greiner, christine - butô(s) na américa latina

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© Fundação Japão em São Paulo - Todos os direitos reservados. Publicado no dia 2 de Agosto de 2013. 1 Professora-doutora do Departamento de Linguagens do Corpo da PUC-SP. En- sina no curso de graduação em Artes do Corpo e no Programa de Estudos Pós-Gra- duados em Comunicação e Semiótica, onde coordena o Centro de Estudos Orientais. Foi bolsista da Fundação Japão em 1995 e 2002, pesquisadora visitante do Centro Nichibunken em 2005 e da Universidade Rikkyo em 2010. Atualmente finaliza o livro “Leituras do Corpo no Japão”, com apoio da bolsa de produtividade científica do CNPq. É autora de diversos livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. O que se entende por dança butô hoje, guarda poucos vestígios das questões que mobilizaram este movimento artístico, quando foi concebido na década de 1950 em Tóquio. O estereótipo dos dançarinos pintados de branco, retorcendo-se em ritmo lento, é um pequeníssimo fragmento de uma história que hoje encontra-se dispersa em filmes, fotografias e na imaginação de alguns artistas. Butô tem se tornado, cada vez mais, um fenômeno midiático: dos videoclips de pop stars como Madonna aos filmes de terror produzidos no Japão e nos Estados Unidos. Este artigo é uma reflexão sobre essas mudanças, desde a sua concepção até a diáspora pelo ocidente, com ênfase na América Latina. Butô, corpo, arte contemporânea. RESUMO: PALAVRAS-CHAVE: CHRISTINE GREINER B UTÔ(S) NA A MÉRICA L ATINA: U MA R EFLEXÃO C RÍTICA

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Artigo sobre butôs

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  • Fundao Japo em So Paulo - Todos os direitos reservados. Publicado no dia 2 de Agosto de 2013. 1

    Professora-doutora do Departamento de Linguagens do Corpo da PUC-SP. En-sina no curso de graduao em Artes do Corpo e no Programa de Estudos Ps-Gra-duados em Comunicao e Semitica, onde coordena o Centro de Estudos Orientais. Foi bolsista da Fundao Japo em 1995 e 2002, pesquisadora visitante do Centro Nichibunken em 2005 e da Universidade Rikkyo em 2010. Atualmente finaliza o livro Leituras do Corpo no Japo, com apoio da bolsa de produtividade cientfica do CNPq. autora de diversos livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

    O que se entende por dana but hoje, guarda poucos vestgios das questes que mobilizaram este movimento artstico, quando foi concebido na dcada de 1950 em Tquio. O esteretipo dos danarinos pintados de branco, retorcendo-se em ritmo lento, um pequenssimo fragmento de uma histria que hoje encontra-se dispersa em filmes, fotografias e na imaginao de alguns artistas. But tem se tornado, cada vez mais, um fenmeno miditico: dos videoclips de pop stars como Madonna aos filmes de terror produzidos no Japo e nos Estados Unidos. Este artigo uma reflexo sobre essas mudanas, desde a sua concepo at a dispora pelo ocidente, com nfase na Amrica Latina.

    But, corpo, arte contempornea.

    ResumO:

    PalavRas-chave:

    chRistine GReineR

    B U T ( S ) N A A M R I C A L AT I N A :U M A R E F L E X O C R T I C A

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    Entre os artistas que tem propagado but pelo mundo ocidental, h uma minoria que testemunhou o comeo do movimento e um grande nmero de admiradores que reinventaram o but segundo suas prprias necessidades e convices. cada vez mais difcil encontrar um treinamento de but que siga uma metodologia sistematizada como o but-fu, proposto pelo principal mentor deste movimento, Hijikata Tatsumi (1928-1986). O que est disponvel no mer-cado so residncias de poucos meses, mdulos de duas ou trs semanas ou workshops de um nico dia. O que ensinado nessas ocasies parte normalmente de improvisaes, exerccios de autoconhecimento e sensibilizao com pinceladas de princpios da cultura japonesa. No caso especfico da Amrica Latina, concebeu-se a partir de 1986 -- quando Ohno Kazuo se apresentou no Brasil e na Argentina -- uma verso melodramtica do but. Isso se deu com o incentivo de danarinos que foram impactados pela presena carismtica do prprio Ohno. Entre eles, h um nmero razovel de coregrafos que so japoneses e imigraram para a Europa (quase sempre Alemanha ou Frana) e para as Amricas (Estados Unidos, Canad e Mxico). Como so de uma gerao mais jovem, a maioria nunca estudou com Hijikata e co-nheceu Ohno de passagem pelo Japo ou, at mesmo em visita a outros pases. Assim como os novos mestres ocidentais, o ponto de partida para esses mestres japoneses gira em torno das imagens do but e da transmisso oral de ensinamentos, a partir de referncias pessoais.

    Com o passar dos anos, o desconhecimento das questes que mobilizaram os artistas da primeira gerao, teve consequncias nos modos de lidar com a tcnica. Na cultura japone-sa, como explicou Yuasa Yasuo (1987), desde os primrdios dos estudos do corpo e da arte na sia, h uma nfase no reconhecimento de que as ideias nunca estiveram apartadas do corpo, sendo constitudas a partir dele, ou seja, de laboratrios especficos de criao e treinamentos. A artisticidade sempre esteve conectada de maneira ntima com o treinamento. Isso valia para a poesia waka, para o n, para os arranjos florais ikebana e tambm para o but. Se inexiste um treinamento, a concepo das experincias passa a transitar por uma zona perigosa de impre-ciso.

    No se trata de uma busca s origens ou de algum tipo de fidelidade uma essncia primordial. O deslocamento de questes e treinamentos dos contextos onde foram constitudos para outras redes, sempre foi fundamental para o but, uma vez que esse nomadismo j fazia parte do seu projeto inicial, migrando de corpo para corpo, de experincia para experincia e entre diferentes mdias (cinema, fotografia, literatura, etc). Nesse sentido, a metamorfose no pode, nem deve ser vista de forma pejorativa. No entanto, h dois aspectos que merecem aten-o. Em primeiro lugar, para que as novas experincias tenham alguma familiaridade entre si, compartilhando o fato de serem experincias de but (e no de bal ou hip hop), preciso que haja uma metodologia de criao minimamente compartilhada (but uma tcnica ) e que esta seja acionada por questes que desafiam a natureza orgnica do corpo e as individualida-des. Isso porque, com o passar do tempo surgiram diferentes possibilidades de treinamentos,

    A indissociabilidade entre teoria e prtica (concepo e treinamento) sempre foi destacada na cultura japonesa, especialmente no que se refere s manifestaes artsticas e s artes marciais.

    H experincias (supostamente de but) que alegam que se trata de uma anti-tcnica, no entanto, se compreendermos a conexo pensa-mento-treinamento da forma como foi proposta por Yuasa e que fundamenta o entendimento de arte e corpo no Japo, esse argumento no faz o menor sentido. But foi concebido como uma tcnica com habilidade cognitiva para disponibilizar o corpo para testar diferentes estados e percepes.

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    no necessariamente voltados aos mtodos iniciais desenvolvidos por Hijikata e Ohno. Um bom exemplo o da metodologia de Tanaka Min que sempre seguiu um caminho prprio, mas no deixou de compartilhar questes fundamentais com Hijikata. Em segundo lugar, para que mantenham a vitalidade, as experincias de but no podem ser decalques de um modelo pa-dronizado. O que atraente para os clipes de Madonna, torna-se absolutamente nocivo para experincias artsticas uma vez que paralisa os processos de criao e anestesia as principais questes.

    Trata-se de uma discusso do tempo. Ao colar imagens formuladas ao final do processo, perde-se a complexidade constituda durante a pesquisa. Embora no incio do movimento but, no houvesse uma sistematizao clara do treinamento, no final dos anos 1960 e comeo dos 1970, Hijikata comeou a elaborar a sua metodologia para ensinar novos artistas. Sem ela, no seria possvel ensinar ou criar para um grupo e isso era particularmente importante neste mo-mento porque Hijikata estava decidido a deixar os palcos.

    justamente nesse aspecto que a histria do but comeou a se diversificar abrindo no-vos caminhos. A maioria das experincias norteadas por artistas (que pouco ou nada conhecem das questes iniciais do but e dos treinamentos para criao), est amparada nos produtos do but e no no processo perceptivo que havia gerado as pesquisas mais potentes.

    Os pontos de partida mais populares foram: (1) modelos estereotipados que se estabili-zaram no processo de replicao no ocidente, (2) clichs abstratos e hermticos que atravessa-ram os discursos, podendo significar qualquer coisa uma vez proferidos por supostos mestres e gurus; (3) e experincias melodramticas que camuflaram toda inquietao poltica e filosfica em prol de um forte apelo emocional.

    Hijikata Tatsumi, cujo nome verdadeiro era Yoneyama Kunio, nasceu a 9 de maro de 1928 no bairro de Asahikawa, em Akita, uma regio extremamente fria localizada no nordeste do Japo. Embora a vida fosse bem difcil para os moradores do lugar, a familia de Hijikata vivia com relativo conforto. O pai tinha um restaurante de soba alm de criar bichos da seda e hospe-dar estudantes em casa. Alcolatra violento, costumava bater na famlia o que colaborou para a mudana definitiva de Hijikata para Tquio em 1952, de onde nunca mais saiu at sua morte em 1986 -- com exceo de pequenas e espordicas viagens domsticas.

    Os dados biogrficos de Hijikata so controversos e de difcil verificao. Ele mesmo no gostava de muitas explicaes e muito menos de justificativas. O livro que escreveu antes de morrer (Yameru Maihime, A Danarina Doente) est mais para uma escrita performativa ativada por percepes e fragmentos de lembranas, do que para uma autobiografia ou livro de mem-rias.

    Um de seus grandes amigos, o crtico e cineasta Donald Richie (2000), conta que durante a cerimnia de homenagem, logo aps a sua morte, reuniram-se acadmicos para comentar o seu legado, mas o prprio Richie s conseguia lembrar de Hijikata distraindo o grupo de crian-

    RetROcedendO aOs anOs 1950

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    as que fizeram parte de seu filme Jogos de Guerra, e depois agachado de ccoras, como gos-tava de ficar, durante horas apenas vendo a vida passar. Hijikata era conhecido por esta displi-cncia e pela peculiaridade do seu humor. Foi assim que organizou sua curiosa metodologia de pesquisa desenvolvida em grande parte em conversas nos bares do Shinjuku (especialmente nos arredores do Golden Gai) com os companheiros de copo (escritores como Mishima Yukio, tradutores como Shibusawa Tatsuhiko, filsofos como Uno Kuniichi, entre tantos outros).

    Os seus principais discpulos resistiram a divulgar informaes sobre o seu treinamento e a sua vida pessoal. Talvez quisessem preservar algumas lembranas mais controversas. Ao mudar-se para Tquio, Hijikata aceitou vrios trabalhos e, segundo as pesquisas de um de seus bigrafos Stephen Barber (2010), provvel que tenha estado algumas vezes na priso.

    Entre a segunda metade dos anos 1940 e o comeo dos 1950, Tquio estava ocupada pelas foras estadunidenses. Viver sem dinheiro nesta poca, significava dividir o espao com alcolatras, drogados e criminosos. apenas na segunda metade dos anos 1950 que Hijikata consegue se envolver com a comunidade artstica e comea a aparecer em espetculos de dana criados por Oikawa Hironobu e Ando Mitsuko que era dona de uma academia de dana bastante famosa na poca. Foi justamente em sua academia que Hijikata conheceu Ohno Ka-zuo e seu filho Yoshito, parceiros importantes dos primrdios da experincia but. Tambm fazia parte do grupo, Ohara Akiko, uma jovem danarina que participou dos primeiros experimentos antes de mudar para o Brasil, onde vive h quase cinco dcadas na comunidade Yuba.

    Em 1956, Hijikata conheceu o estdio Asbestos da coregrafa Motofuji Akiko, que na poca vivia com seu marido Nobutoshi Tsuda, um artista com quem Hijikata colaborou e que, segundo a crtica de dana Kuniyoshi Kazuko, foi quem comeou, de fato, a formulao de uma dana das trevas (como ficaria conhecido mais tarde o ankoku but). Segundo Barber (op.cit.), o Asbestos era financiado pelo pai de Motofuji, um magnata da indstria de amianto (por isso o espao chamava-se asbestos que significa amianto). Quando Hijikata e Motofuji comearam a viver juntos, este passou a ser o estdio de Hijikata e s foi desativado pouco antes da morte da prpria Motofuji em outubro de 2003. At esse momento, contou com uma histria bastante agi-tada sendo utilizado como sala de cinema, sala de ensaio, clube noturno (Bar Gibbon) e teatro.

    A performance inaugural do but data de 1959 e chamou-se Kinjiki (Cores Proibidas). O pesquisador Bruce Baird (2012) fez um levantamento minucioso sobre esta obra reunindo fotografias, entrevistas e fragmentos de textos que descrevem a experincia. Embora essas lembranas e depoimentos sejam, algumas vezes, contraditrias, ao que tudo indica ela foi concebida por Hijikata a partir do romance homnimo de Mishima Yukio e dos escritos de Jean Genet, e considerada pela maioria da plateia como perigosa e nada artstica.

    Outro grande artista francs que impactou de maneira fundamental o but foi Antonin Artaud. Um dos primeiros a se interessar por sua obra havia sido o coregrafo Oikawa Hirono-bu que visitara Paris para estudar mmica. Oikawa dirigia uma companhia chamada Arutokan (Casa de Artaud), com a qual Hijikata havia colaborado. At 1965, O teatro e seu duplo no havia sido publicado em japons, mas o tradutor da obra de Marqus de Sade, Shibusawa Tat-suhito, j havia lido e publicado vrios ensaios comentando seus textos e poemas. Assim como Mishima, Shibusawa apresentou muitos autores importantes a Hijikata, como Georges Bataille,

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    Henri Michaux e Hans Bellmer. Da obra de Artaud, chamava-lhe particular ateno o persona-gem Heliogbalo de 1933. A parte final do solo de Hijikata A Revolta da Carne foi inspirada por ele; e em 1972 Hijikata escreveu um pequeno ensaio chamado As pantufas de Artaud.

    Pode-se considerar que Hijikata colaborou para o colapso epistemolgico que marcou a experimentao do corpo japons durante as dcadas posteriores II Grande Guerra. No fazia mais sentido subjugar-se s referncias de corpo nacional ou corpo do imperador, que haviam marcado a tradio japonesa desde o perodo Yamato (300-710). Sem hegemonia ideolgica e abrigado por cidades em runas, o ideal de corpo nacional no Japo estava, definitivamente, ameaado.

    Por isso, importante perceber que o ankoku but no foi uma experincia isolada, contando com a cumplicidade de outros eventos conhecidos como o teatro angura (do ingls, underground), a arte de obsesso, o movimento anforumeru (do francs, informelle), as aes performticas dos grupos Gutai e Mono-ha (A Escola das Coisas), entre tantos outros eventos e experincias, por vezes, inomeveis.

    A partir da sintonia com Artaud, o corpo que dana but foi sempre processo inacabado, perecvel, indistinto do lugar onde est e eternamente em crise. Ele implode a individualidade privilegiando a singularidade. Isso porque, recusa-se a ser um sujeito controlador, buscando a permeabilidade com os ambientes onde luta para sobreviver; apresentando-se absolutamente singular. Rompe a hierarquia do sujeito como mais importante do que os objetos inanimados do mundo. Admite a presena da morte o tempo todo. Volta lama para experimentar a passagem do informe forma e vice-versa, num continuum sem fim. Nada taxativo, objetivo, permanente. A ambivalncia faz parte da sua construo e o torna nico, na medida em que fruto de um treinamento especfico para disponibiliz-lo, o que exige, evidentemente, anos de dedicao. justamente nesse sentido que Hijikata abominava a impreciso, a falta de rigor. Repetiu inme-ras vezes em vida a preferncia pelo bal clssico, ao invs dos happenings que considerava sem sentido. Na mesma poca em que Hijikata comeou a elaborar os seus primeiros experi-mentos, o poeta Takiguchi Shz, considerado o grande artista surrealista japons, submeteu a lngua japonesa a tores no habituais. Perverteu a gramtica e toda e qualquer ordem pr--estabelecida. Hijikata fez o mesmo com o corpo, testando o que pensadores europeus chama-riam de corpo sem rgos (Antonin Artaud), anagramas anatmicos (Hans Bellmer) e informe (George Bataille). A chave estava na coragem de escancarar-se para o outro. A sua experincia era poltica nesse sentido. Nunca se imunizou do coletivo. Fosse pela via do erotismo ou da profanao, buscou expropriar-se de toda identidade dada a priori para se apropriar da prpria pertena. De certa forma, tratava-se de um exerccio de deslocamentos e transcriaes de ima-gens. Assim, da mesma forma que Hijikata reconhecia a autonomia de uma mo, como mdia de si mesma, Takiguchi falava em papis separados, s vezes opostos, na relao entre a mo, as cordas vocais e a caneta, autnomos e, por vezes, intercambiveis. Os dois artistas estavam interessados no ato que voltava para si mesmo (ao da mo, do torso, das vsceras), vinculado a um lugar de desaparecimento ou impossibilidade. Um lugar que se transformava, cada vez mais, na sua prpria sombra.

    Traduzi e publiquei um ensaio de Uno Kuniichi As Pantufas de Artaud segundo Hijikata, na coletnea Leituras da Morte, em 2006. Em 2012, reuni e traduzi outros ensaios de Uno para o livro A Gnese de um Corpo Desconhecido (editora n-1).

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    Hijikata propunha que o movimento deveria ser produzido a partir de aes simples e cotidianas, mas observou que, ao repeti-las obssessivamente, elas poderiam se transformar em aes de estranha veemncia. Todas as aes deviam, portanto, conformar-se com uma exe-cuo sem necessariamente dobrar as articulaes, apenas habituando-se s suas possibilida-des. Desta forma, o corpo inteiro poderia se tornar uma arma mortal para fazer um movimento particular. Como se todos os tendes se rompessem de uma vez, fazendo um acompanhamento sonoro.

    Pode-se perceber que, ao contrrio do que a viso estereotipada do but tem suscitado, o corpo reinventado por Hijikata no era necessariamente suave, lento e muito menos transcen-dente. A tenso era a caracterstica mais marcante e a estratgia mais evidente para investigar o colapso do corpo como organismo dado a priori. Esta qualidade tensionada, que pode ser considerada um estado preliminar, evidenciava a preferncia para eliminar todos os movimentos ornamentais e trabalhar com contrastes fortes entre formas simples.

    A partir da dcada de 1970, Hijikata decide dedicar-se mais coreografia e sistema-tizao do but-fu que visava a preparao de jovens artistas. Em seus cadernos de criao rene uma rica iconografia de imagens, trafegando por pintores diversos (Klimt, Picasso, Wolz, Schiele, da Vinci e muitos outros), figuras do cotidiano (rachaduras em muros, corvos, atletas, fotografias de famlia etc), poemas, onomatopeias, esquemas de natureza morta e assim por diante. O but-fu pode ser entendido como um sistema de notao de movimentos com base em metforas que, na segunda metade da dcada de 1990 (dez anos aps a sua morte), foi sistematizado por alguns de seus mais importantes alunos como Waguri Yukio que chegou a organizar parte do material no CD-ROM But-kaden ou as palavras do but, e Mikami Kayo que tambm escreveu a partir das anotaes das aulas de Hijikata. Em 1999, foi criado o Arquivo Gentico de Hijikata Tatsumi na Universidade Keio, dirigido por Morishita Takashi, que foi seu agente a partir dos anos 1970, acompanhando-o, desde ento. Boa parte da sua filmografia, assim como os cadernos de criao que geraram a notao but-fu, foram digitalizados sob a superviso de Morishita.

    No sentido poltico e filosfico, a rede de inquietaes das quais o but fez parte, traz uma grande contribuio para os artistas contemporneos pela aptido de expor algumas fissu-ras. Por isso parece um desperdcio domestic-la na mera transmisso de um modelo esttico que acabou se estabilizando, sobretudo aps a sua divulgao pelo mundo ocidental.

    No dificil entender o processo de encantamento que tomou conta de todos que viram but pela primeira vez, tanto no ocidente como em outros pases asiticos. Nos anos 1980, quando os admiradores de Ohno e do grupo Sankai Juku comearam as suas peregrinaes ao mundo do but, propagou-se um modelo imaginado deste tipo de dana que parecia represen-tar uma alternativa a um certo modo de criar, com todas as referncias que foram interpretadas como signos da devastao ps-bomba atmica, introspeco e subverso aos gneros femini-no e masculino.

    Mas o que pouco tem se explorado e que atravessa de maneira avassaladora toda a obra de Hijikata, a explicitao de como operam os dispositivos regulatrios da vida em suas

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    conexes com seus ambientes especficos, indagando o que e como se experimenta o estado de ser vivo quando a vida est ameaada. Em cada cultura por onde but transita, isso ter um significado diferente e modos espe-cficos de testar a arte, o corpo e os limiares entre a vida e a morte. Mas para no perder total-mente o vnculo com as propostas e treinamentos que o constituram, parece importante manter uma certa toxicidade que garante a vitalidade das experincias no sentido de desestabilizar o anestesiamento que nos assola, expondo as invisibilidades e as fragilidades do corpo, na con-tramo dos holofotes que privilegiam a assepsia fictcia da vida.

    Copyright 2013, PHOTOS FOR FUN - A Fundao Japo de So Paulo realizou o evento Percursos do But: legados e perspectivas em maro de 2013, apre-sentando performance solo de Emilie Sugai (Brasil), Kota Yamazaki (Japo), Jos Maria Carvalho (Brasil) e Diego Pion (Mxico).

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    Artaud Antonin Oeuvres. Paris: Gallimard, 2004.

    Aslan Odette But (s). Paris: CNRS Edition, 2002.

    Baird Bruce Hijikata Tatsumi and Butoh, Dancing in a Pool of Gray Grifts. New York: Palgrave Macmillan, 2012.

    Barber Stephen Hijikata Revolt of the Flesh. London: Solar Books, 2010.

    Greiner Christine O Corpo em Crise, novas pistas e o curto-circuito das representaes. So Paulo: Ed. Annablume, 2010.

    Greiner Christine But, pensamento em evoluo. So Paulo: Ed. Escrituras, 1998.

    Karatani Kjin Origins of Modern Japanese Literature, trad. Brett de Bary. Durham and London: Duke University Press, 1993.

    Kuniyoshi Kazuko Le Kabuki Du Thoku et l Empereur, trad. Patrick de Vos, in tre Ensemble, Figures de La Communaut en Danse depuis Le XXe Sicle (direction, Claire Rousier). Paris: CND, 2003.

    Richie Donald Retratos Japoneses, Crnicas da Vida Pblica e Privada, trad. Lucia Nagib. So Paulo: Ed. Escrituras/ Unesp, 2000.

    Sas Miryam Experimental Arts in Postwar Japan, Moments of Encounter, Engagement, and Ima-gines Return. Cambridge: Harvard University sia Center, 2011.

    Sas Miryam Fault Lines cultural memory and Japanese Surrealism. Stanford: Stanford Univer-sity Press, 2001.

    Uno Kuniichi A Gnese de um Corpo Desconhecido, trad. Christine Greiner. So Paulo: Ed. n-1, 2012.

    Yuasa, Yasuo The Body Toward a Eastern Mind-Body Theory. New York: State University of New York Press, 1987.

    BiBliOGRafia