habermas esfera publica democracia deliberativa - bianco zalmora garcia

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1 ESFERA PÚBLICA E POLÍTICA DELIBERATIVA: A RADICALIDADE DEMOCRÁTICA EM HABERMAS Prof. Dr. Bianco Zalmora Garcia* Resumo: No pensamento habermasiano, a possibilidade de reconstrução democrática da esfera pública contempla o implemento de procedimentos discursivos que permitam aos cidadãos, nas demandas sociais e no enfrentamento das conflitualidades emergentes, desenvolver mecanismos de coordenação da ação social com base no substrato ético-normativo da racionalidade comunicativa. Tais procedimentos possibilitam o resgate e a ampliação dos espaços interativos de comunicação pública, potencialmente democráticos, que resistem aos imperativos sistêmicos decorrentes das diferentes formas de controle do Estado e das imposições econômicas do mercado. Neste sentido, o conceito de esfera pública, que abarca a multiplicidade de espaços de argumentação pública, ocupa uma posição central na elaboração teórica do modelo de democracia deliberativa proposto por Habermas. Ora, o modelo normativo de democracia deliberativa tendo como eixo central a concepção discursiva de esfera pública implica considerar o caráter permanente do processo de democratização radical da sociedade a partir da pluralidade de domínios de formação democrática da opinião e da vontade política. A radicalidade do modelo democrático-deliberativo habermasiano assenta-se na possibilidade de revitalização contínua das interações comunicativas nos diferentes espaços públicos e, por sua vez, implica no aprofundamento da participação política de cidadãs e cidadãos, livres e iguais, em todos os processos de deliberação pública. Nestes contextos discursivos da ação política, o poder derivado da soberania popular é produzido comunicativamente e nele repousa a legitimidade democrática. É justamente nesta perspectiva que se pode compreender a emergência de novas formas comunicativas de solidariedade e de organização da luta social que engendram e permitem forjar e reinventar permanentemente o exercício de diferentes formas de cidadania e de ocupação democrática dos variados espaços públicos, possibilitando aos influxos comunicativos - gerados no âmbito do mundo vivido - pressionarem a democratização das estruturas decisórias do sistema político. No pensamento habermasiano, a possibilidade de reconstrução democrática da esfera pública, numa perspectiva emancipatória, contempla o implemento de procedimentos racionais, discursivos, participativos e pluralistas. Tais procedimentos permitem aos sujeitos, no enfrentamento das conflitualidades sociais emergentes, desenvolver mecanismos de coordenação da ação social com base nos princípios ético-normativos da racionalidade comunicativa. E, por sua vez, permitem resgatar e ampliar os espaços interativos de comunicação pública, potencialmente democráticos, livres dos com imperativos ou constrangimentos sistêmicos, isto é, dos controles burocráticos do Estado e das imposições econômicas do mercado. Neste sentido, o conceito de esfera pública, que abarca a multiplicidade de espaços de argumentação pública envolvendo o embate dos diversos atores da sociedade, ocupa uma posição central na elaboração teórica do modelo de democracia deliberativa proposto por Habermas. Esta nova configuração discursiva da democracia, pensada a partir da intensificação possível dos processos

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Palestra proferida no III Colóquio Habermas na UNESP - Campus Marília em 2009. Prof. Dr. Bianco Zalmora Garcia

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ESFERA PÚBLICA E POLÍTICA DELIBERATIVA: A RADICALIDADE DEMOCRÁTICA EM HABERMAS

Prof. Dr. Bianco Zalmora Garcia*

Resumo:

No pensamento habermasiano, a possibilidade de reconstrução democrática da esfera pública contempla o implemento de procedimentos discursivos que permitam aos cidadãos, nas demandas sociais e no enfrentamento das conflitualidades emergentes, desenvolver mecanismos de coordenação da ação social com base no substrato ético-normativo da racionalidade comunicativa. Tais procedimentos possibilitam o resgate e a ampliação dos espaços interativos de comunicação pública, potencialmente democráticos, que resistem aos imperativos sistêmicos decorrentes das diferentes formas de controle do Estado e das imposições econômicas do mercado. Neste sentido, o conceito de esfera pública, que abarca a multiplicidade de espaços de argumentação pública, ocupa uma posição central na elaboração teórica do modelo de democracia deliberativa proposto por Habermas. Ora, o modelo normativo de democracia deliberativa – tendo como eixo central a concepção discursiva de esfera pública – implica considerar o caráter permanente do processo de democratização radical da sociedade a partir da pluralidade de domínios de formação democrática da opinião e da vontade política. A radicalidade do modelo democrático-deliberativo habermasiano assenta-se na possibilidade de revitalização contínua das interações comunicativas nos diferentes espaços públicos e, por sua vez, implica no aprofundamento da participação política de cidadãs e cidadãos, livres e iguais, em todos os processos de deliberação pública. Nestes contextos discursivos da ação política, o poder derivado da soberania popular é produzido comunicativamente e nele repousa a legitimidade democrática. É justamente nesta perspectiva que se pode compreender a emergência de novas formas comunicativas de solidariedade e de organização da luta social que engendram e permitem forjar e reinventar permanentemente o exercício de diferentes formas de cidadania e de ocupação democrática dos variados espaços públicos, possibilitando aos influxos comunicativos - gerados no âmbito do mundo vivido - pressionarem a democratização das estruturas decisórias do sistema político.

No pensamento habermasiano, a possibilidade de reconstrução democrática

da esfera pública, numa perspectiva emancipatória, contempla o implemento de

procedimentos racionais, discursivos, participativos e pluralistas. Tais procedimentos

permitem aos sujeitos, no enfrentamento das conflitualidades sociais emergentes,

desenvolver mecanismos de coordenação da ação social com base nos princípios

ético-normativos da racionalidade comunicativa. E, por sua vez, permitem resgatar e

ampliar os espaços interativos de comunicação pública, potencialmente

democráticos, livres dos com imperativos ou constrangimentos sistêmicos, isto é,

dos controles burocráticos do Estado e das imposições econômicas do mercado.

Neste sentido, o conceito de esfera pública, que abarca a multiplicidade de

espaços de argumentação pública envolvendo o embate dos diversos atores da

sociedade, ocupa uma posição central na elaboração teórica do modelo de

democracia deliberativa proposto por Habermas. Esta nova configuração discursiva

da democracia, pensada a partir da intensificação possível dos processos

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comunicativos nas deliberações públicas, não permite que se conceba a

democratização como um mero momento de transição, mas como processo

permanente e ininterrupto do exercício da soberania popular na sociedade em sua

relação com o Estado.

Constitui-se como espaço da formação democrática da vontade política em

que são tematizados os fundamentos da vida pública no interior da sociedade.

Apresenta-se como um espaço de mediação fundamental entre a esfera sistêmica -

subsistemas político e administrativo – e o mundo da vida, de modo particular, em

sua expressão visível, pelos movimentos sociais e pelas instituições que configuram

a instância denominada de sociedade civil. Na arquitetônica societária

habermasiana, a esfera pública não se confunde com a esfera do poder público

tampouco os setores privados que constituem o mercado. Tal distinção se apresenta

fundamental para que se possa compreender o locus e a função mediadora da

esfera pública, cujo substrato social configura-se pelas formas diversas de

comunicação e argumentação públicas que, condensadas e materializadas nas

instituições da sociedade civil. Entretanto, convém ressalvar que, a esfera pública

não se reduz às instituições do que se chama de sociedade civil. A sociedade civil –

espaços públicos institucionalizados - dela emerge e lhe possibilita a visibilidade

necessária para que as reivindicações e expectativas da opinião pública sejam

tematizadas na esfera pública política e conduzidas às instâncias de legitimação

(desde que arraigadas na esfera pública) e de normatização.

Desenvolvido por Habermas, o modelo normativo de democracia

deliberativa, tendo como eixo central a concepção discursiva (e normativa) de esfera

pública, permite considerar o caráter permanente do processo de construção

democrática a partir de diferentes espaços públicos que, ao se constituírem, de

forma autônoma, nas relações entre o Estado, suas instituições político-

administrativas e a sociedade civil, engendram e geram novos movimentos sociais e

formas associadas de luta e resistência no sentido emancipatório da radicalidade

democrática. A análise das condições comunicativas, sob as quais se forma

democraticamente a opinião e a vontade pública, abre espaço para pensar a

fundamentação de uma práxis radicalmente democrática de cidadãs e cidadãos que,

em interação intersubjetiva, na conflitualidade e multiplicidade de suas

manifestações fortuitas ou organizadas, se mobilizam e se engajam em diferentes

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formas de solidariedade, disputando com o Estado e com o mercado a ampliação e

preservação de espaços democráticos de organização social, reprodução da cultura

e formação da identidade.

No marco deste modelo teórico, considerando os influxos radicalmente

democratizantes de uma esfera pública autêntica, na qual mulheres e homens se

reconhecem cidadãs e cidadãos, e como tais se engajam como sujeitos de ação, em

concurso igualitário, imparcial e procedimentalmente regulado, para a formação

democrática de uma opinião pública e, a partir dela, a vontade coletiva constringente

do Estado, torna-se possível conceber as possibilidades emancipatórias das formas

autônomas de mobilização e organização popular, desde a articulação de ações

populares movidas por reivindicações localizadas e episódicas até aquelas movidas

pela revolta, pela desobediência civil e ainda aquelas constituídas, de forma mais

permanente, como contra-poder face ao poder estabelecido.

Portanto, a partir da fundamentação ético-normativa de política deliberativa

proposta por Habermas demarca-se a possibilidade de conceber uma esfera pública

autônoma que, formada argumentativamente em um processo racional de consenso,

livre de coação, no interior da sociedade, outorga legitimidade aos processos de

construção permanente da democracia. Constitui-se em uma dupla dimensão: de um

lado, desenvolve processos de formação democrática de opinião pública e da

vontade política coletiva; de outro, vincula-se a um projeto de construção de uma

hegemonia democrática radical, onde a sociedade civil - esfera pública

institucionalizada - se torna uma instância de deliberação e de legitimidade da práxis

democrática.

A reelaboração habermasiana do conceito de esfera pública, considerando a

concepção discursiva de legitimidade como procedimento, implica a reconstrução

dos ideais ético-normativos da democracia e da soberania popular como condições

atuais de organização e de funcionamento político da sociedade. É justamente nesta

perspectiva analítica, ao incorporar elementos significativos da teoria da ação

comunicativa, que se pode pensar a possibilidade de uma efetiva democratização da

sociedade e o exercício de uma cidadania democrática, pautada numa concepção

discursiva de soberania popular.

Esta possibilidade vincula-se à reconstrução da autocompreensão de

Modernidade empreendida por Habermas no bojo da teoria da ação comunicativa na

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qual propõe um conceito dual de racionalidade. Ora, segundo Habermas, a

Modernidade envolve o surgimento de duas dimensões diferentes da racionalidade:

a racionalidade comunicativa associada à coordenação interativa da ação social

constituída normativamente pelo entendimento intersubjetivo e a racionalidade

instrumental associada à coordenação sistêmica de ações estratégicas por fluxos

autoregulados constituídos pelos meios (media) dinheiro e poder destituídos de

linguagem. O conceito de racionalidade comunicativa e sua ação correlata, a ação

comunicativa, permite a Habermas superar o paradoxo pessimista que caracterizava

a interpretação frankfurtiana em relação à instrumentalização hegemônica de que se

revestiu a racionalidade no desenvolvimento da Modernidade. Habermas reconstrói

os fundamentos da teoria social pelo revigoramento da razão, ou melhor, resgata as

possibilidades emancipatórias das interações comunicativas, distanciando-se dos

ditames da razão instrumental: da razão centrada no sujeito monológico para a

razão comunicativa intersubjetiva, descentrada e processual.

O conceito habermasiano de ação comunicativa remete a um tipo de ação

social mediada pela comunicação, em cuja dimensão intersubjetiva, uma vez

resgatada, encontra-se a possibilidade de reconhecer uma noção ampliada de

racionalidade, capaz de resgatar e incorporar o interesse crítico e emancipatório das

teorias. Nesta perspectiva, tal possibilidade pressupõe a compreensão da linguagem

como um meio de comunicação orientada para o entendimento intersubjetivo, que

consiste no telos da ação comunicativa (cf. Habermas, 1987, 1: 369). Ao resgatar

esta dimensão comunicativa da racionalidade mediante a substituição do paradigma

epistêmico que se baseia na relação sujeito-objeto pelo paradigma da

intersubjetividade mediada lingüisticamente, Habermas se propõe superar o déficit a

respeito da definição do critério normativo da teoria crítica. O componente

discursivo, primordial tanto para a racionalidade comunicativa quanto para o tipo de

ação que lhe é própria, estará na base do modelo habermasiano de democracia

deliberativa.

Ao fundamentar a ação no conteúdo normativo da racionalidade

comunicativa presente nas interações intersubjetivas mediadas lingüisticamente, a

teoria habermasiana da ação comunicativa realiza seu propósito de estabelecer uma

relação interna entre práxis e racionalidade. Apoiando-se na dimensão pragmático-

formal da ação comunicativa e no resgate das condições universais do entendimento

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mútuo, Habermas leva a efeito a reconceituação da mediação normativa entre teoria

e prática a partir do paradigma da linguagem e da comunicação intersubjetiva,

abrindo um caminho significativo para pensar as interações sociais na vida cotidiana

e sua orientação emancipatória. Com efeito, a virada lingüística permite-lhe

reconstruir uma teoria crítica da sociedade com base na razão comunicativa que se

constitui nos processos interativo-discursivos da coordenação da ação.

A Modernidade se estruturou com base no princípio de que o poder social

poderia ser reduzido a esta esfera compreendida como espaço de comunicação das

pessoas privadas, reunidas livremente como público para a discussão e deliberação

consensual de seus assuntos comuns. Esta esfera pública entrou num processo de

profunda decadência e ruptura, motivada, dentre outros fatores, pela colonização de

seu espaço próprio pela cooptação manipulatória do capital e do Estado, cuja

dinâmica, de resto, se coloca no centro da chamada crise da Modernidade.

Ao superar definitivamente esta dimensão negativa e mesmo pessimista de

sua abordagem diagnóstica, Habermas concebe que a Modernidade, enquanto

projeto de emancipação da vida humana com relação às várias formas de alienação,

ainda não esgotou suas potencialidades, apesar das trágicas experiências históricas

vividas pela humanidade, sobretudo ocorridas no século XX e recorrentes até os

dias de hoje, que colocam em suspeita a capacidade emancipatória da razão

moderna. Ela contém um potencial prático e cognitivo que não foi de todo

explorado, mas que, ao contrário, foi pervertido pelo esvaziamento da própria razão

sob a ordem capitalista hegemônica. De fato, a razão comunicativa, liberada nos

processos de diferenciação e complexificação social que se constituíram nas

circunstâncias históricas de formação do capitalismo, foi subordinada à razão

instrumental e sufocada. A sua reabilitação prática no resgate e ampliação dos

espaços comunicativos pode contribuir para libertar o ser humano das relações de

poder criadas sob a égide de uma racionalidade instrumental e constituir uma

sociedade emancipada.

Neste contexto teórico, a partir da análise sobre o duplo dimensionamento

da sociedade, Habermas introduz sua concepção de esfera pública, núcleo central

do modelo normativo de democracia deliberativa que propõe: de um lado, o mundo

sistêmico, conformado por uma esfera privada representada pelo mercado, o

subsistema econômico, e uma esfera pública representada pelo Estado, o

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subsistema político-administrativo; e de outro, o mundo vivido enquanto o âmbito da

interação comunicativa voltada para o entendimento, constituído por uma esfera

privada representada pela formas diversas de família e por outros grupos sociais

alternativos estabelecidos por vínculos conjugais, de amizade, etc., e por uma esfera

pública, representada pelos movimentos e associações eventuais ou

institucionalizadas que garantem a reprodução cultural de uma sociedade. No

âmbito das interações sociais realizadas no mundo vivido, a formação de uma esfera

pública participativa pressupõe a ampliação dos espaços autônomos de

comunicação intersubjetiva.

Ao alinhavar estas considerações, na perspectiva do pensamento

habermasiano, convém ressaltar a diferenciação da esfera pública em relação às

dinâmicas impostas pela lógica burocrática do Estado e pelos imperativos

estratégicos do mercado no campo da economia capitalista. Ora, os processos de

diferenciação e de complexificação social em virtude do desenvolvimento econômico

e as conseqüências políticas do processo de acumulação capitalista liberaram este

espaço vital, possibilitador de um âmbito de discussão e crítica determinante para

destino político das sociedades modernas. Sendo assim, a formação da vontade

coletiva nos diversos espaços públicos – local, regional, estadual, nacional e

internacional – deve se mobilizar permanentemente no sentido de refrear os

impulsos de controle e colonização advindos dos subsistemas econômico e político-

administrativo. A concepção de uma esfera pública, no marco da política deliberativa

habermasiana, remete à possibilidade de se implementar ações democráticas

capazes de promover a integração social com base na ação comunicativa. Enquanto

espaço de comunicação pública torna-se possível mobilizar a coordenação das

ações nos âmbitos de reprodução material e simbólica da vida humana, dentre os

quais os subsistemas do economia e do Estado, para os quais indicam e

estabelecem premissas ético-normativas.

De fato, estes subsistemas econômico e político-administrativo são

regulados pelos meios dinheiro e poder que constituem modos não discursivos de

coordenação da ação. Estes vetores da dinâmica sistêmica, objetos de longa

discussão em Teoria da ação comunicativa, distinguem-se dos atos lingüísticos

constituídos na forma da ação comunicativa. Orientadas ao entendimento

intersubjetivo, estas ações desenvolvidas em contextos comunicativos das

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estruturas racionalizadas do mundo vivido desempenham duas funções cruciais: a

obtenção da solidariedade e a do sentido. Deste modo, entende-se que é justamente

nos fluxos comunicativos constituintes dos espaços públicos em que se manifesta a

força social e integradora da solidariedade e a recuperação do sentido

emancipatório das práticas sociais de modo que se pode erguer barreiras às

tendências de colonização derivadas do mercado e da burocracia que levam ao

empobrecimento cultural, às formas de dominação e exploração, à alienação e ao

esgotamento e depredação dos recursos naturais.

A esfera pública consiste, portanto, em uma categoria analítica que remete à

possibilidade de ampla participação política das cidadãs e cidadãos na sociedade

com base na ampliação e no desenvolvimento de espaços públicos comunicativos

orientados para a formação democrática da opinião e da vontade comum. Neste

sentido, torna-se necessário o implemento de processos de entendimento

intersubjetivo mediados lingüisticamente pelos quais se produzem deliberações nas

diversas e múltiplas redes de comunicação da esfera pública de interação discursiva

em que todas e todos se engajam.

Ao reconstruir a concepção de esfera pública, no marco da política

deliberativa, Habermas reconceitua a relação entre sociedade e Estado. Estes

espaços públicos configuram uma arena conceitualmente distinta do Estado

enquanto lugar para a produção e circulação dos discursos, os quais podem se

tornar, em princípio, críticos do próprio Estado. A esfera pública, no sentido

habermasiano, é também conceitualmente distinta das estruturas do sistema

econômico; ele não é uma arena de relações determinadas pelos interesses e

regras de mercado. A esfera pública é o espaço em que se implementam relações

discursivas orientadas para o entendimento no enfrentamento das conflitualidades

diversas que emergem das contradições sociais. Assim este conceito de esfera

pública permite reconhecer as distinções entre as estruturas societárias relativas ao

aparato estatal e ao mercado econômico e as associações democráticas, distinções

estas que são essenciais à teoria democrática.

A concepção de política democrática deliberativa constitui-se como um

modelo procedimental-comunicativo de deliberação política cujas implicações

permitem delimitar um conjunto de pressupostos teórico-normativos que incorporam

a participação da sociedade civil na regulação da vida coletiva. Trata-se de um

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conceito ancorado na idéia de que a legitimidade das decisões e ações políticas na

sociedade deriva da deliberação pública de coletividades de cidadãos livres e iguais,

uma vez que se apóia nas condições comunicativas sob as quais se realizam os

procedimentos democráticos.

Em Facticidade e validade, a partir do princípio discursivo da democracia,

Habermas formula o modelo democrático procedimental, que ele próprio denomina

como política deliberativa, apresentado como modelo alternativo no seio do debate

entre os modelos liberais e republicanos de democracia. Nesta obra, suas análises

iniciais recaem sobre o desenvolvimento intrínseco do direito, sua gênese e sua

legitimação, tomando como tema a relação entre facticidade e validade no âmago do

próprio direito. A partir de então, em seguida, retomando externamente a relação

entre facticidade e validade, explicita a tensão entre a autocomprensão normativa do

Estado de Direito, na perspectiva da teoria do discurso, e a facticidade social dos

processos políticos que se desenrolam nas formas constitucionais. (cf. Habermas,

1997, 2: 10). Neste contexto, a estratégia de Habermas consiste em polarizar estes

dois modelos de democracia para, logo após, elaborar reconstrutivamente um

modelo alternativo a partir da apropriação reconstrutiva de alguns elementos de

cada posição e a recusa de outros.

Os modelos liberal e republicano representam possibilidades conceituais

distintas sobre a configuração da esfera pública e sua relação com o Estado e com a

sociedade. Estes remetem, em última análise, a interpretações distintas de

democracia e suas respectivas concepções sobre o processo de democratização. O

modelo discursivo de esfera pública, nos termos da formulação habermasiana,

dialoga criticamente com estes dois modelos, descartando alguns de seus

pressupostos, mas retendo reconstrutivamente deles outros elementos. À medida

que se delineia estas aproximações e distanciamentos conceituais dos modelos

liberal e republicano de democracia com relação ao modelo proposto por Habermas

torna-se possível delimitar com maior clareza as bases sobre as quais ele irá

desenvolver sua concepção de democracia deliberativa e de esfera pública.

O modelo de democracia deliberativa proposto por Habermas, ao

estabelecer uma diferenciação normativa e analítica entre os planos da vida social e

da vida político-administrativa, reconstruindo a relação Estado e sociedade, associa

a soberania popular institucionalizada a um sistema político ligado em redes

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periféricas autônomas (esfera pública política). Em Facticidade e validade,

Habermas afirma:

Na teoria do discurso, o desabrochar da política deliberativa não depende de uma cidadania capaz de agir coletivamente e sim, da institucionalização dos correspondentes processos e pressupostos comunicacionais, como também do jogo entre deliberações institucionalizadas e opiniões públicas que se formaram de modo informal. A procedimentalização da soberania popular e a ligação do sistema político às redes periféricas da esfera pública política implicam a imagem de uma sociedade descentrada. Em todo o caso, este modelo de democracia não precisa mais operar com o conceito de uma totalidade social centrada no Estado, representado como um sujeito superdimensionado e agindo em função de um objetivo. Ele também não representa a totalidade num sistema de normas constitucionais que regulam de modo neutro o equilíbrio do poder e dos interesses segundo o modelo do mercado. Pois a teoria do discurso dispensa os clichês da filosofia da consciência que recomendam que

atribuamos, de um lado, a prática da autodeterminação dos sujeitos privados a um sujeito da sociedade tomada como um todo, e, de outro lado, que imputemos a dominação anônima das leis a sujeitos particulares que concorrem entre si. No primeiro caso, a cidadania é vista como um ator coletivo que reflete a totalidade e age em função dela; no segundo, os atores singulares funcionam como variável dependente em processos de poder (HABERMAS, 1997, 2: 21).

Deste modo, Habermas rompe simultaneamente com o modelo liberal, na

medida que não mais opera com a noção de uma totalidade social centrada no

Estado, e com o modelo republicano, pois não concebe a totalidade social num

sistema de normas constitucionais que devem regular mecanicamente o equilíbrio

do poder e dos interesses. No modelo habermasiano, a idéia de soberania popular

não se concentra exclusivamente no povo considerado de forma abstrata como

macro-sujeito, como ocorre no modelo republicano, e tampouco a torna difusa “no

anonimato do poder constitucional” como pressupõe o modelo liberal.

Somente através da mediação dos processos institucionais de formação

democrática da opinião e da vontade é que o poder de influência da sociedade civil

deve chegar ao Estado, não mais reduzida a uma contrapartida institucional de uma

esfera privada, como se apresenta na concepção republicana, mas enquanto esfera

pública com competências funcionais e políticas delimitadas pelo direito e pelas

instituições políticas formais, as quais desempenham um papel fundamental tanto

para proteger a privacidade das interações individuais e a independência dos

mecanismos para a formação da vontade e da opinião, quanto para proporcionar

uma forma legal, necessária, a fim de institucionalizar as contribuições politicamente

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relevantes, advindas dos fluxos comunicativos de suas organizações, suas

mobilizações e seus debates públicos.

O problema comum nos modelos republicano e liberal reside precisamente

na dificuldade de entrever as diferenciações que ocorrem entre os processos sócio-

culturais e político-institucionais, cuja reciprocidade dialética se estabelece, em

parte, pelos atores públicos que emergem das teias microssociais de resistência

social. Os movimentos sociais e demais atores da sociedade civil apresentam perfis

organizativos próprios, uma inserção específica na tessitura social e articulações

particulares com o arcabouço político-institucional. Há que se reconhecer, por isso,

que as contribuições autenticamente democratizantes dos movimentos e

associações da sociedade civil não podem ser enxergadas unicamente a partir das

instâncias institucionais. Suas possibilidades residem precisamente em seu

enraizamento em esferas sociais que são, do ponto de vista institucional, pré-

políticas e é no âmbito de tais esferas e da articulação que os movimentos

estabelecem entre estas e as arenas institucionais que podem emergir os impulsos

mais promissores para a construção da democracia. Neste sentido, na perspectiva

do modelo habermasiano, podemos afirmar o papel significativo dos movimentos

sociais na democratização da sociedade na sua relação com o Estado, por meio da

esfera pública.

Por sua vez, o modelo discursivo, ao introduzir a noção de esfera pública,

amplia o espaço da emancipação como arena de debate público, de embate da

pluralidade de atores, incluindo-se os novos movimentos sociais e outras formas de

articulação para a formação de vontades coletivas. Assim, torna-se pensar a

possibilidade de uma nova concepção democrática de cidadania concebida como

veículo para a construção de uma hegemonia democrática radical capaz de envolver

os múltiplos atores e organizações da sociedade civil, navegando contra a corrente

hegemônica de uma globalização atrelada a interesses sistêmicos e reinventando

novas formas emancipatórias de democratização e de construção da cidadania dos

níveis local e nacional ao global.

Habermas, amparado em seu modelo de sociedade em dois níveis - a esfera

do mundo vivido e a esfera sistêmica -, procura distinguir as origens diversas dos

diferentes inputs que chegam à esfera pública. A configuração de esfera pública que

nasce dessa abordagem é por isso ambivalente: para a esfera pública, dirigem-se

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tanto as visões de mundo, as interpretações e as reivindicações gestadas no mundo

vivido, a partir de relações comunicativas voltadas para o entendimento, quanto às

tentativas dos atores sistêmicos de concretizar seus interesses egocêntricos.

Decorrem daí formas distintas de inserção e ação na esfera pública. Os atores da

sociedade civil tematizam situações-problema percebidas no mundo vivido e que

dizem respeito, portanto, ao conjunto da sociedade, contribuindo, através de seu

esforço de inclusão de grupos e temas minoritários para a ampliação e revitalização

da esfera pública. Os atores ligados à esfera da economia e da política buscam, ao

contrário, a utilização publicitária do espaço público para a conquista de novos

consumidores ou da lealdade das massas que pouco participam do processo de

reprodução e expansão de tal esfera.

Em Facticidade e validade, na análise desenvolvida sobre a relação entre

fatos sociais, normatividade e política democrática, Habermas retoma a investigação

sobre esfera pública e opinião pública que esteve presente desde os inícios de sua

obra. A questão fundamental no tratamento analítico sobre a esfera pública inclina-

se sobre a configuração do lugar de surgimento da opinião pública e da vontade

que, apesar da possibilidade de sua manipulação ou deformação, constitui o eixo da

coesão social, da construção e legitimação (ou mesmo da deslegitimação) política.

As liberdades individuais e políticas dependem da dinâmica que se promove neste

espaço público. Habermas delimita o conceito de opinião pública com relação à

esfera pública concebendo-a como o âmbito da vida social cujo ingresso está aberto

a todos cidadãos e cidadãs. Deste modo, em cada conversação na qual os

indivíduos privados se reúnem como público se constitui uma porção da esfera

pública. De acordo com Habermas, o ato de reunir-se como público dá-se quando os

indivíduos, ao se reconhecerem reciprocamente em sua liberdade comunicativa no

exercício de sua soberania, como condição da assunção de sua cidadania, se

encontram em solidariedade, discutem e articulam acordos livremente, sem

pressões ou coações, internas ou externas e, inclusive, com a garantia de poder

manifestar e publicar livremente sua opinião sobre as oportunidades de atuar

segundo interesses gerais. Nos casos de um público mais amplo, esta comunicação

requerer a criatividade de meios precisos de transferência e influência.

À esfera pública - considerando principalmente sua base social organizada,

a sociedade civil - é reservado o papel de influência e canalização dos temas e

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problemas a serem democraticamente encaminhados, regulados e gerenciados

pelas estruturas jurídico-políticas do Estado, cujas fronteiras devem ser delimitadas

com relação à sociedade. De fato, para Habermas, “o fluxo comunicacional que

serpeia entre a formação pública da vontade, decisões institucionalizadas e

deliberações legislativas, garante a transformação do poder produzido

comunicativamente, e da influência adquirida através da publicidade, em poder

aplicável administrativamente pelo caminho da legislação” (Habermas, 1997, 2: 22).

Ainda neste sentido, ele afirma em outro momento:

“A teoria do discurso coloca em jogo uma outra idéia, para ela processos e pressupostos comunicativos da formação democrática da opinião e da vontade funcionam como a comporta mais importante para a racionalização discursiva das decisões de um governo e de uma administração vinculados ao direito e à lei. Racionalização significa mais

do que simples legitimação, porém menos do que a constituição do poder. O poder disponível administrativamente modifica sua composição durante o tempo em que, fica ligado a uma formação democrática da opinião e da vontade, a qual programa, de certa forma, o exercício do poder político. Independente disso, somente o sistema político pode „agir‟. Ele constitui um sistema parcial, especializado em decisões que obrigam coletivamente, ao passo que as estruturas comunicativas da esfera pública formam uma rede ampla de sensores que reagem à pressão de situações problemáticas da sociedade como um todo e estimulam opiniões influentes. A opinião pública, transformada em poder comunicativo segundo processos democráticos, não pode „dominar‟ por si mesma o uso do poder administrativo; mas pode, de certa forma, direcioná-lo” (HABERMAS, 1997, 2: 23)

Do ponto de vista da legitimidade democrática, Habermas afirma que, na

esfera pública, os procedimentos e pressupostos comunicativos de formação

democrática da opinião e da vontade funcionam como canais mais importantes para

a racionalização discursiva das decisões de um governo e de uma administração

limitados pelo direito e pela lei. Não obstante a racionalização discursiva, apenas às

estruturas político-administrativas, jurídicas e legislativas do Estado compete tomar

decisões coletivamente vinculantes. Por sua vez, as estruturas comunicativas da

esfera pública compreendem redes móveis de sensores que reagem às pressões

que perpassam toda a sociedade e estimulam as opiniões influentes. De acordo com

o modelo procedimental de socialização comunicativa, a partir de seus parâmetros

normativos indicativos da possibilidade de uma democracia deliberativa, a

intervenção e participação da esfera pública, por suas estruturas de comunicação

vinculadas às esferas da vida privada, possibilitam a influência pública que, após

passar através dos filtros dos procedimentos institucionalizados de formação de

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vontade e opinião democráticas, seja transformada em autêntico poder comunicativo

e adentrar no processo legislativo legítimo através dos debates parlamentares. Na

esfera pública luta-se por influência a ser exercida por opiniões públicas sobre o

sistema político-administrativo. Enfim, a proposta habermasiana de uma democracia

deliberativa apresenta-se como uma nova articulação entre o Estado e a sociedade

rompendo com a prerrogativa unilateral da ação política em um dos pólos deste

binômio.

Como uma estrutura intermediária entre o sistema político, de um lado, e os

setores privados do mundo vivido e os sistemas funcionais, de outro, a esfera

pública não pode ser considerada institucionalmente um espaço político, estatal ou

para-estatal, mas um espaço cidadão constituído no mundo vivido sem que se

identifique com suas estruturas privadas, autônomo e civil, sem qualquer vínculo

com o sistema econômico ou com a administração pública. Tampouco pode ser

entendida como uma entidade organizada com estruturas pré-estabelecidas e

contornos rígidos delimitados, regulada por uma trama de normas instituídas com a

diferenciação de competências e de papeis funcionais. Certamente permite traçados

internos de limites, porém estes não se tornam obstáculos para que se constituam

por seus horizontes abertos, porosos e deslocáveis para o exterior.

Constituídos por diferentes espaços públicos independentes das instituições

de poder político-administrativo (governo, partidos políticos, parlamento e demais

estruturas que compõem o Estado), de poder econômico (mercado, inclusive

empresas e corporações para-estatais que, embora formalmente “públicas”, regem-

se pela lógica, comportamento e interesses particulares do mercado) e de poder

mediático, bem como resistentes às suas investidas sistêmicas da cooptação e

manipulação, a esfera pública, enquanto locus da produção comunicativa da opinião

pública e da vontade democrática, representa uma rede altamente complexa que

abarca uma pluralidade indeterminada de arenas desde as locais até internacionais.

Como tal orienta-se para a comunicação de conteúdos e tomadas de posição, isto é,

de opiniões, e nele estes fluxos de comunicação são filtrados e sintetizados de tal

sorte que se condensam em opiniões públicas articuladas em torno de temas

específicos.

“Ela [a esfera pública] representa uma rede super complexa que se ramifica espacialmente num sem número de arenas internacionais, nacionais, regionais, comunais e subculturais, que se sobrepõem uma às

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outras; essa rede se articula objetivamente de acordo com pontos de vista funcionais, temas, círculos políticos, etc., assumindo a forma de esferas públicas mais ou menos especializadas (...); além disso, ela se diferencia por nível, de acordo com a densidade da comunicação, da complexidade organizacional e do alcance, formando três tipos de esfera pública: esfera pública episódica (bares, cafés, encontros na rua), esfera pública da presença organizada (encontros de pais, público que freqüenta o teatro, concertos de Rock, reuniões de partidos ou congressos de igrejas) e esfera pública abstrata, produzida pela mídia (leitores, ouvintes e

espectadores singulares e espalhados globalmente)” (HABERMAS, 1997, 2: 107).

Em outras palavras, o conceito de esfera pública alude a um espaço social,

inclusivo e interativo, constituído e mediado lingüisticamente, que se materializa em

ambientes públicos mais ou menos informais, nos quais cidadãs e cidadãos solidária

e voluntariamente reunidos, no exercício de sua liberdade comunicativa, manifestam

e compartilham suas percepções e interpretações críticas, processam informações,

apresentam proposições, seus apoios e suas diferenças para discussão e escrutínio

público, permutam opiniões, emitem juízos, produzem demandas a partir de

particularidade concretas e estabelecem acordos para que possam coordenar suas

ações definidas e assumidas consensualmente.

Ora, a concepção habermasiana de democracia deliberativa implica a

possibilidade de analisar reconstrutivamente os processos democráticos no âmbito

do agir comunicativo. Estes processos, nesta concepção, uma vez perpassados pela

força social e integradora da solidariedade, no sentido de produzir uma opinião e

uma vontade comum, mobilizam mulheres e homens concretos com suas histórias,

seus conflitos, suas vivências morais e dilemas éticos, com suas raízes culturais,

sua afetividade e sua sensibilidade para que, com os recursos que lhes é dado pelo

mundo vivido que vivenciam, enfrentar e tematizar discursivamente os conteúdos

problemáticos que se apresentam e identificar soluções consensuais que

possibilitem coordenar ações conjuntas, isto é, decisões fundadas

argumentativamente quanto à demanda de fins coletivos e à regulamentação

normativa da vida comunitária.

Habermas procura oferecer uma formulação conceitual de esfera pública

capaz de ajustar-se às exigências de uma sociedade altamente complexa, marcada

pela crescente racionalização das estruturas do mundo vivido. Deste modo, a esfera

pública remete a contextos discursivos diversos que envolvem interações

comunicativas de sujeitos, enquanto cidadãs e cidadãos engajadas e engajados, e

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não de indivíduos em colóquios singulares ou de intercâmbios meramente

estratégicos, pontuais e privados, típicos de espaços configurados por modelos de

ação coordenada teleologicamente. Esfera pública não se trata simplesmente de

um locus de onde se expressa a opinião e a vontade geral, mas onde elas são

geradas comunicativamente. Deste modo, o potencial democrático da esfera pública

depende de sua maior ou menor correspondência prática com os pressupostos

normativos do agir comunicativo pelo qual ela se reproduz. Aliás, não se pode

considerar democrático qualquer espaço público.

A interpretação habermasiana da função da esfera pública no contexto da

colonização do mundo vivido, na perspectiva da teoria do discurso, decorre da

constatação de que a condição para que o esvaziamento das interações

comunicativas ocasionado pelas pressões sistêmicas de reprodução material possa

ser bloqueado reside na expectativa de tornar possível que as esferas de ação

especializada dos subsistemas societários voltem a estar ligadas à esfera pública. O

esvaziamento, a desintegração e a desinstitucionalização da esfera pública,

reforçados atualmente sob o impacto e a absorção do discurso neoliberal,

correspondem a um processo de privatização da política, através do cooptação e da

domesticação de organizações populares e da assimilação da lealdade das massas

e conseqüente recomposição estratégica das condições de governabilidade dos

centros (partidos políticos estatizados, organizações para-estatais de participação

popular e instituições da burocracia estatal sob influência de setores empresariais,

oligopólios mediáticos, interesses corporativistas, etc) onde se definem – em geral

por uma manipulação pseudolegitimada da participação popular tornando-a

meramente adjetiva - as diretrizes e ocorrem as decisões político-administrativas e

econômicas da sociedade. Ao romper com as ordens institucionais do mundo vivido,

invadindo-o, esvaziam e desintegram as estruturas comunicativas da sociedade

coagindo-as a submergir em um espaço de racionalidade determinante das formas

de regulação sistêmica.

Sob a perspectiva emancipatória, tendo em vista que a efetivação e

ampliação de espaços públicos argumentativos promovam o resgate da

coordenação comunicativa da ação em contextos societários até então colonizados,

concebe-se a possibilidade de que os impulsos comunicacionais do mundo vivido

influam cada vez mais os mecanismos de auto-regulação dos sistemas funcionais.

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Neste aspecto, Habermas interpreta o papel da esfera pública na sociedade como

sendo crucial para a “descolonização” do mundo vivido. Assim, torna-se possível

compreender as diferentes formas de ação que envolvem o enfrentamento dos

déficits de um modelo de desenvolvimento sócio-econômico excludente marcado por

uma lógica da economia de mercado como também dos déficits de legitimação da

ordem política, os quais apresentam-se, na vida social e cultural, atrelados ao

esvaziamento do sentido e da solidariedade nas diversas formas de vida social.

A esfera pública vai atuando como uma instância mediadora entre os

impulsos comunicativos gerados no âmbito do mundo vivido e condensados na

sociedade civil, e as instâncias que articulam, institucionalmente, as decisões

políticas (parlamento, conselhos, etc.). Neste sentido, compreende-se os novos

movimentos sociais e organizações da sociedade civil (estudantes, feministas,

homossexuais, negros, deficientes, desempregados, sem-terra, sem-teto, etc.), os

quais, ainda que policêntricos, localizados e fragmentados, em conseqüência de

conflitos sociais e políticos, por sua mobilização e auto-organização, incorporam

novos temas vinculados à reprodução sociocultural (além da reprodução material) na

agenda política e absorvem iniciativas sociais difusas, encaminhando-as para o

embate político. Deste modo, forjam espaços públicos autônomos orientados para a

formação da vontade e da opinião na forma de estruturas do mundo vivido, cujos

influxos democratizantes gerados possam pressionar a democratização das

estruturas decisórias do sistema político.

O modelo discursivo de política deliberativa esboça, portanto, uma

concepção de democracia radical que não está centrada unicamente no sistema

político-administrativo, encarregado de tomar as decisões vinculantes, nem

exclusivamente na sociedade. Ora, a reconstrução do conceito de esfera pública

como o locus que garante que os influxos democratizantes gerados na sociedade

civil se tornem fontes de legitimação e democratização do poder político implica uma

alteração significativa na compreensão de uma práxis radicalmente democrática.

(*) Prof. Dr. Bianco Zalmora Garcia, docente do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina onde desenvolve pesquisa sobre as interfaces da relação entre Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas e da Teoria da Ação Dialógica de Paulo Freire no âmbito da Ética e Política, Filosofia da Educação, Gestão e Política Educacional. Docente efetivo do Programa de Mestrado em Direito Negocial, na área de Ética e Direito e Metodologia da Pesquisa Jurídica, e docente convidado do Programa de Mestrado em Serviço Social na área de Democracia, Esfera Pública e Cidadania. Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Doutor em Filosofia da Educação e Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São

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Paulo. Coordenador do Curso de Especialização em Filosofia Política e Jurídica da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]

Referencias Bibliográficas

HABERMAS, Jürgen. (1997, 1) Direito e democracia: entre facticidade e validade.

Vol I. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

______. (1997, 2). Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol II. Rio de

Janeiro, Tempo Brasileiro.