inicial, mas a questão incide no ato da fotografia, também. A câmera é apenas o aspecto inicial. Uma câmera menor ou até um celular, se

apontado para alguém, sempre causa impacto no fotografado. O apontar é o verdadeiro incômodo. A pessoa logo trata de se ajeitar para não sair “feia”. Afinal, vaidade é algo natural em muitos de

nós.

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E parece que o fato de hoje todos fazerem fotos de celular não está alterando essa sensação que o ato causa nos assuntos das fotos.

Não. Diria até que piora em alguns casos. Pois muitos usam-nas para fazer brincadeiras, que são incômodas. É possível induzir um estado de relaxamento no fotografado. Ao ponto de ele sentir-se totalmente confortável com a sua presença. Ele passa a compreender e confiar naquilo que você está a fazer. Mas isso é um trabalho que precisa de pelo menos uns 40 minutos.

Nos meus périplos fotográficos, caminho bastante. Então, todo peso é medido cuidadosamente. Afinal, já ocorreram casos de caminhar quase 20 km em um dia. Apenas 100 gramas a mais ou a menos fazem diferença. Atualmente uso uma Canon 60D com apenas duas lentes: uma 17-50mm f/2.8 e uma 55-250mm. Mas penso seriamente em migrar para uma câmera mirrorless. Hoje, qualquer câmera nos entrega imagens de ótima qualidade. Às vezes me decepciono quando vejo mais diálogo sobre qualidade dos sensores do que propriamente das fotografias.

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José Bezerra, A Costureira, Felipe Guerra RN, 2013

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José Bezerra, A Cozinheira, Equador RN, 2014

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Como funciona a mente do fotógrafo quando é um autor destacado e ao mesmo tempo membro de um coletivo. Porque normalmente vemos autores solitários que de jeito nenhum

pensam em participar de coletivos, e outros que somente trabalham no contexto do coletivo.

O coletivo produz material com todos os integrantes simultaneamente, sem desvalorizar a produção individual. Há pautas, como no caso das feiras livres no interior do RN, em que nós vamos todos ao mesmo lugar e passamos várias horas não só fotografando, mas principalmente conversando com

os feirantes e transeuntes que se mostram favoráveis ao diálogo. A partir deste tipo de abordagem, podemos coletar várias informações pertinentes que nos ajudam a compreender melhor o momento

passado e atual destas feiras.

Esse trabalho coletivo não impede as pautas individuais, que posteriormente podem ou não ser compartilhadas no coletivo. Isso dependerá de cada um. Por exemplo, trabalho com algumas

temáticas que são muito individuais e requerem a participação de todos. Na maior parte do tempo é complexo reunir todos os fotógrafos, o que acaba estimulando a produção individual. Neste

caso, fatores como tempo, interesse e afinidade com o tema são vitais para ter ou não a produção coletiva. Mas há aqueles temas em que mesmo individualmente é possível coletivizar, unindo as

produções individuais; vide temas comuns como vaqueiros, seca, trabalhos artesanais etc.

Além das temáticas específicas ligadas a trabalhos artesanais (tema que aprecio bastante), busco algo diferente dentro do tema. Há três anos venho coletando imagens que buscam sintetizar a

relação das pessoas com os equinos: mulas, éguas, cavalos. O sistema de parceria entre os homens e animais é algo que vai além do que vemos. É preciso conversar com as pessoas e entender

um pouco da mente animal para compreender melhor essa relação. Há situações de amor, mas também de raiva. Há aqueles que amam, e aqueles que fazem por obrigação. Aos poucos vamos

compreendendo que há um vasto terreno a ser explorado, tendo o entendimento da mente como algo valioso para expressar-se com a maior proximidade possível dos sentimentos que ocorrem de

fato.

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As primeiras fotos suas que vi foi em grupos de fotografia P&B. À parte os motivos culturais, históricos e comerciais para preferir essa estética, tenho um palpite de que o P&B pode ser mais satisfatório porque concentra a atenção, tanto do fotógrafo quanto do espectador.

Estou de acordo. Quando comecei a fotografar pessoas, passei a analisar como concentrar a atenção do espectador nas expressões e na geometria que busco empregar nas fotografias. Para tornar isso evidente, optei pelo preto e branco por cumprir bem este papel. Essa estética consegue, através da abstenção das cores, concentrar a atenção nestes dois aspectos. Eu fotografo sempre em RAW, o que naturalmente me entrega um arquivo em cores. O constante exercício me faz hoje perceber o contexto a ser fotografado já nos tons de cinza. O que me poupa tempo no encontro de cenas condizentes com essa busca.

Vejo em suas imagens que você tem uma técnica sofisticada com um resultado parecido com a película com um filtro; céu denso e sombras marcadas.

Uso bastante o filtro vermelho. Mas é filtro digital. Não me considero purista na questão dos acessórios físicos. E apesar de não usar de manipulação nas imagens, sou favorável a algumas inovações tecnológicas. Eu nunca fui usuário de filme, a não ser daquelas antigas câmeras descartáveis. Mas não levo isso em consideração. Sinto-me muito confortável com a fotografia digital e suas facilidades. Isso me permite focar mais no processo de composição da imagem, dos diálogos e leituras comportamentais.

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José Bezerra, Pescaria de Rede Vazia, Tibau RN, 2015

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José Bezerra, Sulavanco, Mossoró RN, 2013

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Quanto ao mercado de Fine Art, por aqui há muitos se queixando de que ele parece ter perdido o embalo.

Não sou o mais indicado para falar sobre isso. Minha opinião apenas irá enfatizar uma visão pessoal e talvez descontextualizada. Mas continuo achando o mercado muito fraco. Os fotógrafos ficam à mercê das galerias. As galerias vendem qualquer coisa. E focam em relações pessoais ao invés da

qualidade final. Há vários fotógrafos com ótimos trabalhos que não conseguem vender. Enquanto isso, trabalhos que considero medíocres vendem bastante. Mas isso é comum no mercado da arte. Temos consumidores que compram baseados em indicações das galerias ou porque possuem uma relação de apreço ao fotógrafo. Creio que poucos são honestos em comprar aquilo que realmente

lhes é agradável. Sem contar as margens: algumas galerias pedem 70% em contratos abusivos. Isso é ultrajante. Mas como muitos artistas aceitam, acabam por continuarem com a prática. Eu tentei algumas parcerias com galerias, mas ao me deparar com os contratos, acabei desistindo. No fim,

resta ao fotógrafo tentar vender por conta própria e trabalhar a relação com seu público.

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A curadoria também parece agir como uma porteira que não abre para os melhores, e sim para os amigos.

Há uma relação egocêntrica nisso tudo, acredito. Assim como as gravadoras, os curadores passam a crer que podem vender qualquer coisa, pelo fato de serem eles os seletores. Esse filtro acaba sendo danoso, de modo geral. O comprador muitas vezes não sabe se gosta, mas compra porque há um curador renomado associado a determinada seleção. Por fim, acaba sendo uma questão de “marca”. Compra-se pela marca. E pouco se questiona sua qualidade.

Já submeti meu trabalho em leituras de portfólio. E algumas vezes tentaram mudá-lo, sob a alegação de que ele tinha uma visão muito “clássica”. Sucessivamente perguntei: “Qual o problema nisso? Afinal de contas, o que há de errado com uma visão clássica?”

Eu me classifico como fotógrafo documental. E particularmente tenho certo desdém à visão contemporânea dada hoje à fotografia. Então, acredito que a melhor utilidade deste trabalho é na relação com a documentação. Principalmente porque este é o objetivo central deste trabalho. Documento a minha região e as pessoas com quem vou mantendo contato. É disso que fala a “minha” fotografia. Da relação do fotógrafo com sua própria gente.

Tenho plena convicção que a real utilidade desse trabalho só será reconhecida quando boa parte das coisas que fotografo tiverem se modificado. Há um fotógrafo de Mossoró já falecido, chamado Manuelito. Ele possui um ótimo trabalho. E hoje vemos a importância de sua obra, pois documentou uma região sistematicamente, quando ninguém mais o fazia. Boa parte das fotografias que contam nossa história veio de suas lentes. Isso é inspirador.

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José Bezerra, Sob os Auspícios de Oxóssi, Campo Grande RN, 2015

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José Bezerra, Coleta da Palha de Carnaúba, Mossoró RN, 2014

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Sim, uma qualidade que destaco nessas fotos é a atemporalidade. A visão contemporânea às vezes parece sugerir que se negue propositalmente o que é mais natural, só por um artifício

de novidade, não é?

Concordo. Mas isso é comum, dada a forma como as pessoas são levadas a enxergarem o mundo. O culto ao “feio”, ao esquisito, ao adverso. Buscam qualquer coisa bizarra para terem como mérito

um destaque banal. Trabalhos muitas vezes falsos, que não expressam uma inspiração real. Mas somente algo superficial e confuso, que não nos leva a nenhuma reflexão útil. Mas é preciso

ter cautela, porque as críticas à fotografia contemporânea podem nos fazer parecer ignorantes, recalcados ou até invejosos. Muitos são privados da honestidade intelectual, temerosos das

represálias.

Nas artes plásticas eu vejo muito “conceito” que não passa de exploração técnica. O artista mergulha numa técnica isolada e a transforma em sua “marca”. Temos assim o cara da tela

triangular. O cara da pintura descascada. O cara dos recortes barrocos. O cara que não usa tinta azul. O cara cuja imagem sempre traz um buraco no meio. Vejo na fotografia uma

tentativa de proceder da mesma forma, independentemente do tema.

É comum buscarmos uma identidade. Principalmente em um mundo cada vez mais diverso. Mas há muita coisa falsa, acredito, justamente em decorrência dessa busca desesperada. Poucos realmente

meditam e buscam expressar o que sentem, ou transmitir uma mensagem interessante. Creio que tudo isso que vivenciamos é fruto de uma sociedade superficial. Eles querem mesmo é o sucesso.

E para tal farão qualquer coisa, inclusive produzir arte falsa. Falam em profundidade quando o entendimento é raso. Ao meu ver, uma fotografia deve ser clara, porém profunda. Os diversos

truques alegóricos são mais como fogos de artifício, que parecem bonitos, mas no final só deixam fumaça após muito barulho.

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Trabalhos preguiçosos, por serem imediatistas.

Não me acho melhor que ninguém, mas busco a experimentação na pele. Quando estou fotografando, algumas vezes me peguei triste, num recanto, refletindo sobre a condição do meio que estou a registrar. Mas também já me flagrei sozinho, dormindo sobre uma pedra, no alto de uma serra, olhando para as estrelas. Eu procuro me abrir pra isso; sentir realmente a dor, a alegria. Essa busca não é somente para produzir boa fotografia, mas antes de tudo é para entender quem sou eu e qual o sentido daquilo que estou a fazer, seja na fotografia, na vida em família ou em sociedade.

Acredito que a relação com a arte deva vir da reflexão. Não somente dos textos especializados e do que dizem os curadores. Muitos falam, mas pouco experimentam. Querem o sucesso, mas temem a derrota. Acredito que nossas vidas são um breve lampejo que desperdiçamos se não experimentamos tudo isso.

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José Bezerra, Brumas da Serra, Portalegre RN, 2016

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José Bezerra, Nós e as Pedras, São Rafael RN, 2015

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Rosângela AndradePor Lila Souza

Aos 15 anos ela jogava bola na rua perto da loja de um senhor chamado Kaoru, em uma vila perto do Bairro do Limão. Ele tinha um ‘Foto’ de vila, desses que revelavam fotos, fazem 3x4, bem tradicional. Quando precisou de um emprego foi lá pedir para ele. O senhor oriental lembrava o Sr. Miyagi; ela queria aprender fotografia e ele ensinava a vida enquanto dizia que ela eventualmente aprenderia fotografia. Antes ela aprendeu a limpar balcão e fazer nó de gravata; até que foi para as 3x4 e para as cerimônias de primeira comunhão. Ficou lá por 5 anos e aos 20 começou a trabalhar em um estúdio, de lá foi para carreira solo como freelancer de jornais diários e revistas semanais. Foram 17 anos de fotografia antes de cair no laboratório.

Estamos no Imagicas, seu laboratório que já tem 24 anos. No corredor tem uma exposição do Cristiano Mascaro – uma das pessoas que ela mais trabalha. As fotos que estão lá são de ambientes internos e foram impressas para uma exposição na galeria Imagicas quando o laboratório era em um casarão de 3 andares no Paraíso. Além dessas imagens também tem exemplares de trabalhos do Pedro Martinelli e Maureen Bisiliat, ou seja, passear pelo espaço de trabalho da Rosangela é garantia de esbarrar com obras de grandes nomes da fotografia brasileira.

Dentro do Imagicas funciona o Laboratório do Clube do Analógico, um projeto que tem 2 anos e reúne entusiastas da fotografia de filme P&B. Lá encontramos o Estevam, um associado, fazendo uso das instalações. A Rosângela nos apresenta o espaço com 4 ampliadores, um de 4x5 polegadas. As pessoas ficam sócias e dependendo do “ISO” que escolhem tem uma quantidade de horas por mês para usar. Os sócios torcedores pagam 15 reais por mês para não deixar morrer o processo. ISO 100 paga R$70,00 e usa 3 horas por mês. Tem até o ISO 400.

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Essas cópias (imagens em exposição) são finais ou do processo?

São “sobras” que ficam dos fotógrafos e já que eu as tenho aqui, emolduro e deixo em exposição.

Quais são as outras atividades do clube, além de oferecer um espaço de trabalho para os associados?

Aqui no clube nós fazemos palestras, acabamos de ter uma com o Eustáquio Neves, já fiz com o Mascaro, com o Ed Vigiani. Também tem programação de filmes de fotografia e de fotógrafo, saídas

fotográficas e cursos. Hoje são 24 membros pagantes e atuantes. A ideia do clube é fazer com que as pessoas voltem a se encontrar, conversar pessoalmente e tomar um café. Como no tempo do

filme mesmo, hehe.

E o clube surgiu então dessa necessidade de manter e disseminar a prática da fotografia de filme? Como nasceu a ideia do clube?

Quando surgiu a história do digital eu entrei em pânico, pensei “ferrou, agora vou ter que fazer outra coisa da vida”. Eu trabalhava à beça, comecei como fotógrafa e em um momento de crise na

época do Collor eu resolvi que tinha que trabalhar em um lugar fixo – eu era freela. Essa coisa do lab vem desde essa época que eu fotografava. Eu sempre quis ter um laboratorista que revelasse o

meu trabalho da melhor maneira possível, já achava essa cumplicidade importante e já era muito difícil de conseguir. Então quando eu me vi em um momento extremamente complicado e achei que

precisava arrumar um trabalho fixo, eu pensei “putz, eu sei fazer laboratório”.

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Mas falando sério, era a última coisa que eu gostaria de fazer na minha vida. Não sei por que, mas era. Aí estavam precisando de laboratorista lá no lab do Zé de Boni, que é um mestre da fotografia PB. Eu já tinha aprendido com o Sr. Kaoru, que tinha me ensinado a fotografar e era laboratorista também, mas o Lab profissional eu aprendi com o Zé de Boni, que atendia os melhores fotógrafos. Foi lá que eu conheci e revelei para Maureen Bisiliat, Cristiano Mascaro, Araquém Alcântara, Boris Kossoy e outros. A minha primeira, primeira foto no lab foi do Cristiano Mascaro e isso eu não esqueço. Eu ampliei uma foto dele - lá eu era só ampliadora, eu não revelava filme - e quando terminou o processo de ampliar esse primeiro trabalho do Cristiano eu fiquei muito emocionada, como eu não imaginei que eu fosse ficar; eu pensava “que imagem maravilhosa”.

Mas você ficou emocionada do tipo “que foto incrível” ou no sentido “descobri meu lugar na Terra”?

Isso aí, as duas coisas e tudo aconteceu ao mesmo tempo. Primeiro porque ele é um grande fotógrafo e hoje é mais que um amigo querido também, para mim ele é uma grande referência. Então quando eu via a foto pronta eu pensei “putz, é incrível o trabalho desse cara e eu acho que achei o que quero fazer na vida, nunca mais quero parar de fazer isso”. Estava muito feliz de participar de todo aquele processo. Então eu tive a sorte de ter entrado no momento em que o Zé de Boni estava fazendo o livro dele, aquele ‘Paisagem Mágica’, e ele me convidou para ser assistente dele nesse trabalho; eu trabalhava das 16h às 22h e a gente trabalhava depois desse horário. A gente ficava no laboratório até umas 4-5 da manhã, ele ampliando e eu dando assistência, olhando ele ampliar, passando nos químicos e eu lá, quietinha ali aprendendo.

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Nessa sua primeira foto do Mascaro, como foi esse processo para você? Porque foi uma descoberta, né? Ampliar as próprias fotos é uma coisa, mas entender o que o fotógrafo espera é um desafio, não?

Exatamente, e é uma coisa interessante porque a partir desse momento eu nunca mais tive vontade de ampliar as minhas próprias fotos – e nunca mais ampliei mesmo! Antes de fazer esse trabalho eu sempre mandei em laboratórios, nunca tinha feito um trabalho meu mesmo. Muitas vezes, as pessoas têm essa viagem, né? De fazer o próprio trabalho, e para mim era como se o compositor tivesse feito uma música e eu interpretasse ela para ele, sabe? E sentisse no fundo do meu coração que naquele momento ela é minha também. E eu senti mesmo, na hora que eu passei nos químicos, eu senti que aquela imagem era minha também, e ela era! Eu que decidi os pretos e os cinzas, onde eles iam ficar. E eu lembro que era uma foto de um pessoal jogando futebol na areia. Eu fiquei tão emocionada que eu desfoquei essa foto. Quando o Cristiano viu ele falou assim: Olha, fala para loirinha que ela errou o foco! Eu fiquei muito brava de ele me chamar assim de loirinha, mas ao mesmo tempo eu percebi que ali estava nascendo alguma coisa muito interessante, essa aproximação, essa conexão e que é isso, né? Imagine a responsabilidade que eu tenho de um fotógrafo entregar o projeto dele nas minhas mãos, isso é uma coisa muito forte de segurar, de sentir. Eu não penso só “ah, vou ampliar uma foto”; para mim uma imagem é uma coisa muito preciosa. Muitas vezes, quando estou ampliando, depois de ter passado pela experiência de trabalhar com fotografias de muitos fotógrafos importantes, o fotógrafo passa a não existir mais para mim, eu vejo a imagem e isso me fascina porque é um momento que eu tenho grandes ideias... eu fico muito tempo sozinha no laboratório; o trabalho do laboratorista é muito solitário e ao mesmo tempo não, porque ele te permite viajar nas coisas.

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E tem essa confiança também, né? Você acha que essa coisa de se importar tanto com aquela imagem não vem também de uma confiança que o fotógrafo deposita em você?

Sim, eu acho que essa cumplicidade não acontece no primeiro trabalho. Às vezes você tem uma empatia muito grande com alguém e saca logo o que ele está esperando, tanto é que todo trabalho

que eu faço, antes eu converso muito com o fotógrafo, eu preciso saber o que ele planejou. Não é o porque ele fez daquele jeito, mas o que são aquelas fotos significam para ele; tento conhecer a

personalidade de cada um e, dentro daquilo que ele consegue me passar, eu começo a entender se vai gostar de uma imagem mais, ou menos contrastada, por exemplo. Tudo me interessa; que tipo

de cerveja ele toma, se prefere vinho, se tem algo mais sofisticado; tudo o que ele é está naquela imagem, um universo inteiro.

Seu trabalho então é também transformar essas informações cotidianas em nuances de luminosidade, contraste...

Sim, porque é assim que vocês fotógrafos pensam a imagem. Cada foto tem ali registrado quem o fotógrafo é, sua personalidade, que filmes viu, que músicas escuta, seu capital cultural; é quase um

espelho da vivência. Como disse o Kossoy, é um duplo testemunho: fala de quem foi fotografado e de quem fotografou. O laboratorista se interessa demais por quem fez, porque isso é super

importante para o resultado final. Posso te dar dois exemplos de autores que eu já ampliei e que são completamente diferentes: o Cristiano Mascaro quer o máximo de cinzas possível em todas

as passagens que possa ter a foto dele. O Pedro Martinelli tem uma coisa muito mais contrastada, carregada, forte, mais branco, mais preto.

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O Cristiano é um fotógrafo que além de ser poeta ele tem uma poesia, uma forma de ver e já sabe exatamente o que quer quando fotografa com filmes: ele usa o sistema de zonas e eu revelo de acordo com isso, N-1 quando ele quer muitos cinzas, normal quando ele quer normal e N+1 quando ele queria tirar um pouco dos cinzas e valorizar o preto e branco – o filme já chega para mim com a informação precisa do que ele quer. Eu acho que o fotógrafo e o laboratorista chegam em um ponto que parece um casamento: o laço pode se romper a qualquer momento, mas acho que eu e o Cristiano vamos nos amar para o resto da vida porque tivemos desde sempre uma cumplicidade muito grande. Mesmo agora que ele migrou para o digital, continuamos trabalhando juntos em projetos que ele faz com filme. Essa cumplicidade gera confiança, muitas vezes ele deixou trabalho comigo, foi viajar e eu entreguei para o cliente. Mas isso aconteceu depois de muito tempo de parceria. É muito louco, mas as vezes eu estou no laboratório ampliando alguma foto e penso “ele não vai gostar disso”, “vai reclamar desse contraste”; então volto e começo tudo de novo! Eu consigo saber exatamente o que ele espera, até ouço a vozinha dele na minha orelha! A interpretação pode ser minha, mas ele passa muito por essa parceria com o fotógrafo.

Até porque tem a sua interpretação do fotógrafo como pessoa e essa tradução do que ele é em nuances da imagem, não é?

Exatamente. E eu tenho um enorme respeito! Porque a imagem não é minha, é do fotógrafo, foi ele que captou e eu sou o veículo para fazer essa imagem passar por todo o processo químico e chegar no final como ele imaginou. Então se qualquer fotógrafo chegar para mim e diz que não gostou, eu vou fazer de novo. Vou perguntar o que ele não gostou e tentar entender o que preciso fazer para chegar no que ele quer. Fazemos anotações nas áreas que precisam de mudanças e eu vou fazer de novo. É difícil acontecer isso mas acontece e ninguém está aqui para ser mais do que a imagem. Eu acho que é ela que temos que valorizar.

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A gente sempre fala que os tempos na fotografia de filme são diferentes e eu fico muito curiosa para saber como é isso aqui na sua rotina. Na fotografia digital é tudo muito rápido,

para amanhã ou mesmo para ontem. Como é com você, quanto tempo dura um processo desse de ampliação fotográfica?

Para revelar o filme eu faço geralmente de um dia para o outro, em no máximo dois dias eu entrego o negativo revelado e a prova de contato. A partir daí ele vai escolher as cópias que quer fazer ou mesmo o processo – pode ser que ele decida dar saída digital. Depois disso ele volta com as

informações para ampliação – as vezes ele até faz uma digitalização do negativo e imprime uma cópia para gente começar a conversar, as vezes eu mesma faço uma cópia de trabalho e em cima

delas nós discutimos para definir os caminhos para as cópias finais, que também dependem do uso. Para uma exposição, por exemplo, consigo fazer uma cópia definitiva de como ela vai ficar na parede. Para um livro, tenho que tomar um certo cuidado porque se fechar demais os pretos pode

borrar tudo na impressão e assim vai. O tempo depende. Tudo depende. Muitas vezes eu entro no laboratório e consigo fazer 30 cópias em apenas um dia, de uma forma muito suave, tranquila,

interpretando cada uma. Tem dia que eu entro no laboratório e não consigo fazer nada. Nenhuma. Eu começo a fazer o trabalho e percebo que não consigo, então eu paro tudo, vou embora, faço outras coisas e volto no dia seguinte. Hoje mesmo eu estava fazendo duas cópias de um oratório

e foi uma coisa deliciosa porque eu estou de férias e minha cabeça está muito leve e vazia. Percebi como tudo dá mais certo quando você está descansada. E quando dá certo assim eu vibro muito, de

verdade! Fico imaginando a cara do fotógrafo quando olhar a imagem.

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Eu imagino que é quase uma gestação, né? Isso de saber que existe a imagem, mas ter que esperar para vê-la. E é você que mostra o rostinho do bebê.

Sim, é uma gestação, você está chamado de gestação e eu vejo dessa forma também, chamo de berçário o lugar que deixo os filmes secando. E é muito legal porque eu vejo o trabalho antes do fotógrafo, como o médico que vê a carinha do bebê antes da mãe. Essa é uma grande diferença entre o digital e o analógico. Acho que o fato de quando você fotografa em digital, olha no visor e acha naquele momento que a foto não ficou boa, você deleta. O filme não te permite isso. Mas é muito legal porque primeiro, quando você manda o filme para revelar, você se distancia do seu trabalho. Quando outra pessoa revela o seu filme e te entrega os contatos, houve um distanciamento. Então muitas vezes você olha com outra atenção para as imagens que você deletaria. E além disso você tem que conviver com os seus erros, então acho que a gente aprende mais quando fotografa com filme. Acho que todo mundo que fotografa deveria passar pela experiência de ver seu filme sendo revelado.

Eu sempre penso no filme novo como um caderno em branco – é quase impossível não pensar com carinho em como vou usar esse filme? Dá uma responsabilidade, né? Acho que a gente pensa mais antes de começar o processo todo, não?

É, tem isso também! Mas tem uma coisa no digital que eu adoro, que é o fato de ele ter liberado a fotografia de filme para um outro momento e experiência. Por exemplo: Quando eu abri o Imagicas eu revelava filmes de muitas pessoas, inclusive do Duran. As vezes eram 200 rolos de filme! Isso hoje não acontece mais, e ainda bem! Que bom que a gente pode fazer outras coisas, né? Risos. Imagina receber 200 filmes em um dia para entregar no outro? Eu passava noites revelando filme e era o maior problema para secar tudo. Desde que eu comecei a revelar eu fui conduzindo o meu trabalho para o que eu gostaria de fazer. Eu não queria fazer publicidade, fazia porque não dava para negar trabalho, trabalhei para muitas agências de publicidade e sempre era ‘pra ontem’, entendeu? Era uma coisa tão frenética que eu não conseguia curtir nada disso. Então qual era a minha ideia: eu sempre pensei que eu queria ser laboratorista de no máximo 5 fotógrafos e acho que eu pensei tão forte que isso veio, como num passe de mágicas! (risos)

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Eu só queria fazer exposição, livros; exatamente o que acontece hoje, proporcionado pelo digital. E tem mais: como os profissionais são obrigados a usar a tecnologia digital no dia a dia, vem trabalhar

comigo os amantes e amadores, que são as pessoas que eu mais adoro trabalhar. Amador porque ama o que faz e amante também! Para voltar naquele assunto de como eu fiquei mal quando

começou essa história do digital, eu fiquei pensando que eu ia ter que fazer outra coisa, o Cristiano Mascaro me disse que eu teria que aprender digital, a gente pensava que em dois anos não teria

mais trabalho para mim, fui fazer terapia porque tive síndrome do pânico, comecei a entrar em parafuso pensando no que eu ia fazer da minha vida. Comprei o melhor computador, contratei

um professor para me ensinar Photoshop e quando começaram as aulas eu pensava: não é nada disso que eu quero e acabei me decidindo por não ir para onde a boiada estava indo. Se é isso que

eu gosto de fazer eu vou continuar. Daí aconteceu de pedirem a casa aqui da rua de cima que eu estava. Enquanto eu pensava em montar outro laboratório e no que eu faria da vida mesmo, fui trabalhar com o André lá na Rever, uma escola de fotografia. Montei um laboratório lá e a partir

do momento que mudei, minha cabeça começou a funcionar de um jeito diferente, tive novas ideias e acabei entrando no Sesc Pompéia para dar aulas; de projeto fotográfico e de interpretação

de imagem. Durante as aulas, conversando com os alunos, me veio uma ideia. Era uma turma tão gostosa, a gente queria passar mais tempo juntos, estava todo mundo com aquela sensação de “por

que precisa acabar?” Então pensei em abrir um espaço coletivo. Pois bem, eu moro nessa rua, a 50 passos daqui e sempre namorei essa casa que estamos, que era da avó de uma amiga, que eu vi

adoecer, ficar muito doente mesmo e morrer. Eu sempre pensava em alugar e acabou dando certo, era o momento de montar o laboratório e o espaço coletivo. Montamos uma sala de meditação aqui

embaixo, onde tem um templo zen, que é de onde vem esses barulhos que vocês estão ouvindo, tem uma monja aqui hoje, risos. Então o Bruno Caruso, um baita fotógrafo amador, entusiasta e alguém que é apaixonado pela fotografia, veio ver a casa comigo e me ajudou, financeiramente

inclusive, sem querer nada em troca apenas pelo fato de que acreditava que a fotografia e São Paulo merecia um espaço como esse. Ele botou muita fé na ideia, me ajudava a pagar o aluguel no começo, mas sempre teve a mais absoluta certeza que em 3 meses eu estaria caminhando sozinha

e foi exatamente o que aconteceu. E estou muito feliz, acho que a gente está vivendo o melhor momento da fotografia de filme.

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E como foi esse começo? Já era o Imagicas e o Clube do Analógico? Quem foram os primeiros sócios?

Sabe que foi engraçado? Quando eu ainda estava montando, um italiano me ligou, do nada, perguntando se eu conhecia algum lugar para ele revelar seus filmes. Ele estava se mudando para o Brasil e eu expliquei para ele que se ele pudesse esperar alguns dias usaria o Clube do Analógico. (risos) Ele, a Juliana que foi minha funcionária e a Analu do Queimando Filme, foram os primeiros sócios. O projeto do clube surgiu das duas e hoje ele funciona exatamente como elas pensaram: a ideia é reunir as pessoas o máximo possível e fazer com que esses encontros os leve a pensar no que estão produzindo, sobre o que é a fotografia, a imagem... E acho que estamos sendo felizes nesse propósito. Quando eu pensei em montar o clube a minha grande inspiração foi o Fotocineclube Bandeirantes. A primeira ideia de nome foi “Analógicos Anônimos”, mas aí eu vi que alguém já usava esse nome e decidi por Clube do Analógico. Eu tenho uma proximidade com o Thomas Farkas, Gaspar Gasparian Filho, Lorca, que são do Fotocineclube Bandeirantes, eu revelo para eles, então acabei adotando essa ideia de “clube”.

Você sempre fez só PB? Ou já trabalhou com colorido?

Só PB. Quando eu montei um laboratório PB, e só de PB, tinha alguns outros assim. Eu comecei no mocózinho do restaurante. A gente fez uma coisa bem legal, contratei um arquiteto, o espaço ficou bacana, mas eu sempre pensava que queria a casa toda para mim. Depois de dois anos eu tive a casa inteira; minha amiga vendeu e a pessoa que comprou passou a casa toda para mim. Aí o que eu fiz: tive a sorte de encontrar de novo um “mecenas”, era um banqueiro amante da fotografia, é filho do Ulisses Guimarães, que me foi apresentado pelo Cristiano Mascaro! Minha vida é uma coisa louca, vocês não têm ideia das coisas que me acontecem e dos anjos que aparecem sempre que eu preciso de ajuda. Parece que eles vêm para me afirmar que eu não posso sair desse caminho, tenho que ficar aqui, fazendo o que eu faço! (risos)

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Você também acredita que são sinais do universo para te mostrar que está no caminho certo?

Sim, super acredito! Eu tenho o coração muito aberto e eu acho que as pessoas acreditam muito no que eu faço e no amor que eu tenho por isso, acho que isso facilita tudo, né? Bom, mas daí o que eu fiz quando me vi com todo aquele espaço, naquele casarão de 3 andares com um aluguel alto para pagar? Montei uma galeria para expor o trabalho de quem ampliava comigo. Eu trabalhava

com Cristiano mascaro, Pedro Martinelli, Thomas Farkas, que mais que eu ia querer? (risos) O que aconteceu? Todos os jornais vieram fazer entrevista, eu tinha todo o tempo lá a TV cultura, jornais.

Teve outra vez que as coisas ficaram esquisitas também, eu estava quase tendo que fechar e apareceu aqui um representante da Igreja Messiânica me pedir um orçamento de 50 mil cópias de um mesmo negativo com o retrato do Meishu-Sama, grande líder da religião. Eu tinha participado de um curso com o João Musa e lá estava o jornalista que fotografava para essa igreja, a gente se

conheceu, ele foi lá conhecer o meu laboratório, voltou com um ministro da igreja como quem não quer nada, e eu lá, na minha. Aí num belo dia, depois de um mês mais ou menos da visita do

ministro ele me ligou e pediu esse orçamento. Era a inauguração do solo sagrado na represa de Guarapiranga e ele precisava de um orçamento de 30 mil cópias e outro de 50 mil cópias – quando

ele me disse que seriam do mesmo negativo, eu fiquei chocada e ainda disse que seria melhor e mais barato fazer em uma gráfica, porque com cópia ficaria mais caro. Ele me explicou que tinha que ser fotografia e tinha que ser com uma pessoa que tivesse respeito pelo trabalho e que fosse

fazer aquilo com muito cuidado, ele achou que eu era a pessoa ideal para isso e me pediu esse orçamento. Era a foto que fica no altar e seria entregue para algumas pessoas. Passei o orçamento

e depois de uns 15 dias ele me ligou que o orçamento de 50 mil tinha sido aprovado. Fiquei completamente assustada, pedi um contrato em que ele pagava 50% adiantado e eles aceitaram! Fui lá e ele me deu um cheque de metade do valor. E assim foi, eu contratei uma equipe porque

tinha que entregar em 3 meses. Coordenei todo o processo e 10 funcionários faziam as cópias. Retoquei uma por uma das 50 mil cópias e entreguei todas as sobras porque eles tinham que

queimar. Terminei em 2 meses, foi uma loucura. Isso salvou a minha pele em 1995 ou 96, não me lembro muito bem. E até hoje eu tenho um respeito danado por essa igreja. Sou Zen-budista mas

tenho um carinho grande por eles e trabalhamos justos até hoje; depois foi tudo fichinha, 10 mil, 20 mil. (risos) Eu tenho uma foto dessa do Meishu-Sama e ela me acompanha em todos os lugares que

eu vou.

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Vamos fazer uma cronologia da sua carreira? Já fiquei perdida aqui! (risos)

Vamos! Eu comecei a trabalhar com o Zé de Boni em 1989, abri o Imagicas em 93 e o Clube do Analógico em 2014. Mas tem um monte de gente que vem para o mundo plantar árvores, escrever livro e fazer filhos, eu vim para o mundo para fazer laboratório. (risos) Já fiz tantos! Acho que é isso, essa é a minha função aqui na Terra.

Acho que é isso, Rô. Esto aqui completamente encantada com a sua história e com tudo o que falamos aqui.

Olha eu acho que se eu te disser você não vai acreditar, mas no meu trabalho, todos os dias eu me emociono. Todo dia. E é isso que me faz seguir, eu amo isso e cada dia amo mais. Acho que meu trabalho me completa totalmente, eu fico feliz, danço no laboratório, faço milhões de coisas de felicidade. Hoje eu estou muito feliz, vocês me pegaram em um dia muito feliz. O ano passado foi um ano de grandes projetos; comecei em fevereiro ampliando muita coisa do German Lorca; todas as cópias que eles vendem na FAZ. Na sequência eu fiz do Fernando lemos, que é um trabalho lindo, lindo. Para mim ter a oportunidade de ter nas minhas mãos o trabalho desses caras, eu acho que só tenho a agradecer. Não quero mais nada além da oportunidade de conviver com essas obras e essas pessoas que tem a mesma paixão e respeito que eu tenho pela fotografia. É uma delícia! É uma nobre função de trazer as pessoas para cá, para o meu mundo, e dividir com elas tudo o que eu sei.

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Dessa nossa conversa eu levo um aprendizado: dos momentos difíceis que geram encontros com pessoas especiais e transformações incríveis. O que você deixa de recado para quem

estiver lendo a gente e passa por um momento de pensar: será que vale a pena?

Sempre vale a pena! Eu acho que tudo o que você coloca o coração vale a pena. A primeira coisa que você tem que se perguntar é: você gosta disso? Seu coração está aqui? Então vale a pena. Vale

sempre a pena. Uma pessoa mandou um texto para mim e eu quero dividir com vocês.

“Quando estiver sozinho, então pergunte a você mesmo: esse caminho tem coração? Se tem, ele é bom. Se não tem, não te serve. Um caminho é só um caminho.”

É mais ou menos isso. Obrigada.

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Paris em Preto e BrancoPor Marco Cavalheiro

Paris tem uma relação intensa, histórica, visceral, com a fotografia. É uma das cidades mais fotografadas no mundo, uma mistura instigante de clichés e inovações constantes. É talvez por esta sensação de familiaridade criada pela sua representação na pintura, cinema e fotografia que ela atrai tanta gente e se torna uma segunda casa sentimental para artistas que romantizam uma vida regada a absinto e aventuras em algum sótão com vista para Montmartre. A vida boêmia e a efervescência cultural dos anos vinte é um dos temas mais caros a gerações nostálgicas de épocas nunca vividas, como bem explora Woody Allen no seu Meia Noite em Paris. E para quem gostou do filme, uma sugestão de leitura para se aprofundar nos detalhes daquela época é o livro de William Wiser, Anos Loucos.

A fotografia, ainda na sua juventude rebelde, dialogava intensamente com outras artes, através de personagens tão interessantes quanto suas obras. Flanar pelas ruas desta cidade incrível pelas imagens de Bresson, Doisneau, Willy Ronnis, Brassai ou Kertész é quase um rito de passagem para os fotógrafos. Em algum momento, com maior ou menor intensidade, estas fotos de uma Paris em preto e branco acabam se fixando no imaginário coletivo. Podemos ficar apenas na superfície destas imagens, ou mergulhar no pensamento individual de cada um destes fotógrafos que tiveram a cidade como inspiração e tentar entender como ela moldou sua forma de ver o mundo. Conhecer como cada artista criou sua própria Paris é muito interessante, e abre novas perspectivas de fruição de suas obras.

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Desde cedo a cidade luz foi o cenário de fotos que entrariam para a história. Boulevard du Temple, feita em 1838 por Daguerre, é considerada uma das primeiras imagens onde pessoas aparecem. Ela mostra uma avenida vazia, apenas um homem e um engraxate. Como o tempo de exposição

era elevado, e o movimento das pessoas não era registrado, apenas estes dois ficaram na cena. A tranquilidade era ilusória, mas o avanço da técnica era real. Se até 1850 o daguerreótipo era

dominante, a partir de 1851, ano da criação da Societé Héliographique, a fotografia toma novos e importantes rumos. Um dos projetos desta associação fotográfica (considerada historicamente como

a primeira do gênero) foi o Missions Héliographiques, projeto para fotografar os monumentos da cidade. Nota-se então que fotografar Paris se mistura com a própria história da fotografia! Um nome

que se destaca neste grupo de fotógrafos é o Gustave Le Gray, considerado como figura central da fotografia francesa nos anos 1850. O jornal La Lumière, publicado pela associação, foi importante

na disseminação das discussões sobre o meio.

A cidade então se torna o palco de experimentações técnicas e estéticas. E podemos acompanhar suas mudanças culturais e urbanísticas ao mesmo tempo que acompanhamos a evolução técnica

e estética da própria fotografia. Com a popularização dos retratos e estúdios, fotógrafos se tornam também quase celebridades, e clientes sonham em ser retratados por figuras como Nadar e Disdéri.

E com a possibilidade de reproduzir as imagens, as primeiras revistas começam a aparecer, e em 1886 o Le Journal Illustré publica a primeira reportagem fotográfica.

Podemos, com as imagens do Charles Marville, acompanhar a transformação da cidade, com as ruas medievais dando espaço a enormes avenidas, entre outras mudanças promovidas pelo Barão

Haussmann. E continuamos a percorrer a história da cidade através do trabalho de documentação da Velha Paris que Eugène Atget realizou durante sua vida, sem reconhecimento ou sucesso. Só

no final de sua vida, nos anos vinte, que ele recebe atenção principalmente de integrantes do movimento surrealista, como Man Ray. Em vida nunca teve seu trabalho exposto, mas seu legado foi

preservado principalmente por Berenice Abbott, detentora de grande parte de seu acervo.

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Marco Cavalheiro, Paris, 2013

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Neste período de grandes mudanças sociais e tecnológicas, a fotografia estabelece uma presença cada vez mais forte na sociedade, já que com as novas mudanças técnicas o meio deixa de ser algo de difícil acesso, e se torna parte do dia a dia.

O fim da Primeira Guerra Mundial transforma Paris em uma espécie de modelo de modernidade, atraindo muita gente com sua liberdade política e religiosa. Esta mistura de locais e estrangeiros sempre foi uma característica da cidade, e fotógrafos franceses como Henri Cartier-Bresson, Pierre Boucher, René Zuber, Florence Henri entre outros convivem com artistas de outros países, que encontrarm refúgio – existencial ou político – na cidade. O mundo está em Paris. Erwin Blumenfeld, André Kertész, Brassai, Man Ray, Berenice Abbot, entre vários outros, encontram na cidade o local perfeito para expressar sua voz e sua visão.

A cultura dinâmica e modernista dos anos 20 aos poucos dá espaço para novas mudanças, e após a Segunda Guerra Mundial o movimento da Fotografia Humanista, através de nomes conhecidos, como Bresson, Doisneau, Brassai, Willy Ronis e outros menos famosos, como Marcel Bovis, Eric Schwab, André Papillon e René-Jacques, por exemplo, começa a retratar o mundo e as novas realidades. Uma visão um tanto mais poética da vida, com ênfase nas pequenas coisas, no cotidiano, na nossa existência, em contraponto ao terror da guerra. E a vida nas ruas como grande tema, e Paris como pano de fundo.

E é justamente nestas ruas, intensamente fotografadas por todos estes mestres, que eu intensifiquei minha paixão pela fotografia. Paris, com todos seus encantos e, desencantos também, sempre influenciou minha forma de ver e consumir arte. E minha paixão pela fotografia em preto e branco deve muito a estas imagens.

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Sempre me perguntei se existe necessidade para ainda outra foto de Paris. Se a cidade não se cansou de exibir sua intimidade para estranhos em busca de fragmentos visuais que servirão de

troféus pessoais nesta caça desenfreada por uma foto inédita, ou pelo menos, diferente. E a minha curiosidade aumenta ainda mais quando penso na possibilidade de uma foto de Paris se tornar

apenas isso, um registro vazio, quase obrigatório, em um mundo cada vez mais saturado de imagens sem muito sentido.

Talvez o que mais me atraia na cidade seja justamente esta dualidade entre o cliché e a possibilidade de algo novo. Fotografar lugares exaustivamente registrados me fascina a ponto de

criar uma aura de descoberta a cada nova foto, a cada nova ruela descoberta por acaso, a cada novo reconhecimento de um lugar já fotografado, mas nunca sentido. Talvez neste jogo ingênuo de

descobertas pessoais e busca da criação de uma relação individual com a cidade que me encontro cada dia mais interessado por sua história e segredos.

Caminhar sem rumo e se perder na cidade. Encontrar lugares solitários, voltar aos lugares quando mais ninguém está por lá, buscar momentos de vazio e plenitude. Fotografar a cidade sem querer dominá-la, sem querer a posse simbólica. Apenas buscando novas formas de ver e sentir um lugar

que me acompanha desde sempre.

Eu busco em Paris o silêncio, no meio do caos urbano. A solidão entre milhares de pessoas. A certeza de ver e fotografar algo pela primeira vez, sempre. Mesmo que já tenha sido exaustivamente registrada, a cidade sempre se mostra única, inesperada e incontrolável. E se for em preto e branco,

melhor ainda!

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Bombay BeachUm Pesadelo Americano

Por Marcio Lambais

A paisagem no sul da Califórnia, nos Estados Unidos da América, é desértica e foi colonizada a duras penas. A necessidade de água para a agricultura levou à transposição do Rio Colorado, cujos canais romperam em 1905, resultando na formação de um imenso lago chamado Salton Sea, com aproximadamente 900 km2 de área. No entorno do lago, vários resorts de desenvolveram, e tornaram-se bastante badalados em meados dos anos 1950. Era o “milagre no deserto”. Água em abundância. As celebridades de Hollywood não se contentavam com Palm Springs e adquiriam terrenos sobrevoando a área do entorno do lago em pequenos aviões. Ao longo do tempo, a salinidade do lago foi aumentando e poluentes provenientes das áreas agrícolas do entorno se acumularam, resultando em um dos maiores desastres ecológicos do Estados Unidos. A salinidade do lago é hoje maior do que a do mar. As praias estão cobertas de uma espessa camada de ossos de peixes que não sobreviveram à poluição e salinidade. As pequenas cidades às margens do lago sucumbiram. Bombay Beach é uma delas. As casas foram simplesmente abandonadas; algumas ainda com a mesa do café da manhã arrumada. Parece que as pessoas saíram subitamente, com se fugissem de algo. Uma cidade fantasma, com o cheiro de morte ainda no ar. Em trailers e habitáculos modestos, algumas pessoas ainda teimam em (sobre)viver ali, a maioria às custas do serviço social do governo, pois não há trabalho na região. Pessoas vivendo à margem da sociedade, muitas “off the grid”, no meio do deserto. Bombay Beach é o auge da decadência de um “sonho americano” e carrega as marcas de um desastre ecológico sem precedentes. Mas, o pior ainda está por vir. O lago está secando, e irá desaparecer em poucos anos se a seca perdurar. A lama tóxica, rica em pesticidas e metais pesados, formará uma nuvem de poeira que cobrirá a cidade de Los Angeles, com consequências imprevisíveis. As paisagens são surreais e as imagens capturam o silêncio e o peso do ar que paira sobre o que restou de um sonho.

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Marcio Lambais, Bombay Beach, 2014

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Com a Palavra, Cristiano Mascaro

Tenho quase certeza de que as duas perguntas mais frequentes que me fazem nas palestras e conversas sobre fotografia de que participo são:

- Que filme você usa?

- Porque você fotografa sempre em preto e branco?

À primeira questão, hoje obviamente raríssima, a resposta é fácil. Com todo cuidado e carinho necessários à operação, sempre coloquei em minhas câmeras a latinha amarela com letras verdes do filme Tri-X. Um filme excepcional que, com a sensibilidade de 400 ASA, sempre me permitiu fotografar em locais de baixíssimas luzes e até em uma iluminadíssima praia ao meio-dia. Isto sem falar de seu grão, gorduchinho, espesso, palpável das incríveis cópias em papel fotográfico que durante muitos anos a Rosângela Andrade ampliava para mim.

À segunda questão, confesso que já respondi de inúmeras maneiras diferentes, penso que nenhuma é completa ou corresponde à verdade e acho que vou continuar divagando. Vejam, em meu tempo de descobertas, basicamente na década de 1960, o universo preto e branco era predominante na imprensa. No cinema nem tanto, mas os filmes que me interessavam eram em preto e branco, principalmente os europeus. Os italianos (“Oito e Meio” de Federico Fellini), os franceses (“Lola” de Jacques Demy), os poloneses (“Cinzas e Diamantes” do Andrzej Wajda) todos contemporâneos na Nouvelle Vague movimento de vanguarda liderados por François Truffaut e Jean Luc Goddard. E no Brasil, havia o Cinema Novo em que os filmes de Glauber Rocha, Rui Guerra, Nelson Pereira dos Santos e tantos outros eram todos, igualmente, em preto e branco.

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Mas o golpe fatal acertou-me em cheio quando abri o livro “Images à la Sauvette” (Imagens não autorizadas ou às escondidas) de Henri Cartier-Bresson. Sofri um choque ao ver aquelas fotografias tão diferentes de todas as outras que eu já havia visto. As cenas mais banais do cotidiano tornadas luminosas através do filtro mágico do olhar do fotógrafo. E eram todas no despojado preto e branco o que as tornavam, certamente, uma representação grandiosa da vida comum.

Impressionado por aquele universo descobri Brassaï, André Kertész e Robert Frank o que bastou para que eu mergulhasse naquele universo abstrato do qual jamais consegui ou quis emergir. A ausência das cores talvez represente uma redução ou mesmo uma limitação entre tantas outras que enfrenta o fotógrafo diante da observação da vida real. Mas certamente é aí, nestas limitações, que residem a força e a intensidade das imagens.

Passaram-se os anos, as tecnologias sofreram avanços inimagináveis, novas formas de representação surgiram, mas jamais me vi seduzido por estas transformações. Sei que tive de abandonar o meu Tri-X e trocá-los por cartões de memória, mas minha forma de ver, sentir e representar o mundo continua a mesma. Ainda sob o impacto das imagens em preto e branco daqueles grandes mestres para os quais bastou a força transfiguradora do olhar.

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