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GREG WEISMAN

TRADUÇÃO

EDMUNDO BARREIROS

O VIAJANTE

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Aram desceu quase até o fim da prancha, saltou para o lado e aterrissou na praia íngreme. Aquilo não era nenhum porto, mas uma pequena baía natural na costa de Desolação que permitia que o Andarilho das Ondas navegasse pratica-mente até a margem. O barril e os caixotes já estavam na areia, ladeados por Makasa Flintwill e o pai de Aram, o capi-tão Greydon Thorne.

Greydon tinha pouco mais de um metro e oitenta. Era magro, mas bem musculoso, com cabelo escuro e barba cer-rada, que apenas começavam a ficar grisalhos para combinar com o tom de seus olhos cinza-claro. A ponte do nariz fazia um zigue-zague por ter sido quebrada várias vezes. Mas os olhos cinza sorriam, e os cantos da boca se ergueram simulta-neamente quando Greydon viu o filho surgir.

– Está pronto? – perguntou ele a Aram com um sorriso no rosto.

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– Para quê? – respondeu Aram, carrancudo. Como sempre,quanto mais o pai sorria, menos inclinado ficava Aram a retribuir.

Mas, naquele momento, o capitão não pareceu perceber. Ele sorriu com sinceridade, virou a cabeça e acenou em apro-vação para Divindade, que observava a bordo da embarcação. O imediato tocou três vezes o sino de ferro do navio. Aí todos os olhos, exceto os de Aram, se viraram para olhar fixamente na direção das árvores da floresta que chegavam até a beira da praia.

Os olhos do próprio Aram iam e vinham entre o pai, Makasa e a floresta. Aram percebeu que Makasa estava bem armada. O escudo dela – um círculo de aço coberto com cou-ro cru absorvente de impacto – estava preso às suas costas; um trecho de corrente de ferro, cruzado várias vezes diante do peito; o sabre estava ao lado; e ela segurava relaxada um com-prido arpão de ferro na mão esquerda, com a extremidade sem ponta repousando na areia. Em contraste, o sabre onipre-sente do pai estava ostensivamente ausente de seu cinto, mas ele se apoiava em uma clava de guerra de estrelenha e ferro que chegava facilmente ao seu umbigo. De repente, Aram se sentiu despreparado, como se estivesse nu. Sim, ele tinha o ca-derno de desenho, porém desejou, em vez disso, ter seu sabre.

Nesse momento, Aram sentiu, mais do que ouviu, um movimento nas folhas. Alguma coisa surgiu da floresta para as rochas que separavam a mata da areia. E não só alguma coisa, mas várias coisas. Pareciam cães enormes, de pelo marrom, de-talhes amarelos e pintas pretas, parados não exatamente eretos sobre duas pernas, usando roupas esfarrapadas de lã grosseira

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guarnecidas com fragmentos de armaduras de ferro. E carre-gavam armas. Muitas e muitas armas. Maças, lanças, machados e facões, e mais maças, todas “decoradas” com farpas e pregos de ferro pontiagudos.

– O que você está vendo? – perguntou Greydon.– Gnolls – respondeu Aram, ofegante. Ele normalmente

odiava ser testado pelo pai, mas, naquele instante, Aram esta-va fascinado demais para se lembrar de ficar ressentido. Ele ouvira rumores sobre os monstros desde que era criança em Vila Plácida, mas Aram nunca vira um gnoll antes. Aqueles batiam exatamente com a descrição de Greydon da espécie, embora o bom capitão tivesse deixado de mencionar o tipo de medo que eles inspirariam.

Greydon tirou o casaco de couro surrado e deixou que caísse na areia. Guardou a bússola que pendia do pescoço em uma corrente de ouro para dentro da camisa branca. Em se-guida, deu um passo à frente e, com em um arranco, jogou a própria clava pesada em cima do ombro. Em resposta, os gnolls… riram. Ou, pelo menos, pareceram risos para Aram. Os sons se elevaram e se transformaram em uma risada assus-tadora; em seguida, chegaram a um crescendo e viraram risos espalhados, e depois um arquejar pesado, como o cachorro da família, Fuligem, após uma corrida pelo Lago Plácido, em casa.

O maior gnoll, uma fêmea, se adiantou. Embora em altura tivesse apenas alguns centímetros de vantagem em relação a Aram, ela era sólida como um carvalho, com ombros maciços, focinho curto e um sorriso de dentes afiados e pontiagudos.

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Ela tinha orelhas pontudas, uma perfurada por uma pena, a outra com uma pequena argola de ouro. E trazia uma clava de guerra maciça parecida com a de Greydon – lunalenha refor-çada com ferro – e, diferente das clavas de seus companheiros gnolls, a dela não tinha saliências pontudas de metal.

– Cackle aqui é a matriarca do clã Cauda Implacável – sussurrou Greydon. – Ela e eu já nos enfrentamos antes.

– E viveram para contar? – perguntou Aram desconfiado, captando o sorriso matreiro de Greydon e a carranca raivosa de Makasa.

Cackle avançou num círculo para a esquerda. Greydon se adiantou e foi num círculo para a direita. Aram viu Makasa erguer o arpão a um centímetro do chão, mas o capitão tam-bém percebeu e sacudiu a cabeça levemente, fazendo com que Makasa baixasse o dardo de ferro farpado de volta à po-sição de repouso.

Aram tentou engolir, mas sua boca estava seca como ter-ra. Tentou respirar, mas parecia que tinha esquecido como. Ele não gostava muito do pai, porém não queria que Greydon Thorne morresse lutando com aquele monstro. A ansiedade do embate fez o coração bater acelerado no peito – e ainda assim ele estava despreparado quando os dois combatentes de repente correram na direção um do outro, atacando em arcos com as clavas de combate.

As duas clavas se atingiram com força de quebrar os ossos. O reforço de ferro das armas retiniu mais alto que o sino do Andarilho das Ondas. Greydon girou e golpeou outra vez, mas

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Cackle saltou; suas poderosas pernas traseiras lançaram-na aci-ma do arco horizontal do ataque dele. Ela baixou a clava ao descer, mas o capitão Thorne se esquivou e rolou para a frente, deixando que a arma dela atingisse o chão vazio com força sufi-ciente para mandar areia voando em todas as direções – inclu-sive na boca aberta e nos olhos arregalados de Aram. O garoto engasgou, tossiu e cuspiu. Seus olhos se encheram de água, e quando ele os fechou apertados e passou as costas da mão no rosto, perdeu brevemente o andamento da luta.

Aram piscou várias vezes, esperando ouvir o som abafado de madeira atingindo carne ou um grito alto de angústia, mas só escutou outro golpe de clava contra clava como um sino. Finalmente, sua visão limpou, e ele viu o pai golpear para o alto com a clava de ferro, errando a mandíbula de Cackle por frações de centímetro. Ela cambaleou um passo para trás, mas se recuperou depressa e atacou com a própria clava em uma tentativa de afundar o peito de Greydon, antes que ele pudesse baixar a clava e bloquear. Só que o capitão Thorne era rápido demais para a gnoll, e a clava que ele baixou não apenas atingiu a dela: estilhaçou a arma da matriarca e se partiu ao meio.

Os dois guerreiros estavam a pouco mais de um metro de distância, ainda segurando os cabos de suas armas quebradas e inúteis, respirando com dificuldade e olhando fixamente um para o outro.

– E agora? – tentou sussurrar Aram para Makasa, mas sua boca seca com areia só crocitou de forma incompreensível.

Makasa, ainda assim, pediu silêncio irritada.

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Aí o capitão Greydon jogou a cabeça para trás e riu. A risada pareceu ecoar às costas. E Aram virou bruscamente a cabeça para ver Durgan Divindade gargalhando do navio. Virou a cabeça de volta para estudar Cackle. Os lábios dela se afastaram para emitir um urro baixo, que rapidamente se transformou no som agudo que nitidamente tinha dado à ma-triarca seu nome. Logo, todo gnoll na praia estava rindo e assoviando junto com Greydon e Cackle e toda a tripulação do Andarilho das Ondas. Na verdade, apenas o atônito Aram e a implacável Makasa pareciam não participar da piada.

Cackle deu um tapa nas costas de Greydon – forte, mas amistoso, e não diferente dos tapas que Aram recebia de Di-vindade – e apontou o que restava de sua clava para Aram. O capitão Thorne sussurrou algo no ouvido dela, e Cackle balançou a cabeça afirmativamente enquanto redobrava a histeria. Aram sentiu calor subir pelo rosto e, ao ver o rubor raivoso do filho, o pai de Aramar Thorne engoliu o que res-tava do próprio riso. O rosto entristeceu-se por um momento antes de encobrir uma dor desconhecida para Aram e reco-brar uma expressão alegre.

– Vamos negociar? – exclamou ele com exuberância.– Sim, homem! – respondeu a gnoll em todo o volume, en-

tre risadas contínuas e o eventual olhar divertido na direção de Aram. Ela apontou na direção de seu clã, que trouxe grandes pacotes embalados em folhas gigantes de gunnera. Um macho de aparência perigosa com múltiplos brincos nas orelhas, nas pálpebras, na narina e nos lábios pôs um dos pacotes em cima

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do barril e desembrulhou cuidadosamente a folha grossa, mas flexível, revelando tiras compridas de carne-seca defumada.

– Carne-seca de javali – disse Cackle. – Melhor a Cauda Implacável faz. Dezesseis pacotes. E doze de bacalhau escama--de-pedra.

O capitão Thorne acariciou a barba enquanto Cackle tamborilava com um punho parecido com uma pata sobre o barril e ouvia o barulho da salmoura se agitando em seu inte-rior. Aram observou a boca dela se encher de água, com baba literalmente pingando na areia.

– Isso é que tô pensando? – perguntou ela com avidez.Greydon balançou a cabeça afirmativamente.– É, sim. – Em seguida, ele abriu o caixote de cima e reti-

rou uma lâmina velha de machado. – E temos quatro caixotes de esporões prontos.

Cackle sorriu com todos os dentes.– Espinhos de Thorne – disse ela e riu. Só que os olhos

dela traíam outra coisa, um nervosismo repentino que Aram percebeu, mas não conseguiu entender.

O pai dele tinha um controle mais firme da situação.– Bem, você vê que trago grande tesouro para comercia-

lizar. Mas 16 e 12, você sabe que não é suficiente, Matriarca.Ela tornou a urrar, e Aram viu Makasa ajustar a pegada

no arpão. Mas o urro de Cackle terminou em um grunhido e um aceno, e logo mais pacotes se materializaram da floresta.

– Vinte e vinte – gritou Cackle. – Não mais. Final.– Fechado! – exclamou o capitão, e todo mundo, dos dois

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lados do acordo, comemorou. Até Makasa vibrou, e mesmo Aram se viu empolgado pelo momento – muito atrasado. Seu viva chegou um ou dois segundos depois do resto, causando mais embaraço quando Cackle apontou para ele, riu e perguntou:

– Seu garoto é meio lento?Greydon olhou para Aramar e disse:– Não lento, só novo.Aram cruzou os braços diante do peito e fechou a cara,

enquanto o pai dizia:– O que foi? Novo não é ruim.O filho resistiu à vontade de revirar os olhos para o pai,

mas em vez disso sacudiu a cabeça.O barril foi aberto, e o fedor dos ovos em conserva quase

fez Aram vomitar, deixando até a estoica Makasa um pouco verde. Mas Cackle e os Caudas Implacáveis urraram de alegria. A matriarca deu um tapa para afastar a pata do macho grande e com brincos e levou a mão ao interior da salmoura. Suas garras emergiram segurando delicadamente o primeiro ovo. Ela o er-gueu como se fosse um diamante para ser admirado. Em segui-da, jogou-o inteiro no papo. Sua cabeça se revirou de alegria com o sabor. Aram esqueceu o enjoo e encarou, assombrado.

– Para os gnolls, esses ovos são uma bela iguaria – disse Greydon. Aram se encolheu. Ele não percebera o pai chegar por trás dele. (Para um homem grande, Greydon Thorne ti-nha pés surpreendentemente leves.)

– Posso ver – disse Aram, tentando fazer com que a voz pa-recesse fria e desinteressada. Mas seu desejo de se distanciar do

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pai estava lutando uma batalha inglória contra a própria curio-sidade do menino. Aram observou os gnolls abrirem os quatro caixotes, observou as exclamações de admiração pelas lâminas quebradas, pregos e ferraduras velhas, e antes que conseguisse impedir, estava lançando um olhar inquisidor para Greydon.

– Os Caudas Implacáveis não têm fundições – disse Greydon enquanto enfiava os braços nas mangas do casaco de couro, movimentando-se para ajeitá-lo até que os ombros pare-ceram estar certos. – Não têm nenhuma forja como seu amigo Glade. – Aram não ligou para Greydon Thorne se referir a Robb Glade como seu “amigo”, mas deixou passar dessa vez enquanto o pai prosseguia: – Mas eles são capazes de martelar um prego, lâmina de machado ou ponta de faca em uma maça de guerra e triplicar o dano que podem causar em seus inimigos. Para esses gnolls, aqueles pedaços de ferro valem seu peso em ouro.

Aram ergueu a sobrancelha.– Então você os está enrolando. Enganando-os a aceitar

lixo inútil em troca de… – Nesse momento, ele fez uma pau-sa, confuso. Em troca de quê? Carne-seca de javali? Bacalhau seco? Parecia a Aram que aqueles quarenta pacotes mal valiam o barril de ovos nojentos.

– Ninguém está enganando ninguém – disse Greydon, com mais paciência do que Aram provavelmente merecia. Distraida-mente, o capitão do Andarilho das Ondas puxou a bússola e a corrente de baixo da camisa e deixou que caíssem sobre o peito. Ele disse: – É isso o que estou tentando lhe ensinar. É o que você negocia com quem. O lixo de um homem é o tesouro de um gnoll.

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– E a carne defumada de um gnoll?– É como um tesouro para os centauros, taurens e java-

tuscos de Ponta dos Esfoladores.– Javatuscos comem carne-seca de javali?– Na verdade, alguns comem. Mas eles ficam mesmo é

com o bacalhau.Aram sacudiu a cabeça com algo parecido com admiração.– Você vai ganhar uma fortuna com essas trocas, não vai?Como admiração ao pai não era uma das reações típicas

de Aramar, Greydon deu um sorriso satisfeito, aproveitando até o menor fragmento do que o filho estava oferecendo.

– Uma pequena fortuna – disse o capitão, dando de ombros.– Então se tudo isso foi tão amistoso e honesto, por que

você e Cackle tiveram de lutar?– Gnolls não gostam de humanos. Provavelmente por-

que a maioria dos humanos não gosta de gnolls. Cackle não podia comercializar comigo diante de seu clã antes que eu demonstrasse ser digno de respeito.

– Então... Tudo isso foi um show?– Sim e não. Você precisa ver as pessoas por quem elas

são, Aram, não por quem os velhos de Vila Plácida o ensina-ram a pensar que elas são. Gnolls são uma raça guerreira. E uma raça guerreira hostil. Até os filhotes sabem a diferença entre uma pantomima e uma batalha de verdade. Então nós nos jogamos nela. De verdade. Mas você vai perceber que não havia esporões, farpas nem “espinhos” em nenhuma das clavas de combate.

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– Sim, mas elas ainda eram clavas de combate! Você ain-da poderia ter sido morto!

– Não me diga que você se importa – disse Greydon, ainda sorrindo.

Aram apenas pareceu irritado.– Não quero que você morra, Greydon. – Aram sabia

que o pai odiava quando o filho o chamava de Greydon. – Eu só quero ir para casa.

Greydon suspirou.– Eu sei, filho. Mas é aqui que você precisa estar neste

momento. – Ele deu um tapinha com delicadeza no ombro do filho e foi se juntar à gargalhante Cackle.

Só então Aram percebeu que Makasa estava por perto e tinha visto – e provavelmente ouvido – toda a conversa. Aram a encarou de volta. Em seguida, ela virou o rosto, mas apenas por um segundo, Aramar achou que ela parecia quase triste.

Eles ficaram na praia, celebrando com os gnolls a noite inteira. Divindade e o resto da tripulação desceram com um barril de Cerveja Trovão e se juntaram à festa. O capitão Thorne permitiu que um pacote de carne-seca de javali fosse aberto e dividido com a tripulação e os gnolls – embora Greydon tenha se assegurado com um leve aceno de cabeça para Mose Canton, intendente do navio, que os outros 39 pacotes esta-vam em segurança a bordo.

Curioso agora para experimentar esse “tesouro”, Aram

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acompanhou o progresso de Jonas Cobb, cozinheiro do navio, que caminhava entre a tripulação e os gnolls, servindo provas. O velho Cobb sem dúvida não tinha pressa – e tomava uma rota estranhamente sinuosa em meio à multidão – oferecendo tiras de carne-seca para os gnolls que se escondiam entre as árvores. Aí Aram viu Cobb desaparecer no interior da floresta. Ele sumiu por dois ou três minutos, enquanto a maior par-te do resto do grupo estava concentrada na distribuição bem animada de cerveja por Divindade. Aram estava levantando para expressar preocupação pelo velho cozinheiro quando a cabeça branca de Cobb reapareceu a uns dez metros de onde ele havia entrado na mata. Ele continuou sua distribuição e acabou chegando a Aram.

Aram experimentou uma tira de carne-seca. Era tão dura que ele achou que ia arrebentar a mandíbula tentando arrancar um pedaço. Mas, depois que estava na boca, ele teve de admitir que era temperada e saborosa, e a menor mordida – não importava com que determinação ele mastigasse – du-rava quase meia hora. Agora o menino podia ver seu valor. Ou prová-lo e compreendê-lo, pelo menos.

Enquanto mastigava, ele pegou o caderno de desenho – um pequeno volume com capa de couro e páginas de perga-minho originalmente em branco que ele mantinha embalado em tecido encerado na mochila. Tinha sido presente de seu padrasto, Robb Glade, e custara um bom dinheiro ao ferreiro. Facilmente dois dias de trabalho, se não uma semana inteira. Era o bem mais precioso de Aram, em parte porque ele amava

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desenhar, amava mais que quase qualquer outra coisa. Mas também porque o presente era prova tangível de que Robb acreditava no talento do enteado. Claro, tanto a mãe quan-to o padrasto insistiram para que Aram aprendesse o ofício de ferreiro. Afinal de contas, um homem precisava ganhar a vida. Mas Robb também via valor em Aram ter um meio de se expressar, e ninguém ficou mais satisfeito que o ferreiro quando Aram encheu a primeira página do caderno com o desenho do corpulento e sorridente Mestre da Forja.

Aram folheou as páginas. As iniciais eram todas de Vila Plácida, seu lar. Havia alguns desenhos da cidade, algumas paisagens das margens do lago Plácido e um da forja de Robb. Havia alguns desenhos de animais, mas animais eram menos propensos a ficar parados. Ainda assim, havia alguns cavalos, uma mula e um gato caolho, cujo retrato foi, por necessidade, terminado de memória. E, é claro, dois ou três desenhos de Fuligem. Mas, em sua maior parte, o caderno estava cheio de gente. A família aparecia muito. Além do padrasto, havia três desenhos da mãe e dois de cada um de seus meios-irmãos mais novos, Robertson e Selya – além de um desenho de to-dos eles juntos. Havia até um autorretrato de Aram, feito com a ajuda de um espelho e horas de desenhos obsessivos, de apagar e redesenhar até o pergaminho daquela página ficar mais fino que uma pestana – e mesmo assim, era o desenho do qual Aram menos gostava no caderno. Para todos os que o viam, estava muito parecido. Mas Aram nunca sentiu ter captado sua própria personalidade.

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Depois de aproximadamente um terço do caderno, os te-mas dos desenhos mudavam de Vila Plácida para o Andarilho das Ondas, começando com um retrato na horizontal do próprio navio. Era um belo e sólido navio mercante, uma pequena fraga-ta convertida, velha, mas facilmente manobrável – e meticulosa-mente cuidada. Remendada, sim, em vários lugares, mas o traba-lho feito era excelente. Ela tinha trinta metros de comprimento, três mastros, uma tripulação de trinta e nenhum canhão – pois, segundo seu capitão, seus parceiros comerciais sempre deviam se sentir seguros de que Greydon e seu navio chegavam em paz.

A característica mais marcante, que mereceu um desenho próprio, era a estranha figura de proa de mogno: uma criatura alada de origem desconhecida – nem homem nem mulher – esculpida e polida em facetas lisas e escuras, retratando poucas curvas, em sua maioria ângulos. Para ser honesto, Aram achava a figura de proa canhestra e tosca em comparação com alguns dos belos elfos e mulheres humanas refinadamente esculpidos que ele vira em outros navios na baía de Ventobravo. A figura de proa do Andarilho das Ondas não pertencia ao barco desde o princípio, e fora esculpida quatro anos atrás pelo carpinteiro do navio Anselm Teixo, que uma vez contou a Aram que tinha sido feito de acordo com as especificações precisas do capitão Thorne. Mas, se algum outro membro da tripulação conhecia o significado da figura de proa, ninguém admitia. E Aram se recusava a perguntar ao pai, às vezes convencido de que isso daria ao homem demasiada satisfação, e, em outros momentos, temendo que ele negasse uma resposta ao filho.

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O caderno de Aram também continha vários desenhos de Divindade, muitos de Duan Phen e pelo menos um de praticamente todos os outros membros da tripulação. Havia até um desenho inacabado do próprio capitão, do qual Aram estava gostando bastante até que o pai percebeu o filho desenhando e se ofereceu para ficar imóvel e posar. Aramar Thorne fechou o caderno imediatamente e o guardou de volta no bolso.

A única pessoa a bordo do navio que Aram não havia desenhado era – nenhuma surpresa – a segunda oficial do navio, Makasa Flintwill. Mesmo agora, ao vê-lo retirar o lápis de carvão do bolso da camisa, ela rosnou outra vez para ele.

– É melhor você não me botar nessa droga de caderno.Ele repetiu o que sempre dizia a ela, toda vez que ela

insinuava essa ameaça.– Prometo que não vou desenhar você a menos que me

peça. – Isso satisfazia aos dois, pois ambos sabiam que ela ja-mais iria pedir, e Aram não tinha mais interesse que Makasa em preservar para a posteridade a maldição de sua vida a bordo.

Além disso, Aram estava muito mais interessado em dese-nhar a matriarca. Depois o macho com brincos, que os outros gnolls chamavam de bruto. Depois um filhotinho de gnoll. Para o jovem artista, desenhá-los significava entendê-los. Entrar em suas peles, experimentar sua musculatura, sentir a estrutura de seus ossos com o olho de sua mente, em sua mão e na página. À primeira impressão, Aram achara Cackle um monstro. Mas, ago-ra, sabia que ela era apenas mais um animal. Como Fuligem ou o gato caolho. Como Durgan Divindade. Como Aramar Thorne.

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Cackle percebeu que ele estava desenhando o filhote. Ela se aproximou e se debruçou sobre o caderno. Ele se distraiu com o cheiro úmido e bolorento de seu pelo – até que ela soltou uma gargalhada e gritou para Greydon:

– Seu garoto muito inútil!Aram começou a corar, sem saber ao certo se por raiva

ou por vergonha.Só que, ainda rindo, Cackle logo foi atraída de volta à página.

Olhou fixamente para o desenho de cabeça para baixo do filho-te no caderno de Aram. Em seguida, olhou para o verdadeiro filhote encolhido aos seus pés e tornou a olhar para o desenho.

Então ela soltou um grunhido e fez a volta por trás de Aram, debruçando-se tão à frente por cima do ombro do garoto que ele podia sentir seu hálito quente em sua bochecha e sentir cada um dos 28 ovos que ela consumira do barril. Os dentes muito, muito afiados, podiam facilmente e a qualquer segundo arrancar sua orelha – no mínimo –, mas ele não piscou. Aram sabia, agora, como agir. Ele ficou imóvel, e ela tornou a olhar fixamente para o desenho do filhote. A respiração da matriarca desacelerou consideravelmente.

– Vira folha – sussurrou ela com voz rouca.Aram virou a página, revelando um pedaço imaculado

de pergaminho. Mas Cackle rosnou para ele:– Não, não folha nova. Folha velha. – Aram concordou

com a cabeça e voltou as páginas.Makasa observava tudo com a mão no sabre. Divindade ia

fazer uma piada, mas Greydon – reconhecendo que algo especial

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estava acontecendo – pôs a mão no ombro do imediato, e o anão ficou em silêncio, embora ainda sorrindo. Greydon assentiu com a cabeça de um jeito bem parecido com o que Aram tinha acaba-do de fazer. Até os gnolls risonhos ficaram em silêncio, concen-trados na matriarca e no garoto.

Aram se virou para o desenho do bruto. Ela ergueu bre-vemente os olhos para o bruto verdadeiro, em seguida deu uma gargalhada que pareceu dizer que o gnoll era uma cópia ruim do desenho de Aram.

– Vira folha – tornou a dizer ela. – Folha velha.Aram voltou a página, e Cackle se viu em carvão. Ela ins-

pirou o ar e prendeu a respiração por um minuto silencioso. Então, exalou e se aprumou. Ela olhou para o pai de Aram.– Boa magia. – Foi tudo que ela lhe disse, e Greydon fez

que sim com a cabeça mais uma vez.Ela se inclinou novamente por cima do ombro de Aram

e disse, outra vez:– Vira folha.Aram voltou a página para um retrato inacabado de

Greydon. Cackle franziu o cenho.– Você não acabou.– Não – disse ele.– Você termina. Você termina seu pai.– Eu…– Não. Você termina, garoto. – Ela se afastou, sacudindo

a cabeça e murmurando. – Garoto precisa terminar. Garoto precisa terminar. Ou vai ser magia ruim.

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