gustavo barroso e sertão

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159 História & Perspectivas, Uberlândia (29 e 30) : 159-176, Jul./Dez. 2003/Jan./Jun. 2004 FACUNDO NO SERTÃO: GUSTAVO BARROSO E O CANGACEIRISIMO Norberto O. Ferreras* RESUMO No presente trabalho exploramos alguns dos mais importantes estu- dos sobre o banditismo social no Nordeste do Brasil, enfatizando a análise do livro Heróis e Bandidos do romancista e ensaísta cearense Gustavo Barroso. O foco principal da nossa análise concentra-se na relação existen- te entre Barroso e outros estudos anteriores e posteriores deste fenômeno e na forma pela qual Barroso tornou-se um tipo de paradigma do assunto. Para compreender o trabalho de Barroso acompanhamos as suas principais influências e, mais especificamente, o político e analista argentino Domingo Faustino Sarmiento e a forma em que o mesmo é lido por Barroso. PALAVRAS-CHAVE: cangaceirismo, banditismo, nordeste, história das idéias. ABSTRACT In this article we explore some of the most important studies about social bandits and their practices in Brazilian Northeast, by analyzing the book Heróis e Bandidos, by the novelist and writer Gustavo Barroso, from State of Ceará. The main focus here is the relationship between this author’s approach of heroes and bandits and other studies, since Barroso’s became a kind of paradigm to the theme. To understand his work we searched his main influences, more specifically the argentine politic lea- dership and researcher Domingo Faustino Sarmiento and the way Barroso reads him. KEYWORDS: cangaceirismo, bandits, Northeast, intellectual history. * Professor Adjunto Depto. de História da Universidade Federal Fluminense. Doutor em História Social pela Universidade de Campinas.

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barroso e o sertão

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    Histria & Perspectivas, Uberlndia (29 e 30) : 159-176, Jul./Dez. 2003/Jan./Jun. 2004

    FACUNDO NO SERTO: GUSTAVO BARROSOE O CANGACEIRISIMO

    Norberto O. Ferreras*

    RESUMONo presente trabalho exploramos alguns dos mais importantes estu-

    dos sobre o banditismo social no Nordeste do Brasil, enfatizando a anlisedo livro Heris e Bandidos do romancista e ensasta cearense GustavoBarroso. O foco principal da nossa anlise concentra-se na relao existen-te entre Barroso e outros estudos anteriores e posteriores deste fenmenoe na forma pela qual Barroso tornou-se um tipo de paradigma do assunto.Para compreender o trabalho de Barroso acompanhamos as suas principaisinfluncias e, mais especificamente, o poltico e analista argentino DomingoFaustino Sarmiento e a forma em que o mesmo lido por Barroso.

    PALAVRAS-CHAVE: cangaceirismo, banditismo, nordeste, histriadas idias.

    ABSTRACTIn this article we explore some of the most important studies about

    social bandits and their practices in Brazilian Northeast, by analyzingthe book Heris e Bandidos, by the novelist and writer Gustavo Barroso,from State of Cear. The main focus here is the relationship between thisauthors approach of heroes and bandits and other studies, since Barrososbecame a kind of paradigm to the theme. To understand his work wesearched his main influences, more specifically the argentine politic lea-dership and researcher Domingo Faustino Sarmiento and the way Barrosoreads him.

    KEYWORDS: cangaceirismo, bandits, Northeast, intellectual history.

    * Professor Adjunto Depto. de Histria da Universidade Federal Fluminense. Doutorem Histria Social pela Universidade de Campinas.

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    Toda la vida de Quiroga me parece

    resumida en estos datos. Veo en ellos

    al hombre grande, al hombre de genio,

    a su pesar, sin saberlo l, el Cesar,

    el Tamerln, el Mahoma. Ha nacido

    as y no es culpa suya; descender

    en las escalas sociales para mandar,

    para dominar, para combatir el poder

    de la ciudad, la partida de la polica.

    (Facundo Domingo F. Sarmiento)

    I.A questo do Banditismo tem sido abordada vrias vezes

    pela Histria Social, porm desde que Eric Hobsbawm publicouo seu clebre livro Bandits1 a quantidade de estudos sobre estatemtica se multiplicou vrias vezes. O modelo de anlise hobs-bawmniano foi aplicado largamente para distintas realidades, commaior ou menor xito e nem sempre com o melhor critrio. Osestudos sobre o banditismo tiveram como alvos privilegiados osul da Europa e a Amrica Latina. Na Europa os estudos se cen-traram na Itlia, Espanha e Portugal, na Amrica Latina privilegiou-se o Mxico e o Brasil, o perodo para todos estes pases v des-de mediados do sculo XIX a mediados do sculo XX. Logica-mente que nem estes pases nem o perodo mencionado so osnicos casos estudados, porm onde se concentra a maiorquantidade das pesquisas.

    Mesmo assim, os estudos contemporneos sobre o bandi-tismo no Brasil, no tm como origem exclusiva a abordagem deHobsbawm. Hobsbawm tem sido o modelo e a inspirao paravrios historiadores desta temtica. O Brasil no est necessaria-

    1 HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitria, 1976 (1a ed.em ingls: 1969).

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    mente isento desta influncia. Porm, existe uma aproximaosimilar e simultnea quela do historiador ingls, mas os cami-nhos para a construo destas abordagens foram diferentes, em-bora existam alguns pontos de contato entre ambos, principal-mente as obras iniciais de Maria Isaura de Queiroz.2 Ou seja,existe uma srie de coincidncias analticas entre os livros Bandi-dos de Eric Hobsbawm, e Cangaceiros e fanticos3, de Rui Fac.Embora quando estes livros tm alguns anos de diferencia a favorde Fac, no o caso de pensar numa copia ou num plgio, fun-damentalmente porque Hobsbawm no conhecia a existncia dotrabalho de Fac, e o leque de casos apresentados pelo prprioHobsbawm excede o estudo do cangaceirismo. Podemos, sim,pensar que se trata do caso de preocupaes simultneas anteproblemas que vinham a tona num mesmo momento e que pas-saram a desafiar os limites dos marcos analticos existentes.Entre as preocupaes que norteavam o pensamento de amboshistoriadores estavam as seguintes: Como analisar esses campo-neses, que eram vistos, geralmente, como seres passivos, masque se tornavam bandoleiros, individualmente ou em grupos, epassavam a atormentar s autoridades e aos donos de terras?Que relao era possvel estabelecer entre estes foragidos e ascomunidades das quais eles faziam parte, ou tinham feito parte?Porque que os camponeses se arriscavam ao dar apoio a estesfora-da-lei? Os surtos de banditismo expressavam algum tipo deprotesto instintivo ante a opresso senhorial ou representavamuma resposta modernizao? Porque os camponeses privilegi-avam esta forma de revolta antes que o sindicato ou a revolta po-pular? Estas bem que poderiam ter sido parte das perguntas feitaspelos intelectuais das dcadas de 1960 e 1970 ante um fenmenoesquivo e incompreensvel.

    2 Como por exemplo, QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil eno mundo. So Paulo: Dominus Edusp, 1965.

    3 FAC, Rui. Cangaceiros e fanticos. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira Ed.UFC, 1980 (1a ed.: 1963).

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    II.Certamente as preocupaes que listei anteriormente no

    eram as nicas que tinham em mente estes intelectuais. As ma-nifestaes religiosas apareciam como um outro mistrio coloca-do pelas sociedades camponesas. Quem sabe a religiosidade eo banditismo podiam ser estudados juntos como as duas carasda mesma moeda. Os milenaristas e os bandidos no andavamlado a lado, mas quando a ocasio era propicia ambas carasdessa moeda podiam se reunir, como aconteceu no Contestadoem Santa Catarina, ou em Canudos, no Serto da Bahia. De essaforma era entendido pelos pesquisadores deste perodo. Pararetratar as resistncia dos camponeses optava-se por esta duplade atores sociais, que podiam estar separados, mas que quan-do a ocasio assim o requeria podiam chegar a reunir-se. Ve-jam-se os ttulos de algumas obras publicadas neste perodo,como o j mencionado Cangaceiros e fanticos4 de Rui Fac, ouFanticos e cangaceiros de Abelardo Montenegro5. O prprioHobsbawm tambm partiu para este mesmo tipo de associaoentre bandidos e milenaristas em Rebeldes Primitivos6. Estosttulos atuam a modo de hipteses exploratrias, e que podemser comprovadas nos ndices.

    Cada um destes indivduos os bandidos ou grupos bandode bandidos ou milenaristas passava longos anos fora da leidesafiando a propriedade e autoridade. Os cantores e poetaspopulares retratavam muitos destes fora-da-lei como indivduoscorajosos e destemidos, contestatrios e rebeldes; e os milena-ristas eram vistos como santos, piedosos e devotos. O desafio autoridade e aos poderosos e o ocasional reparto de mantimentosou dinheiro apareciam para estes narradores, e para a sua audin-

    4 FAC, R., op. cit.5 MONTENEGRO, Abelardo. Fanticos e cangaceiros. Fortaleza: Ed. Henriqueta

    Galeano, 1973.6 HOBSBAWM, Eric. Primitive rebels: studies in archaic forms of social movement in

    the 19th. and 20th. Centuries. Manchester: Manchester University Press, 1959 (htraduo para o portugus).

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    cia, como atrativos mais poderosos que todas as humilhaes eroubos sofridos nas mos destes mesmos bandidos. Quandomenos os delinqentes tambm atingiam aos donos do poder,da terra ou aos comerciantes retalhistas que viviam sugando otrabalho dos camponeses. Os lderes milenaristas, por outra par-te, apareciam nestas narraes como pessoas bondosas, miracu-losas e sbias, sempre atentos ao sofrimento dos camponesese procura de solues para estas vidas miserveis, geralmentepor meio da criao de comunidades autnomas e independentes.A viso popular no coincidia com a acadmica. Os pesquisado-res, pelo contrrio, apontaram esta viso dos poetas populares,e por extenso dos camponeses, como sinnimo de atraso e fal-ta de conscincia de classe o que, de fato, uma das caratersticado comportamento dos camponeses.

    Mas, uma outra questo pode ser levantada na anlise destasobras e, ainda, dentro do esquema de Eric Hobsbawm. Os campo-neses, sejam como bandidos ou como milenaristas, reagiramante a explorao de forma no organizada e sem visar os seusinteresses polticos, econmicos e sociais de longo prazo. Estasformas de protesto tendiam a ser localizadas e, mesmo quandose tratasse de aes de massas, como os levantes ou a constitui-o de comunidades milenaristas, a resposta tinha o carter deutopias reativas.7 A revolta no alcanava o status de transforma-o da realidade, porque os camponeses no estavam em condi-es de transform-la. O mximo que eles podiam fazer era tersurtos de indignao que resultavam na fuga em direo aos re-fgios das comunidades milenaristas, como Contestado, Canu-dos, Juazeiro ou Caldeiro. Ou em direo s chapadas e monta-nhas, para poder agrupar-se como grupos de bandoleiros. Sefosse preciso eles estavam dispostos a lutar at a morte para

    7 Deve ser assim compreendida a tentativa de fuga para um passado idealizado, embusca de uma idade de ouro na qual estavam as respostas para todos os problemas dopresente. O objetivo destas aes era o de reconstruir a antiga comunidade em que oshomens eram iguais ou na que pelo menos no eram explorados de forma selvagem.

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    defender suas posies, mas faziam isto em nome da f e nodo socialismo, a nica idia forma eficiente de reuni-los na lutacontra o jugo das autoridades e dos coronis, muitas vezes reuni-dos numa mesma pessoa. por isso que Hobsbawm os tinhacategorizado como Rebeldes Primitivos8. A incapacidade de es-tabelecer lutas segundo as normas do socialismo os levava areagir seguindo os padres de protesta do mundo pre-capitalista,ou seja como delinqentes ou como religiosos. A sociedade spoderia ser modificada decisivamente sempre que existisse al-gum tipo de interveno externa, como a chegada de organiza-dores sindicais ou polticos das classes mdias urbanas. Paraos camponeses a nica revoluo possvel, a nica mudanafactvel, aquela que vem do alto ou de fora para dentro. Seja aimposio da produo capitalista para o mercado ou da coleti-vizao da produo agrria no socialismo.

    III.O modelo, que tenho chamado de modelo Hobsbawmniano,

    tem sofrido uma srie de crticas. Os estudiosos tm mostradoos furos do esquema de Hobsbawm e do seu primeiro comenta-rista crtico, Anton Blok 9. Estes questionamentos partiram dadasas dificuldades existentes para pensar hipteses sobre o Bandi-tismo Social justamente como Social, at as simplificaes aque foram submetidas as realidades escolhidas para construir omodelo de anlise.

    Mas, este artigo no se centrar na anlise dos estudos sobreos bandidos e as suas sofisticaes posteriores. Pelo contrrio,a minha proposta a de apresentar uma outra vertente na confor-mao do marco contemporneo da anlise dos bandidos no

    8 HOBSBAWM, E. Primitive rebels, op. cit.9 BLOK, Aton. The peasant and the brigand: social banditry reconsidered e

    HOBSBAWM, Eric Social bandits: reply. Ambos em: Comparative studies in Societyand History. vol. 14, no4, Cambridge: Cambridge University Press, Sept. 1972.

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    Brasil.10 Para isso ser preciso, em primeiro lugar pesquisar osmarcos de anlise pioneiros desta questo. Num segundo mo-mento apresentaremos as suas influencias e as semelhanas ediferenas com o modelo Hobsbawmiano.

    As primeiras anlises e descries feitas sobre o banditismovm da literatura. Entre mediados e finais do Sculo XIX uma s-rie de escritores comeam a abordar o serto e suas problemti-cas. Os romances de Franklin Tvora, (O Cabeleira de 1876), ede Rodolfo Tefilo (Os Brilhantes. Psicologia de um criminoso.Romance de 1895), e o misto de ensaio e crnica de Joo Brigido(O Cear) aparecem como as primeiras interpretaes para ofenmeno do cangao ou do cangaceirismo, que so as denomi-naes dadas ao banditismo social do nordeste. As explicaesesto relacionadas com o meio fsico e social que aparecem comodecisivos para a compreenso das atitudes dos protagonistas.Mas, por um outro lado, est no foi a preocupao central destasobras, pelo contrrio estes autores estavam muito mais interessa-dos em apresentar as potencialidades da literatura baseada nasquestes regionais. As preocupaes estavam intimamente rela-cionadas literatura e incorporao destas regies ao panoramadas letras brasileiras desde uma posio privilegiada, ou seja,dando uma explicao para o nordeste, tal como declarava Fran-klin Tvora na introduo ao seu romance O Cabeleira. Esta pro-blemtica no deixa de ser interessante como questo de estudopara a Histria das Idias e a Histria Intelectual, porque permitiriacompreender as estratgias de legitimao utilizadas pelos inte-lectuais e escritores de provncia.

    Inicialmente estas obras regionalistas no tiveram uma granderepercusso. Passariam vrios anos at que o cangao encon-

    10 Finalmente um esclarecimento, quando falamos em banditismo no Brasil, na realidadeestamo-nos referindo regio nordeste. No faremos referencia a outras realidadeso que no implica desconhecer a importncia que este mesmo fenmeno teve nosPampas gachos e nos planaltos catarinenses e paranaenses. Para uma anlise maisaprofundada sobre o fenmeno do banditismo e a sua historiografia ver FERRERAS,Norberto. Bandoleiros, cangaceiros e matreiros: reviso da historiografia sobre oBanditismo Social na Amrica Latina. Histria, So Paulo: Unesp, v. 22, 2003.

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    trasse o seu primeiro interprete e analista: Gustavo Barroso. Assuas reflexes sobre questo do cangao comearam com osensaios e crnicas reunidas com o ttulo de Terra de Sol. Neste li-vro Barroso narra algumas anedotas, conhecidas e nem tanto, econtos sobre os bandoleiros cearenses e de alguns Estados vizi-nhos. Estas referncias estavam no meio de outras narraes so-bre o nordeste. A nfase de Barroso estava no pitoresquismo local,nas peculiaridades cearenses e nordestinas, o que levou a deixarde lado os aspectos analticos do bandoleirismo e suas causas.

    Num livro posterior, o prprio Gustavo Barroso decidir enfren-tar decididamente esta problemtica. Este livro Heris e Bandi-dos.11 Tempo depois Barroso voltar sobre esta mesma problem-tica. Mesmo assim, entendo que esta primeira anlise apareceno unicamente como representativa de um determinado momen-to, mas tambm como uma anlise que inaugurar uma srie deestudos posteriores, tanto do prprio Barroso como de outrosautores.12 A partir deste trabalho uma srie de idias e abordagenspioneiras passaram para dentro da anlise do banditismo ruralbrasileiro. Os trabalhos pioneiros acabam sendo a fonte e o pontode referncia que autores posteriores utilizaram, muitas vezesacriticamente, para apoiar as suas prprias interpretaes dosfenmenos sociais. Para o prprio caso do banditismo rural jtemos visto o que tem acontecido como as anlises pioneiras deEric Hobsbawm.

    Barroso tem sido um ponto de apoio para diversos pesquisa-dores do banditismo brasileiro. As suas reflexes esto semprepresentes nos estudos sobre o cangaceirismo. Nos poucos casosem que Barroso no citado explicitamente, como acontece na

    11 BARROSO, Gustavo. Heris e bandidos (os cangaceiros de Nordeste). So Paulo:Liv. Francisco Alves, 1917.

    12 Como por exemplo: BARROSO, Gustavo. Almas de lama e ao (Lampio e outroscangaceiros). So Paulo: Melhoramentos, 1930; OLIVEIRA, Xavier de. Beatos ecangaceiros. Histria real, observao pessoal e impresses psicolgicas de

    alguns dos mais celebres cangaceiros do Nordeste. Rio de Janeiro: [s.n.], 1920;CANDIDO, Manoel. Fatores do cangao de 1910 a 1930. Pernambuco: So Jos doEgito, 1934; entre outros.

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    obra de Rui Fac, deve-se mais a questes ideolgicas, antesque a diferencias substantivas na aproximao questo.13 Sopoucos os pesquisadores do cangaceirismo que no citem a Bar-roso. Ainda quando Hobsbawm no menciona este autor quandoanalisa os bandidos vingadores ou seja, os cangaceiros chegaat ele por intermedio de Maria Isaura Pereira de Queirs, comoj mencionamos anteriormente.

    IV.Mas, qual a base de anlise de Barroso? So vrios os au-

    tores que aparecem citados na obra deste autor, alguns delestm uma presencia decisiva e constituem a base da anlise, oarcabouo terico e metodolgico que entraram nas artrias daanlise sobre o cangaceirismo. Latorneau, socilogo francs,Stendalh, literato francs e Sarmiento, intelectual e poltico argen-tino, foram as principais fontes de inspirao. De todos eles omais importante para a construo e escrita de Heris e Bandidosser Domingo Faustino Sarmiento.

    A obra de Sarmiento tem sido vrias vezes comparada e as-sociada a Os Sertes de Euclides da Cunha.14 De fato, a compa-rao entre Sarmiento Euclides da Cunha comea desde aprpria organizao do material que ambos fizeram: A terra, pri-meiro marco de anlise e determinante da ao dos homens.Porm, entendo que existe uma relao direta entre a obra deSarmiento com a de Barroso. De fato, Sarmiento o autor maiscitado em Heris e Bandidos, e ao mesmo tempo, aparece simul-

    13 Lembremos que Barroso foi o segundo homem do Integralismo Brasileiro e Rui Facera marxista.

    14 Para algumas abordagens recentes da relao entre Domingo Faustino Sarmiento eEuclides da Cunha: GARATE, Miriam. Civilizao e barbrie nos sertes: entre Do-mingo Faustino Sarmiento e Euclides da Cunha. Campinas: Mercado das Letras FAPESP, 2001. Este livro faz um estado da questo dos estudos realizados at omomento. Uma anlise reveladora das relaes entre ambos autores no artigo deZILLY, Berthold. A barbrie: antitese ou elemento da civilizao? Do Facundo deSarmiento a Os Sertes de Euclides da Cunha. In: ALMEIDA, A., ZILLY, B. e LIMA, E. Desertes, desertos e espaos incivilizados. Rio de Janeiro: Mauad FAPERJ, 2001.

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    taneamente como o autor de referncia, de comparao e comomodelo de anlise. Mas, quais seriam os ponto de contato entreas aproximaes de Sarmiento e Barroso?

    A obra de Sarmiento que Gustavo Barroso tomou como mo-delo para as suas anlises o Facundo.15 Porque o Facundo? Aevoluo do ttulo do livro pode nos dar uma idia. A primeira ediodeste livro apareceu com o seguinte ttulo Civilizacin y barbarie.Vida de Juan Facundo Quiroga y aspecto fsico, costumbres y

    hbitos de la Repblica Argentina. Este ttulo foi mudado posterior-mente para Facundo o civilizacin y barbarie en las pampas ar-gentinas, e finalmente, para Facundo. Facundo Quiroga foi umcaudilho poltico de La Rioja, na regio noroeste da Argentina einimigo poltico de Sarmiento. O livro na realidade um tratadode costumes e, ao mesmo tempo, faz parte da disputa que oprprio Sarmiento, como membro do partido Unitrio e exiladono Chile, mantm com Juan Manuel de Rosas, o caudilho dopartido Federal da provncia de Buenos Aires e principal lideranapoltica da Argentina entre 1829 e 1852. O ttulo sozinho explica ahiptese do livro. Os unitrios urbanos tentavam introduzir a civili-zao nos pampas, enquanto os federais rurais resistiam na bar-brie. A biografia de Facundo e a sua morte violenta, a mando deRosas, mostram as dificuldades da Argentina para constituir-secomo Nao.16

    Neste ponto comeamos a notar certas coincidncias pro-gramticas. Combater a barbrie rural, o atraso. Deste ponto devista Heris e bandidos um livro poltico, no explicitamente po-lmico, mas poltico. Barroso tenta compreender o porque dobanditismo e as explicaes sero coincidentes com muitas dasrespostas dadas por Sarmiento. O inimigo de Barroso o atrasodo Serto, que est representado pelos cangaceiros, pelo PadreCcero e pelos seus aliados polticos. Por outro lado, as vidas

    15 SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo. Buenos Aires: Losada, 1999 (1a ed. 1845).16 Sobre a biografia de Facundo Quiroga como parbola da Argentina ver: PRATT, Mary

    Louise Ojos Imperiales. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 1997 (1a

    ed. em ingls: 1992), p. 324.

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    dos cangaceiros vm a explicar as dificuldades do Nordeste emse consolidar como uma regio progressista.

    Qual o modelo brindado pelo Facundo? Para isto precisoque sejam analisadas as bases das idias comuns a ambos osautores, pelo que no abundaremos aqui em diferencias e seme-lhanas estilsticas. O nosso objetivo justamente estabeleceras linhas de continuidade num tipo determinado de anlise como a questo das formaes polticas e sociais da sociedade rural.Anlise este realizado desde as cidades e em confronto com oatraso rural, encarnado por caudilhos, coronis e religiosos. Nes-te sentido a cidade aparece com a necessidade de civilizar asrelaes polticas para conseguir o desenvolvimento econmico.Este um elemento comum a Sarmiento e Barroso. Para seusfins ambos escrevem ensaios sociolgicos literrios que mistu-ram anlise e narrao. A narrao tem por objetivo descrever asituao dando provas para as afirmaes realizadas nas anlisesde forma tal que aparea como legitimando a posio do autor.No caso de Sarmiento narrao e anlise esto imbricadas, em-bora divida o livro entre a natureza, os arqutipos e a biografia deFacundo. Em Barroso, pelo contrrio, ambos momentos apare-cem separados em duas sees As Causas e Os Tipos dife-renciadas e complementares. interessante, ainda, estabelecerquais os outros elementos comuns a obra de ambos e que deter-minam o rumo da anlise da ruralidade perifrica, dominada peloscaudilhos locais.

    Determinismo mesolgico

    Em principio definamos o primeiro e mais importante doselementos comuns, a funo estabelecida para o meio ambiente.Para ambos os autores o meio ambiente decisivo para a compre-enso e explicao da formao cultural dos habitantes tantodos sertes quanto dos pampas. Sarmiento nos d a clave paraa compreenso da abordagem relacionada com o determinismomesolgico e a aproximao de Barroso com Sarmiento:

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    Los accidentes de la naturaleza producen costumbres y usos pecu-

    liares de estos accidentes, haciendo que donde estos accidentes

    se repiten, vuelvan a encontrarse los mismos medios de parar a

    ellos, inventados por pueblos distintos.17

    A afirmao de Sarmiento pode ser comparada com a seguin-te passagem do livro de Barroso:

    Fatos observados amiudadamente, consideraes nascidas da

    constncia de certos motivos, circunstancias de ordem emprica,

    minucioso estudo de acontecimentos peridicos, do meio, da raa,

    da formao social, so as nicas bases para um sistema de idias

    que nos d as razes explicativas do banditismo sertanejo.18

    A geografia, ou melhor, o meio ambiente, central na horade definir as abordagens adequadas. De fato, a base da anlisede Sarmiento o Historicismo, baseado na filosofia alem influen-ciada por Hegel. A fora explicativa do Historicismo est apoiadono conceito de determinismo mesolgico. A geografia um impor-tante auxlio para compreender as formas em que a sociedadese desenvolve. Seria evidente dizer que a uma determinada geo-grafia corresponde um determinado tipo de sociedade. Afirmaoque tem certos desdobramentos que Sarmiento no pode assumirno momento em que ele escreve o Facundo, em mediados dosculo XIX, mas que Barroso ter como desenvolver, como aaplicao de certas teorias raciais, que ingressaram nas cinciassociais no tempo que media entre a escrita de estos dois livros.19

    A relao homem meio ambiente central para ambos osautores. Ou melhor, a situao humana definida pelo meio ambi-

    17 SARMIENTO, D. F., op. cit., p. 76. A citao explica desta forma a semelhana entreo poema de Esteban Echeverra, La cautiva, e as obras de Fenimore Cooper, Elltimo de los Mohicanos e La pradera.

    18 BARROSO, G. Heris e bandidos..., p. 16.19 Para o caso de como se difundem no Brasil as idias destinadas a analisar a

    questo racial ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo da miscigenao: cientis-tas, instituies e pensamento racial em finais do Sculo XIX. Estudos Avanados,So Paulo: USP, n 20, jan./abr. 1994.

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    ente que por sua vez condiciona os comportamentos, como podeser apreciado na cita que temos feito anteriormente de Sarmiento.Dessa forma no importa o local de nascimento devido a quemeio ambientes similares propiciaram fenmenos similares. Eisso transforma em coetneos e simultneos a aqueles processosque acontecem em pocas e locais diferentes. Barroso dir, emreferncia a uma passagem do Facundo:

    Esse flagrante da vida pampeana um instantneo da vida sertane-

    ja, porque no interior do centro-norte a cena a mesma, os motivos

    idnticos, as razes iguais ().

    A continuao, afirmar que:

    O homem ali vive primitivamente como os povos que demoram no

    mesmo estagio de civilizao: gachos, bedunos, esclavonios,

    trtaros ou cow-boys.20

    Se Sarmiento consegue estranhar-se do meio intelectual emque vivia para lanar uma nova interpretao dos Pampas argen-tinos, deve-se principalmente leitura dos viajantes europeusque tinham visitado essa regio. Os viajantes contrastavam a re-alidade europia com a americana, transmitindo aos leitores adiferencia entre a civilizao, representada pela sua prpria reali-dade, e a barbrie americana. No caso de Barroso, este distan-ciamento em relao sociedade local, pode estar vinculado sua sada ainda jovem da sociedade cearense, e o seu retornoposterior, chegado do seio da civilizao brasileira e da moder-nidade, o Rio de Janeiro, que estava em pleno auge de mudanasurbanas e civilizatrias. Entendo que estes acontecimentos dabiografia de Barroso abrem as portas para a compreenso dassuas anlises.

    20 BARROSO, G. Heris e bandidos, p. 26.

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    A Frenologia

    A frenologia21 ser mencionada com freqncia por ambosos autores, embora com maior nfase no caso de Gustavo Barro-so. Como uma conseqncia da evoluo das idias vinculadasao racismo, a frenologia aparecia como a cincia que desvendavao porque do comportamento anormal dos racialmente evoludos,ou seja, da raa branca. Num contexto em que as cincias sociaisestavam plenamente colonizadas pela biologia, o recurso a meca-nismos e argumentos cientficos de esta rea do conhecimento,como formas explicativas de determinados fenmenos, no po-dem ser vistas como inviveis, pelo contrrio, temos que pensarque eram sumamente plausveis para o momento.

    Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero aparecem citados emHeris e Bandidos para dar sustentao cientfica s afirmaesde Barroso. Lembremos que pelo menos Ferrero est em ativida-de no momento da escrita de Heris e Bandidos. O recurso frenologia para explicar a situao dos sertes estar na ordemdo dia, ainda quando esta tinha deixado de ser uma cincia impor-tante e tinha entrado em franco declnio. De fato, depois do assas-sinato de Lampio, ainda num perodo to posterior como a dca-da de 1940, as cabeas decepadas dos cangaceiros foram estu-dadas por Nina Rodrigues, outro seguidor dos estudos do canga-o e dos mtodos de Cesare Lombroso.

    A diferena entre as abordagens de Domingo Sarmiento eGustavo Barroso perante a questo racial est no desenvolvimentoda frenologia como disciplina, que alcanou o seu apogeu no pe-rodo entre a publicao de ambas as obras. Pensemos que osestudos de Lombroso e do seu seguidor e genro Guglielmo Fer-rero so da dcada de 1880 e 1900, Barroso escreve no augedesta disciplina o que explica uma utilizao mais especfica destaabordagem.22 Ao mesmo tempo, a sua relao com os estudos

    21 A frenologia um ramo da antropometria, cincia fundada por Cesare Lombroso.Esta se baseia no estudo das medidas dos crnios humanos.

    22 BARROSO, G. Heris e bandidos..., p. 25-26.

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    sobre as raas e a suas implicaes nos estudos sobre o bandi-tismo e muito mais apurada. As relaes entre as distintas raase as suas conseqncias j tinha sido desenvolvido anteriormen-te, por exemplo por Euclides da Cunha em Os Sertes.23

    O uso da biografia

    Ambos os livros tendem a construir arqutipos, embora quan-do ambos os livros apresentam uma sensvel diferencia. Sarmi-ento, desde o seu ttulo est anunciando uma biografia (Facundo).Barroso, por sua vez, radicaliza esta metodologia partindo parao uso macio das biografias. Poderamos dizer que Heris e Ban-didos um estudo prosopografico literrio, no qual se faz umaapresentao extensiva das biografias de vrios cangaceiros.

    Entre ambas formas de abordagem da biografia existem im-portantes diferencias. Sarmiento, influenciado pelo romantismo,utiliza a idia do homem representativo. Este homem representa-tivo pode ter caratersticas positivas ou negativas, porm no deixade ser parte importante da sociedade da qual faz parte, pelo quepassa a resumir as suas caratersticas principais. Facundo Qui-roga, no caso do livro de Sarmiento, o compendio das caracters-ticas dos caudilhos polticos regionais, e pelo tanto, dos homensque ele prprio lidera. A biografia neste caso brinda a possibilidadede dar uma forma concreta ao pensamento abstrato.

    Barroso tem uma outra estratgia narrativa, partindo para aprospografia, tenta apresentar a realidade dos sertes pelo ac-mulo de experincias, pela saturao. Heris e bandidos no dei-xa de ser um texto de admirao dos cangaceiros, porm, tam-bm de confronto com esta situao. Desta forma, Barroso con-segue construir distintos arqutipos de bandidos, diferenciandoas diversas possibilidades deste fenmeno. Assim, aparecembandidos com caratersticas particulares como psicticos, no-

    23 Sobre as conseqncias das raas, e suas misturas, no serto ver BARROSO, G.Heris e bandidos, p. 59-64.

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    bres, generosos, selvagens, etc. Assim sendo Barroso defendea alguns e condena a outros, justificando o ttulo do livro. Geralmen-te aqueles bandidos que so tratados de forma positiva por esteautor so, na maior parte das vezes, proprietrios que entram nobanditismo para reparar as injustias sofridas. Isto nos leva a re-fletir, ainda, sobre o modo marginal em que as questes do podere da propriedade entram em Heris e Bandidos.

    Os dois autores aqui apresentados partem de marcos teri-cos diferentes, Sarmiento do romantismo e Barroso do naturalis-mo, e ambos utilizaram a biografia de uma forma particular e se-gundo as necessidades dos seus argumentos. No pretendemser absolutamente fieis aos documentos ou as fontes disponveis,nem tentam ser historiadores ou reconstruir fielmente a realidadehistrica, no melhor dos casos, e como foi mencionado anterior-mente, tentam construir um estudo sociolgico e literrio. Emgrande parte estas biografias so acomodadas aos fins dos auto-res, romanceando-as ou adaptando-as s necessidades da narra-o ou da anlise. O importante est no argumento a ser desenvol-vido. As anedotas so acomodadas, estilizadas ou radicalizadasde acordo com as necessidades da argumentao. No caso deSarmiento, algumas situaes por ele apresentadas no seu textocorrespondem a outros caudilhos e no ao prprio Facundo Qui-roga, porm aparecem como elementos que atuam como exem-plo das caratersticas do conjunto. Facundo o caudilho por exce-lncia e a sua fora no texto de Sarmiento to grande que eclipsaoutros lderes do perodo. No podemos esquecer que o caudilhoprimus interpares foi Juan Manuel de Rosas e que a mando deleFacundo foi morto em Barranca Yaco, uma estrada que deviaestar sob o seu controle. Mas, aos efeitos da narrativa sarmientinaas situaes vividas pelos outros caudilhos podem ser adjudica-das ao arqutipo: Facundo.

    Os arqutipos esto relacionados com as biografias e asprosopografias. Ambos os autores os constrem como uma for-ma de esquematizar a realidade e apresentar as caratersticasde uma forma evidente. De fato, a tentativa de ambos os autores a de clarificar a realidade, para um pblico que no o da regi-

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    o, pelo contrrio, ambos livros so parte de uma estratgia pol-tica para confrontar esta situao e arregimentar vontades quepermitissem modificar as estruturas vigentes. claro que as ur-gncias polticas so diferentes em cada caso, mas no por issoos usos das biografias e das narrativas no podem ser compara-das. Os arqutipos permitem transformar uma figura, uma perso-nagem em signo da explicao geral. por isso que Sarmientoapresenta alguns arqutipos como o baquiano, o gaucho malo, orastreador, que mesmo que no sejam indivduos claramente iden-tificados, vem para reunir as caratersticas de vrios das persona-gens que podem ser encontrados nos pampas argentinos. Barro-so, pela sua parte, o que faz apresentar cada um dos seus ca-sos como arqutipos, assim teremos a Antnio Silvino, como obom cangaceiro, de fato o caso mais extensamente analisado;os Brilhantes, os Limes e os Suassunas como lideres de canga-ceiros, e pelo tanto ressalta em cada um deles o potencialidadede comando presente em cada um deles e segundo as caracters-ticas prprias dos mesmos; Rio Preto aparece como um criminalsem escrpulos; e os casos extremos de O Cabeleira e O Cun-dur sero os psicoptas, o que lhe permitir explicar os grandesdesvios do modelo representados pelos casos de violncia ex-cessiva realizados por estes bandidos; e assim por diante.

    V.Para finalizar algumas reflexes. Ambos os livros so tanto

    importantes estudos sociolgicos, que como fundadores na anli-se de uma realidade tm influenciado as aproximaes posterio-res, quanto reconhecidas obras literrias. A conjuno de histo-ricismo, naturalismo e romantismo levaram construo da bar-brie de Sarmiento e ao cangao de Barroso numa conjuno deaspectos culturais e ambientais, e por contraposio tem ajudadoaos pesquisadores a compreender os elementos que conforma-vam a civilizao. A determinao dos comportamentos tantogeogrfica quanto cultural, embora a nfase de ambos os autoresest colocada nos aspectos geogrficos.

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    Sarmiento, estava lanado numa campanha poltica e emdefender-se dos ataques dos seus adversrios polticos, pelo queaprofundou a construo de um texto poltico, e que acabou servin-do de modelo para as anlises de Barroso. Porm, a disputa po-ltica empurrou a Sarmiento a um certo maniquesmo que resulta-va na oposio entre a Civilizao e a Barbrie. Barroso foi muitomais sutil nesta relao apropriando-se da relao cangao ci-vilizao, resgatando assim elementos que ele entendia comopositivos no cangao. Desta forma ele revalorizava a sociedadesertaneja, oposta na maior parte das vezes s ambigidades davida urbana. De qualquer forma, ambos ficaram fascinados efortemente atrados por esta cultura rural, sendo que viam nocangao e na barbrie as fontes daquilo que era mais autnticoda regio, do nacional, o que devia ser autenticamente americanoe diferente da alta civilizao europia.

    O Facundo no fundou imediatamente uma escola de estu-dos sobre a ruralidade e o fenmeno do homem de campo naArgentina, o gaucho, pelo contrrio, novos problemas e situaescolocadas pela organizao nacional, primeiro, e pela migraode massas depois, fez esta questo fosse desenvolvida inicial-mente pela literatura. Barroso, pelo contrrio, foi sumamente influ-ente na criao de um modelo de anlise da questo. No Brasilest temtica passou rapidamente da literatura para a sociologia.

    Passou muito tempo at que a obra de Sarmiento contribussea fundar um modelo de anlise da sociologia rural argentina, masparadoxalmente a sua obra conseguiu transcender fronteiras che-gando at o Serto cearense. Barroso retomou as anlises deSarmiento para uma realidade histrica e social diferente de ma-neira de construir a sua prpria interpretao. E o interessante que a interpretao de Barroso do cangao foi incorporada comoparte da tradio de anlise desta questo. Como mencionei ante-riormente Barroso v a ser uma e outra vez citado como fundadorde uma corrente interpretativa, com a sua criao de arqutipose com a identificao dos principais cangaceiros, como tem che-gado at os nossos dias.