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GUERRA HÍBRIDA CIBERNÉTICA: UMA ANÁLISE DO CONFLITO RÚSSIA- UCRÂNIA (2014-2016) SOB A PERSPECTIVA DA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO Fernando Henrique Casalunga 1 RESUMO O artigo propõe uma análise do recente conflito desencadeado entre Rússia e Ucrânia (2014- 2016), mediante a observação, por um lado, da evolução da política de defesa e segurança da Rússia no campo tático, estratégico e operacional, paralelamente ao uso da técnica de análise da dependência da trajetória para demonstrar a complexidade do modus operantis de grupos hackers, bem como a sofisticação dos principais malwares utilizados nos ciberataques. Evidencia-se, assim, uma possível ligação entre os crimes cibernéticos e as pretensões do governo russo de expansão regional. Ou seja, a guerra híbrida cibernética travada entre os países teria tido papel chave na desestabilização de territórios e na consecução dos interesses russos em seu entorno estratégico. PALAVRAS-CHAVE: Cibernética; Estratégia; Hackers; Rússia. HYBIRD CYBERWAR: AN ANALYSIS OF THE RUSSIA-UKRAINE CONFLICT (2014- 2016) FROM THE PERSPECTIVE OF INFORMATION TECHNOLOGY. ABSTRACT This article intends to do an analysis of the recent conflict between Russia and Ukraine (2014- 2016). By, first, observing Russia's defense and security documents in tactical, strategic and operational aspects, and, second by applying the path dependency technique to demonstrate the complexity of the modus operantis of hacking groups, as well as the sophistication of the main malwares used in cyberattacks. Thus, a possible link between cybercrime and the claims of the Russian government for regional expansion is evidenced. In other words, the hybrid cyber war between these countries would have played a key role in destabilizing territories and attaining Russian interests in their strategic environment. KEY WORDS: Cybernetics; Strategy; Hackers; Russia. 1 Mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduado em História na Universidade Estadual Paulista (UNESP) e em Ciência Política na UFPE. E-mail: [email protected]

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GUERRA HÍBRIDA CIBERNÉTICA: UMA ANÁLISE DO CONFLITO RÚSSIA-

UCRÂNIA (2014-2016) SOB A PERSPECTIVA DA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO

Fernando Henrique Casalunga1

RESUMO

O artigo propõe uma análise do recente conflito desencadeado entre Rússia e Ucrânia (2014-

2016), mediante a observação, por um lado, da evolução da política de defesa e segurança da

Rússia no campo tático, estratégico e operacional, paralelamente ao uso da técnica de análise

da dependência da trajetória para demonstrar a complexidade do modus operantis de grupos

hackers, bem como a sofisticação dos principais malwares utilizados nos ciberataques.

Evidencia-se, assim, uma possível ligação entre os crimes cibernéticos e as pretensões do

governo russo de expansão regional. Ou seja, a guerra híbrida cibernética travada entre os

países teria tido papel chave na desestabilização de territórios e na consecução dos interesses

russos em seu entorno estratégico.

PALAVRAS-CHAVE: Cibernética; Estratégia; Hackers; Rússia.

HYBIRD CYBERWAR: AN ANALYSIS OF THE RUSSIA-UKRAINE CONFLICT (2014-

2016) FROM THE PERSPECTIVE OF INFORMATION TECHNOLOGY.

ABSTRACT

This article intends to do an analysis of the recent conflict between Russia and Ukraine (2014-

2016). By, first, observing Russia's defense and security documents in tactical, strategic and

operational aspects, and, second by applying the path dependency technique to demonstrate

the complexity of the modus operantis of hacking groups, as well as the sophistication of the

main malwares used in cyberattacks. Thus, a possible link between cybercrime and the claims

of the Russian government for regional expansion is evidenced. In other words, the hybrid

cyber war between these countries would have played a key role in destabilizing territories

and attaining Russian interests in their strategic environment.

KEY WORDS: Cybernetics; Strategy; Hackers; Russia.

1 Mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduado em História na

Universidade Estadual Paulista (UNESP) e em Ciência Política na UFPE. E-mail:

[email protected]

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Introdução

O avanço da tecnologia da informação e a vulnerabilidade dos sistemas

informacionais à ataques externos impõem novos desafios aos Estados modernos. A guerra

cibernética transforma os antigos soldados em novos engenheiros do combate - especialistas

em desenvolvimento de software, ao mesmo tempo em que converte a infantaria em invasores

de rede, e as armas em computadores munidos por malwares (GEERS, 2015).

Em vista disso, a guerra Rússia-Ucrânia é tratada como a crise de segurança mais

importante desde o fim da Guerra Fria. O conflito é o maior exemplo de uma guerra

cibernética, variante da guerra híbrida, que combina estratégias militares, econômicas e

políticas para atingir os objetivos de um determinado Estado em território inimigo

(LIMNÉLL, 2015).

Nesse artigo argumenta-se que a ação empreendida pela Rússia com a desestabilização

de territórios do leste ucraniano2 e a invasão ao norte do mar negro que culminou na anexação

da Criméia, representa o fenômeno da Guerra Híbrida Cibernética (GHC). Provocada, por um

lado, pela reformulação, ao longo dos últimos anos, dos principais documentos de política

externa e segurança russa3 e, por outro, pela confirmação internacional do interesse russo em

colaborar com os movimentos separatistas do leste ucraniano, oferecendo apoio técnico e

tático para consolidar seu poder nesses territórios (GEERS, 2015; KELLO, 2013; LIMNNÉL,

2015).

Dessa forma, visa-se demonstrar quais são as implicações da Guerra Híbrida

Cibernética (GHC) no aumento da assimetria de poder no entorno regional russo, por meio da

observação de um caso específico - o conflito entre a Rússia e a Ucrânia (2014-2016).

Para tanto, o artigo está dividido em três seções, a primeira delas aborda, brevemente,

a construção teórica do conceito de guerra híbrida, em específico, sua vertente cibernética. A

segunda confere ênfase ao contexto histórico da relação entre a Rússia e a Ucrânia, com

enfoque para a reação do Kremlin frente ao estreitamento dos laços diplomáticos entre a

Ucrânia e o Ocidente. Aborda-se a evolução política e estratégica russa, a partir do

pressuposto de que a guerra assimétrica se tornou uma política de Estado fulcral ao controle

2 Cidades como Donetsk, Lugansk, Kihiari foram tomadas por rebeldes separatistas pró-rússia (BBC NEWS,

2014). 3 São exemplos a doutrina militar (2000; 2014), o documento de estratégia de segurança (2008; 2013) e o

documento de política externa (2016) (FACON, 2017).

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do entorno regional. Logo, o controle do espaço de informação teria fomentado a assimetria

de poder entre os países, facilitando o avanço russo sob as fronteiras ucranianas, e, em última

instância fortalecendo os movimentos separatistas pró-Rússia.

Nesse sentido, o processo político de mudança na doutrina de segurança da Rússia,

responsável por retornos crescentes4 é observado por meio das causas que produzem o

fenômeno da GHC. Para tanto, emprega-se a técnica de análise da dependência da trajetória5,

capaz de identificar como os custos para a mudança são superados com os ganhos à longo

prazo, além de conferir maior atenção às questões tempo-espaciais e as conjunturas

específicas ao período analisado que reforçam os eventos (PIERSON, 2000).

Ressalta-se a importância da narrativa na construção do encadeamento causal das

evidências observadas. Justifica-se, assim, o esforço desse estudo em extrapolar o horizonte

temporal da análise, conferindo centralidade à compreensão de um fenômeno que integra um

processo histórico, resultado da variação na vida política e social (PIERSON, 2000).

Finalmente, a terceira seção evidencia os eventos referentes ao uso dos ataques

cibernéticos no conflito, demonstrando a prática da GHC - o modus operantis dos grupos

hackers, os principais malwares, as estratégias utilizadas nos ataques e os principais alvos.

Com isso, em conclusão, pondera-se uma possível ação coordenada entre hackers separatistas

e as forças militares russas, haja visto que as ações dos grupos hackers e o uso da GHC seriam

consoantes aos objetivos militares e geopolíticos expansionistas da Rússia.

1. Conceitos: Guerra Híbrida (GH) e Guerra Híbrida Cibernética (GHC).

Com o fim da Guerra Fria diversos conceitos foram propostos na tentativa de se

explicar a realidade dos conflitos contemporâneos, em meio aos avanços tecnológicos e novos

ambientes de ação, como o ciberespaço. Termos como guerra tradicional, composta e de

4 Para Collier e Collier (1991, apud PIERSON, 2000) o conceito de retornos crescentes é utilizado para

determinar padrões sequenciais específicos de tempo, pequenos eventos que podem ter grandes consequências,

cursos de ação uma vez iniciados impõem alto custo para reversão 5 Para Levi (1997, apud PIERSON, 2000) “path dependence” significa que ao Estado iniciar um movimento os

custos de reversão são altos, ainda que existam outros pontos de escolha, o novo arranjo institucional impede um

retorno fácil ao início.

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quarta geração, fundiram-se em um grande guarda-chuva teórico conceitual denominado

guerra híbrida. Classificação que surge para preencher um gap conceitual.

O termo guerra híbrida tornou-se chave na descrição da interconexão entre as ações de

agentes estatais e/ou não-estatais nos conflitos contemporâneos, desde o nível estratégico até

o operacional. Porém, foi, ao mesmo tempo, responsável por produzir uma confusão na esfera

acadêmica civil e militar.

Neste sentido, Chuka (2014) identifica problemas na conceituação de termos que estão

na base do conceito de guerra híbrida, como a razão para a imprecisão no entendimento da

realidade e das justificativas de mudança nas estruturas das forças defendidas pelos teóricos,

frente aos novos desafios enfrentados pelos Estados e sociedades contemporâneas. Tampouco,

este é um problema trivial, autores como Hoffman, Mansoor e Murray protagonizaram

importantes embates sobre a falta de rigor intelectual e acurácia histórica, cientes dos efeitos

negativos que isso geraria ao entendimento acadêmico da guerra contemporânea e futura.

Examinando de modo mais detido os termos que compõem o conceito de guerra

híbrida, encontramos a obra de Hoffman (2007) na qual o autor discute como a guerra

contemporânea trouxe mudanças significativas à compreensão da dinâmica dos conflitos.

Identifica que doravante a 4ª geração de conflitos não é mais possível aos Estados

diferenciarem guerra e paz, combatentes de não combatentes, tal como era feito em sua

origem wesphaliana. De tal forma que, atualmente, a guerra erige-se sobre o enfraquecimento

do Estado como mecanismo organizador dos conflitos, dando lugar a atores não-estatais

dispostos e capazes de desafiarem a legitimidade estatal. Sendo assim, a desintegração social

interna tornou-se central para o estabelecimento do conceito de guerra híbrida.

Portanto, seriam os agentes não-estatais os principais os atores da guerra ao

empregarem uma série de meios convencionais e não convencionais (terrorismo e

desinformação), para minar a vontade do Estado e deslegitimá-lo, o que estimularia o colapso

social interno, provocando sua derrota (HOFFMAN, 2007).

Outro termo discutido por Hoffman (2007) são as guerras compostas, caracterizadas

por operações regulares e irregulares, que têm como alvos, em geral, áreas frágeis que ao

serem atacados por forças irregulares obrigam que as tropas regulares dispersem suas forças.

Conforme argumenta o autor, “a força convencional geralmente induz o adversário a

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concentrar-se na defesa ou atingir a massa crítica para operações ofensivas decisivas”

(HOFFMAN, 2007, p. 20-21). As Grandes Guerras mundiais são exemplos desse tipo de

conflito, bem como as guerras napoleônicas, a Guerra Civil norte-americana, a revolta contra

o império otomano e a Guerra do Vietnã.

Hoffman (2007) refere-se, também, às guerras irrestritas ou além dos limites,

marcadas pela expansão dos domínios da guerra convencional. A guerra além dos limites

ocorre quando a “fusão da tecnologia coloca os domínios da política, economia, militares,

cultura, diplomacia e religião uns sobre os outros”, deixando de ser uma atividade exclusiva

da esfera militar (HOFFMAN, 2007, p.22).

De acordo com Hoffman (2007) o futuro da guerra trata-se de um modelo ‘multi-

modal’ ou de guerra híbrida6, ao combinar elementos das guerras de quarta geração, composta

e irrestrita.

As guerras híbridas misturam a letalidade do conflito de estado com o fervor

fanático e prolongado da guerra irregular. O termo híbrida captura tanto sua

organização quanto seu modus-operantis. Organizacionalmente, podem ter uma

estrutura política hierárquica, juntamente com células descentralizadas ou unidades

táticas em rede. [...] Em tais conflitos, futuros adversários (estados, grupos

patrocinados pelo Estado ou atores autofinanciados) exploram o acesso a

equipamentos militares modernos, incluindo sistemas de comando criptografados,

mísseis de longo alcance, dentre outros sistemas letais [...] Isso inclui estados que

combinam emprego de alta tecnologia como armas anti-satélites e ataques

cibernéticos (HOFFMAN, 2007, p.29).

Para Kjennerud e Cullen (2016) o conceito de guerra híbrida, conforme utilizado por

Hoffman (2007), é capaz de descrever a crescente sofisticação e complexificação de atores

não-estatais no campo de batalha, em territórios como da Chechênia, Líbano, Afeganistão e

Iraque7. Contudo, destaca-se que Hoffman (2007) estava atento a insurgência de grupos

terroristas, a sua análise não se estende às ações iniciadas por Estados, como é o caso da

guerra entre Rússia e Ucrânia.

6 O guarda-chuva teórico conceitual da guerra hibrida conjura, portanto, a nova natureza dos conflitos

contemporâneos frente a perda do monopólio da violência do estado da guerra de quarta geração, a omni-

dimensionalidade e suas combinações das análises chinesas, o poder das redes, conforme definido por John

Arquilla e T.X Hammes, a ideia de sinergia advinda da mistura entre as capacidades convencionais e não

convencionais das guerras compostas em um grau de integração e coordenação que se dá entre os níveis micro e

macro de uma forma nunca antes observada nos conflitos tradicionais (HOOFMAN, 2007, p.29). 7 O termo "híbrido" neste contexto de ator não-estatal foi usado para ilustrar como atores tais Hezbollah

combinaram as características da guerra convencional e não convencional com outros modos de operação não-

militares de maneiras novas e desconhecidas que desafiavam tanto a prática militar ocidental quanto o

pensamento estratégico (KJENNERUD e CULLEN, 2016, p. 1)

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A guerra híbrida do Estado envolve a plena integração dos meios militares e não-

militares com o poder do Estado para alcançar objetivos políticos, nos quais o uso da

força ou o papel da força desempenham um papel central. Estados com habilidades

altamente centralizadas para coordenar e sincronizar seus instrumentos de poder

(governo, economia, mídia, etc.) podem criar efeitos multiplicadores de força

sinérgica (KJENNERUD; CULLEN, 2016, p.1).

Sob essa perspectiva, a guerra híbrida pode ser entendida como o uso de todos os

instrumentos de poder disponíveis ao Estado para atingir as vulnerabilidades do oponente.

Embora Kjennerud e Cullen (2016) dividam esses instrumentos nas categorias militar,

política, econômica, civil e informacional (MPECI), eles serão utilizados de forma

sincronizada e coordenada contra os sistemas críticos do oponente, no que se incluem,

também, a dimensão infraestrutural (PMESII), almejando com isso “uma mudança no estado

comportamental ou físico de um sistema ou elementos no sistema, de acordo com os objetivos

políticos” (KJENNERUD e CULLEN, 2016, p.1).

A análise histórica dos conflitos realizada por Mansoor e Murray (2012) confirma um

importante aspecto da guerra contemporânea abordado por Hoffman, no que diz respeito à sua

face ser composta por um misto de culturas estratégicas, legados históricos, realidades

geográficas e meios econômicos. Nesse cenário, a superioridade tecnológica pareceu útil,

porém insuficiente para conduzir os Estados à vitória.

A história, para os autores, é capaz de dizer muito sobre os conflitos contemporâneos

“embora haja um pouco de novidade na guerra híbrida, como um conceito é um meio útil para

pensar sobre o passado, o presente e o futuro da guerra” (MANSOOR; MURRAY, 2012, p.

3). A guerra híbrida trata-se, portanto, de uma combinação das forças militares convencionais

e irregulares, atores estatais e não estatais, em prol de um objetivo político comum, podendo

se desenvolver em todos os níveis de guerra - estratégico, tático e operacional.

Ademais, as forças militares convencionais conduzem as operações para derrotar

oponentes regulares, enquanto que as forças não militares fazem uso de recursos

interinstitucionais para eliminar as forças irregulares, controlar e pacificar os territórios e

organizar a população (MANSOOR; MURRAY, 2012).8

8 O termo guerra híbrida é útil para analisar os conflitos que envolvem forças regulares e irregulares que se

encontram em combate simétrico e assimétrico. Embora possa haver algumas pequenas diferenças na maneira

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Mansoor e Murray (2012) concordam com o fato de que a guerra híbrida sempre

existiu e já ocorria nas décadas passadas. O termo guerra híbrida teria surgido como uma

explicação para a guerra não convencional, a qual acentuou o uso de expressões como atores

híbridos, adversários híbridos, ataques híbridos e ameaça híbrida. Introduzindo diferentes

fontes de interpretações (BOUJARD, 2016).

Entretanto, nos documentos oficiais publicados pela OTAN, em 2014 e 2015, se nota

uma mudança no entendimento do conceito de guerra híbrida. Conforme a Declaração de

Gales, assinada em setembro de 2014 pelos membros da OTAN, guerra híbrida é um conflito

em que uma ampla gama de medidas militares, paramilitares e civis são empregadas de forma

integrado.

Vaczi (2016), em contraponto ao documento, argumenta que tal definição simplifica

demais o fenômeno ao abordá-lo como “uma cadeia de táticas assimétricas que estão sendo

realizadas apenas por meios não-militares e nas quais os meios militares têm apenas um papel

de apoio”. Para o autor o conceito perde em precisão, ainda que descreva bem a essência

assimétrica e não convencional da guerra híbrida.

Em 2015, o Balanço Militar da OTAN demonstra uma mudança de entendimento, nele

as guerras híbridas são descritas como “campanhas sofisticadas que combinam operações

convencionais e especiais de baixo nível; ações cibernéticas e espaciais ofensivas; e operações

psicológicas que usam a mídia social e tradicional para influenciar a percepção popular e a

opinião internacional” (VACZI, 2016, p. 38).

Será esse o entendimento de guerra híbrida adotado por esse artigo, por meio do qual

retira-se o foco exclusivamente dos atores não-estatais, para abordar as diretrizes táticas e

estratégicas do Estado russo, dando ênfase, em especial, às ações dos hackers no espaço

cibernético. De acordo com Vaczi (2016) a guerra híbrida, tal como a Rússia a emprega, é

marcada pelo uso de guerras regulares e irregulares que combinam de forma coordenada

atividades adaptáveis e flexíveis da guerra de diplomacia, informação, econômica e de

comunicação estratégica.

O elemento chave da estratégia russa trata-se do apoio doméstico e internacional à

guerra, conquistado por meio da guerra assimétrica e não linear capaz de criar um ambiente

como os autores definem o termo, essas variações enfatizam ainda mais a complexidade do assunto

(MANSOOR; MURRAY, 2012).

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sociopolítico propício a destruição das estruturas econômicas e políticas do oponente

(VACZI, 2016). Ressalta-se que a Declaração de Gales deixou claro que ataques cibernéticos

podem desencadear uma resposta ao artigo 5º do Tratado de formação da instituição que

protege os países do Atlântico Norte contra os ataques de invasores (VACZI, 2016).

Dessa forma, nos acercamos do conceito de guerra híbrida e de guerra assimétrica ou

não linear para delinear o conceito de Guerra Híbrida Cibernética, em uma análise dos

mecanismos que conectam a ação estatal macro com o nível micro de grupos não-estatais.

Nossa definição alinha-se à visão do capitão da OTAN, para ele a guerra híbrida tornou-se:

[...] uma combinação de meios convencionais, irregulares e assimétricos, incluindo a

persistente manipulação de conflitos políticos e ideológicos, podendo incluir a

combinação de operações especiais e forças militares convencionais; agentes de

inteligência; provocadores políticos; representantes da mídia; intimidação

econômica; ataques cibernéticos; ‘proxies’/substitutos, grupos para-militares,

terroristas e criminosos (VACZI, 2016, p. 34).

Operacionalizamos o conceito de guerra híbrida para descrever as ações operacionais

do Estado russo, que incluíram o uso de forças estatais e não-estatais e grupos insurgentes

contra o governo nos territórios da Criméia e Donbass. O Kremlin tem sob controle as

principais alavancas do poder nacional, força militar, paramilitar, equipamentos e capacidades

para conduzir a guerra híbrida no espaço cibernético (CHUKA, 2014).

2. A ação política e estratégica russa frente aos desafios da era cibernética.

A velocidade dinâmica com que se desenvolvem novas armas no ambiente cibernético

dificulta a proteção dos dados, em paralelo, ações destrutivas prejudicam a acessibilidade e a

integridade dos recursos de informação do Estado, provocando danos à imagem do país. A

eficiência dos sistemas é constatada pela habilidade em proteger a confidencialidade de seus

recursos de informação (KOLOBOV, 2006).

Em vista disso, a guerra híbrida desencadeada pela ação política russa contra a

Ucrânia, em 2014, foi o produto de uma longa disputa entre os dois países que se alastrou ao

longo de todo o período da guerra fria e continuou após o desmoronamento da antiga união

soviética. A ação russa ordenou-se de modo altamente coordenado conjugando os três níveis:

estratégico, tático e operacional procurando manter a Ucrânia sob o controle do Kremlin; para

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tanto utilizou-se das quatro principais agências: o Serviço de Proteção Federal (FSO), o

serviço de segurança federal (FSB), o serviço de Inteligência estrangeira (SVR) e a

Inteligência Militar (GRU); o conflito esteve marcado por tensões geográficas, antecedentes

ideológicos, padrões tecnológicos e a relação das instituições com seus líderes que teve como

estopim (HEICKERO, 2010).

No nível tático, sistemas de inteligência e tecnologia russos atuaram na redução da

desinformação e no aumento da segurança operacional (CARVALHO; SILVA, 2006). Nesse

sentido, historicamente, desde a década de 1960 os pensadores soviéticos foram os primeiros

a postularem e analisarem as implicações do que eles chamaram de Revolução dos Assuntos

Militares (RMA) ou a ‘revolução técnica científica’, a qual estabeleceu a necessidade de

profissionalização das forças (HALPIN et al., 2006, p. 158-9).

Atrelado a uma incapacidade de acompanhar o desenvolvimento armamentista

ocidental da década de 1980, a Rússia respondeu aos desafios de segurança por outra ótica. O

incremento no investimento em alta tecnologia e na profissionalização das forças as capacitou

para operarem em diversos meios, com destaque para o espaço da informação (HALPIN et

al., 2006).

Com o fim do governo de Boris Yeltsin (1999), o malogro russo no conflito contra a

Chechênia (1994 à 1996) fez com que o principal objetivo do governo passasse a ser uma

redução quantitativa de pessoal nas forças privilegiando aspectos qualitativos, em prol da

redução de custos e ganho de produtividade, os russos buscavam superar o poder dos atores-

não estatais e grupos terroristas que expuseram a fraqueza do país para consolidar seus

interesses no território checheno.

A guerra regional [...] será caracterizada por [...] guerra em todas as esferas; operações de coalizão; utilização em massa de PGM’s, formas eletrônicas e outras formas novas de combate; ataques em todo o território dos lados opostos [...] Um sistema de tecnologia (S&T) independente e produtivo deve ser desenvolvido para atender às necessidades militares, especialmente para uma nova geração de armamentos (HALPIN et. al., 2006, p.159).

Assim, o investimento em alta tecnologia tornou-se fundamental para a ação militar

russa que buscava recuperar-se da derrota e atingir seus objetivos estratégicos. Em 2000, ao

retomar o controle sobre a Chechênia em um conflito que levou pouco mais de onze meses,

sob o comando do então desconhecido primeiro-ministro Vladmir Putin os russos

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inauguravam uma nova fase em sua compreensão da guerra e paz frente aos novos desafios

impostos pelos conflitos contemporâneos. Ao vencer as eleições em 2000, Putin tornou-se

um grande adepto dos investimentos em recursos para a pesquisa e desenvolvimento do

espaço cibernético (HALPIN, 2006).

Por conseguinte, a quinta fronteira9 tornou-se a zona de combate proeminente e o

investimento em tecnologia primordial para reduzir os custos da ação militar. A guerra

híbrida cibernética tornou-se uma estratégia eficientemente empregada pelos russos para

afetar diretamente o inimigo com o menor custo possível. A assimetria de informação e de

conhecimento quando equiparada às ações físicas ofensivas, tem custos inferiores, invasões

mais rápidas, eficientes e de difícil prevenção (ARQUILLA; RONFELDT, 1993).

Na esfera estratégica, em 21 fevereiro de 2014, após uma série de protestos contra a

agenda de política externa de Yanukovych, os quais resultaram na ocupação, por mais de dois

meses, da praça central de Maidan, na capital Kiev, manifestantes pró-Europa derrubaram o

presidente Yanukóvytch do poder. Apenas três dias depois a península ucraniana foi anexada

pelas Forças Armadas russas, dando início ao conflito aberto entre Rússia-Ucrânia.

Com o início do conflito, a UE posicionou-se de forma contrária à desestabilização

promovida pela Rússia em seu entorno. A resolução pacífica para o conflito proposta estava,

por um lado, de acordo com os documentos de política externa mais recentes da Rússia, nos

quais o Kremlin manifesta-se favorável à manutenção de um diálogo. Por outro, opunha-se às

diretrizes da doutrina militar estabelecida desde 2001, por meio da qual os russos reivindicam

protagonismo em todas as principais questões estratégicas internacionais, sem aceitarem

limitações de sua autoridade em assuntos regionais. Em nostalgia à Guerra Fria, quando

Moscou atuava no sistema internacional como uma das duas superpotências (FACON, 2017).

A reformulação dos principais documentos de segurança e defesa russos, assim como

a doutrina militar (2000; 2014) e o documento de estratégia de segurança (2008; 2013)

confirmavam as pretensões e interesses russo em consolidar e expandir seu poder regional

(FACON, 2017). A doutrina militar russa, conferiu à tecnologia papel de destaque para defesa

do país nos conflitos regionais, denota-se a importância do investimento no desenvolvimento 9 Carvalho e Silva (2006) discutem a quinta fronteira ou o espaço de informação enquanto ambiente anárquico

que oferece ameaças à humanidade em três áreas: física, psicológica e infraestrutura básica. Argumentam que

devido à escassez, cada vez maior, de recursos para o conflito a quinta fronteira é o campo de batalha

proeminente do século XXI.

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e manutenção de sistemas de inteligência, e a preparação do campo de batalha enquanto ação

consistente do pensamento estratégico expansionista russo (HEICKERO, 2010).

Basicamente, todos os meios e ferramentas empregados pela Rússia no âmbito da

guerra híbrida fazem parte da antiga política externa e de segurança soviética, bem

como da história da guerra assimétrica. A única novidade tem sido o alto grau de

efetividade, em muitos casos, quase uma coordenação em tempo real de vários

meios empregados, incluindo políticos, operações militares especiais e medidas de

informação (RÁCZ, 2015 apud LIMNÉLL, 2015, p. 522).

No entanto, dois anos após a consolidação da doutrina e anexação da Crimeia, em

2016, os documentos de política externa frisaram a importância de se manter um diálogo

intensivo e mutuamente benéfico com a UE, bem como a intenção do Kremlin em promover a

cooperação prática em matéria de questões militares e políticas, pautada por princípios de

igualdade e respeito aos interesses de cada país (FACON, 2017).

As tratativas para regulamentação da ação dos Estados no espaço de informação foram

iniciadas em 2000, em meio a turbulências diplomáticas entre UE, Estados Unidos e Rússia.

A Convenção de Budapeste sobre crimes cibernéticos, realizada em 2001, ocorreu um ano

após a Rússia tornar público sua Doutrina Militar. Em 2012, mais de uma década depois, o

documento inicial da Convenção ainda estava sob discussão, conforme comentário feito sobre

o Rascunho de Convenção Internacional sobre Segurança da Informação (2012). 10

A despeito das dificuldades dos Estados em assumirem compromissos críveis pela via

diplomática, e, muito embora em sua gênese o documento que serve de base para a política de

segurança russa, aponte em seu artigo primeiro um conjunto de informações sobre segurança

cibernética que afirmam a intenção do Estado em assegurar os direitos constitucionais e

liberdade dos homens e cidadãos para livremente buscarem, receberem, transmitirem,

produzirem e disseminarem informação por qualquer meio legal (GILES, 2012b), no que

10 Neste documento, destinado a esclarecer os principais pontos que estavam em discussão durante o

estabelecimento da Convenção de Budapeste, encontram-se os comentários produzidos pelo Instituto de

Questões de Segurança da Informação (IQSI) da Universidade Estadual de Moscou e do Centro de Estudos

Sobre Conflitos (CESC) do Reino Unido, em particular, se atém às áreas em que não houve consenso entre as

perspectivas russa e ocidental. Em alguns casos os dois comentários diferem de forma tão ampla que parecem

não ter relação um com o outro, apesar de estarem tratando do mesmo texto base, o ‘Projeto de Convenção’, o

que ilustra a disparidade entre os conceitos e pressupostos das opiniões russa e ocidental, e constitui um

obstáculo fundamental para o acordo sobre algumas das disposições do da Convenção (DRAFT CONVENTION,

2012).

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tange o conflito em destaque, as ações do Estado russo contrastaram significativamente com

as intenções expressas em sua política externa.

Relatórios de agências especializadas em cibersegurança11 vincularam as atividades do

Exército a uma série de ciberataques de negação de serviço (DDoS), os quais paralisaram

sistemas de computador, atingiram os setores de comunicação, sistemas bancários, interviram

em eleições, infectaram computadores de estações elétricas e derrubaram o fornecimento de

energia (E-ISAC, 2016).

Apesar do governo russo negar agir em consonância com os grupos hackers, a

coincidência cronológica entre os ataques cibernéticos e as invasões por terra são indícios.

Em geral, os ataques cibernéticos ocorreram poucas horas antes das tropas do Kremlin

avançarem sobre as fronteiras e, uma vez que estavam com os setores estratégicos

comprometidos, tornaram-se permeáveis à um ataque direto. Tendo em vista a pouca

resistência que a Rússia enfrentou, foi possível invadir territórios sem incorrer em grandes

derramamentos de sangue (LIMNÉLL, 2015). Analisamos alguns ataques cibernéticos

significativos bem como as armas utilizadas no conflito na seção seguinte

3. Guerra Híbrida Cibernética: o emprego de tecnologia da informação no conflito

Rússia-Ucrânia (2014-2016).

No nível operacional, a guerra híbrida cibernética desenvolveu-se mediante a ação

coordenada entre os esforços das forças armadas russas e atores-não estatais. Dentre os

principais atores não-estatais do conflito cibernético estão grupos de hackers com alto nível

organizacional, classificados como Advanced Persistent Threat (APT). Em geral,

comprometeram sistemas operacionais por meio de espionagem levada à cabo via e-mails

infectados que são enviados às vítimas contendo anexos maliciosos ou links para arquivos

corrompidos, vinculados, em grande parte, com assuntos de interesse dos alvos (WEEDON,

2015).12 Esses grupos possuem capacidade para explorar vulnerabilidades de sistemas de

11 Empresas consultadas: FIREEYE Acquires iSIGHT Partners; F-SECURE Labs; CROWDSTRIKE. 12 Os hackers atingiram, também, alvos localizados na Europa e América do Norte, suas organizações de

segurança, bem como governos, militares e centros pensantes (WEEDON, 2015).

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informação até então não descobertas e corrigidas, destacam-se os APT28: CyberBerkut,

FancyBear e Pawn Storm.

Em maio de 2014, logo após a declaração de independência dos territórios de Donbass

em relação ao governo de Kiev, a CyberBerkut, composta por membros das forças policiais

ucranianas, grupo ‘separatista’ dessa região, assumiu a autoria dos ataques cibernéticos que

atingiram os serviços de telefonia celular dos membros do Parlamento ucraniano. Os

ciberataques dificultaram a comunicação e o processo decisório a respeito da invasão russa ao

território da Crimeia (KOVAL, 2015).

Os ataques ocasionaram a queda de diversos websites do governo, incluindo o do

gabinete presidencial. O grupo obteve acesso a documentos confidenciais e disponibilizou-os,

periodicamente, em sua página na rede.13

O ataque atingiu o ministro de Relações Exteriores, o ministro da Defesa, a

administração executiva e as embaixadas no exterior, tendo um grande potencial destrutivo.

Os alvos receberam e-mails corrompidos que ao serem abertos forneciam acesso aos hackers

às informações privadas das autoridades públicas (TOMKIW, 2015). Para atrair a atenção dos

alvos o e-mail continha documentos do Ministério das Relações Exteriores ucraniano em

formato Microsoft Word.14

De acordo com o relatório do F-Secure Labs (2014), uma variação denominada

BlackEnergy215 da mesma família dos malwares utilizados em ciberataques contra a Geórgia

(2008) foi utilizada contra alvos políticos do governo ucraniano.

A CyberBerkut foi, também, responsável pelo ataque que violou sistemas centrais de

informação ucranianos, comprometendo o funcionamento dos servidores da Comissão Central

das Eleições, o sistema foi restabelecido no dia seguinte após ação do serviço de segurança

ucraniano (PETERSON, 2016). Ocorridas em 22 de maio, tiveram como vencedor do pleito o

empresário Petro Poroshenko.

13 Website CyberBerkut: Disponível em <https://cyber-berkut.org/>. Acesso em: 05 jul. 2017 14 A execução de dois arquivos em diretório temporário: o "payload" WinWord.exe e o documento com o nome

"Embaixadores Russos para conquistar o world.doc". Os arquivos eram abertos utilizando a função

kernel32.WinExec. O WinWord.exe extrai e executa o BlackEnergy Lite (LIPOVSKY, 2014). 15 Este tipo de ameaça oferece total acesso às informações dos sistemas contaminados, e, é capaz de esconder os

processamentos de rotina utilizados pelo malware (STEWART, 2010).

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Durante o conflito outra série de ciberataques atingiram o Comitê Nacional

Democrático e outras organizações políticas, a ameaça ‘Sofacy’, utilizada pelo Fancy Bear,

infectou sistemas operacionais do Windows, Apple e iOS utilizados pela artilharia ucraniana.

A análise do software indicou uma série de artefatos em língua russa de natureza militar que

indicam a relação do Kremlin com os hackers (MEYERS, 2016).

Em 2014, o ‘Sofacy’ foi implantado de modo sigiloso em fóruns militares ocorridos na

Ucrânia, por meio de um aplicativo legítimo desenvolvido por um integrante da própria

artilharia ucraniana, o oficial Yaroslav Sherstuk. Uma vez infectados os dispositivos móveis

enviavam informação interna e dados de localização para setores da inteligência russa

facilitando a ação das tropas do Kremlin nos conflitos (MEYERS, 2016).

Ao obter acesso aos dados sigilosos os hackers aumentam sua capacidade de intervir

no conflito, uma vez que a autenticidade dos mesmos geralmente não é verificada, os hackers

podem alterar seu conteúdo e influenciar a opinião pública de acordo com seus interesses

(HACQUEBORD, 2016).

Outro grupo ativo no conflito, o Pawn Storm, foi responsável por lançar inúmeros

ataques via e-mail para subtrair credenciais de acesso corporativo a sistemas de informação de

organizações importantes das forças armadas, indústria da defesa, partidos políticos, ONGs,

mídia e governos (HACQUEBORD, 2016).

Contudo, no caso do conflito em destaque, vale ressaltar que malwares espiões foram

utilizados não apenas para subtrair e tornar público informações sigilosas, mas também para

obter códigos de execução e senhas de acesso remoto para atacar setores de infraestrutura

crítica na Ucrânia (LIPOVSKY, 2014).

O uso destes malwares sofisticados exigiu da Ucrânia uma atualização dos sistemas de

defesa, já que foram construídos ainda no período que o país compunha a URSS, o que

facilitaria a intervenção russa. Igualmente, detectou-se que os sistemas industriais em uso na

Ucrânia foram produzidos antes da popularização da internet.

Os protocolos e componentes desses sistemas não levam em conta às ameaças

modernas que circulam na rede, o que os tornam vulneráveis e inseguros. Essa

vulnerabilidade pode acarretar danos econômicos e baixas na produção, danos

ambientais e ameaças à vida, como visto na Ucrânia (TUPUK; HAILES, 2016).

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As vulnerabilidades facilitam a ação dos hackers, impulsionados por malícia, ganância

ou motivos políticos. Nesse sentido, a análise do caso ucraniano ressalta a importância da

preparação dos sistemas para defesa de ataques futuros (TUPUK; HAILES, 2016). Embora a

demanda por softwares e hardwares de defesa com alto valor agregado aumente os custos de

investimento no setor, ao se tratar de defesa cibernética a busca pelo menor custo pode

resultar em vulnerabilidades intratáveis.

Nossa análise da guerra híbrida cibernética resultante da utilização estratégica, tática e

operacional dos russos no espaço cibernético por intermédio de atores não-estatais demonstra

como evoluiu a compreensão do país dos novos desafios impostos aos conflitos

contemporâneos, o alinhamento do Estado com a ação no ambiente cibernético dificulta sua

responsabilização ao passo que facilita a consecução de seus objetivos imediatos.

Considerações Finais

Nesse artigo, buscou-se, através da coleta de informações, análise de documentos e

rastreamento das ações, estabelecer uma cadeia sucessória de eventos do uso da guerra

assimétrica pelo Estado russo. A atenção à historicidade confere maior credibilidade aos

argumentos e tal encadeamento sugere uma ligação entre o crime cibernético e as pretensões

do governo russo de expansão regional. Principalmente diante da afirmação da chefe de

inteligência ucraniana Naida, a qual diz que: “Temos que considerar que apenas um país no

mundo pode se beneficiar desses ataques, e esse país é a Rússia" (TOMKIW, 2015, p.1).

Sob este prisma, abordou-se, primeiramente o fenômeno da guerra híbrida e as

definições dos termos que compõem o conceito. Diante disso, analisamos, em paralelo à

evolução da estratégia russa, o emprego da guerra híbrida em sua vertente cibernética, a GHC

foi descrita pela ação coordenada entre atores estatais e não-estatais, de forma mais detida ao

domínio militar e político do ciberespaço. Identificamos que o conflito cibernético reduziu

significativamente o custo da ação, em um contexto de desaparelhamento das forças russas

frente aos novos desafios dos conflitos contemporâneos.

Nesse sentido, os principais atores não-estatais identificados nos ciberataques foram o

CyberBerkut, FancyBear e Pawn Storm. Note-se, portanto, que o alto grau de complexidade

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técnica para que a ação desses grupos possa seja bem-sucedida indica a presença de um ente

que lhe possa oferecer suporte, aventamos em consonância com a literatura, uma provável

associação entre esses grupos e os movimentos militares da Rússia (GEERS, 2015).

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