guilherme de almeida e a construção da identidade paulista · sobre a identidade cultural do...

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U n i v e r s i d a d e d e S ã o P a u l o Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - FFLCH Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas Programa de Pós-graduação em Literatura Brasileira _________________________________________________________________________ Guilherme de Almeida e a construção da identidade paulista _______________________________________________________________ Aluno: Aline Ulrich Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Antonio Dimas São Paulo, 2007 1

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U n i v e r s i d a d e d e S o P a u l o

Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas - FFLCH

Departamento de Letras Clssicas e Vernculas

Programa de Ps-graduao em Literatura Brasileira

_________________________________________________________________________

Guilherme de Almeida e a construo da identidade paulista_______________________________________________________________

Aluno: Aline Ulrich

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Dimas

So Paulo, 2007

1

Agradecimentos

Agradeo meus familiares, cujo apoio e acolhimento em So Paulo tornaram

possvel a realizao deste trabalho: ao meu pai e a todos que, junto com ele, acreditaram

neste projeto;

ao acolhimento dos funcionrios dos institutos e arquivos citados, com suas tardes

de pesquisa e caf, em especial ao Sylvio Gonalves Filho, diretor da Casa Museu

Guilherme de Almeida, e a secretria do Presidente do Clube Piratininga, Leonora A.

Maxiamiano, que acompanharam este trabalho desde o incio;

aos amigos da Ps-graduao e aos amigos que fiz no IEB, pela acolhida e as

discusses sobre o andamento do projeto;

aos professores que incentivaram meu interesse pela Literatura Brasileira, tornando

esta jornada vivel, em especial ao querido Deonsio da Silva, que viu nesta cientista social

de formao uma estudante de Letras;

Osmar, obrigada pelo apoio e pacincia nos momentos finais, e pela dedicao com

que me ajudou e ajuda na parte de informtica nos dados do Guilherme de Almeida: saiba

que nossos projetos chegaro l;

Dbora, obrigada por seu apoio espontneo: incentivo e acolhimento na hora

importante.

Em especial, meu muito obrigada pelo exemplo e inspirao de trabalho primoroso

dentro da Historiografia Literria de A. Dimas, orientador que me revelou o norte desta

empreitada logo em nossa primeira conversa, com a seguinte frase: eu quero entender esse

Brasil.

Este trabalho de mestrado contou ainda com o financiamento indispensvel da

CNPq para ser realizado.

2

Resumo da dissertao: Este trabalho tem como foco principal a observao da gente e da terra paulista como ponto artstico na literatura de G.A.. Engloba as reflexes do poeta sobre a identidade cultural do paulista e sobre So Paulo no jornal O Estado de S. Paulo, enfatizando a diferena entre a So Paulo cosmopolita e a So Paulo tradicionalista em sua obra. Para tanto, observa-se a produo literria do autor depois do movimento Modernista e a sua transformao esttica e ideolgica, constatando as tenses reveladas por essa mudana em sua literatura: olhar cosmopolita e tradicionalista, a preocupao do autor em compreender o brasileiro, tipificando o paulista, e a introduo do autor na linha bandeirantista e a mitificao do bandeirante.

Palavras-chave: Guilherme de Almeida. Literatura regionalista de So Paulo. Modernismo/cosmopolitismo. Regionalismo/tradicionalismo. Bandeirantismo.

3

Abstract: This research has as main focus the observation of land and of people from So Paulo as being the artistic point on Guilherme de Almeidas literature. It comprehends poets reflections about the cultural identity of people and about the city itself, based on articles from the newspaper O Estado de S. Paulo, by emphasizing the difference between the cosmopolitan and the traditionalist So Paulo. For that purpose is analyzed in his literary production after the Modernism movement and its esthetical and ideological transformation as well, and the strains revealed by that change are evidenced: the cosmopolitan and the traditionalist views, the authors concerns in understanding the people from Brazil by defining the people from So Paulo, and the introduction of author on a Bandeirante line and the creation of the Bandeirante mith.

Keys-words: Guilherme de Almeida. Literature regionalist of So Paulo. Modernismo/cosmopolitism. Regionalism/tradicionalism. Pioneers (Bandeirante).

4

Siglas dos acervos pesquisados

AE Arquivo do Estado de So Paulo

BAL Biblioteca Nove de Julho, da Assemblia Legislativa (SP)

BCP Biblioteca Nove de Julho, do Clube Piratininga (SP)

BMA Biblioteca Mrio de Andrade (SP)

BMC Biblioteca do Mausolu Paulista Constitucionalista

CMGA Casa Museu Guilherme de Almeida (SP)

FFLCH Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP

FAU Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP

FD Faculdade de Direito da USP

IEB Instituto de Estudos Brasileiros da USP

IHGSP Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo

Abreviaturas dos materiais literrios pesquisados

OEstSP Jornal O Estado de S. Paulo

RP Revista Paulistnia

JT Jornal das Trincheiras

Convenes para a transcrio das crnicas de G.A.

Atualizao ortogrfica;

[*****] para as partes ilegveis ou danificadas dos textos nos

microfilmes do jornal O Estado de S. Paulo, material do AE.

5

Meus camaradas!Porque vs sois So Paulo, e porque eu sou paulista, mandastes e obedeo.

(Conferncia Roteiro do exlio, pronunciada pelo poeta Guilherme de Almeida no Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, em 1957)

6

Sumrio

Introduo 08

1. Consideraes sobre a obra de G.A. 15

2. Do modernista ao poeta de 32 21

3. Catlise paulista: o poeta na metrpole 35

4. A coluna Cinematgrafos 43

5. Tabela das crnicas de Cinematgrafos 53

6. A coluna A Sociedade 76

7. Tabela das crnicas dA Sociedade 89

Eplogo 103

Anexo: Crnicas Guilherme de Almeida 108

Tabelas das crnicas em ordem alfabtica:

a) Cinematgrafos 139

b) A Sociedade 162

Referncias bibliogrficas 176

7

Introduo.

O foco deste trabalho a produo do escritor Guilherme de Almeida (1890-1969) e

como ela, aps o perodo da primeira fase modernista, envereda-se para o campo da

literatura paulista de inveno histrica do Estado que produziu contos, romances, poemas,

e estudos bandeirantistas, estudada por A. C. Ferreira em A epopia bandeirante: letrados,

instituies, inveno histrica (1870-1940).

Neste caminho, G.A. escreveu sobre a terra e a gente paulista e, deste modo, adequou-

se aos propsitos regionalistas de Gilberto Freyre de Regio e Tradio, tornando-se uma

das vozes mais importantes das letras da Revoluo Constitucionalista de 1932. Como

amostra dessa passagem e transformao do escritor de viso modernista para o

regionalista, o estudo traz a bibliografia e uma seleo das crnicas das colunas

Cinematgrafos e A Sociedade, ambas do jornal O Estado de S. Paulo, no perodo de 1927

a 1932.

Um dos pontos importantes deste estudo relaciona-se demonstrao de que a

produo de G.A. pode ser entendida como uma forma de regionalismo, vista na linha

apresentada pelo autor A. C. Ferreira: fruto das foras empregadas por "indivduos,

instituies e grupos letrados", em construir textualmente, atravs dos meandros da criao,

a identidade paulista, motivada pela inveno histrica do seu Estado. Para essa construo

da identidade paulista, os autores regionalistas paulistas desse perodo conferiram grande

espao ao tipo humano do mameluco, do sertanejo colonial, ou bandeirante.

As concepes acerca da raa do bandeirante e a sua contribuio para a construo

do Estado de So Paulo foram trabalhadas por grupos letrados da intelectualidade paulista

ligados a importantes instituies intelectuais de So Paulo, como, por exemplo, o Instituto

Histrico e Geogrfico de So Paulo e o Museu Paulista. Nas primeiras dcadas do sculo

XX, esses grupos inverteram a tese de que o sertanejo constitua uma "raa hbrida e

impura", cujo nome no deveria ser confundido com o dos paulistas do incio do sculo

XIX.

Rebatendo teorias racistas, esses grupos no aceitaram a tese de inferioridade dos

mestios, pelo menos os do Estado de So Paulo, e valorizaram o surgimento de um

"subgrupo racial superior" representado pelo bandeirante (A.C. Ferreira, 2002, pg.18).

8

Escrever sobre o mameluco teria sido mais fcil para uma parcela da

intelectualidade paulista, segundo o prefcio de Suely R. R. de Queiroz para A epopia

bandeirante, desde o momento em que uns poucos religiosos, aventureiros e autoridades da

Coroa portuguesa transpuseram a Serra do Mar e fixaram-se no Planalto, constituindo a

primeira tentativa eficaz do europeu para estabelecer-se no interior das terras brasileiras. E

foi com os mamelucos que as estatsticas populacionais do Estado engrossaram-se, dada a

proximidade do convvio dos hbitos culturais do povo branco, construes que atendiam

melhor constituio de um passado pico.

Essa literatura regionalista sobre o bandeirante nasceu tambm pela necessidade de

apropriar a imagem do crescimento econmico de So Paulo durante a modernidade.

Assim, o objetivo dos intelectuais e escritores das primeiras safras literrias ps-

romantismo, baseado na predominncia do positivismo e do evolucionismo, foi tambm o

de projetar o Estado de So Paulo culturalmente dentro do quadro nacional (A.C. Ferreira,

2002, pgs. 32 e 33).

A imagem que as outras regies tinham de So Paulo aps o Romantismo

continuava presa s descries dos viajantes do primeiro quartel do sculo. Continuavam a

ser atribudas aos bandeirantes as conotaes negativas da viso dos jesutas: homens rudes,

violentos e ignorantes (A.C. Ferreira, 2002, pg. 34). Com o progresso e a pujana

econmica, no entanto, iniciam-se narrativas histricas nacionalistas que revertiam essas

impresses. Com o projeto de construir a identidade paulista, no sculo XX, essa linha

literria regionalista baseada no mameluco assume a tarefa de criao de uma imagem

elevada deste sertanejo e de So Paulo (A.C. Ferreira, 2002, pg. 35).

O universo desta linha literria regionalista paulista apresentou ainda produtores de

textos "nem to provincianos como alguns o acusavam, nem to cosmopolitas quanto

outros supunham", segundo A.C. Ferreira (2002, pg. 52). Para o autor, as letras paulistas

preocupadas com a identidade paulista eram tanto urbanas quanto rurais, movidas pelos

valores representados pelos sertes no seu processo de conquista, e talvez por isso tenham

sido to importantes para a intelectualidade regional.

Nas descries sobre as cidades maiores do Estado de So Paulo, notam-se

semelhantes louvores aos benefcios trazidos pelo progresso, mas com capacidade de

produzir sentimentos nostlgicos, de lamento pela perda de valores tradicionais. Assim,

9

carros, iluminao, construo so elementos permeados por "reminiscncias do passado",

em que a figura do trem de ferro como metfora dos tempos modernos transformava-se na

figurao de "So Paulo, a locomotiva do Brasil" (A.C. Ferreira, 2002, pg. 81).

Alm disso, essa literatura regional paulista, nascida para reinventar o sertanista

colonial, experimentou vises nacionalizantes para a construo textual que proliferava de

seus projetos. Para os membros do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, por

exemplo, os estudos, narrativas e poesias de cunho histrico-nativista representavam a

histria de So Paulo como a prpria histria do Brasil (A.C. Ferreira, 2002, pg. 110).

Quanto questo da literatura regional, no que tange ao seu desejo de atingir os

signos da "conscincia nacional", verifica-se que essa linha, dentro das propostas de

regionalismo para o sculo XX, aproximam-se do pensamento de Gilberto Freyre aps o

Congresso Regionalista de 1926, documentado em Regio e Tradio.

Gilberto Freyre considera a obra Os Sertes, de Euclides da Cunha e a produo de

Jos Lins do Rgo (Castello, 1999, v. II, pg. 50) os primeiros exemplos de regionalismo

da Literatura Brasileira, j que, embora haja a tipificao regional do homem do serto, os

propsitos de tais literaturas atingem a identidade nacional. Tais literaturas tratam da

identidade do nordestino, para chegar a afirmaes acerca da caracterizao da identidade

brasileira e das implicaes de seu desenvolvimento quanto ao progresso do pas.

Para Gilberto Freyre, o regionalismo era mais do que o homem do campo ou do

serto: era um exame de nossas "expresses tnicas, sociais, religiosas e polticas"1, de que

os artistas podiam se valer para elaborar nossas expresses de criao, por meio da defesa

do tradicionalismo de uma regio vista em seu artesanato, cozinha, habitao, defesa do

patrimnio artstico e arquitetnico. O regionalismo, para este autor, no se pautava por um

conhecimento particular de um local, de maneira a torn-lo apenas um mero

"estadualismo", mas sim se tornar eco dos "inconscientes da nao", que ele via constituir-

se a partir da formao de nossas raas.

Afrnio Coutinho, em A literatura no Brasil (2001, pg. 32), explica o conceito do

fazer arte alm do mero estadualismo proposto por Gilberto Freyre: os regionalistas

deviam ter o amor provncia, regio, ao municpio, cidade ou aldeia nativa, condio

1 CASTELLO, Jos Aderaldo. A Literatura Brasileira. A citao refere-se nota do livro: V. Manifestos Modernistas, lug. Cit. P. 199 e pp. 199-202. Cf. tambm nota 7 deste captulo.

10

bsica para obras honestas, autnticas, genuinamente criadoras e no com um fim em si

mesmas, sem se tornarem nacionalistas estreitas (pg. 32).

Esse modelo ultrapassa o tradicionalismo de um Estado, como procura explicar Jos

Lins do Rgo, no prefcio de Regio e Tradio. Para ele, o que realmente define o

regionalismo de Gilberto Freyre o movimento de buscar o que constitui uma terra e uma

gente atravs de suas "fontes de vida" e das "profundidades de sua conscincia", para ento

formular uma arte considerada verdadeiramente "brasileira". Essa forma de fazer arte

compromete-se com a maneira de se analisar nossa cultura, revertendo-a em arte no esforo

de compreenso, de encantamento lrico e ao mesmo tempo de anlise rigorosa de nossa

vida (Freyre, 1968, pg. 24). Escreve ainda o escritor, na pgina 33 de seu prefcio:

A este regionalismo poderamos chamar de orgnico, de profundamente humano. Ser

da sua regio, de seu canto de terra, para ser-se mais uma pessoa, uma criatura viva, mais

ligada realidade. Ser de sua casa para ser intensamente da humanidade. Nesse sentido o

regionalismo do Congresso do Recife merecia que se propagasse por todo o Brasil, porque

essencialmente revelador e vitalizador do carter brasileiro e da personalidade humana.

Esse conceito de exame nacional a partir das particularidades da constituio de

nossa raa nasceria das propostas da Revista do Brasil, que, em 1919, aparece com um

programa em que a tipificao do brasileiro torna-se importante. Os debates da revista

pautavam-se em assuntos como as "caractersticas da brasileira: a branca, a preta, a

mulata", "o tipo clssico da brasileira, as variantes, do rio-grandense [sic], mineira,

cearense etc.", "o reinol", "o garimpeiro", "o tropeiro", "o cangaceiro", "o vaqueiro", "a

mulata baiana", "a mulata carioca" (Castello, 1999, pg. 53).

A constante procura do exame e, mais tarde, da mitificao da raa paulista, foi o

centro da literatura regional paulista do incio do sculo XX, que se debateu,

constantemente, sobre a influncia dos negros, ndios e brancos na relao com nossos

mamelucos e as conseqncias dessas fuses na cultura e progresso do Estado de So

Paulo. A esse extremo de importncia da raa na constituio do paulista, verifica-se, com

as letras da Revoluo de 32, o direcionamento de letras produzidas para o advento da

guerra paulista, como a obra de Alfredo Ellis Jr.

11

viso apresentada pela Revista do Brasil e pelas propostas da linha de

regionalismo de tipificao do brasileiro em determinada regio do pas para entender a

nossa nacionalidade, que este estudo relaciona a linha que G.A. procurou atingir. Dentro de

sua literatura preocupada com a construo da identidade paulista, G.A. contribuiu aos

questionamentos de interpretao do Brasil atravs da histria de So Paulo. Para Afrnio

Coutinho (2001), o movimento regionalista, junto com o pau-brasil, verdamarelo ,

traz o interesse pelo pas, sua gente, suas coisas, paisagens, destinos e problemas (pg. 32).

Da deduzir, nestes estudos, que G.A. foi tambm um autor de cunho regionalista.

J no poema Raa, que constitui a primeira construo de preocupao nacionalista

em G.A., o autor demonstra indcios dessa tendncia regionalista em sua literatura, focada

no passado e na preocupao de caracterizar nossa identidade para explicar o Brasil

moderno. As crticas de Mrio de Andrade a Raa parecem revelar que, se de algum modo

ele atingia a brasilidade proposta pelo Modernismo, j o fizera com um contedo passadista

e convencional, no correspondendo s expectativas progressistas do movimento. No livro

Correspondncias - Mrio de Andrade & Manuel Bandeira, organizado por Marco Antonio

de Moraes (2001), na carta de 26 de julho de 1925, o autor de Macunama expe sobre o

assunto para Manuel Bandeira:

Ainda a respeito da Raa, eu tenho uma sria contradio a fazer pro poema do

Gui sobre cuja admirabilidade j estamos entendidos que quando ele chega no tronco

da cruz, ns, os brasileiros, a evocao muito convencional e passadista. Passadista

no sentido de brasileiro que j passou. Esqueceu a realidade brasileira atual e evocou

uma realidade brasileira em que a atual civilizao e tendncia civilizadoras das

grandes cidades Rio, Recife, Belo Horizonte etc. e todo o Estado de So Paulo

inteiramente automobilizado e eletrificado, no entram. A parte brasileira do poema,

sob o ponto de vista ideal crtico de realidade brasileira no corresponde verdade,

porm a uma conveno que se vai tornando extica dentro do Brasil e que regional,

no duma s regio, porm de regies que no representam a realidade com que o

Brasil concorre pra atual civilizao universal.

Raa desperta ainda a crtica de Mrio de Andrade e Srgio Milliet numa rpida

polmica. O poema mistura o fazendeiro, "chefe do cl", a sinh, o escravo, as sesmarias, a

culinria. Milliet o resenha na revista Terra Roxa e outras terras, "enfatizando suas

12

qualidades poticas pela tica do nacionalismo e da valorizao dos elementos regionais"

(A C. Ferreira, 2002, pg. 312), fazendo a seguinte afirmao:

E Guilherme de Almeida profundamente brasileiro. Digo mais: paulista... Todo

esse pedao profundamente nosso, de So Paulo. Isso no um defeito, porque s se

brasileiro sendo paulista, como s se universal sendo do seu pas.2

Mrio de Andrade, em carta, protesta, questionando a simbologia empregada por G.A.

para valorizar enormemente o passado, grandiloqente e erradamente direcionada no

sentido herico. Para Mrio de Andrade, era preciso ser avesso a todo "bairrismo histrico

desnacionalizante e saudosista" (Ferreira, 2002).

A busca em encaixar So Paulo ao olhar "avesso ao bairrismo" e progressista foi

perseguida por G.A. em suas reflexes cinematogrficas, iniciadas em 1927, ainda

influenciadas pelas propostas modernistas. Saa o autor, neste momento, do ciclo de seu

envolvimento com Klaxon, a Semana de Arte Moderna e suas viagens pelo pas para

divulgar o movimento modernista com Revelao do Brasil moderno pela poesia.

Naturalmente, So Paulo foi tratada por seu cosmopolitismo, como se pode ler na crnica

"Babel" (28 mai.1927):

- So Paulo uma cidade cosmopolita.

A convico forte e o orgulho assanhado com que o homem sentencioso,

esfregando as mozinhas gordas e ativa, diz de dia, esta frase interessante, esfriam logo

noite, quando o mesmo profundo pensador vai ao cinema. Sob todos os pontos de vista -

menos sob um certo que se vai expor aqui - convm a So Paulo ser uma cidade

cosmopolita. bom e bonito ter uma cidade cosmopolita. bom e bonito ter uma cidade

elegncias parisienses, distines londrinas, atrevimentos novayorkinos, pitorescos suos,

aspectos florentinos, paisagens hngaras, desolaes africanas: e, de vez em quando, por

condescncia, umas pequenas notas paulistas... Convm, bom e bonito, porque isso

agrada a "tout le mond et son pre" e rompe a fatigante monotonia das coisas inteirias.

Mas, na tarefa de incrementar, a partir de 1929, a frivolidade da elite paulista, na coluna

Sociedade n'O Estado de S. Paulo, G.A., influenciado pela linha de escritores

2 In: Terra roxa e outras terras. So Paulo, 20 jan. 1926. Ano I, n.1, apud Ferreira, 2002, pg. 312.

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tradicionalistas, mergulhou nas questes da identidade paulista. De imagens progressistas

como "cidade cosmopolita e sem razes profundas, por suas transformaes sociais intensas

e velozes, de arranhas-cus cinzentos e luminosa", G.A. optou passar para o oposto, como

uma "So Paulo cafeeira, colonizada pela fidalguia portuguesa, digna de apreciar no

passado todo o seu ciclo de conquistas". Designa-se amadurecida esta linha de pensar sobre

So Paulo porque G.A. manteve a linha regionalista paulista at o fim de sua obra, sem se

influenciar por outras tendncias ou modos de pensar sobre o Estado.

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1. Consideraes sobre a obra de G.A.

O percurso literrio de Guilherme de Almeida aps a primeira fase modernista foi

considerada, por Manuel Bandeira, em 1958, como uma volta s origens, aos temas e s

formas das primeiras publicaes. Alfredo Bosi (1970) tambm faz uma avaliao do

Autor depois de 22, sob a afirmao de que os volumes do poeta regressam ao

parnasianismo3 (Queiroz, 2003).

Segundo Queiroz (2003), que reuniu a fortuna crtica do escritor de 1917 a 1997,

Guilherme de Almeida foi considerado, no conjunto de sua obra, parnasiano, simbolista e

moderno, confirmando a acentuao por parte da crtica sobre essas trs tendncias, sem

acrescentar mais nenhuma.

Pesquisando os materiais do autor, foi possvel, por outro lado, observar que a trajetria

de sua obra em paralelo evoluo de So Paulo no sculo XX traz uma relao

indiscutvel, principalmente quando G.A. tornou-se uma das maiores vozes poticas da

Revoluo Constitucionalista de 1932. Essa relao, pouco estudada, revela o seguimento,

por parte de G.A., da literatura paulista que procurou traar o perfil do paulista e reinventar

o seu passado colonial, nas bases do tradicionalismo.

Os antecedentes e os desdobramentos das letras na Revoluo de 32, em So Paulo,

apesar de pouco investigados, foram bastante significativos para a literatura paulista.

Antonio Candido (2000) identifica os primeiros traos dessa linha - empenhada em elaborar

historicamente, atravs da intelectualidade local, a terra paulista - em personalidades como

o bandeirante Pedro Taques, com sua Nobiliarquia, em Cludio Manuel da Costa, com Vila

Rica, e em Frei Gaspar, com Memrias.

Este grupo tratava de elevar as condies de vida da colonizao paulista

aristocratizando as Bartiras, promovendo a criao de uma conscincia de estirpe e

acentuando os aspectos do comportamento bandeirante que os enquadrava na lealdade, no

orgulho ancestral e no duro trabalho das conquistas. Os trs voltaram-se para o passado da

terra, indo contra uma figura desenhada pelos jesutas.

Se em outros momentos da Histria, a literatura paulista foi projeto de poucos na

tentativa de exprimir os valores locais de So Paulo4, no advento da Revoluo

3 Maria Helena de Queiroz, em Guilherme de Almeida (1890 - 1969) - fortuna crtica comentada.4 Atonio Candido em Literatura e Sociedade, captulo VII. A literatura na evoluo de uma comunidade.

15

Constitucionalista de 32 houve a produo para textos de intelectuais, aristocratas e

proletrios, estudantes ou comerciantes, soldados ou civis. Durante seu acontecimento, o

que houve foi uma exploso de expresses, que produziam desde poemas primorosos at o

mero panfletarismo.

Uma torrencial produo literria brotou a partir deste episdio histrico, fazendo com

que at mesmo ilustradores como Belmonte escrevessem sobre o assunto.5 Tais escritores

viram, nos ciclos da conquista, o mote para um de seus principais temas: a conquista das

terras, do ouro, do caf e, por fim, com as demandas da causa constitucionalista, a

conquista da lei.

Esse movimento ocasionou, como observa Alice Fahs (2001), pontos de fuso entre a

considerada "alta" literatura e a popular, quebrando os limites do individualismo da obra

literria para o direcionamento de uma criao de idias coletivas sobre o estado de So

Paulo por meio das letras que correspondessem s necessidades criadas pela guerra. Em

seus estudos sobre a Guerra Civil Americana (1861- 1865)6, a autora, que pesquisou a

literatura do Sul e do Norte dos Estados Unidos, nascidas do advento da Guerra Civil de

Secesso, observou que, durante a Guerra Americana, houve uma troca entre o individual e

coletivo, refletida na literatura nascida nessas circunstncias histricas. A literatura

produzida em tempos de guerra adquire, ao mesmo tempo, essas duas caractersticas, as

quais se fundem quando surge o objetivo de atingir ideais coletivos de uma nao.

Para que a literatura nascida da Revoluo de 32 fosse continuamente propagada, alm

da distribuio de textos e folhetos, impressos ou no, seus principais escritores utilizaram-

se tambm do recurso da oralidade. O perodo da guerra civil foi campo fecundo para a

leitura de seus textos e poemas na rdio, produo de discursos declamados em academias,

escolas e agremiaes, segundo depoimentos de historiadores como Hernni Donato e Jos

Celestino Borroul, gentilmente cedidos para esta pesquisa.

A literatura sobre So Paulo, apesar de engajada em problemas locais, conseguiu

tambm abranger temas universais, como os anseios do homem em busca das razes de sua

cultura, em plena fragmentao diante da urbanizao e das guerras mundiais,

especialmente na metrpole So Paulo, onde o crescimento foi estrondoso durante todo o

sculo XX.

5 No tempo dos bandeirantes. Editora Melhoramentos. 1 edio, 1944.6 The imagined civil war - Popular Literature of the North & South, 1861-1865.

16

G.A., que se destacara como um escritor nacional e que participou no movimento

modernista, tornou-se, a partir da Revoluo Constitucionalista de 1932, o Poeta de So

Paulo. Antes de 1932, o retrato de So Paulo aparecia em imagens como a viagem num

Ford, como no texto da conferncia Revelao do Brasil pela Poesia Moderna, de 1925.

Depois da Revoluo Constitucionalista, o autor apresentou poemas como Acalanto de

Bartira, de 1954, no qual enfatiza o meio e a raa paulista atravs de referncias a Santo

Andr, So Paulo, O Sacrifcio, Os Tamoios, Jaragu, Tordesilhas, As bandeiras, Ouro,

Real Quinto, Os emboabas, Solido, Caf e O Rodeio, finalizando com 9 de Julho.

Acalanto de Bartira a traduo, em versos, das partes tupi e castelhana de Na Festa de

So Loureno, auto de Jos de Anchieta.

Esse movimento de utilizao do passado para reinventar a moderna So Paulo,

largamente utilizada na Revoluo Constitucionalista de 1932, foi extremamente

importante para o amadurecimento da obra de G.A., assim como tambm para os modelos

de representao de outros autores, historiadores ou intelectuais que apresentavam So

Paulo em seus estudos sobre a questo da ancestralidade paulista, ainda que de maneiras

divergente da mitificada pela linha regionalista bandeirantista, como em Srgio Buarque de

Holanda ou Alfredo Ellis Jr.

O tema de releitura do passado colonial, presente ainda nos principais estudos sobre o

Brasil aps 1930, como Casa grande & senzala (1933). A busca e a publicao de

documentos coloniais, como crnicas e cartas da poca, tambm ajudaram a elucidar os

sentidos das conquistas e fracassos do bandeirantismo de maneira muito significativa para a

literatura no s paulista, mas brasileira em si, reelaborando para a modernidade a viso dos

primeiros empreendimentos diante da terra conquistada.

Tal linha literria paulista tambm foi fator de incentivo para G.A buscar, em sua

criao relacionada a So Paulo, as caractersticas das razes regionais no homem universal.

Em seu livro de crnicas O meu Portugal, de 1933, G.A tece comparaes entre o homem

paulista e o europeu ocidental, exaltando as qualidades de seus conterrneos. Neste livro de

crnicas, ntida a assimilao da lio dos modernistas de que a literatura tinha o papel de

revelar o homem, independentemente de sua raa ou terra. Porm, depois de seu percurso

envolvido diretamente com o olhar sobre o Estado, a construo do paulista em G.A. no se

faz mais sem o peso de seu passado e de suas tradies.

17

Partindo de reflexes acerca da literatura paulista que sustentou a Revoluo de 32 e

teve G.A como um de seus maiores representantes, esta dissertao de mestrado tem como

objetivo pesquisar os materiais literrios do autor, que, em conjunto, revelaram empenho

em tipificar o paulista, desvendar a sua terra e dar a esta literatura um estatuto de arte, como

prope a linha de pensamento de Gilberto Freyre em Regio e Tradio.

Tal hiptese sustenta-se com a realizao de uma ampla pesquisa documental literria

da obra do autor. Crnicas, poemas, manifestos, discursos, epistolografia e peridicos que

foram reunidos no intuito de contriburem para a Literatura Brasileira, revelaram a

importncia da temtica So Paulo em sua obra.

Os documentos literrios apontam ajustes e correes necessrios na bibliografia j

existente sobre G.A., como nas indicaes de datas de incio das colunas assinadas pelo

escritor como G. e Guy, no jornal O Estado de S. Paulo. Na Casa Museu Guilherme de

Almeida, por exemplo, considera-se que Cinematgrafos foi escrita pelo autor em 1926 e

A Sociedade, em 1928, embora, no peridico, tais colunas apaream com as suas

assinaturas somente em 1927 e 1929.

A pesquisa relacionada s colunas exigiu ateno a cada pgina publicada em O Estado

de S. Paulo, entre 1927 e 1932. Constatou-se que no h, em 1929, nenhuma outra

participao do autor alm das verificadas nas colunas Cinematgrafos e A Sociedade. As

informaes bibliogrficas do Museu Casa Guilherme de Almeida, que, vale ressaltar,

necessitam ser atualizadas por meio do trabalho de pesquisadores, indicam que h a

publicao de crnicas sobre alguns dos principais bairros da capital paulista em O Estado

de S. Paulo em 1929, posteriormente reunidas numa publicao intitulada Cosmpolis, de

1962. No peridico no h, no entanto, durante o ano de 1929, nenhuma outra coluna

assinada pelo escritor paulista, a no ser as duas aqui referidas.

A pesquisa sobre os materiais literrios que deram origem a esta dissertao de

mestrado partiu do arquivo pessoal do escritor, presente na Casa Museu Guilherme de

Almeida, e realizou-se tambm nas bibliotecas da Universidade de So Paulo do IEB

(Instituto de Estudos Brasileiros), da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

Humanas), da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) e da Faculdade de Direito do

Largo de So Francisco. A busca prosseguiu ainda na Biblioteca Mrio de Andrade de So

Paulo, no Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, no Arquivo do Estado de So

18

Paulo, na biblioteca do Mausolu Paulista Constitucionalista e nas bibliotecas Nove de

Julho, da Assemblia Legislativa do Estado de So Paulo e do paulistano Clube

Piratininga.

Para constatar como o tema So Paulo ganhou relevncia na literatura de G.A.,

que ganhou espao tanto na poesia ou teatro como colunas de peridicos Pela Cidade,

do Dirio Nacional, a partir de 1927; Eco ao longo de meus passos, no O Estado de S.

Paulo, de 1957; Crnica de So Paulo, ou ainda na revista Manchete, do ano de 1958,

no bastaria guiar a pesquisa apenas pelo tema Revoluo Constitucionalista de 32. A

literatura nascida desse momento histrico, em todas as suas formas, apresenta mais de

quatro mil ttulos, segundo o historiador Jos Celestino Bourroul, proprietrio da maior

biblioteca particular sobre o assunto. Os ttulos no justificam, no entanto, mudanas

significativas na esttica de Guilherme de Almeida da fase modernista para o escritor

considerado aqui regionalista, justamente por enfocar exclusivamente a guerra paulista.

Surgiu, assim, a necessidade de um olhar atento trajetria do autor em alguns textos

para reconstituir a fase de transio de G.A do Modernismo para a literatura paulista, sendo

possvel estud-la nos seguintes documentos literrios:

a) o manifesto modernista Revelao do Brasil pela Poesia Moderna, divulgado em

Porto Alegre, Recife e Fortaleza em 1925;

b) as crnicas escritas para o jornal O Estado de S. Paulo, entre 1927 a 1932, para as

colunas Cinematgrafos e A Sociedade, que somam 1.690 ttulos, respectivamente.

A pesquisa e coleta bibliogrfica desses textos vo desde o incio da assinatura de

G.A. como cronista de cinema e colunista social at a interrupo dos textos do

autor devido a sua participao na Revoluo Constitucionalista de 1932;

c) conjunto de poemas de G.A., escritos durante e aps a Revoluo

Constitucionalista Paulista de 32;

d) a srie de quatorze peridicos d'O Jornal das Trincheiras ;

19

e) pequeno conjunto de cartas recebidas por G.A. a partir de 1933, que constrem a

imagem do escritor como o Poeta de So Paulo depois de sua atuao como

soldado e escritor durante a Revoluo de 32;

f) a coleo quase completa da revista Paulistnia, que soma um total de 83 nmeros

encontrados em acervos diversos;

g) discursos de G.A. para datas comemorativas da cidade de So Paulo.

Nesta dissertao, optou-se averiguar com maior cuidado as crnicas cinematogrficas

e sociais de G.A escritas para o jornal O Estado de S. Paulo, por elas apresentarem, em sua

leitura, a fase inicial da linha literria que o prepara como "poeta de 32": por um lado,

moderno, como cronista de cinema, ainda apresentando uma viso, como se ver depois,

favorvel ao progresso proposto por Mrio de Andrade, embora com posicionamentos

literrios de entendimento do brasileiro que preparam seu olhar para tipificar o paulista; e,

por outro, regionalista, nas crnicas sociais, onde aparecem tipificaes do paulista,

refletidas na forma como descreve a gente e a terra de So Paulo segundo a linha

regionalista bandeirantista. Sem utilizar-se da figura pitoresca do campo, inicia nestas

crnicas para O Estado de S. Paulo, a reinveno da figura de um outro sertanejo: o

bandeirante.

20

2. Do modernista ao poeta de 32

G.A. nasceu em Campinas, interior do estado de So Paulo, formando-se pela

Faculdade de Direito do Largo de So Francisco. O escritor ingressou como colaborador na

imprensa paulista com publicaes nas revistas A Cigarra, O Pirralho e Vida Moderna,

iniciando, em 1916, na redao do jornal O Estado de S. Paulo.

Em 1917, com Wasth Rodrigues, que viria a se tornar um dos mais importantes

ilustradores da Revista Paulistnia ao lado de Belmonte, G.A. venceu o concurso para o

braso da cidade de So Paulo, no mesmo ano em que publicou seu primeiro livro de

poesias, Ns.

G.A. acompanhou o ritmo da vanguarda brasileira ao ser membro do grupo responsvel

pela fundao da revista Klaxon, para qual desenhou a capa, publicou textos e matrias

publicitrias. Participou em 1922 da Semana de Arte Moderna, recitando Canes Gregas

no Teatro Municipal, ao mesmo tempo em que publicou o livro de poemas Era uma vez... .

Depois de se firmar como um poeta modernista, G.A programou-se como viajante para

divulgar o Modernismo pelo Brasil afora, como demonstram suas entrevistas nos jornais

gachos da poca (Leite, 1972). O escritor foi para Porto Alegre, Recife e Pernambuco, a

convite de Augusto Mayer e Joaquim Inojosa, para divulgar o Modernismo, onde realizou a

sua conferncia Revelao do Brasil pela Poesia Moderna, publicada apenas na celebrao

do quadragsimo ano da Semana de Arte Moderna, em 1962.

G.A. escreveu duas cartas para Mrio de Andrade, em 1925, sobre sua divulgao

modernista nos grupos fora da capital paulista. As cartas datam de 7 de agosto e 26 de

setembro de 1925, enviadas do Rio de Janeiro, onde G.A. informou a Mrio de Andrade

que iria at o Rio Grande do Sul e o Nordeste para levar aos grupos modernistas de outros

Estados os desdobramentos do movimento paulista de 22. G.A. queria fazer no Sul uma

coisa barulhenta, para impressionar a provncia, tratando, na primeira das duas

conferncias em Porto Alegre, do aspecto nacionalista dos versos que os modernistas

paulistas estavam produzindo em 1925. A primeira parte da conferncia seria de

afirmao do momento pelo qual passava a poesia brasileira. A segunda parte da

conferncia seria de demonstrao, como ele chamou o que seria apenas um recital da

exposio de textos e poemas de autores modernistas.

21

De Porto Alegre, G.A. enviou ainda um telegrama para Mrio de Andrade, em 20 de

setembro de 1925, deixando claro o xito de suas apresentaes para o grupo modernista

gacho.

Joaquim Inojosa foi o responsvel pela ida de G.A. ao Recife e provocou polmicas

quanto aos diferentes aspectos do Modernismo, como as dissidncias no movimento pelas

posies em relao ao Regionalismo, tratado por Gilberto Freyre e Lus da Cmara

Cascudo.

Devido s conferncias realizadas por G.A., apareceram outros importantes

escritores, como Afonso Olindense, no Amazonas; Abguar Bastos, no Par (Corra, 1989 p.

39), Jos Lins do Rgo e Jorge de Lima em Alagoas, em torno e aps 1925.

G.A. percebeu que o movimento modernista era diferentemente difundido e

trabalhado nestas regies. No Rio Grande do Sul, as manifestaes que se seguiram aos

movimentos modernistas no foram favorveis logo em 22, devido ao pequeno movimento

editorial da poca e ao clima essencialmente de expectativa poltica por causa de Borges de

Medeiros. Alm disso, a Semana de Arte Moderna foi interpretada no Sul como um

movimento de jovens "futuristas", imitadores de Marinetti.

Segundo Ligia Chiappini Moraes Leite, em Modernismo no Rio Grande do Sul -

matrias para o seu estudo, nesta regio do Brasil, nos anos 20, o Simbolismo era mais

arraigado e o Modernismo surgiu mais como uma correo da adoo do movimento

literrio vindo da Europa, especialmente da Frana. A adeso ao movimento aconteceu

somente no momento de construo da questo da nacionalidade relacionada terra. Em

1923, aumentaram os estudos sobre o gacho, tipo que ressurgiu na arte, junto com a

revalorizao de Machado de Assis.

Ainda segundo Ligia Chiappini Moraes Leite (1972), o Modernismo finalmente se

firmou no Estado do Sul em 1924. Com a Revoluo Federalista vitoriosa, despertou

tambm o sentimento pico do gauchismo enquanto o Modernismo rumava para o princpio

da brasilidade. O discurso de Graa Aranha, na Academia Brasileira de Letras, repercute.

Iniciaram-se as reunies literrias de "Horas de Arte", do Clube Jocot e o movimento

editorial duplicou-se, crescendo o nmero de artigos sobre o Modernismo nos jornais, o que

preparou o Rio Grande do Sul para receber G.A.

22

Com a chegada de G.A. em Porto Alegre, em setembro de 1925, travaram-se

polmicas, discusses e o movimento gacho ganhou impulso. Poetas considerados da

velha-guarda contagiaram-se com o clima e publicaram tentativas de versos livres em

homenagem ao escritor paulista. Multiplicaram-se os artigos em jornais e revistas e o

movimento no Rio Grande do Sul passou a falar muito em Renascimento. Os escritores

sabiam que viviam uma nova fase em 1925, e o Regionalismo ressurge.

Augusto Meyer, principal nome do Modernismo gacho, recebe o escritor paulista

em 1925. Com suas apresentaes em dois dias seguidos no ms de setembro deste mesmo

ano, G.A. fez com que crescesse o entusiasmo pelo movimento Modernista dentro do

crculo literrio. Para Ligia Chiappini Moraes Leite, G.A. conheceu um Rio Grande do Sul

que se projetou para fora de suas fronteiras, estabelecendo um intercmbio mais intenso

com o movimento de So Paulo.

No caso do Norte e Nordeste do pas, a situao do movimento modernista foi

outro. Iniciou-se com o escritor Joaquim Inojosa, quando, aos 21 anos, o escritor saltou no I

Congresso Internacional de Estudantes de Direito, na capital paulista. Joaquim Inojosa pde

ver, nesta viagem que fez a So Paulo, o que os escritores paulistas produziam, renovados

roda de suas recentes criaes literrias, como a revista Klaxon ou os poemas de Mrio de

Andrade.

Novamente em Recife, no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, Joaquim

Inojosa publicou o artigo O que Futurismo, em um vespertino local, em revide s

palavras do grande poeta e seu professor de latim Dr. Faria Neves Sobrinho, que havia

afirmado serem os cubistas, dadastas e futuristas forosamente fantasiosos e passageiros.

Joaquim Inojosa criou, em 1924, um manifesto intitulado A arte Moderna, e

dedicou-se inteiramente descrio de como havia sido a Semana de Arte Moderna, em

defesa do movimento e de sua seriedade. Exatamente em 5 de julho de 1924, iniciou-se o

movimento em Pernambuco, com o surgimento de outros interessados pela nova esttica,

alm da parnasiana. O jovem escritor comeou, ento, a corresponder-se com freqncia

com os modernistas Mrio e Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia e G.A., travando

importantes discusses em torno do tema, que ganhou os estados do Nordeste e Norte.

Nestas discusses, aparecem respostas do escritor Jos Amrico de Almeida, na

poca em que escrevia A bagaceira; de Lus da Cmara Cascudo, que passou a apoiar a

23

aproximao dos escritores locais com os representantes do movimento paulista, como

Mrio de Andrade. O menos aderente ao movimento foi Gilberto Freyre, que pregou a

nfase ao Regionalismo.

Joaquim Inojosa convidou G.A. para ir ao Recife, em pregao modernista. Nesse

encontro, renem-se Austro-Costa, Arajo Filho, Jos Ges Filho, Ansio Galvo, Oswaldo

Santiago, Amauri de Medeiros e Dustan Miranda, em novembro de 1925. Guilherme de

Almeida j havia passado por Porto Alegre e recitado suas duas conferncias de Revelao

do Brasil pela Poesia Moderna, declamando Raa, no Teatro Santa Isabel, em Recife, onde

se encontravam os diretores da Revista Era, tambm criada por Joaquim Inojosa. G.A.

conduz a adeso do poeta Ascenso Ferreira no movimento nordestino.

Depois das conferncias e do contato com G.A. em Recife, o escritor pernambucano

Joaquim Inojosa lanou O Brasil brasileiro, em 1925, acompanhando a segunda fase do

modernismo paulista, em que seus escritores assumiam a construo de textos com carter

nacionalista (Inojosa, 1977, p. 115).

Com as agitaes modernistas nos estados do Nordeste, Norte e Rio Grande do Sul,

surge a questo do Regionalismo e Modernismo. Enquanto no Sul, no incio do movimento,

o tipo gacho ressurgiu para a arte e foi despertado pelo sentimento pico que vem com a

Revoluo de 23 (Leite, 1972), em Pernambuco havia a oposio entre os modernistas e

regionalistas, e, no Rio Grande do Norte, as idias regionalistas e modernistas transitavam

no mesmo crculo social, sem maiores atritos (Arajo, 1995).

Entre os nomes dos escritores de quem G.A. levou textos e poemas para serem

recitados nas conferncias de A revelao do Brasil pela Poesia Moderna, incluem-se

Mrio de Andrade: Moda da cadeia de Porto Alegre, Poema acreano, O poeta come

amendoim; Luiz Aranha: Crepsculo; Carlos Drummond: Construo, O vulto silencioso

das secretrias; Pedro Nava: Noite de So Joo; Joo Alphonsus: Perereca; Manuel

Bandeira: Meninos carvoeiros e Berimbau; lvaro Moreyra: Encontro; Felipe de Oliveira:

fragmento de Por causa do sol; Cassiano Ricardo: O salto das Sete Quedas; Carlos Alberto

de Araujo (Tcito de Almeida): Tempestade; Oswald de Andrade: Noite no Rio, Procisso

do enterro; Menotti Del Picchia: O beco; Sergio Milliet: Tremor de prazer, de alegria...,

Thomazina; Ribeiro Couto: Cinema de arrebalde; Ronald de Carvalho: o fragmento Meio

dia, de Toda a Amrica; e o prprio poema Raa.

24

Em 1926, a convite de Jlio de Mesquita, G.A. entrou para a redao de O Estado

de S. Paulo e, em 1927, sob o pseudnimo G., iniciou uma longa srie de crnicas sobre o

cinema, na coluna Cinematgrafos, vindo a publicar, em 1929, Gente de Cinema. Em 1929,

o escritor assumiu, tambm no mesmo jornal, a coluna A Sociedade, que ele assinou como

Guy e que, em 1932, permitiu-lhe lanar as tradues Toi et Moi, de Paul Graldy, e

Gitanjali, de Rabindranath Tagore.

Entre o perodo de uma coluna e outra, ingressou na Academia Paulista de Letras,

em 1928, e foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 6 de maro de 1930,

assumindo a cadeira nmero 15, que pertencera a Olavo Bilac e Amadeu Amaral.

Em outubro de 1930, Getlio Vargas depe Washington Lus em uma rebelio armada e

assume a presidncia da Repblica. A nao assistiu a Constituio ser outorgada e o

enfraquecimento poltico dos fazendeiros paulistas de caf (Fausto, 1999).

O Estado de So Paulo, que se posicionou contra a ditadura do governo de Getlio

Vargas, pede a restituio da Constituio na poltica, ameaando entrar em guerra.

G.A. acompanhou o processo poltico em So Paulo e manifestou-se a favor dos

paulistas. Em 1931, constituiu o grupo da Liga de Defesa Paulista, rgo que reuniu

fazendeiros de caf, escritores, intelectuais e profissionais liberais como o advogado Tcito

de Almeida, seu irmo, que eram contra o governo getulista.

Em um texto de Saulo Ferra, um dos scio-fundadores do Clube Piratininga de So

Paulo, publicado pela revista Paulistnia nmero 78, tem-se um depoimento sobre o

funcionamento do rgo:

Um grupo de paulistas corajosos, irmos Guilherme e Tcito de Almeida, fundou a

Liga de Defesa Paulista, cuja finalidade era lutar pela libertao de So Paulo, das

garras da ditadura.

A liga recebeu logo o apoio e as adeses de outros elementos possudos do mesmo

ideal e comeou um trabalho de propaganda contra a ditadura e mais tarde integrou-se

na conspirao que preparava a luta armada, aliciando e treinando voluntrios. A data

em que deveria eclodir a revoluo no estava marcada devido a falta de recursos blicos

suficientes.

Em fins de julho de 1932, uma notcia inesperada explodiu como uma bomba e

veio transtornar os planos e precipitar os acontecimentos. Os jornais noticiaram que o

25

Gen. Klinger se rebelara contra o ditador, em Mato Grosso, e marchava frente de 6 mil

homens, atravs de nosso territrio. (...)

A Liga de Defesa Paulista tomou logo posio e convocou uma reunio que se

realizou noite no Clube Comercial, a qual foi muito concorrida. Foi uma reunio

memorvel. O entusiasmo guerreiro dominou inteiramente a assemblia. Ningum temia

a ditadura que vrios oradores atacaram em discursos. Um orador props que se

declarasse guerra ditadura e se ordenasse que as novas tropas marchassem para as

fronteiras. Um indivduo que se encontrava no fundo do salo, prximo porta, resolveu

protestar: imediatamente foi expulso da sala a socos e pontaps. A assemblia naquela

noite aclamou Guilherme de Almeida como presidente e elegeu o conselho composto de

40 membros (...)

A Liga de Defesa Paulista, entrou logo em ao. Instalada na rua Baro de

Itapetininga, conseguiu logo mveis, mquinas de escrever e voluntrios e comeou a

trabalhar com ardor, alistando voluntrios que se apresentavam s centenas, elaborando

manifestos, preparando cartazes de propaganda, etc. e organizando o batalho que

deveria partir para a frente de combate. Esse batalho tomou parte destacada na batalha

que travou em Cunha.

O rgo da Liga de Defesa Paulista exerceu um papel fundamental, tanto para o prprio

episdio histrico quanto para as letras paulistas nascidas com a ecloso da Revoluo, a 9

de julho de 1932. Na serventia de alistar e ordenar batalhes de soldados, organizar os

servios de apoio indispensveis s operaes militares (Camargo, 1982), a Liga de Defesa

Paulista apresentou a necessidade de propagar os ideais da Revoluo, com forte

repercusso na populao, como demonstra o texto a seguir de Ana Maria de Almeida

Camargo, que apresenta uma coleo de documentos fac-similados da guerra paulista,

intitulada So Paulo, 1932:

Era preciso manter elevado o nimo de toda uma populao e esse trabalho foi feito

em So Paulo atravs de comcios, de jornais com mais de uma edio diria, de

mensagens radiofnicas, de boletins que passavam de mo em mo. (...) A palavra de So

Paulo foi colocada nos muros, foi ouvida em praa pblica, foi transmitida pela imprensa

e pelo rdio.

A guerra civil paulista interrompeu temporariamente a produo de G.A. na redao de

O Estado de S. Paulo. O escritor alistou-se e foi, como combatente, para as trincheiras de

26

Cunha, interior de So Paulo, mas logo foi chamado de volta capital paulista pela Liga de

Defesa Paulista, para assumir o peridico Jornal das Trincheiras.

Como redator-chefe, G.A. comandou todos os 14 peridicos oficiais da srie do Jornal

das Trincheiras, distribudos nas reas de combate da Revoluo Constitucionalista, entre

14 de agosto e 25 de setembro de 1932. Os temas abordados no peridico, nos primeiros

nmeros, enfatizavam a situao poltica, com a publicao de um discurso a favor da

restaurao da Constituio e, a partir do 4o. exemplar, passaram a expor a construo

simblica de mitificao do bandeirantismo, para exaltar a gente e a terra paulistas.

G.A. introduziu ainda no peridico o humor, com desenhos em quadrinhos e textos de

outros autores da poca, como o irreverente Ju Bananre, abrindo espao para a literatura

de fico em pleno jornal informativo de guerra. O espao literrio tambm permitiu a G.A.

popularizar alguns de seus poemas produzidos durante o acontecimento histrico, que se

tornaram emblemticos para a guerra civil constitucionalista, como Moeda Paulista e a

cano O Passo do Soldado7.

O meio encontrado pela literatura de servir como meio de acusaes federalistas

apareceu tambm em publicaes como o jornal O separatista, no folheto A camorra de

cima8.

So Paulo foi derrotado pelo governo de Getlio Vargas em 28 de setembro de 1932,

que reprimiu os participantes da Revoluo Constitucionalista com priso e exlio. G.A.

ficou detido no Rio de Janeiro e, em 5 de novembro, partiu para Portugal, onde permaneceu

at meados de agosto de 1933.

No exlio, a Academia de Cincias de Lisboa acolheu-o solenemente. Galiza e Frana

foram dois outros lugares em que o poeta esteve na Europa. De volta ao Brasil, publica o

livro de crnicas O meu portugal, em que teceu uma comparao dos paulistas com os

portugueses.

Em 02 de novembro de 1933, ainda sob o regime getulista, G.A., em resposta aos

jornais da manh que publicavam a lei do governo que proibia os Estados de terem

insgnias prprias como brases-de-armas, bandeiras, hinos etc., escreveu o poema

7 O poema virou hino da Revoluo Constitucionalista de 1932.8 Estes dois documentos literrios pertencem aos fac-smiles reunidos em coleo, por Ana Maria de Almeida Camargo, em So Paulo, 1932.

27

Bandeira das Treze Listras, que se tornou um marco nas comemoraes cvicas em So

Paulo.

As datas cvicas de So Paulo foram para G.A tambm motes de discursos: Para o

exlio (14 de novembro de 1932, a bordo do navio "Siqueira Campos"); A Clandestina (a

bordo do "Pedro I", 5 de novembro de 1932); Lis... tima (Lisboa, fevereiro de 1933).

A produo sobre So Paulo no parou por a. Com a fundao do Clube Piratininga,

em 1934, de que o escritor foi um dos scios-fundadores, G.A. usou o local de sua tribuna

para lanar outros poemas que ele considerava "paulistas". Alguns deles, manuscritos,

foram acrescentados por ele em Poesia Vria, vol. VI, de 1955, sob o ttulo 1932, poemas

que ele desejava ter publicado em um livro nico. Os poemas que o escritor paulista

escreveu para e sobre a Revoluo foram considerados "os mais belos poemas de

exaltao a So Paulo" (Novaes e Peixoto, 1990).

Toda uma reinveno literria do Estado de So Paulo permaneceu viva na inteligncia

paulista, mesmo com a derrota na guerra civil de 32. A resistncia dos ex-combatentes e

revolucionrios continuou com a fundao do Clube Piratininga: seus scios foram

responsveis pela editorao da revista Paulistnia, espao oficial de textos de temas

levantados pela Revoluo Constitucionalista e escritos por colaboradores que se dividiam

entre escritores, profissionais liberais, polticos, historiadores ligados instituies da

inteligncia paulista, como o Instituto Histrico e Geogrfico, a Academia Paulista de

Letras, o Museu Paulista, a Faculdade de Direito do Largo de So Francisco.

Ligada s afirmaes sobre o que significa ser paulista e sobre a importncia

cultural de So Paulo, a revista marcou sua linha editorial pela escolha de textos sobre as

tradies e a histria paulista, trabalhadas em forma de criaes, comparaes com outras

culturas, pesquisas cientficas e histricas, debates sobre ancestralidade paulista e o

bandeirantismo, tema que perdurou durante toda a existncia da revista, supostamente de

1937 em clculo aproximado de seu primeiro nmero, por no ter sido localizado nesta

pesquisa nem mesmo no Clube Piratininga, criador dessa publicao at 1979, data de seu

ltimo exemplar. Suas edies foram lanadas em datas trimestrais, porm irregulares

sem fixar os meses de publicao , e seus nmeros foram norteados por contnuas

homenagens Revoluo Constitucionalista de 1932.

28

Tecnicamente, contos, poemas, narrativas, fotos, reproduo de pinturas e

iconografias riqussimas sobre os bandeirantes constituem o material literrio da revista

Paulistnia. Dentre os escritores que se destacaram como seus principais colaboradores,

aparecem G.A., Alfredo Ellis Jr. e Ibrahim Nobre, entre outros.

O editorial de Alfredo Ellis Jr., da revista de maio - jun. de 1949, demonstra um

exemplo da linha literria da revista:

A primeira vez que vi o termo Paulistnia foi, quando depois da nossa

maravilhosa epopia de 32, o insigne poeta Martins Fontes publicou, com esse

ttulo uma linda coletnea de maviosos versos de sua lavra, dedicados aos tits

daquela pgina gloriosa.

Depois, Joaquim Ribeiro, denodado soldado do 1. Batalho das Foras

da Liga de Defesa Paulista, meu companheiro das trincheiras de Cunha e dos

descampados do espigo do Divino Mestre, usou desse termo para designar a

regio do folclore bandeirante. Gostei imenso do termo e aproveitei-o para com

ele marcar a regio territorial da velha Capitania Vicentina. A regio

paulistnica mais lata [sic] que a restrita zona planaltina, e a que hoje

pertence ao Estado de So Paulo, pois ela abrangia no s o litoral Vicentino, o

planalto Piratiningano, que ia desde a Mantiqueira, at o Iguass, com o vale do

Paraba, e as terras altas do Oeste paulista e paranaense. Alm do Litoral e do

Planalto, a Paulistnia abarcava o territrio das Gerais, de Gois, de Mato

Grosso e todo o extremo sul brasileiro, com cerca de 2.800.000 quilmetros

quadrados e habitada por 25 milhes de habitantes.

Foi precisamente essa imensa regio paulistnica que viu o primeiro

movimento nativista na Amrica: a aclamao de Amador Bueno, que seria o

rei da Paulistnia.

uma estranha predestinao da nossa augusta regio, de ser sempre a

primeira em tudo!

Guilherme de Almeida j marcou, com letras de ouro, a divisa do nosso

So Paulo?

A predestinao do

NON DUCOR, DUCO

nos acompanha, sempre concreta e flgida, desde os mais remotos dias

do seiscentismo.

29

Foi por isso que me enchi do mais pleno contentamento quando vi que

tinha esse nome a esplndida revista do nosso Clube Piratininga, cujo nome

abenoado a sntese do ideal daqueles que:

no esquecem, no perdoam e no transigem.

O bandeirantismo foi to presente em Paulistnia que, em suas pginas, mantinha-

se a constante exaltao ao Estado de So Paulo. Ora cientificamente, ora literariamente, o

bandeirantismo era abordado com rica iconografia, mesmo que isso gerasse, certas vezes,

contradies no enfoque do sertanejo e do passado colonial paulista, embora nunca na linha

da revista, que era a da linha regionalista bandeirantista. Srgio Buarque de Holanda, por

exemplo, remetia ao sertanejo uma verso sobre os bandeirantes avessa ao lirismo dos

poetas e romancistas. No poema Piratininga, G.A. retrata os bandeirantes como eles

constantemente apareciam na revista Paulistnia, atravs do parecer idealizado de seus

colaboradores mais tradicionalistas e na rica iconografia produzida por seus ilustradores, da

qual fazem parte os clebres desenhos dos paulistas de Belmonte: homens fartamente

munidos de materiais, de vesturio e calados com botas:

Piratininga, mameluca moa e linda! Vem espelhar

agora nas guas paradas das tuas enseadas im-

veis, dos teus rios vagarosos, das tuas represas

monumentais, das tuas piscinas esportivas,

vem espelhar nesses nveis variegados a beleza ativa

e firme da tua imensa e til mocidade!

E v! V com muito orgulho a poesia que tu foste

e que tu s!

Lembras-te? Foi poesia a hstia branca levantada so-

bre um susto de cocares e de flechas empenadas;

e foi poesia o tropel bruto, pelo mato, das botas

sertanistas atrs de ouro e esmeraldas;

e foi poesia o banz preto nos pores dos brigues

negreiros entre escoltas de tubares;

e foi poesia o longo gemido no tronco, e foi poesia

a baguna macambzia das senzalas

30

Por outro lado, o olhar crtico de Srgio Buarque de Holanda, no texto publicado na

revista Paulistnia n. 27, em 1949, apresenta ao pblico uma outra realidade que pertencia

ao destino dos bandeirantes:

A silhueta convencional do bandeirante, com o sombreiro largo de

feltro, o arcabuz ou escopeta e a respectiva forquilha, o terado cinta, o gibo

de armas acolchoados de algodo, as calas tufadas, as botas altas de cordovo,

parece j definitivamente incorporada nossa imaginao histrica. Como

tentar corrigir uma imagem to largamente difundida pelos retratos supostcios,

sem mesmo suprimir certas convices, que fora de repetidas, se tornaram

inseparveis da idia que fazemos do antigo devastador do serto.

Mas a teia de fices, embora generosas ou inofensivas, que envolve

tantos fatos do passado, h de ser primeiramente desfeita, se quisermos chegar a

uma justa e exata compreenso dos fatos: precisamente a iconografia das

bandeiras, que pode tornar-se auxiliar predistinoso da histria, de ser revista em

mais de um ponto.

A leitura atenta de inventrios e testamentos bandeirantes mortos no

serto leva-nos a julgar que, mesmo durante as expedies, andavam eles

freqentemente com as pernas e os ps desprotegidos. Em muitos casos, no se

assimila sequer a presena de calados em semelhantes textos.

Sabe-se que o calado teve, com bastante freqncia, prestgio quase

mgico em terras de portugueses, valendo como prova da nobreza ou da

importncia social de quem o usava. Houve quem dissesse que, no Brasil, foi o

verdadeiro distintivo da liberdade, e em Angola, segundo relatava Silva Correia

em fins do sculo XVIII, chamavam "brancos" aos negros que pelo trato e a

distino estivessem em condies de us-los. Ainda quando no constitusse em

todos os casos, privilgio de homens livres, indicaria de qualquer modo, certa

dignidade e ascendncia pessoal.

A importncia da criao sobre o imaginrio do passado colonial consolidado e

propagado em So Paulo em 32 verifica-se, ainda, na incorporao dessa temtica em

aes administrativas pblicas da cidade de So Paulo, principalmente no sculo XX, mas

que sobrevivem at hoje. As datas cvicas passaram a ser tribuna de escritores que

participaram da Revoluo de 32. No aniversrio do IV Centenrio de So Paulo, como

presidente da Comisso, G.A. foi responsvel pela parte literria que se fez presente nos

31

festejos, como se pode ver no trecho deste contrato da entidade autrquica criada pela Lei

Municipal de 19519:

(...) o Senhor Doutor GUILHERME DE ALMEIDA, advogado e escritor,

residente rua Macap n. 187, nesta Capital, a seguir denominado

simplesmente OUTORGANTE, mediante as seguintes clusulas e condies:

PRIMEIRA: - O OUTORGANTE se compromete a realizar o trabalho de uma

transcrio literria, que o torne representvel, do auto de Jos de Anchieta

intitulado Na festa de So Loureno. Alm da traduo em versos

rigorosamente rimados dos textos castelhano e tupi, e de uma acomodao, para

a inteligncia geral, ao texto portugus, o OUTORGANTE far tambm a

adaptao da pea tcnica teatral de hoje e a superviso geral da montagem

(cenografia e costumes) da parte musical e coreogrfica, tudo conforme

exposio, que deste contrato passa a fazer parte (...)

Desta fase de participaes em comemoraes cvicas, destacam-se as leituras que

G.A. fez em 1953, de Voltaram os Bandeirantes; para as comemoraes do IV Centenrio

de So Paulo, em 1954 (diante do Monumento das Bandeiras, pea assinada por Vtor

Brecheret, instalada na praa "Armando Sales de Oliveira"), fazendo uma saudao aos

bandeirantes com a poesia Orao-poema e aos que fizeram histria na guerra paulista de

32, com o poema A espada de pedra; na inaugurao do Monumento-Mausolu

Constitucionalista, de que o escritor foi responsvel por sua Temtica e Legendas dos

Mosaicos do Monumento-Mausolu aos Heris de 32, formado por quatro temas, a seguir:

I - So Paulo: Cidade do Trabalho, II - Natividade, III - Sacrifcio, IV - Ressurreio; a

conferncia Roteiro do Exlio, pronunciada no Instituto Histrico e Geogrfico, em So

Paulo, em 1957. Consta de 1968 esse trecho de discurso, material fornecido pelo Museu

Casa Guilherme de Almeida, sem o ttulo ou local de apresentao do escritor:

"Uma epopia?... Sim. Ali atrs, no passado, vejo, firmado numa gleba,

um teodolito. feito de trs nomes de seu trip: Adolfo Pinto - Navarro de

Andrade - Francisco Monlevade. Ali se faz o levantamento geoeconmico -

poltico - histrico - social de So Paulo. E dessa terra assim miraculada emerge

o alto cntico: essa epopia que hoje completa um sculo de vida, um sculo de

9 Documento arquivado na correspondncia passiva do escritor, no Museu Casa Guilherme de Almeida.

32

ao, rduo, spero, forte, duro, rijo, mas humano e vitoriosamente,

gloriosamente, belo. Sim, uma epopia. Seu ttulo: "A PAULISTA". Seu heri: O

PAULISTA. O autor: O PAULISTA."

A produo literria de G.A. com poemas, textos, hinos para So Paulo, como se

observa, foi intensa. Por essa produo, o escritor tornou-se smbolo no Estado como

poeta-soldado. A partir do ano da Revoluo, as correspondncias dirigidas ao escritor

revelam as calorosas saudaes dos paulistas por seu trabalho de poeta de 32. Os

remetentes identificam-se como paulistas saudosos", ao dirigir suas cartas ao "ilustre

patrcio" G.A.

Incluem-se, nesse grupo de remetentes, parentes, amigos, colegas do peridico O

Estado de S. Paulo, cartas diplomticas dos pases que o autor estivera e tambm de leitores

que s o conheciam por meio de sua literatura. Seus leitores passaram a aproximar-se do

escritor usando expresses como "ilustre paulista", "filho da terra paulista".

Muitas das cartas enviadas a Guilherme de Almeida depois da Revoluo de 32

tendem a dialogar com o escritor utilizando-se de uma voz lrica que pretende falar pela

coletividade do "povo" paulista, ao informar ao poeta como os seus conterrneos so

orgulhosos de suas letras sobre o Estado. Em uma das cartas, cujo papel marcado pelo

timbre da bandeira paulista, o remetente escreve para o autor dizendo "receba muitas

saudades de So Paulo e de todos os paulistas", para s, a partir de ento, falar dele

pessoalmente.

Tal linguagem de exaltao da gente e terra paulista, que se tornou cdigo de

comunicao entre os participantes e admiradores da causa revolucionria

constitucionalista, permaneceu em instituies e grupos de pessoas que preservaram a

memria de 32, como se pode ver em frases de remetentes como esta: So Paulo sempre

firme, de cabea erguida, aguarda a oportunidade para levantar o seu brao; ou em carta

do presidente do Clube Piratininga a G.A., em 20 de abril de 1967. A missiva iniciada

com a seguinte apresentao: Paulistssimo Dr. Guilherme de Almeida, meu cordial

abrao. E assim termina: Receba tambm a afirmativa de que a nossa terra herica

profunda e comovidamente agradecida ao permanente jovem e inspirado defensor de suas

gloriosas tradies.

33

A literatura de exaltao da terra e gente paulista em G.A. foi reverenciada por seus

leitores, como se pode constatar na carta de A. Gomes Junior10:

A estadia dos exilados paulistas - a sua fina mentalidade em Portugal,

trouxe mais uma grave vantagem para o Brasil, tal a que os fez conhecerem as

grandes reformas de Portugal moderno e revolucionrio, para aplicao no

nosso Brasil, como a que reviveu laos de unio entre nossa gente para uma

aliana mais eficiente, levando as crnicas bandeirantes at nossos avs

portuguezes (...)

As cartas comprovam ainda que G.A. continuou a escrever sobre So Paulo at o

fim de sua vida. Um carto pequeno, datilografado e assinado por Paulo Camillo

Florenano, em 05 de maro de 1969, apenas cinco meses antes a morte do escritor, revela

que o redator-chefe esperava o texto de G.A., uma de suas ltimas publicaes na revista

Paulistnia.

10 Carta de A. Gomes Junior para G. A, de 09 de agosto de 1933. A carta foi escrita pelo que o remetente mesmo diz ser de um brasileiro-paulista-paranaense, enviada de S. Mateus, estado do Paran. Escrita mo. 28 cm x 20 cm.

34

3. Catlise paulista: o poeta na metrpole

A relao do escritor G.A. com a cultura paulista foi, desde o incio de sua carreira

literria, ligada s mais importantes instituies letradas de So Paulo. O autor passou pela

Faculdade de Direito do Largo de So Francisco, onde ingressou em 1908 e formou-se em

1912. Em 1916, Guilherme de Almeida ingressou no jornal O Estado de S. Paulo. Com

seus livros de poesia, foi reconhecido como um importante poeta brasileiro em 1917, logo

na estria literria, com o livro Ns. Sua atuao na literatura tambm ficou marcada por

sua participao no movimento Modernista de 1922, de modo que, em 1929, o xito

alcanado como escritor lhe valeria a cadeira n 15 na Academia Brasileira de Letras. G.A.

encontrava-se, portanto, na poca em que escreveu as colunas Cinematgrafos e A

Sociedade no jornal O Estado de S. Paulo, entre 1927 e 1932, integrado s principais rodas

intelectuais paulistas e nacionais.

Sua passagem por tais instituies foi determinante para o desvio, ntido nos anos

30, de uma literatura considerada de vanguarda aps a Semana de Arte Moderna de 22.

Outros intelectuais, contemporneos seus na literatura ou em outras reas de conhecimento,

tomavam novos rumos nos crculos letrados da poca. Assim traduz Fernando de Azevedo

sua passagem pelo jornal O Estado de S. Paulo como crtico literrio entre 1923 e 1926,

dirigido por Jlio de Mesquita, cujas avaliaes polticas tinham grande repercusso no

Estado de So Paulo e no Brasil: como um "centro de estmulos e uma preparao para a

vida pblica" (pg. 74)11.

G.A., por sua vez, enredou-se na elite letrada de So Paulo com o passar do tempo,

seguindo a linha tradicional de fazer literatura. Sua entrada em fins dos anos 20, incio dos

anos 30, no Instituto Histrico Geogrfico de So Paulo, que abrigava o crculo de idias

histricas e literrias de associados como Euclides da Cunha, Alberto Rangel, Afonso

Arinos de Melo Franco, Amadeu Amaral, Amadeu Queiroz, Veiga Miranda, Vicente de

Carvalho, Jlia Lopes de Almeida, Paulo Setbal (A.C. Ferreira, 2002, pg. 106 e 107),

contribuiu para a confluncia de um campo propcio para outras temticas em sua criao,

de que vinha participando at ento com a roda modernista.

11 AZEVEDO, Fernando. Histria de minha vida. RJ: Livraria Jos Olympio Editora, 1971.

35

O Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo valia-se da tradio do pensamento

iluminista, na proposta da tarefa de "produzir e difundir o conhecimento histrico e

cientfico" (A. C. Ferreira, 2002, pg. 108), em direo ao progresso. O conhecimento

intelectual de So Paulo no sculo XX entrava como parte do projeto de seu crescimento e

pujana, proposta largamente utilizada por seus escritores que desejavam reconstruir seu

imaginrio histrico. Era uma linha literria ligada aos escritores tradicionalistas de So

Paulo que no tardaria a distanciar G.A. da posio de vanguarda para, mais tarde, ser

considerado retrgrado e classicista por sua fortuna crtica.12

Logo em seguida ao movimento modernista, G.A. comeou a escrever para o jornal

O Estado de S. Paulo, incluindo o tema "So Paulo" em suas crnicas a partir de 1927.

Primeiro, em Cinematgrafos; depois, em A Sociedade. Nestes textos, G.A. surpreende pela

incluso do olhar atento cidade metropolitana e gente paulista diante da tarefa de redigir

crnicas que deveriam, pelo histrico dessas colunas, cuidar apenas da anlise de cinema e

apresentar informaes a respeito da sociedade paulistana.

Quando G.A. assume a coluna A Sociedade, lana em suas crnicas uma So Paulo

mais buclica, de tradies agrcolas, de herana deixada pela fidalguia portuguesa; uma

So Paulo dos arranha-cus que procura, em meio s fachadas cinzentas, refazer a nostalgia

deixada por suas tradies.

nesse exato ponto que G.A. inicia uma busca interminvel em sua literatura.

Quais seriam as tradies de So Paulo? Quem era o povo paulista? A partir da, a inveno

histrica entra em cena na literatura do autor, dando-lhe a gente e a terra paulista seu novo

ponto de partida artstico.

As perguntas feitas pela literatura de G.A. sobre a identidade de So Paulo,

principalmente a partir de 1929, foram, pouco a pouco, sendo respondidas pelo convvio do

crculo intelectual de escritores e historiadores nas instituies responsveis pela literatura

paulista, em especial o IHGSP, que atendia cada vez mais s necessidades culturais

advindas da nova postura cultural do estado. So Paulo firmara-se durante a Primeira

Repblica como importante territrio para a Federao. Paralelamente, o IHGSP crescia

nos seus investimentos, trabalhando em funo de suas condies sociais para que pudesse

gozar de mais prestgio no pas. As correntes filosficas presentes no crculo de seus

12 QUEIROZ, Maria Helena de. Fortuna crtica comentada.

36

escritores estavam s voltas com o darwininsmo social e o positivismo. A importncia da

educao crescia no mbito das decises administrativas, por ser vista como "instrumento

de difundir novas idias e proporcionar o desenvolvimento cientfico e social" (A. C.

Ferreira, 2002).

A parte cientfica e literria da intelectualidade paulista promovia intercmbios

institucionais, como a presena dos trabalhos feitos por Teodoro Sampaio, da Comisso

Geogrfica e Geolgica, no IHGSP, ou a inaugurao do Museu Paulista, considerada um

avano para todo o circuito letrado, alimentando, dessa forma, o mesmo pensamento de que

as cincias sociais e naturais poderiam dar grande contribuio ao Estado, principalmente

quanto questo de enraizar, no seu povo, as suas tradies. (A. C. Ferreira, 2002).

Ainda a respeito da influncia dessas instituies, destaca-se o fato de que, durante

as duas primeiras dcadas do sculo XX, havia a proximidade das famlias mais

tradicionais de So Paulo a estes centros de saberes, assim como sua atuao no sentido de

instituir um novo estilo de vida principalmente na capital, onde fazendeiros ingressavam

eufricos com a possibilidade de conforto proporcionado pela modernidade. Essa migrao

do campo para a capital determinou no s o modo de vida levado pela camada mais

abastada dos paulistas, como tambm propiciou a circulao e assimilao das idias que

chegavam do campo, como a cultura do caf e o progresso econmico que dele nascia no

Estado. O modo de vida sertanejo esteve presente neste novo estilo de vida, confirmado na

informao de que muitos dos escritores considerados regionalistas neste perodo

descendiam de famlias agrcolas13 (Ferreira, 2002).

As relaes travadas com o IHGSP tambm eram as dos jornais mais influentes da

poca, como O Estado de S. Paulo, Correio Paulistano, Dirio Popular. Nos anos 20, o

cenrio cultural foi largamente influenciado pelos eventos promovidos por esses mesmos

centros letrados, cujas irradiaes definiram o percurso do reduto de sua inteligncia.

Se as propostas das instituies, como no caso as do IHGSP, eram de construir a

nacionalidade do pas por meio da histria de So Paulo, como afirma a pesquisa de A. C.

Ferreira (2002), no de se admirar que suas prioridades se voltassem para a reconstruo

simblica do passado colonial, como de fato, aconteceu. Das principais atividades 13 Menotti Del Picchia, Plnio Salgado, Cassiano Ricardo, Monteiro Lobato, Paulo Setbal, Cornlio Pires, Veiga Miranda, Amadeu Amaral, Aureliano Leite, Lo Vaz, Valdomiro Silveira, Jos Gabriel Toledo Piza, Emlia Moncorvo Bandeira de Mello, Ulisses de Sousa Silva, Antnio Joaquim da Rosa, Armando Caiubi, Carlos da Fonseca, Lencio de Oliveira e Jernimo Osrio.

37

organizadas pelo IHGSP, grande importncia foi dada s descobertas portuguesas e aos

primeiros sculos da colonizao brasileira, como a comemorao do IV Centenrio da

Descoberta do Brasil, "para qual o Instituto editou, em folheto cuidadosamente ornado,

cpias das cartas do padre Jos de Anchieta e da obra de Hans Stden [sic]" (pg. 111); ou

dos duzentos anos do nascimento de Pedro Taques de Almeida Pais Leme, autor de

Nobiliarquia paulistana e Histria da Capitania de So Vicente, em 1914; da celebrao da

vida de Gaspar Madre de Deus, em 1915. Ainda receberam homenagens personagens do

perodo colonial, em que se incluem donatrios portugueses, sesmeiros, jesutas,

governantes, cronistas e bandeirantes (pg. 127).

A importncia dada ao passado colonial do pas, perodo reinterpretado pela elite

paulista, viria ainda a ser motivo de movimentao de polticos, tais como Washington

Lus, que, em seu governo de presidente do Estado de So Paulo, de 1920 a 1924, deu

margem pesquisa de arquivos coloniais paulistas para a confeco de livros a respeito,

como foi o caso de Vida e morte bandeirante, escrito por Jos de Alcntara Machado,

dentro dos 27 volumes publicados pelo Arquivo do Estado de So Paulo, no estudo de

testamentos e inventrios processados em So Paulo sobre a histria paulista nos sculos

XVI e XVII.

Desse modo, a elite regional paulista abria um canal por onde muitos autores

navegaram do final do sculo XIX ao primeiro quartel do sculo XX, tendo frente os

desafios da construo simblica do pas por intermdio da histria do Estado, apresentada

na forma de biografias, fatos histricos romanceados, contos, crnicas e novelas urbanas ou

rurais, memrias, literatura de viagem, poesia, romances de vrias espcies (A. C. Ferreira,

2002), formando o intercmbio dos gneros e formas narrativas com os escritos histricos

que seriam, conforme a avaliao de Paes (1985) e Sussekind (1987), a prpria continuao

do Parnasianismo do incio do sculo por sua imaginao potica, ornamentos na escrita e

de retrica. As publicaes dos principais institutos paulistas, em especial o IHGSP,

contaram ainda com os cuidados de seus colaboradores em projetos que viram florescer a

edio de uma srie documental sobre a histria de So Paulo em Documentos

interessantes para a Histria e Costumes de So Paulo, e a incluso do assunto

"Povoamento e expanso bandeirante" na Revista do Instituto, de 1895 a 1940.

38

Nesse perodo, aprofundam-se e proliferam os estudos bandeirantistas, nas dcadas

de 1910 e 1920, junto ao interesse de classificar as famlias mais importantes da regio

explorada pelos desbravadores nos sculos XVII e XVIII, na busca da demonstrao de

grandes realizaes, sustentadas "por indivduos aos quais se atribuam uma fora superior"

(A. C. Ferreira, 2002, pg. 128), que mitificariam o passado e fortaleceriam o investimento

simblico numa tradio considerada paulista.

Desse modo, a necessidade de reconstruo simblica da histria do Estado foi

utilizada com grande fora no cenrio da literatura paulista, a partir da primeira dcada do

sculo XX, em uma produo propensa a enraizar e expandir o modelo de um imaginrio

regional, com enfoques naturalistas. Os estilos de escrita eram variados. Segundo A. C.

Ferreira (2002, pg. 213), eles atingiam desde ensaios histricos a crnicas e crticas,

novelas ou contos folclricos, poemas e estrias para jovens e crianas.

Na dcada de 20, pode-se destacar, ao lado do Livro de horas de Sror Dolorosa, de

G.A., as obras Urups, Negrinha, Narizinho arrebitado, Cidades Mortas e Idias de Jeca

Tatu, de Monteiro Lobato; Alma cabocla, de Paulo Setbal; O dialeto caipira e Um soneto

de Bilac, de Amadeu Amaral; Madame Pommery, de Hilrio Tcito; Jardim de Hesprides,

de Cassiano Ricardo, ou Juca Mulato, de Menotti Del Picchia. O predomnio era de

publicaes de poesias, que refletiam o pice do "Parnaso paulista" (A. C. Ferreira, 2002,

pg. 214). Em seguida vem o conto, na difuso da prosa, seguida dos romances, novelas e

memrias, que apareceram na poca em propores menores, destacando-se Agenor

Silveira, Albertino Moreira, Alcntara Machado, Afonso de Freitas, Alfredo Pujol,

Amadeu Amaral, Cludio de Sousa, Cornlio Pires, Fernando Azevedo, Heitor Morais,

Hilrio Tcito, Jlio Mesquita Filho, Lo Vaz, Martim Francisco, Moacir Piza, Monteiro

Lobato, Valdomiro Silveira, Sud Menucci. Dos modernistas, inclui-se ainda a contribuio

de Plnio Salgado, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia. E, ainda, pode-se citar Jos

Gabriel Toledo Piza, Emlia Moncorvo Bandeira de Mello, Ulisses de Sousa Silva, Veiga

Miranda, Antnio Joaquim da Rosa, Armando Caiubi, Carlos da Fonseca, Lencio de

Oliveira, Salviano Pinto, Jernimo Osrio, Augusto de Oliveira e Souza, Armando

Francisco Soares Caiubi, Otoniel Mota, Arlindo Jos Veiga dos Santos, Aureliano Leite,

Pedro Augusto Gomes Cardim.

39

O passado colonial desencadeou uma srie de estudos e livros sobre o tema do

bandeirantismo. Seus autores foram desde historiadores a cronistas de textos orientados por

leituras e reinterpretaes de documentos e impresses coloniais sobre a vida paulista.

Saint-Hilaire foi relido por vrios intelectuais modernos. Afonso de E. Taunay, um dos

precursores da elevao do bandeirantismo na literatura do sculo XX, em seu livro Non

Ducor Duco (1924), assume o olhar de exaltao dos sertanejos de Saint-Hilare nessas

palavras: quando l algum os pormenores das jornadas interminveis dos antigos paulistas

sente-se como que tomado de estupefao e inclinado a crer que estes homens pertenciam a

uma raa de gigantes.

O tema do bandeirantismo incitou extensos estudos bibliogrficos ainda sobre as

memrias de Fr. Gaspar de Madre de Deus, Pedro Taques, Ferno Cardim, entre outros

jesutas ou escritores da era colonial, constituindo uma linha historiogrfica literria sobre o

assunto que resultou em diversos ttulos regionalistas sobre So Paulo: Histria das

Bandeiras Paulistas; Histria da cidade de So Paulo no sculo XVIII (1735-1765);

Histria Seiscentista da Villa de So Paulo; Na era das Bandeiras; Non Ducor, Duco, So

Paulo no sculo XVI; So Paulo nos primeiros anos (1554-1601) de Afonso de E. Taunay;

Histria da civilizao paulista, de Aureliano Leite; Histria e tradies da cidade de So

Paulo, de Ernani da Silva Bruno, com prefcio de Gilberto Freyre.

Nesta linha literria, consolidaram-se ainda as letras produzidas para a Revoluo

Constitucionalista de 1932, encabeada por Alfredo Ellis Jr., professor de Histria da

Civilizao Brasileira na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So

Paulo e membro da Academia Paulista de Letras, com uma literatura mais tendente ao

tradicionalismo paulistano do Estado, baseada por estudos cientficos centrados

principalmente em teorias de raas, que podem ser vistos nos livros: Condenao ou

separao; Captulos da histria social de So Paulo; Populaes paulistas; A nossa

guerra; Pedras lascadas.

Enquanto isso, do lado estrito da fico, os bandeirantes apareciam, entre outros

livros, nas crnicas do jornalista Nuto Sant'Anna do O Estado de S. Paulo em So Paulo

histrico: aspectos, lendas e costumes; El-Dorado, romance de Paulo Setbal.

40

Nesta linha historiogrfica preocupada com o passado colonial e com o

bandeirantismo, h forte infiltrao do tema da nacionalidade, ligada questo da defesa

da terra e gente paulista como expresso de amor ptria. Alfredo Ellis Jr. lembra, em seus

escritos, a importncia da questo, como se o papel do escritor regionalista bandeirantista

estivesse destinado a desempenhar uma tarefa patritica de exprimir as idias e sentimentos

do estado de So Paulo, defendendo e reforando a cultura paulista. Nesse ato, misturou-se

o que, para Antonio Candido, nasceu no processo de Independncia com os jovens

romnticos: retrica e nativismo, como se o amor terra tivesse um valor quase cvico e

inseparvel do patriotismo.14

Porm, o forte pilar dessa linha literria, em especial aps os anos 30, a afirmao

mitolgica do bandeirante e da importncia do Estado paulista, construda no sculo XX

por meio de exemplos retirados desde os personagens de um lvares de Azevedo at as

crnicas jornalsticas publicadas sobre a regio, principalmente no O Estado de S. Paulo15 e

Correio Paulistano, para a constituio de uma nova historiografia sobre So Paulo.

Em Geografia dos mitos brasileiros, Lus da Cmara Cascudo explica por que

nossas lendas esto atreladas diretamente ao processo conquistador e nmade do mameluco

sobre a nossa terra,16 desde a poca colonial. O mameluco, ou o mestio ("misturado",

como Cascudo acentua), aparece nos cronistas paulistanos do sculo XVII como um

contador de histrias incrveis ouvidas em horas de rara tranqilidade, que as teria

espalhado aos lados extremos do Brasil de maneira impressionvel (1976, pg. 37). Explica

ainda o autor a relao do folclore brasileiro com o nosso passado de nmades:

Os nossos so mitos de movimento, de ambulao, porque recordam os velhos

perodos dos caminhos, dos rios, das bandeiras, de todos os processos humanos de

penetrao e vitria sobre a distncia. Quase sempre so mitos cuja atividade apavorar

"quando passam" ou "correm". Curupiras, Caiporas, Mapinguaris, Sacis, Lobi