heitor de andrade carvalho loureiro - "o ... -...

159
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor de Andrade Carvalho Loureiro O COMUNISMO DOS IMIGRANTES ARMÊNIOS DE SÃO PAULO (1935- 1969) PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL São Paulo – SP 2012

Upload: doliem

Post on 11-Dec-2018

223 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

O COMUNISMO DOS I MIGRANTES ARMÊNIOS DE SÃO PAULO (1935-1969)

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM HISTÓRIA

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

São Paulo – SP 2012

Page 2: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Heitor de Andrade Carvalho Loureiro

O COMUNISMO DOS I MIGRANTES ARMÊNIOS DE SÃO PAULO (1935-1969)

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM HISTÓRIA

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em História Social, sob orientação da Profª. Drª. Yvone Dias Avelino.

São Paulo – SP 2012

Page 3: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

ERRATA

Na página 70, parágrafo terceiro, onde se lê “Ações como a de 26 de agosto

de 1986”, leia-se “Ações como a de 26 de agosto de 1896”.

Page 4: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

Banca Examinadora

------------------------------------------------------------------------- Profª. Drª. Yvone Dias Avelino

------------------------------------------------------------------------- Profª. Drª. Maria Aparecida de Paula Rago

------------------------------------------------------------------------- Prof. Dr. Frederico Alexandre de Moraes Hecker

Page 5: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

A todos aqueles que em qualquer momento da

história do Brasil, por diferentes razões,

tiveram suas vidas invadidas e reviradas pela

Polícia Política.

Page 6: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço aos meus pais, Marcelo e Eliana que forneceram a

estrutura afetiva e material para que eu pudesse fazer este trabalho, mesmo que isso tenha

acarretado minha mudança de Juiz de Fora para São Paulo e a consequente ausência nessa

fase tão especial do crescimento da minha irmã. Espero que as portas que se abram com a

conclusão dessa etapa da minha carreira ajudem a amenizar os momentos importantes que eu

perdi.

Da mesma forma, agradeço à Helenice, que topou encarar comigo esse projeto e

dividiu comigo as alegrias, euforias, incertezas, angústias e os demais sentimentos

conflitantes que são inerentes a uma pesquisa. É clichê, mas não deixa de ser verdade: eu não

conseguiria sozinho. Obrigado por me manter firme ao chão quando eu teimava em sair dele.

Estendo meu agradecimento a seus pais e irmãos, que cada um ao seu jeito, também me

incentivaram nessa caminhada.

Destaco a importância da orientação da Profª. Drª. Yvone Dias Avelino que, com

conselhos sábios, me deu a liberdade necessária para pesquisar e escrever o trabalho que eu

sonhei em fazer. As observações do Prof. Dr. Frederico Alexandre de Moraes Hecker tiveram

a mesma importância nesse sentido.

A Pedro Bogossian Porto, minha gratidão por ser um interlocutor incansável e um

pesquisador obstinado, cujo trabalho permitiu que a minha pesquisa estivesse alicerçada em

terreno mais sólido.

A toda coletividade armênia de São Paulo, por ter aberto suas portas para mim nos

mais diferentes momentos, acreditando no meu trabalho, fornecendo material ou

simplesmente oferecendo amizade e apoio. Com o risco de cometer injustiças e me esquecer

de alguém, menciono especialmente: Armen Pamboukdjian, Vivi Balekian, James Onnig

Tamdjian, Marcelo Mirzeian, Denis Tchobnian, Catherine Chahinian e às famílias Mekitarian,

Magarian e Ghazarian. Reitero o meu reconhecimento a Stepan Hrair Chahinian, Charles

Apovian, Der Boghos Baron e Fernando Mangarielo, pessoas especiais que abriram suas

bibliotecas e casas para as minhas incursões.

Divido os méritos dessa pesquisa com o Prof. Dr. Hagop Kechichian, cuja

biblioteca é passagem obrigatória de qualquer pesquisador que estude a história dos armênios,

no Brasil ou exterior. A quantidade e qualidade dos documentos de seu acervo, bem como o

seu conhecimento sobre o assunto foram essenciais para que esse trabalho fosse realizado. Se

Page 7: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

me restaram algumas perguntas sem respostas durante a pesquisa, elas seriam em número

infinitamente maior se eu não tivesse o apoio do professor ao longo desses anos.

Aos professores e colegas do Programa de Estudos Pós-Graduados em História

Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o meu reconhecimento da

importância das diversas discussões travadas durante as disciplinas e reuniões para o

amadurecimento das minhas reflexões.

Aos colegas da International Association of Genocide Scholars (IAGS), em

especial Uğur Ümit Üngör e Carlos Antaramian; da Fundación Luisa Hairabedian/Centro

Latinoamericano de Estudios sobre Genocidio y Derechos Humanos (CLEGDH),

principalmente Federico Hairabedian e Alexis Papazian; a turma de 2011 do Genocide &

Human Rights University Program (Zoryan Institute/University of Toronto), especialmente

Daniel Ohanian e Vahe Sahakyan. Estendo os meus agradecimentos a Marc Madoyan,

Eduardo Kozanlian e Diran Avedian, que contribuíram cada um da sua maneira para que essa

pesquisa pudesse ser desenvolvida. Também ressalto a ajuda de Alexandre Linares, sempre

atento a qualquer vestígio que pudesse contribuir para a elucidação de algum ponto obscuro

da pesquisa.

Aos funcionários do Arquivo Público do Estado de São Paulo, que sempre me

atenderam gentilmente nas várias horas que passei nessa instituição.

Por fim, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(CAPES) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

pelas bolsas concedidas, fundamentais para a concretização do trabalho que aqui se apresenta.

Page 8: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

RESUMO

Este trabalho tem como finalidade compreender o que foi o comunismo dos

armênios em São Paulo entre 1935 e 1969 e a consequente vigilância e repressão da Delegacia

Especializada de Ordem Política e Social (DEOPS/SP). Assim, discorremos sobre a saída dos

armênios do Império Otomano e a chegada destes em São Paulo, observando também a

passagem pela Síria e Líbano, onde esses refugiados recriaram suas vidas e sociedade após o

genocídio iniciado em 1915. Vimos também como os armênios se inseriram na sociedade e

economia da capital paulista, fundando suas próprias instituições e entidades ao longo dos

anos. Por fim, analisamos como o comunismo se desenvolveu no interior da coletividade

armênia de São Paulo, em contraponto a outras tendências políticas que diferiam entre si no

modo de encarar a história recente da Armênia e a organização da vida comunitária na

diáspora. Para tanto, foram observadas as trajetórias de Levon Yacubian e Jacob Bazarian

à frente de entidades e publicações como o “Ararat – a voz do povo armênio”, jornal que foi

confiscado e investigado pela Polícia Política sob a acusação de subversão. Destarte, foram os

prontuários da DEOPS/SP as principais fontes dessa pesquisa, ao lado de publicações da

coletividade que não foram apreendidas pelas autoridades policiais, que nos permitem

reconstituir a ação desses armênios que eram entusiastas do comunismo como uma forma de

apoiar a Armênia Soviética.

Palavras-chave: Armênios, Comunismo, DEOPS/SP.

Page 9: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

ABSTRACT

This paper investigates the Armenian Communism in São Paulo between 1935

and 1969 and the surveillance and repression of Delegacia Especializada de Ordem Política e

Social (DEOPS/SP). Thus, it is analyzed how the Armenians escaped from the Ottoman

Empire and how they came to São Paulo. Their passages through Syria and Lebanon, where

they rebuilt their lives and society after the Genocide started in 1915, are also observed. It is

also discussed how the Armenians were embedded in São Paulo society and economy

establishing their own institutions over the years. Finally, it is examined how Communism

was developed into the Armenian Community in São Paulo, in opposition to other political

groups who had different views on the Armenian recent history and Diaspora organizations.

Therefore, it is observed the paths of Levon Yacubian and Jacob Bazarian, in charge of

associations and press like “Ararat - a voz do povo armênio”, a newspaper which was

confiscated and investigated by Political Police under the charge of subversion. The criminal

records of DEOPS/SP are the main sources of this research, as well as the community press

that were not captured by police authorities. Through these documents it is possible to restore

the action of the Armenians who supported Communism as a way to support Soviet Armenia.

Keywords: Armenia, Communism, DEOPS/SP

Page 10: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ACASP – Associação Cultural Armênia de São Paulo AHK – Acervo pessoal do Prof. Dr. Hagop Kechichian AIB – Ação Integralista Brasileira APESP – Arquivo Público do Estado de São Paulo APN – Agência de Notícias Novosti BN – Biblioteca Nacional CNA – Conselho Nacional Armênio DEOPS/SP – Delegacia Especializada de Ordem Política e Social de São Paulo EJB – Externato José Bonifácio - Hay Azkain Turian Varjaran FRA – Federação Revolucionária Armênia - Tashnagtsutyun HOM - Associação Armênia de Assistência - Hay Oqnutian Miut'yun IC – Internacional Comunista ODL – Organização Democrata Liberal - Ramgavar PCB – Partido Comunista do Brasil RSS – República Socialista Soviética SAMA – Sociedade Artística de Melodias Armênias - Clube Armênio SEC-MAPA – Sociedade Esportiva e Cultural - Mocidade Armênia de Presidente Altino SEV – Serviço Especial de Vigilância UASP – União Armênia de São Paulo UGAB – União Geral Armênia de Beneficência

Page 11: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................................. 12

CAPÍTULO I - Mascates, sapateiros e empresários: um estudo da imigração armênia em São Paulo ......................................................................................................................................... 30

1.1 Genocídio e diáspora: fim e recomeço ...................................................................... 32

2.2 De mascates e sapateiros a empresários .................................................................... 38

CAPÍTULO II – Instituições armênias na diáspora: partidos e agremiações políticas .......... 53

2.1 Instituições religiosas, educacionais e culturais ........................................................ 54

2.1.1 As Igrejas Armênias ........................................................................................... 55

2.1.2 Instituições educacionais armênias em São Paulo .............................................. 57

2.1.3 As Associações culturais e esportivas ................................................................ 59

2.1.4 Primeiros esforços .............................................................................................. 59

2.1.5 Entidades de compatriotas .................................................................................. 60

2.2 Partidos e agremiações políticas ................................................................................ 61

2.2.1 Partido Revolucionário “Hentchakian” .............................................................. 62

2.2.2 A Organização Democrática Liberal (ODL) – Ramgavar .................................. 66

2.2.3 A Federação Revolucionária Armênia - FRA .................................................... 69

CAPÍTULO III - O comunismo armênio em São Paulo e a vigilância da DEOPS/SP .......... 80

3.1 O funcionamento da DEOPS/SP e o projeto autoritário em vigor no período .......... 81

3.2 As primeiras incursões da DEOPS/SP sobre o comunismo dos armênios em São Paulo................. .................................................................................................................... 89

3.2.1 A “União Armênia de São Paulo” e a primeira expressão institucional do apoio à Armênia Soviética .......................................................................................................... 92

CAPÍTULO IV - O jornal “Ararat – a voz do povo armênio” e seus idealizadores: o comunismo a serviço da Armênia .......................................................................................... 102

4.1 Levon Yacubian: de jornalista promissor a preso político ...................................... 107

4.2 Jacob Bazarian: de militante comunista a crítico da URSS ..................................... 118

4.3 “Ararat – a voz do povo armênio” ........................................................................... 132

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 147

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES ........................................................... 152

Page 12: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

Terra soviética, terra livre - Armênia! Você experimentou o destino cruel no passado, Seus filhos se esforçaram por você, Agora você se tornou a casa dos armênios! (...) A grande Rússia estendeu-nos sua mão amiga Nós criamos um novo e forte Estado O sábio partido de Lênin Conduz-nos triunfalmente ao Comunismo! Trechos do hino da República Socialista Soviética da Armênia, por Armenak Sarkisyan e Aram Khachaturian, 1944.

Page 13: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

12

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Tive também informação de que há vários dias foi uma carrocinha de leite assaltada por indivíduos estrangeiros, residentes nas imediações da Rua Ararimã, tendo estes últimos dito ao leiteiro que não se zangasse, pois a revolução comunista estava para chegar e isso era só o princípio1.

Subscreve essa declaração o investigador João Telles de Souza, em documento

enviado ao delegado de Ordem Social em 1º de dezembro de 1935, na cidade de São Paulo. O

trecho supracitado foi retirado do prontuário do professor da escola armênia, Nazareth

Avedikian. De acordo com o documento, a queixa foi prestada por supostas vítimas de

agressão física por parte de “indivíduos de credo comunista”2.

Segundo Souza, as investigações concluíram que a prática de espancamento era

uma tática utilizada pelos armênios da região para com todos aqueles que não “comungam de

suas ideias”. Além disso, o investigado obrigaria todos os alunos de sua escola a

comparecerem às aulas com uma faixa vermelha no uniforme, em homenagem a Lênin3.

Segue nesse tom todo o prontuário do professor Avedikian, fichado pela

DEOPS/SP como comunista, assim como diversos outros armênios residentes na cidade de

São Paulo entre as décadas de 1930-1960. A repressão da Delegacia de Ordem Política e

Social de São Paulo – DEOPS/SP4 – 1924-1983, criada, segundo Regina Célia Pedroso, em

um contexto de repressão política e formação ideológica contra aqueles que fossem julgados

prejudiciais para a manutenção da ordem vigente5, recai assim sobre uma boa fração da

coletividade armênia, que segundo o entendimento das autoridades repressivas, eram “todos

que pertencem a Armênia Soviética6 e são comunistas, adeptos e admiradores de Stalin”7,

1 Prontuário 3.125 – Nazareth Avedikian. Fundo DEOPS/SP, APESP. A fim de evitar repetições desnecessárias, cabe ressaltar que todos os prontuários citados neste trabalho são oriundos do Fundo DEOPS/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo – APESP. 2 Idem. 3 Idem. 4 A sigla DEOPS/SP se refere a denominação de “Delegacia Epecializada de Ordem Política e Social”, nome pelo qual a repartição foi chamada em diferentes períodos ao longo da década de 1930, ou ainda a “Delegacia Estadual de Ordem Política e Social”, seu primeiro nome. Mas também é comum acharmos na literatura referências a sigla “Dops”, referente à Delegacia ou ao Departamento de Ordem Social. AQUINO, Maria Aparecida de, et. alii. (2001). No Coração das Trevas: o DEOPS/SP visto por dentro. São Paulo: Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, p. 19. Para este trabalho, utilizaremos DEOPS/SP, como é nominada a instituição no Fundo DEOPS/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo, onde recolhemos grande parte do material desta pesquisa. 5 PEDROSO, Regina Célia (2005). Estado Autoritário e Ideologia Policial. São Paulo: Laboratório de Estudos sobre Intolerância/Humanitas/FAPESP, pp. 112-114. 6 Embora estes tenham emigrado antes de 1920, quando a Armênia foi colocada sobre jurisdição da Rússia bolchevique. 7 Pront. 98.526 – Ararat. Esta citação também está presente no prontuário de Avedikian, uma vez que as investigações sobre o jornal apontam o professor como um dos assinantes do jornal Ararat – A voz do povo

Page 14: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

13

numa tentativa de rotulação dos inimigos políticos. Assim, nos cabe perguntar: se a

disseminação do “credo comunista” entre os brasileiros já assustava as autoridades, o que

podemos inferir quando refletimos sobre indivíduos ligados a um país que a essa altura era

república integrante da URSS? Taciana Wiazovski e Eric Godliauskas Zen nos mostram que

eram justamente os imigrantes oriundos dos países pertencentes à URSS e seus satélites os

mais perseguidos pela DEOPS/SP sob a acusação de comunismo8.

É embebido nesse caldo político que, de acordo com Tucci Carneiro, a DEOPS/SP

assume a dianteira da repressão para “domesticação das massas”, homogeneizando diferentes

tendências e desarmando os pensamentos considerados “potencialmente perigosos”9. Regina

Célia Pedroso, por sua vez, afirma que segundo a ótica do Estado, “o comunismo é o

elemento desagregador da sociedade, contra a moral e bons costumes, sendo expresso pela

destruição e pela violência alardeados contra o estado getulista”10.

Assim, pretendemos entender o que foi o comunismo dos armênios durante os

anos de 1935 e 1969, bem como a repressão que acompanhou atenta a movimentação

ideológica da comunidade em São Paulo. O que podemos inferir previamente é que os

armênios rotulados como comunistas se encaixavam perfeitamente no perfil estereotipado que

a repressão criou para enquadrar os elementos indesejáveis: “os revolucionários, os

contestadores, os sindicalistas, os estrangeiros, os operários, os anarquistas e os

subversivos”11.

Entretanto, transportar automaticamente para todos os armênios de São Paulo o

rótulo de comunistas é um erro e precisa ser evitado a todo custo. E mesmo entre os

esquerdistas, não podemos afirmar que havia uma homogeneidade12. Assim, para lograrmos

êxito em nossa proposta, precisaremos de uma análise sobre a imigração armênia no Brasil,

bem como de suas nuances políticas, que dividem a comunidade desde os primeiros

imigrantes chegados ao país. Apenas após ter dado este passo, poderemos entender em

armênio, órgão dos armênios simpáticos à URSS. No trabalho “A Imprensa Confiscada pelo DEOPS”, os autores também mencionam o jornal Ararat e o processo supracitado. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci & KOSSOY, Boris (2003). A Imprensa Confiscada pelo DEOPS. São Paulo: Ateliê Editorial, pp. 114-117. 8 WIAZOVSKI, Taciana (2001). Bolchevismo e Judaísmo: a comunidade judaica sob o olhar do DEOPS. Módulo VI – Comunistas. São Paulo: Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, p. 37; ZEN, Erick Reis Godliauskas (2010). Imigração e Revolução: lituanos, poloneses e russos sob vigilância do Deops. São Paulo: Edusp. 9 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (1999). “O Estado Novo, o Dops e a ideologia da segurança nacional”. In: PANDOLFI, Dulce (org). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, pp. 335-336. 10 PEDROSO, R. (2005). op. cit., p. 129. 11 Ibid., p. 114. 12 Como podemos perceber, por exemplo, na ação do italiano Antonio Piccarolo no Brasil, que apesar de ser o líder dos socialistas italianos em São Paulo, mantinha uma posição crítica perante a URSS e o comunismo. Cf. HECKER, F. Alexandre (1989). Um Socialismo Possível: a atuação de Antonio Piccarolo em São Paulo. São Paulo: T. A. Queiroz Editor.

Page 15: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

14

profundidade e com a lucidez necessária o que foi o comunismo no seio da coletividade

armênia brasileira, qual foi o seu alcance e, principalmente, em que medida isso ameaçava o

Estado então representado pela DEOPS/SP13.

O recorte temporal – 1935-1969 – insere-se não por acaso em dois períodos

autoritários da história republicana brasileira. Em dezembro de 1935, foi fichado como

comunista o primeiro armênio – o já citado Nazareth Avedikian – inserido no contexto de

vigilância e perseguição suscitado pela ação dos militantes de esquerda na década de 1930. Na

data da queixa, o Brasil vivia o ápice do “medo vermelho”. Em 1934, militantes do PCB

dispersaram uma manifestação dos Integralistas na Praça da Sé, enfurecendo as forças

conservadoras. Um ano depois e menos de um mês antes do prontuário ser aberto, levantes em

diversos quartéis do Brasil foram rapidamente sufocados pelo governo Vargas, enquanto a

imprensa dava ampla cobertura ao que ficou pejorativamente conhecido como Intentona

Comunista14.

Mil novecentos e sessenta e nove foi o ano de encerramento das atividades da

revista Armênia, último empreendimento editorial de Jacob Bazarian15. Outrora envolvido nas

publicações Verelk e Ararat - a voz do povo armênio, ambos orientados ao apoio do

comunismo na Armênia, a revista Armênia já não continha mais aquele discurso militante de

dez ou quinze anos antes, sendo inclusive, o último número, uma espécie de sepultura do

comunismo de Bazarian, na qual ele explica os motivos de sua mudança de postura em um

artigo intitulado “Porque me divorciei do comunismo”16. Tal número da revista contendo o

referido texto é anexado ao prontuário de Bazarian como prova de seu rompimento com o

comunismo, na ocasião que o prontuariado requisitou um atestado de antecedentes criminais

na Polícia Política. Portanto, o fim da revista e dos registros de Jacob Bazarian no Fundo

DEOPS/SP são marcos ideais para fecharmos o recorte da pesquisa.

As balizas temporais deste trabalho abarcam diferentes períodos políticos da

história do Brasil e de São Paulo. Contudo, preferimos manter tal recorte a fim de respeitar os

limites que a própria documentação nos impõe. A revista Armênia não foi a última ação

individual ou coletiva de armênios e descendentes filtrada pela Polícia Politica. Entretanto, a

publicação foi a última evidência expressiva de que a repressão conseguiu reunir para provar 13 “Ao Estado não interessava permitir a manifestação de comunidades organizadas – aqui entendidas como grupos com projetos políticos, étnicos ou culturais diversificados –, o que explica sua insistência em manter regulamentos que se antecipassem ao risco da rebelião”. CARNEIRO, M. (1999). op. cit., p. 336. 14 VIANNA, Marly (2007). “O PCB, a ANL e as insurreições de novembro de 1935”. In: FERREIRA, Jorge. & DELGADO, Lucília. O Brasil Republicano. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2ª Ed., p. 74. 15 Pront. 95.621 - Jacob Bazarian. 16 Revista ARMÊNIA. São Paulo, maio-junho de 1969, ano III, nº 16, pp. 13-15. Acervo do Prof. Dr. Hagop Kechichian (AHK).

Page 16: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

15

a subversão de armênios em São Paulo. Portanto, consideramos o fim dos trabalhos da revista

– sendo inclusive o seu último número anexado ao prontuário de Jacob Bazarian – um

importante marco na ação política de uma fração dos armênios na capital paulista.

As primeiras famílias armênias em São Paulo datam dos anos 1890. Segundo

Roberto Grün, esta pequena leva de armênios ocupava o mesmo espaço dos sírios e libaneses,

também atuando como mascates e, após acumularem capital suficiente, alguns conseguiram

constituir uma bem sucedida elite de origem imigrante em São Paulo17.

Entretanto, foi o Genocídio Armênio – 1915-1923 – o grande responsável pelas

expressivas comunidades armênias dispersas pelo mundo. Primeiro genocídio do século XX e

o mais longo da história18, este fenômeno foi uma ação sistematicamente organizada pelo

governo turco-otomano – tomado pelo Comitê União e Progresso, alcunhado de partido dos

“Jovens Turcos” –, com a finalidade de exterminar a população armênia das províncias

orientais do Império Otomano. Este processo servia a um propósito: manter vivo o Império

que apresentava sérias rachaduras em suas estruturas, após anos de crises econômicas e

políticas, que custaram à Constantinopla a perda dos Bálcãs, derrota da qual o governo

otomano nunca iria se recuperar. Aniquilar os armênios era uma tentativa de evitar que estes

entrassem em uma ebulição revolucionária que poderia culminar na independência desta

região, o que seria o fim do já fragilizado Império Otomano. Cerca de 1,5 milhão de armênios

foram mortos19 e 350 mil emigraram antes ou depois das matanças20. O mapa da diáspora

armênia não deixa dúvida do tamanho da destruição: Aharon Sapsezian estima que, enquanto

viviam na Armênia Soviética cerca de 3,1 milhões de armênios, outros 3,5 milhões estavam

espalhados pelo mundo21.

17 GRÜN, Roberto (1992). Negócios e Famílias: armênios em São Paulo. São Paulo: Sumaré, p. 19. Oswaldo Truzzi nos chama a atenção que no Oriente Médio, a atividade de mascate era mais comumente desempenhada por armênios, judeus e gregos, enquanto os sírios e libaneses eram, sobretudo, agricultores e artesãos. Interessante notar como a lógica de armênios – de mascates para artesãos – e sírios e libaneses – de artesãos para mascates – se inverte ao chegarem no Brasil. TRUZZI, Oswaldo (2005). Sírios e Libaneses: narrativas de história e cultura. São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. 28. 18 Tese sustentada por Campolina Martins. Como não houve um reconhecimento do Genocídio por parte da República da Turquia – herdeira legal do legado turco-otomano – não podemos falar em um desfecho jurídico na questão, permanecendo em aberto até hoje. CAMPOLINA MARTINS, Antônio Henrique (1998). “Armênia, um povo em luta pela liberdade: o mais longo genocídio da história”. Dossiê – Direitos Humanos. In: Ética e Filosofia Política. Juiz de Fora: UFJF, v. 3, nº 1, p. 154, nota 16. 19 “The First World War led to the killing of an uncounted number of Armenians by Turkey – the most usual figure is 1.5 millions – which can count as the first modern attempt to eliminate an entire population”. HOBSBAWM, Eric (1996). The Age of Extremes. Nova York: First Vintage Books, p. 50. 20 SAPSEZIAN, Aharon (1988). História da Armênia: drama e esperança de uma nação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 160. 21 SAPSEZIAN, A. (1988). op. cit., pp. 161-162.

Page 17: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

16

Ao contrário de outras etnias, não houve uma política pública de incentivo à

imigração armênia para o Brasil22, assim como houve para a França, por exemplo, onde os

armênios serviram como mão-de-obra substituta aos franceses mortos durante a Primeira

Guerra Mundial23. Por este motivo, não é de se espantar o pequeno número de armênios que

emigraram para o Brasil se comparado com trabalhadores oriundos de outros países, ou ainda

se pensarmos nas cifras de imigrantes armênios em nações que incentivaram o aporte destes.

Conforme veremos no capítulo I, apesar de não haver estimativas confiáveis e definitivas,

acreditamos que existam cerca de 40 mil armênios no Brasil, em sua maioria, localizados em

São Paulo24.

A chegada do maior contingente de imigrantes armênios se concentrou entre os

anos de 1924-1926, alcançando o número de cinco mil armênios no país em 193525, atraídos

muitas vezes pelas experiências dos árabes na Síria e no Líbano – países nos quais os

armênios se refugiaram no primeiro momento –, que remetiam cartas às famílias contando das

vitórias e conquistas no Brasil26.

A origem da maior parte dos armênios brasileiros remete à região da Cilícia – ou

Armênia Menor, localizada às margens do Mar Mediterrâneo –, sendo Marash a principal

cidade de origem destes indivíduos27, o que colaboraria para a organização e a criação de

laços de sociabilidade na terra de destino28. Kechichian afirma que os primeiros que aqui

chegaram se organizaram em pequenas sociedades e conseguiram iniciar pequenos negócios,

principalmente vinculados às atividades comerciais de mascate29. Também veremos no

22 Embora um caso muito curioso revele que o político e escritor Medeiros e Albuquerque tentou articular, sem sucesso, a vinda de armênios para São Paulo e Amazonas durante o governo Campos Sales. MEDEIROS E ALBUQUERQUE, J. J. C. C (1982). Quando Eu Era Vivo. Rio de Janeiro: Record, pp. 212-213. No mesmo sentido, há no Acervo do Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores, no Rio de Janeiro, uma correspondência do Diretor dos Serviços Econômicos e Comerciais no Brasil para o Adido Comercial do Brasil em Alexandria informando ao destinatário que não haveria interesse por parte do governo brasileiro em patrocinar uma “corrente migratória” de armênios para o país, em 1930. Ficha 834, doc. EC/992, Disponível em <http://www.arqshoah.com.br/arqshoah.aspx?id=717>, acesso em 18/03/2012. 23 SAPSEZIAN, A. (1988). op. cit., p. 164. 24 Cerca de 25 mil na Grande São Paulo, segundo Aharon Sapsezian . SAPSEZIAN, Aharon. (2010). História Sucinta e Atualizada da Armênia. São Paulo: Emblema, p. 288. 25 KECHICHIAN, Hagop (2000). Os Sobreviventes do Genocídio: imigração e integração armênia no Brasil, um estudo introdutório. São Paulo: Tese de doutorado em História Social, FFCHL/USP, pp. 32 e 51. 26 Ibid., p. 31. 27 GRÜN, R. (1992). op. cit., p. 14; KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 24. 28 Interessante notar que este é um fenômeno comum às etnias do Oriente Médio. Os sírios de Juiz de Fora – MG também são provenientes majoritariamente de uma mesma cidade: Yabroud. BASTOS, Wilson de Lima (1988). Os Sírios em Juiz de Fora. Juiz de Fora: Paraibuna, pp. 22-27. Isso se dá, segundo Oswaldo Truzzi, graças a base identitária situada no tripé aldeia, família e religião, crucial para o entendimento de sírios, libaneses e em alguma medida, também pelos armênios. TRUZZI, O. (2005). op. cit., pp. 2-3. 29 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 33.

Page 18: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

17

capítulo seguinte como, uma vez estabelecidos e relativamente estabilizados, os imigrantes

direcionavam seus esforços para a confecção de calçados.

Mais do que um ofício e fonte de renda, as oficinas/sapatarias armênias na cidade

serviam como as primeiras áreas de sociabilidade entre os imigrantes. Em função do negócio,

os armênios se reuniam e se apoiavam, com o intuito de fomentar novos artesãos que haviam

chegado há pouco e ainda não tinham condições de sobreviver em São Paulo. Assim, os

armênios adaptados e financeiramente estáveis no Brasil, como Rizkallah Jorge Tahanian,

subsidiavam os recém-chegados com capital e matéria-prima para que estes pudessem iniciar

as vidas no novo país30.

A partir daí, a vida social e política da comunidade tomou forma. As primeiras

sociedades e associações foram fundadas, com o intuito de construir os dois fundamentais da

existência do armênio na diáspora: as igrejas e os partidos31, a partir dos quais outras

instituições se desdobravam. A construção de instituições educacionais era outro objetivo de

primeira hora da comunidade nos seus primórdios. Além disso, sociedades culturais e

recreativas também afloraram no seio da coletividade nas décadas de 1920 e 1930, bem como

agremiações da juventude armênia, encenando peças e cantando músicas armênias em corais.

As agremiações partidárias também são instituições fundadas no raiar da

coletividade armênio-brasileira. Em São Paulo, assim como em toda a diáspora armênia,

destacam-se três principais partidos: Federação Revolucionária Armênia – FRA, Partido

Revolucionário – Hentchakian – e Organização Democrata Liberal – ODL. Assim, os

partidos fecham o ciclo orgânico e mutável das instituições armênias, que como todas as

outras etnias imigrantes, “formalizaram, em algum grau, suas etnicidades, fundamentadas por

identidades articuladas à origem nacional”32. Diante de toda a ebulição político-partidária

característica da comunidade armênia, aliada ao contexto instável da política brasileira entre

as décadas de 1930-60, não seria de estranhar a movimentação dos imigrantes já radicados,

seja nas agremiações de compatriotas, seja nas entidades brasileiras. Nesse sentido,

pretendemos entender o porquê das autoridades da DEOPS/SP investigarem armênios sob a

acusação de comunismo, ideologia perigosa à nação naqueles tempos, segundo a ótica do

Estado.

Para os armênios, apoiar a URSS não era necessariamente um gesto de apoio ao

comunismo. Até mesmo a ODL, partido de centro-direita, mantinha diálogo e de certa

30 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., pp. 46-49. 31 SAPSEZIAN, A. (1988). op. cit., p. 167. 32 SEYFERTH, Giralda (1999). “Os Imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo”. In: PANDOLFI, Dulce (org). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, p. 202.

Page 19: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

18

maneira, era entusiasta da Armênia Soviética, uma vez que foi a anexação do país à URSS o

que garantiu a manutenção do torrão nacional longe da constante ameaça turca. Nas palavras

da historiadora Mary Matossian, em artigo escrito na década de 1970:

Hoje não há Estado armênio, a não ser o da República Socialista Soviética da Armênia. E, sejam quais forem as falhas que apresente, a Armênia Soviética é o único foco do orgulho nacionalista e da criatividade cultural dos armênios. A atitude de seus habitantes naturais pode variar do entusiasmo à hostilidade; mas poucos armênios condenam todos os aspectos da vida que lá se vive. Afinal de contas, é a Armênia33.

Todavia, convém lembrar que não havia entre as agremiações diaspóricas

armênias no Brasil, um partido essencialmente comunista34, mas sim indivíduos e entidades

simpatizantes com os ideais comunistas que poderiam militar entre os brasileiros e divulgar

suas ideias entre os patrícios.

Voltando ao professor Nazareth Avedikian, prontuariado citado no começo desta

apresentação, as investigações da DEOPS/SP não são conclusivas sobre as motivações

comunistas do professor para a suposta agressão. Tampouco é comprovadamente comunista o

furto da carroça de leite, atribuída a estrangeiros ansiosos pela revolução35. Diante de tal

quadro, podemos afirmar que por vezes a DEOPS/SP era chamada a intermediar conflitos

sociais sem relação com problemas políticos, com a alegação de que uma das partes foi

movida por interesses partidários subversivos em sua conduta. Para Maria Luiza Tucci

Carneiro “tanto o DIP36 quanto o Dops funcionaram como engrenagens reguladoras das

relações entre o Estado e o povo”37. Regina Célia Pedroso frisa que “as deduções que a polícia

fazia acerca da suspeição eram em geral balizadas a partir dos estereótipos atribuídos de

antemão”, chegando até mesmo a fabricar provas para incriminar o suspeito de atividades

subversivas e que, muitas vezes, havia delatores que entregavam um individuo a repressão

como comunista por motivos pessoais, alheias às questões políticas38.

Segundo o prontuário de Avedikian havia uma movimentação política na zona

norte de São Paulo, através de reuniões comunistas na casa de um armênio, comandadas por

um padre não identificado. Embora cerca de cinquenta anos mais tarde o professor negue ser

33 “A vida no Estado armênio da URSS”, em O Estado de São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1970 (AHK). 34 Embora Nubar Kerimian, em tom pejorativo, defina o Hentchak enquanto tal, justamente porque os socialdemocratas mantinham diálogo com a Armênia Soviética, algo que a Federação Revolucionária não fazia. Veremos isso mais detalhadamente no capítulo II. KERIMIAN, Nubar (1998). Massacres de Armênios. São Paulo: Comunidade da Igreja Apostólica Armênia, 2ª ed., p. 252. 35 Pront. 3.125 – Nazareth Avedikian. 36 Departamento de Imprensa e Propaganda. 37 CARNEIRO, M. (1999). op. cit., p. 339. 38 PEDROSO, R. (2005). op. cit., pp. 140-142.

Page 20: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

19

comunista, declarando ser neutro ante as posições partidárias39, é inegável o engajamento

político de alguns de seus compatriotas. Entretanto, tal engajamento não pode ser visto como

uniforme ou coeso, tendo o comunismo diferentes usos para a diáspora armênia no Brasil.

Em entrevista a um jornal de Londrina – PR em 1983, o também investigado José

Balikian40 afirma que “nosso país [a Armênia] sempre foi muito pobre. Lá, só existiam

escolas primárias. Hoje, com o socialismo, eles tem de tudo”41. A declaração de Balikian pode

envolver um entusiasmo com o comunismo, bem como com a manutenção do território

armênio com fronteiras bem delimitadas e a melhoria da condição de vida da população da

RSS da Armênia se comparada aos tempos otomanos. Nesse sentido, o comunismo e o

nacionalismo armênio são indissociáveis.

Na mesma direção vai o depoimento do ator e político Stepan Nercessian sobre o

seu pai, Garabed. Notório comunista, Garabed desencorajou o filho Stepan a alimentar ódio

ou sentimento de vingança para com os turcos, pois, segundo ele, mais do que armênios, eles

eram comunistas e, o trabalho dos armênios comunistas pelo mundo não era a vingança, mas

sim lutar para que aquelas atrocidades nunca mais aconteçam com a humanidade42. Nessa

declaração, apesar de não versar sobre a RSS da Armênia, Garabed deixa transparecer o papel

do armênio na humanidade, em consonância com a tradição internacionalista do comunismo,

mas sem esquecer a origem ancestral.

Porém, é Levon Yacubian43 um dos casos mais proeminentes dos usos do

comunismo dentro da coletividade armênia em São Paulo. Em artigo escrito ao jornal Ararat

de dezembro de 1949 e janeiro de 1950, Yacubian glorifica Stálin, chamando o líder da URSS

de “melhor dos amigos incondicionais de nossa Pátria [Armênia]” e “patrimônio imortal da

humanidade”44. Nestas falas, percebemos o entusiasmo de Yacubian com o líder soviético,

que para ele é figura crucial para a sobrevivência da Armênia no mundo.

Além de um entusiasta do socialismo enquanto forma de governo ideal para a

Armênia, a postura política defendida pelo autor ataca diretamente a posição da Federação

Revolucionária Armênia, o maior dos partidos políticos armênios na diáspora, que nunca

aceitou o país como uma República Socialista Soviética. Assim, a rixa dos armênios

comunistas com a FRA era oriunda dos rumos que a República da Armênia tomara e as

medidas adotadas na Pátria-Mãe acirravam os ânimos na coletividade paulista.

39 KERIMIAN, N. (1998). op. cit., p. 279. 40 Pront. 98.433 – José Balikian. 41 Jornal Folha de Londrina. 08 de agosto de 1983. Acervo da família Balekian. 42 Depoimento de Stepan Nercessian. Documentário “Chegados: Armênia”. Canal Futura, 2007. 43 Pront. 73.631- Levon Yacubian. 44 ARARAT – a voz do povo armênio. Ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 1.

Page 21: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

20

Com isso, podemos perceber que o comunismo dos armênios em São Paulo está

longe de ter apenas uma faceta. Para além da ideologia política, o comunismo serviu como

uma importante arma de crítica e oposição no interior da coletividade armênia.

A presente pesquisa justifica-se na carência crônica de obras e trabalhos que

versam sobre a imigração armênia no Brasil. Podemos afirmar com segurança que poucas

pesquisas até o momento tentaram compreender o fenômeno migratório armênio de uma

forma ampla. Há a necessidade de nos debruçarmos sobre documentos nunca antes utilizados

– ou se utilizados, não devidamente aproveitados – como os prontuários da DEOPS/SP para

ampliar as fronteiras da historiografia sobre os armênios no Brasil, a fim de trabalhar uma

série de acontecimentos que nenhum outro corpus documental pôde detectar. A abundância de

prontuários fichando os armênios como “comunistas”, bem como outras fontes disponíveis

em diversas instituições de São Paulo, nos autorizam a dizer que certamente ainda há muito

desta história por contar, do engajamento político dos imigrantes armênios em São Paulo, seja

para transformar a realidade enquanto forasteiros em um país novo, seja para garantir a

manutenção da Pátria-Mãe.

O estudo dos movimentos de esquerda no Brasil é campo inesgotável de temas

originais de pesquisa, além de crucial no cerne da história republicana brasileira. As

esquerdas45, com todas as suas nuances e tendências, atuaram no sentido de promover

mudanças e rupturas na trajetória política nacional, o que as torna peças políticas

fundamentais e objetos de pesquisa em potencial das ciências humanas. As análises desses

atores políticos através dos prontuários da DEOPS/SP “se prestam para compor a memória

coletiva retirando do anonimato cidadãos que, num passado recente, protestaram contra a

desigualdade racial, social e política”46.

Citando Antonio Gramsci, Edward Said acredita ser primordial deixar clara a

“dimensão pessoal” que a pesquisa possa ter47. Durante toda a graduação em História,

realizamos uma série de leituras e pesquisas sobre o genocídio armênio. Paralelamente a isso,

estivemos presentes na coletividade armênia de São Paulo em diversas ocasiões ao longo

45 Quando nos referimos à “esquerda”, estamos de acordo com a definição de Norberto Bobbio na qual “o que faz um movimento de libertação um movimento de esquerda é o fim ou o resultado a que se propõe: a derrubada de um regime despótico fundado na desigualdade entre quem está em cima e quem está embaixo na escala social, percebido como uma ordem injusta, e injusta precisamente porque inigualitária, porque hierarquicamente constituída; e a luta contra uma sociedade na qual existem classes privilegiadas e, portanto, em defesa e pela instauração de uma sociedade de iguais juridicamente, politicamente, socialmente, contra as mais comuns formas de discriminação [...]”.BOBBIO, Norberto (1995). Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: UNESP, 2ª reimpressão, pp. 19-20. 46 CARNEIRO, M. & KOSSOY, B. (2003). op. cit., p. 9. 47 SAID, Edward W. (2007). Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 56-57.

Page 22: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

21

destes anos, principalmente nos dias 24 de abril, data em que todos os armênios rememoram

os mortos no genocídio. O que mais nos marcou nessa experiência é que, apesar de terem uma

pauta comum, que é a memória de um genocídio e a luta pelo seu reconhecimento, os

armênios de São Paulo não estão imunes a um afastamento da vida comunitária.

Por diversas vezes, tomamos conhecimento de histórias sobre brigas, dissidências

ou mesmo de certa apatia no seio da coletividade que enfraqueceram ou modificaram

substancialmente através dos anos as instituições e instâncias, inclusive decretando o fim de

algumas delas. Tal realidade nos instigou, pois, é intrigante como um grupo imigrante

relativamente pequeno e concentrado em uma cidade pode ser tão heterogêneo do ponto de

vista político. Ainda que muitos tivessem um sentimento em comum sobre o que era ser

armênio, algumas divergências políticas que existiam mesmo antes da vinda para o Brasil

colocaram pessoas e instituições em posições opostas da coletividade.

Esta pesquisa nasceu após uma série de consultas ao Arquivo Público do Estado

de São Paulo. Fomos até lá para mapear o que existia sobre os armênios, a fim de saber se era

possível iniciar uma pesquisa a partir dos documentos que por ventura lá existissem. Logo no

primeiro dia, encontramos alguns prontuários de armênios “comunistas”, que nas incursões

seguintes se revelaram existir em um número considerável. Mesmo após alguns anos

frequentando alguns espaços na coletividade, não tínhamos conhecimento deste “comunismo

armênio” o qual a DEOPS/SP observou com tanto afinco.

Tal discrepância de informações causou, em um primeiro momento,

estranhamento. Com o andamento da pesquisa, percebemos que os armênios comunistas,

ainda que tivessem alguma expressão dentro da coletividade entre as décadas de 1940-60, não

foram de forma alguma o grupo político mais forte. Com o passar dos anos, como veremos

mais à frente, tal grupo perdeu força até se dissolver, tendo a sua existência permanecido viva

em dois lugares: na memória de todos que viveram aquela época e estiveram em quaisquer

dos lados postos, e nos arquivos da repressão da DEOPS/SP. Ou seja, fazer uma pesquisa

sobre esta fração da coletividade é, em primeiro lugar, revisitar experiências de pessoas que

atuaram politicamente e que por uma série de razões, foram solapadas da memória atual da

coletividade. E mais, a pesquisa revelou que muitas diferenças entre os armênios datam dos

primórdios da organização da coletividade em São Paulo, o que permite observar como foram

criados alguns dos desafios que estão colocados atualmente no cotidiano da coletividade.

Em segundo lugar, refletir sobre os armênios e a repressão da DEOPS/SP é

escrever mais um capítulo de como tal órgão agia com os imigrantes. Uma importante linha

de pesquisa desenvolvida ao longo dos últimos anos logrou êxito ao estudar como diversos

Page 23: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

22

grupos étnicos radicados no Brasil foram vigiados e repreendidos pela DEOPS/SP por

“atividades subversivas”. Dezenas de judeus48, lituanos, russos, poloneses49, alemães50,

portugueses51, espanhóis52, dentre outros, tiveram que dar explicações para a Polícia Política

por estarem, supostamente, praticando atividades perigosas para o Brasil. É uma lacuna na

historiografia existente um estudo que se preocupe com a atenção que a DEOPS/SP deu para

os armênios entre as décadas de 1930 e 1960. Dentro dessa delimitação temporal, podemos

perceber no ambiente nacional a radicalização dos atores políticos e, como não podia deixar

de ser, a militância política da comunidade armênio-paulista também chegou ao seu apogeu.

A proximidade que esses imigrantes gostariam de ter com a Pátria-Mãe fez com

que muitos assinassem jornais e frequentassem clubes onde a “armenidade” pudesse ser

vivida. Evidentemente, este tipo de prática por parte de uma comunidade estrangeira não era

bem quista tanto pelos intelectuais autoritários, como pelo governo e burocracia estatal.

Assim, muitos armênios ditos comunistas pela DEOPS/SP na realidade eram apenas pessoas

que assinavam jornais ou que procuravam participar da coletividade. Isso nos leva a outro

objetivo de nosso trabalho: compreender como a DEOPS/SP via esta comunidade sob o

prisma do anticomunismo e do preconceito para com os estrangeiros entre os anos de 1930-

1960.

A literatura já existente sobre a temática tem limitações que nos impossibilitam

eleger um trabalho como obra de referência nos estudos da imigração armênia no Brasil.

Contudo, não será o presente trabalho que se colocará enquanto pedra angular dos estudos

sobre a imigração armênia para o Brasil. Nossos esforços não são no sentido de fazer uma

história social da imigração armênia no Brasil, passando detalhadamente por uma discussão

de números de imigrantes, motivos que levaram a imigração, atividades realizadas pelos

imigrantes, localidades ocupadas no Brasil, etc. Ainda que isso seja indispensável para a

realização da pesquisa, tal sistematização de informações será feita somente com o intuito de

oferecer um panorama desta imigração, a fim de que se torne possível discutir os aspectos

políticos da fração brasileira da diáspora armênia.

48 WIAZOVSKY, T. (2001). op. cit. 49 ZEN, E. (2010). op. cit. 50 DIETRICH, Ana Maria (2007). Caça às Suásticas: o Partido Nazista de São Paulo sob mira da Polícia Política. São Paulo: Imprensa Oficial. 51 HECKER, Alexandre (2009). “A repressão aos imigrantes portugueses em São Paulo: os subversivos e os outros”. In: SOUZA, Fernando, et. alii. Nas Duas Margens: os portugueses no Brasil. Porto, Portugal: Afrontamento/Cepese. 52 NEGRÃO, João Henrique Botteri (2005). Selvagens e Incendiários: o discurso anticomunista do governo Vargas. São Paulo: Laboratório de Estudos sobre Intolerância/Humanitas/FAPESP.

Page 24: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

23

Na ausência de um estudo consistente da imigração armênia, lançaremos mão dos

trabalhos de Clark Knownton e Oswaldo Truzzi sobre os sírios e libaneses em São Paulo, pois

ambas as etnias apresentam similaridades com os armênios, tanto antes quanto depois da

imigração para o Brasil53.

Mais recentemente, Pedro Bogossian Porto defendeu uma dissertação de mestrado

em antropologia na Universidade Federal Fluminense que, felizmente, trouxe novas reflexões,

problemáticas e fontes para o estudo dos armênios no Brasil54. Consideramos o trabalho de

Porto, até o momento, o esforço acadêmico mais completo no que diz respeito à temática. Por

meio de inúmeros depoimentos colhidos com descendentes de armênios no Rio de Janeiro e

em São Paulo, além de uma minuciosa observação do cotidiano da coletividade, o autor, em

trabalho intitulado “Construções e reconstruções da identidade armênia no Brasil”, se

preocupa em analisar as diferentes formas de manifestação de uma identidade armênia, seja

através das instituições existentes em São Paulo ou na ausência destas, como no Rio de

Janeiro55. Assim, o papel de tais instituições no cotidiano dos armênios em São Paulo pode

ser utilizado aqui para compreender melhor o funcionamento destas, a fim de enriquecer as

análises sobre tais espaços na coletividade paulistana.

Não era o propósito de Porto refletir sobre as nuances políticas dos armênios no

Brasil, ainda que isso apareça tangencialmente nos depoimentos colhidos pelo autor e em

alguns trechos de sua obra. Por isso, acreditamos que a pesquisa aqui realizada e o trabalho

supracitado são complementares para o entendimento dos armênios no Brasil, principalmente

em São Paulo.

Antes dos esforços de Pedro Bogossian Porto, os trabalhos mais consistentes que

tínhamos sobre os armênios no Brasil eram “Negócios e famílias” de Roberto Grün56 e “Os

sobreviventes do Genocídio” de Hagop Kechichian57.

53 KNOWLTON, Clark (1960). Sírios e Libaneses: mobilidade social e espacial. São Paulo: Anhambi; TRUZZI, Oswaldo (2009). Patrícios: sírios e libaneses em São Paulo. São Paulo: UNESP, 2ª edição ampliada. 54 PORTO, Pedro Bogossian (2011). Construções e Reconstruções da Identidade Armênia no Brasil. Rio de Janeiro: dissertação de mestrado em Antropologia, ICHF/UFF. 55 A ausência de instituições no Rio de Janeiro pode ser observada através do informativo Massis, autodefinido como uma “circular autônoma mensal de cultura e notícias armênias do Rio de Janeiro”. No editorial de um número de junho de 2001, há queixas contundentes sobre a falta de instituições armênias na capital fluminense. O jornal, único órgão que desempenha tal papel, ao se aproximar do seu sétimo ano de existência, expressa o receio de não continuar suas atividades por falta de apoio dos patrícios. Massis. Rio de Janeiro: Ano V, nº 45, junho de 2001, p. 1. 56 GRÜN, R. (1992). op. cit. 57 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit. Embora alguns poucos trabalhos estudem secundariamente a imigração armênia, como as teses de doutoramento de Sônia Maria de Freitas e o trabalho de Márcio Mendes da Luz. FREITAS, Sônia Maria de (2001). Falam os Imigrantes: memória e diversidade cultural em São Paulo. São Paulo: Tese de doutorado em História Social, FFCHL/USP; LUZ, Márcio Mendes da (2011). “Ararat, Hermon e Sion paulistanos”. In: HECKER, Alexandre & MARTINS, Ismênia [org.]. E/Imigração: histórias, culturas,

Page 25: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

24

O trabalho de Grün, datado de 1992, foi pioneiro no estudo da imigração armênia

para o Brasil58, se pensarmos em uma pesquisa com um pouco mais de profundidade se

comparado aos poucos artigos que tínhamos até então59. Entretanto, o estudo não esgota a

temática, permitindo novas incursões dos historiadores. Todavia, é um trabalho louvável se

pensarmos que foi vanguarda neste campo e feito por um indivíduo externo à comunidade

armênia, o que dificulta a inserção no objeto de estudo. A explanação que Grün faz sobre a

inserção da segunda e terceira geração de armênios na sociedade e, principalmente, nas

universidades brasileiras é certamente o ponto alto de sua análise60.

Hagop Kechichian, por sua vez, tem o mérito de ser o único armênio-brasileiro

doutor em História ativo na coletividade armênia de São Paulo. Fato que ganha ainda mais

peso se lembrarmos que sua tese foi sobre as origens e o estabelecimento da comunidade na

qual ele está inserido. O pertencimento de Kechichian ao seio da coletividade abriu-lhe portas

para conseguir depoimentos, fotografias, documentos e outras informações que ele pôde usar

para realizar sua pesquisa61. A tese de Kechichian serve como ponto de partida para outras

pesquisas, na medida em que seus capítulos curtos, que podem ser lidos independentemente

da ordem numérica, não encerram as discussões propostas, mas ensejam novas incursões nas

fontes a fim de complementá-las. Os esforços do autor em enumerar alguns chefes de família

armênios e suas respectivas profissões, por exemplo, pode ser um ponto de partida

interessante para o estudo da coletividade, uma vez que podemos assim procurar determinado

indivíduo apontado por Kechichian em arquivos, revistas e jornais da época pelo nome,

mapeando com maior facilidade a vida de cada personagem e inserindo-os assim no contexto

da pesquisa.

Entre Roberto Grün e Hagop Kechichian estabelecem-se poucas semelhanças.

Enquanto Grün puxa a parte teórica de seu estudo para a sociologia, baseando-se quase que

fundamentalmente em entrevistas feitas na coletividade, Kechichian não define um aporte

trajetórias. São Paulo: Expressão e arte. Sueli Martini também realizou um importante trabalho sobre a imigração armênia, porém, restrito a cidade de Osasco. MARTINI, Sueli (2004). IAN - Sufixo da Identidade: presença da comunidade armênia no processo de urbanização de Osasco. São Paulo: dissertação de mestrado em História pela PUC-SP. 58 Excluindo obviamente, a monumental obra do padre Yeznig Vartanian, também fichado pela DEOPS/SP – pront. 98.399 – tido como colaborador do jornal comunista Ararat, sobre a colônia brasileira, escrita em armênio. VARTANIAN, Yeznig (1948). Brazilioh Hay Kaghuthë: Badmagan Degheguthiunner ev Jamanagakruthiun 1860-ên Mintchev 1947-i Vertchë. Buenos Aires: Siphan. [em armênio]. 59 KECHICHIAN, Hagop (1983). “Imigração armênia no Brasil”. In: Jornal do Imigrante. São Paulo: ano V, nº 58, janeiro/fevereiro de 1983; KEROUZIAN, Yessai Ohannes. (1983). “Sinopse sobre a colônia armênia do Brasil: da imigração à atualidade”. In: Jornal do Imigrante. São Paulo: ano V, nº 58, janeiro/fevereiro de 1983, p. 14 (AHK). 60 GRÜN, R. (1992). op. cit., p. 62. 61 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit.

Page 26: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

25

teórico. Entretanto, esse último possui uma vasta bibliografia específica da história dos

armênios e também do fenômeno migratório, o que falta a Grün. Talvez pelo fato de ter sido

nascido e criado no seio da coletividade armênia em São Paulo, esse autor conseguiu mais

documentos escritos e iconográficos que são escassos em Grün e são essas suas principais

fontes de trabalho. Sobre os aspectos políticos da comunidade armênia no Brasil, Roberto

Grün pouco acrescenta, enquanto Kechichian os menciona rapidamente, embora não haja um

acúmulo que permita ao autor repassar ao leitor informações precisas sobre as agremiações

políticas62.

Outros trabalhos também merecem atenção, ainda que não versem exclusivamente

sobre a imigração armênia: Aharon Sapsezian e Nubar Kerimian63. Sapsezian destina dois

capítulos de sua obra “História Sucinta e Atualizada da Armênia” à diáspora, sendo um deles

direcionado especificamente à comunidade brasileira. Embora seja uma análise pertinente, é

baseada exclusivamente na vivência do autor no seio da coletividade armênia no Brasil,

carecendo assim de empiricidade segundo os métodos acadêmicos64.

O trabalho de Nubar Kerimian, por sua vez, requer bastante atenção ao ser

analisado. Com poucas informações escritas pelo autor, o livro é mais uma compilação de

informações sobre a Armênia e o Genocídio do que propriamente uma obra autoral. Com

diversas declarações de aliados políticos dos armênios na época, o trabalho de Kerimian tem o

intuito de ser um subsídio para o lobby pró-Causa Armênia ao invés de lançar luzes sobre um

assunto específico. É sabido que após a grande diáspora armênia oriunda do genocídio de

1915-1923, as comunidades armênias ao redor do mundo, depois de estabilizadas social e

economicamente, começaram a se preocupar em ter o seu genocídio reconhecido

mundialmente, com uma dupla função: fazer justiça ao 1,5 milhão de armênios mortos, bem

como pleitear os territórios históricos da Armênia. Começou-se assim um movimento

intelectual para fomentar os debates e alicerçar os argumentos dos armênios, que visavam

sensibilizar políticos e opinião pública brasileira para o genocídio que motivou a vinda deste

povo para o país. É nesse contexto que estão inseridas diversas traduções e publicações sobre

a história dos armênios e do Genocídio, assim como a obra de Nubar Kerimian. Entretanto, o

trabalho do autor não nos será útil além do seguinte ponto: nos mostrar algumas

movimentações políticas e sociais de uma fração da coletividade – os correligionários da

Federação Revolucionária Armênia.

62 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., pp. 98-104. 63 KERIMIAN, N. (1998). op. cit. 64 SAPSEZIAN, Aharon. (2010). História Sucinta e Atualizada da Armênia. São Paulo: Emblema.

Page 27: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

26

Nenhuma das obras

citadas faz qualquer tipo de

menção a armênios comunistas

no Brasil e suas atividades, o

que nos revela que a própria

coletividade por meio de seus

intelectuais fez uma clara

escolha ao não escrever sobre o

grupo político que definimos

como objeto de estudo. Cabe ao nosso trabalho apurar quais foram os motivos para a tomada

de tal escolha e, assim, avançar mais um capítulo na historiografia da imigração armênia no

Brasil e dos imigrantes rotulados como comunistas pela repressão entre os anos de 1930-

1960.

Pudemos averiguar a riqueza documental existente no Fundo DEOPS/SP e a

importância deste acervo para o estudo da imigração armênia no Brasil. Segundo nossos

levantamentos, existem 411 prontuários de armênios divididos nas mais diversas

nacionalidades, sendo que destes 139 – cerca de um terço do total – tem como atividade

descrita o comunismo. Para cotejar esses números, vejamos os portugueses: segundo povo

imigrante mais numeroso no Brasil, 5.371 indivíduos foram fichados pela DEOPS/SP, sendo

que em 174 casos os portugueses foram enquadrados como “comunistas”65. Isto é, ainda que o

número de imigrantes portugueses fichados seja treze vezes maior do que o número de

armênios, percentualmente, os comunistas armênios são mais expressivos que os portugueses.

A metodologia utilizada para identificar os prontuários de armênios no Fundo

DEOPS/SP do APESP foi a observância do sufixo ian ou yan nos sobrenomes dos

prontuariados. Tal partícula, característica dos nomes armênios, nos permitiu contornar o

problema dos registros em diversas nacionalidades daqueles armênios que saíram do interior

do Império Otomano. Esse método de identificação de armênios nos registros oficiais também

foi utilizado pela pesquisadora Nélida Elena Boulgourdjian, segundo Kim Hekimian, ao

procurar fazer uma contagem dos armênios que entraram na Argentina no começo do século

XX66. Embora a própria autora reconheça que tal método pode ter uma grande margem de

erro – no caso dos armênios na Argentina, 37% dos imigrantes não possuíam ian no

65 HECKER, A. (2009). op. cit., pp. 126-132. 66 HEKIMIAN, Kim. (1990). “Armenian immigration to Argentina: 1909-1938”. In: Armenian Review. Volume 43, n. 1/169, p. 90.

Sem informações

(272)

66%

Comunista (139) 34%

Figura 1: Gráfico referente às categorias nas quais os armênios estão enquadrados. Fonte: Fundo DEOPS/SP – APESP.

Page 28: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

27

sobrenome – essa é a única maneira viável para identificarmos os nossos objetos de estudo em

meio a milhares de registros.

Argentina; 1 Armana; 2 Armena; 27

Armênia; 8

Brasileira; 75

Francesa;

2

Grega; 1

Iraniana; 2

Israelita; 2

Libanesa; 19

Pessoa

jurídica; 10

Persa; 1Romena; 1

Sem nacionalidade;

210

Síria; 23

Turca; 21

Figura 2: Gráfico que indica as nacionalidades dos armênios fichados pela Polícia Política. Fonte: Fundo DEOPS/SP-APESP.

No que tange às fontes utilizadas, principalmente – embora não exclusivamente – os

prontuários da DEOPS/SP, as analisaremos cientes de que os prontuários policiais, muito

além de registrarem, ficham determinado indivíduo como inimigo da nação, reunindo para

isto documentos que sirvam como prova para incriminar o sujeito67. Ana Maria Dietrich

chama atenção para que os documentos reunidos como evidências de um crime são filtrados

pela Polícia Política, necessitando assim de cuidado redobrado do historiador ao analisar esta

construção feita pela repressão a fim de produzir um discurso e criar uma memória

particular68. Luiz Edmundo Moreas69 nos alerta para o perigo da massa documental aqui

utilizada como fonte principal, pois se for descuidado:

o historiador corre sério risco de transformar em conhecimento o erro involuntário ou mesmo proposital dos agentes repressivos, ou seja, aquilo que o preconceito e o interesse da instituição policial e do Estado Autoritário produziram como informação70.

67 DIETRICH, A. (2007). op. cit., p. 31. 68 Ibid., p. 32. 69 Em prefácio ao trabalho de Dietrich. 70 Ibid., p. 22.

Page 29: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

28

Eric Godliauskas Zen frisa a importância que os prontuários da DEOPS/SP têm para a escrita

de uma história dos vencidos, uma vez que a repressão, ao reunir documentos supostamente

subversivos, preservou substancialmente a memória e a história dos dissidentes do regime

vigente71. Carlo Guinzburg destaca a natureza indireta de tais fontes: são escritas por

indivíduos ligados ao que o autor chama de uma cultura dominante, ou seja, as ações dos

indivíduos vigiados e reprimidos chegam até nós através de filtros que as deformam72.

Entretanto, por vezes, são apenas essas fontes que os historiadores têm para trabalhar um

determinado assunto. Assim sendo, temos que trabalhá-las cientes dos riscos que corremos.

Atentos a isso, poderemos analisar com sobriedade os prontuários da DEOPS/SP

que rotulam os armênios como comunistas e entender o porquê destes serem fichados

enquanto tais. Para isso, usaremos a própria retórica da repressão, contida no interior do

prontuário, cruzada com informações externas à DEOPS/SP e próprias da comunidade, como

por exemplo, jornais e revistas. Dessa forma, pretendemos escapar das armadilhas colocadas

pela DEOPS/SP e despir as fontes da construção feita pela repressão a fim de incriminar

determinado indivíduo como um subversivo inimigo do país.

Ao nos referirmos a jornais e revistas, temos em mente principalmente o jornal

“Ararat – a voz do povo armênio” 73. De caráter soviético-comunista74, o jornal se enquadra no

que Boris Kossoy chamou de “jornalismo revolucionário ilustrado”75 e é fonte rica para

entendermos a ação dos armênios “comunistas” em São Paulo. Também coletado como prova

para indiciar armênios subversivos, pretendemos usar o Ararat contido em prontuários da

DEOPS/SP como fontes para recuperação das ideias políticas que corriam na comunidade

armênio-paulista. Assim, a leitura dos jornais, a identificação de seus colaboradores, dos

autores e de seu público-alvo é indispensável para dar mais um importante passo no nosso

mapeamento das ideias comunistas na coletividade.

Em determinados momentos deste trabalho, os prontuários do Fundo DEOPS/SP e

as publicações da coletividade armênia de São Paulo não serão suficientes para montar um

determinado quadro, principalmente sobre a trajetória individual de alguns militantes

armênios. Para evitar essa lacuna e sem nenhuma pretensão de fazer uma história oral dos

71 ZEN, Erick Reis Godliauskas (2005). O Germe da Revolução: a comunidade lituana sob a vigilância do DEOPS. São Paulo: Laboratório de Estudos sobre a Intolerância/Humanitas/FAPESP, pp. 17-18. 72 GUINZBURG, Carlo (1991). O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, p. 18. 73 Outras publicações também serão usadas para complementar alguns aspectos da pesquisa. Entretanto, apenas o Ararat e a revista Armênia foram recolhidas pela Polícia Política. 74 CARNEIRO, M. & KOSSOY, B. (2003). op. cit., p. 114. 75 KOSSOY, Boris (2003). “O jornalismo revolucionário ilustrado” In: CARNEIRO, M. & KOSSOY, B. op. cit., p. 11.

Page 30: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

29

armênios na capital paulista, lançaremos mão de alguns depoimentos orais colhidos de forma

pontual durante a pesquisa.

Com o intuito de cumprir os objetivos aqui definidos, dividiremos o presente

trabalho da seguinte forma: no capítulo I, discorreremos de forma panorâmica sobre o

Genocídio Armênio, principal motivo da saída dos armênios de seus territórios e a Diáspora

que se formou em direção ao ocidente. Também fará parte deste capítulo a chegada destes ao

Brasil e suas primeiras formas de organização no país. No capítulo II, a discussão caminhará

no sentido de compreender como funcionou o mundo da política para os armênios no Império

Otomano e na diáspora, principalmente em São Paulo. Assim, pretendemos deixar claro o

contexto político com o qual estamos dialogando na presente análise. O capítulo III destinar-

se-á a compreender o funcionamento da DEOPS/SP e como foram as primeiras incursões

deste órgão na coletividade armênia de São Paulo. No capítulo IV, dissertaremos sobre as

trajetórias de Jacob Bazarian e Levon Yacubian à frente do jornal Ararat – a voz do povo

armênio. Interessará aqui compreender principalmente o modus operandi da repressão sobre

essa coletividade e quais eram as estratégias dos armênios para manifestar as suas opiniões

sobre a política na Pátria-Mãe. Nas considerações finais, refletiremos sobre as discussões

feitas ao longo do texto, a fim de propor algumas interpretações da situação sociopolítica dos

armênios em São Paulo.

Page 31: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

30

CAPÍTULO I - Mascates, sapateiros e empresários: um estudo da imigração armênia em São Paulo

O movimento de imigração dos armênios para São Paulo está inserido em um

fenômeno mais amplo identificado como a diáspora armênia. Ainda que grandes movimentos

migratórios tenham como razão, na maioria das vezes, a busca por melhores condições de

sobrevivência, o genocídio armênio inaugurou no século XX a fuga de um povo ante

condições objetivas que determinavam o seu extermínio.

Para Stuart Hall, uma diáspora pressupõe uma fronteira de exclusão e a

construção de um “outro” que opõe quem está dentro e quem está fora de uma determinada

fronteira cultural76. Assim foi construída a diáspora armênia, que uniu milhões de armênios ao

redor do mundo em torno de um ser armênio refugiado por conta da catástrofe. Ao mesmo

tempo, a diáspora separou milhares de armênios que antes viviam juntos em vilas e cidades

otomanas em diversos países diferentes.

Uma diáspora criada a partir da expressão máxima da violência – o genocídio –

possui traços peculiares. Ao intencionar o extermínio completo de um povo, a ação genocida

persegue e destrói uma série de elementos culturais – religião, música, literatura, dança,

idioma, bens materiais etc. – que dificilmente são reconstruídos. Nesse sentido, a ação do

governo otomano em 24 de abril de 1915, que prendeu e matou os membros da intelligentsia

armênia do Império Otomano77, revalida a tese que é no campo da cultura, no qual a

hegemonia turca foi imposta, que as transformações e lutas são operadas78.

Quando emigraram, os armênios levaram consigo uma carga cultural

incomensurável para os países que os receberam. E reconstruíram, de certa forma, em

diferentes pontos do globo, as estruturas que tinham nas cidades e aldeias nas quais eles

residiam no Império Otomano. Entretanto, tal processo de identidades na diáspora não se dá

sem o contato com a diferença, marcada pela cultura dos países receptores. Na Diáspora, “as

identidades se tornam múltiplas”79 e, ao mesmo tempo em que os armênios continuam a

serem-no, eles absorvem elementos dos países onde residem, resultando em um híbrido, um

76 HALL, Stuart (2009). Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 1ª edição atualizada, pp. 32-33. 77 BALAKIAN, Peter (2004). The Burning Tigris: the Armenian Genocide and America’s response. Nova York: Harper Perennial, pp. 211 e 216. 78 WILLIAMS, Raymond (1979). Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 113. 79 HALL, S. (2009). op. cit., p. 26.

Page 32: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

31

processo no qual duas ou mais culturas entram em choque e criam algo novo80. É isso que nos

importa no presente trabalho: compreender como a comunidade armênia de São Paulo,

inserida na dinâmica desta cidade, continuou a desenvolver suas atividades na diáspora e

criou uma série de outras estratégias e trajetórias inéditas que só foram possíveis graças ao

resultado do choque das diferentes culturas no mesmo local.

Segundo o historiador Alexandre Hecker,

Os estudos sobre a história da e/imigração merecem toda a atenção dos estudiosos neste início do século XXI. Por um lado, promovem o entendimento de processos históricos que se encontram na base do desenvolvimento de sociedades tão ativas, multifacetadas e problemáticas como a que se formou no estado de São Paulo. Por outro, são obrigados a levar em consideração preocupações que gravam o mundo contemporâneo. Se toda a história é sempre história contemporânea, os estudos sobre imigração o são de forma ainda mais presente, já que recolocam temas e críticas cuja inter-relação do passado com o presente é intrínseca81.

Se os estudos sobre imigração são por si só um tema sempre contemporâneo, isso

se torna muito mais evidente no caso da imigração armênia constituída enquanto diáspora,

consequência direta de um genocídio ainda negado pelos seus perpetradores. Para

compreender esse movimento de pessoas, tentaremos apreender qual foi o processo de saída

dos armênios dos territórios que ocupavam historicamente no Império Otomano, até a

chegada ao Brasil. Uma vez nesse país, importa a forma como eles se inseriram na economia

e sociedade paulista.

No âmbito do estudo dos armênios em São Paulo, lançaremos mão do estudo de

Oswaldo Truzzi sobre os sírios e libaneses na cidade82, uma vez que tais etnias também

compõem os casos de imigração majoritariamente urbana, e ambos os povos ocuparam os

mesmos nichos sócio-econômicos que os armênios. Ademais, como veremos adiante, muitos

armênios fugiram das suas aldeias no Império Otomano e rumaram para cidades na Síria e,

posteriormente, Líbano, o que os dota ainda mais de elementos que os fazem se assemelhar

com os grupos étnicos receptores em ambos os países. O trabalho de Clark Knowlton, por sua

vez, traz mais informações sobre os armênios do que o de Truzzi, por ter sido realizado na

década de 1950, ou seja, quando ainda era possível perceber melhor a proximidade de

armênios, sírios e libaneses em São Paulo83.

80 GLISSANT, Édouard (2005). Introdução a uma Poética da Diversidade. Juiz de Fora: Edufjf, pp. 17-18. 81 HECKER, Alexandre. “A repressão aos imigrantes portugueses em São Paulo: os subversivos e os outros”. In: SOUZA, Fernando, et. alii. (2009). Nas Duas Margens: os portugueses no Brasil. Porto, Portugal: Afrontamento/CEPESE, p. 121. 82 TRUZZI, O. (2009). op. cit. 83 KNOWLTON, Clark (1960). Sírios e Libaneses: mobilidade social e espacial. São Paulo: Anhambi.

Page 33: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

32

Ao observarmos o caso dos sírios e libaneses para traçarmos em paralelo a

história social dos armênios em São Paulo, tentamos resolver de uma forma objetiva a

carência de bibliografia específica para o caso dos armênios, o que nos força a recorrer a um

estudo referente a outro grupo étnico, mas que, de forma geral, joga luzes também sobre o

povo aqui analisado.

Para entender a trajetória específica de alguns armênios, bem como o amplo

movimento que a comunidade fez em torno do negócio de calçados, analisaremos alguns

periódicos de circulação restrita da coletividade, principalmente a “Revista Armênia”.

Idealizada e coordenada em 1967 por Jacob Bazarian, filósofo formado pela Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo e doutor pela Academia de Ciências da União

Soviética84, a revista não tem um caráter tão militante como outras publicações que ele

mesmo dirigiu, como o jornal Ararat – a voz do povo armênio, sendo mais um veículo de

difusão da história e cultura armênia, bem como das atividades e negócios dos membros da

comunidade armênio-brasileira. Assim, a observação de seus anúncios e publicidades é um

exercício valioso para compreender melhor o desenvolvimento dos negócios armênios em São

Paulo.

4.1 Genocídio e Diáspora: fim e recomeço

Primeiro genocídio do século XX, a perseguição sistemática de armênios no

interior do Império Otomano, planejada e executada pelo governo controlado pelo Comitê

União e Progresso – facção turca chauvinista –, causou um impacto muito maior do que o

contido ao analisarmos a cifra inimaginável de 1,5 milhão de mortos. O genocídio se perpetua

no imaginário social de ambas as partes. No caso dos armênios, segundo Pedro Bogossian

Porto, o extermínio em larga escala iniciado em 1915 constitui em “mito fundador” destes

indivíduos na diáspora85. É a partir do genocídio que os armênios resignificam toda a sua

história e a reproduzem recheadas de valores que seriam inerentes ao ser armênio e que teriam

aflorado durante as persecuções genocidas entre 1915-1923. Entretanto, pensar em um

genocídio como um marco fundatório é algo curioso. Segundo Glissant, ter um “mito

fundador” valorizado é uma característica de sociedades “atávicas”, isto é, que possuem ou

intentam possuir uma identidade de “raiz única”, excludente de outras raízes que estão ao seu

84 BAZARIAN, Jacob (1973). Mito e Realidade sobre a União Soviética: análise imparcial do regime soviético por um ex-membro do Partido Comunista. São Paulo: Record, 2ª edição revista e ampliada. 85 PORTO, P. (2011). op. cit., p. 15.

Page 34: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

33

redor86. Para o autor martinicano, é justamente a valorização da raiz única que causa

genocídios, ao rotular quem é o “eu” e quem é o “outro” e identificá-lo muitas vezes como

inimigo87. Nesse sentido, embora tenha sido grupo-alvo de um genocídio causado em grande

parte pelo fortalecimento do discurso nacionalista turco e, consequentemente, do

fortalecimento da raiz deste povo em detrimento dos demais, principalmente dos armênios,

estes últimos, face aos efeitos da intolerância, definiram como estratégia de sobrevivência de

sua cultura a continuidade da diferença do “nós somos armênios”88 versus “eles são turcos”.

Em suma, a experiência do Genocídio, para Pedro Bogossian Porto, foi um marco importante

para a formulação da pertença armênia a uma nação diferente daquela otomana, na qual viveu

durante séculos89.

A necessidade da sobrevivência obrigou os armênios a empregarem diferentes

estratégias. A apostasia – e a consequente “turquificação” – foi a saída para muitos.

Converter-se ao islamismo parecia o mal menor ante a iminência da morte. Contudo, foi a

fuga para outros países a principal chance de sobrevivência que tinham os armênios

perseguidos no interior das fronteiras do Império Otomano. Vilas e cidades no que hoje

corresponde à Síria, Líbano, Palestina e Egito receberam milhares de armênios que formaram

por lá dinâmicas comunidades. No Líbano e Síria, foram criadas diversas instituições,

principalmente por missões humanitárias oriundas da Europa e EUA, para auxiliar na

recepção destes emigrantes90. Pouco a pouco os armênios foram se estabilizando nesta

primeira fase da diáspora, reconstruindo famílias, negócios e a sociedade, como as Igrejas e as

agremiações políticas.

86 GLISSANT, E. (2005). op. cit., pp. 74-75. 87 Ibid., p. 107. 88 Sem que isso necessariamente tenha acarretado uma homogeneidade deste “nós”. 89 PORTO, P. (2011). op. cit., p. 27. 90 MIGLIORINO, Nicola (2008). (Re)constructing Armenia in Lebanon and Syria: ethno-cultural diversity and the state in the aftermath of a refugee crisis. Nova York e Oxford: Berghahn Books.

Page 35: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

34

Todavia, para um grande número de armênios, o Oriente Médio não era o destino

final. Muitos embarcaram em navios europeus rumo ao ocidente. O porto de Marselha, no sul

da França, foi a principal entrada de armênios na Europa91, que desenvolveram na própria

cidade portuária uma importante coletividade, assim como em outras cidades da França. Mas

também foi nas cidades francesas que muitos armênios cogitaram a possibilidade de continuar

a viagem, rumo à América.

Para muitos emigrantes, fossem armênios, sírios ou libaneses, não era claro o que

seria a América. Muitos relacionavam tal nome com os EUA, local de origem das missões

protestantes que se instalaram no Oriente Médio nas primeiras décadas do século XX e era

para lá que desejavam ir, ainda que outras circunstâncias os tenham enviado para o sul92.

Outros compreendiam que o termo designava algo mais amplo e complexo, porém, muitos

não tinham certeza em que porto da América desembarcariam após tomar o navio em

91 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 31. Ressaltamos também a importância de portos como os de Liverpool, Gênova, Nápoles, Trieste e Amsterdã. HEKIMIAN, Kim. (1990). op. cit., p. 91. 92 TRUZZI, O. (2009). op. cit., pp. 47-48.

Figura 3: Rotas de deportação de armênios das principais cidades do Império Otomano para o Oriente Médio. Fonte: Massis Post. Disponível em <http://massispost.com/?p=108>, acesso em 19/03/2012

Page 36: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

35

Marselha. O certo é que o Brasil não era o destino preferencial dos armênios, sobreviventes

do Genocídio, que partiram do Oriente Médio e Europa rumo à América. Isso pode ser

claramente visualizado através dos dados da diáspora armênia pelo mundo:

País Armênios

Rússia 2.250.000

EUA 1.400.000

França 450.000

Líbano 234.000

Ucrânia 150.000

Síria 150.000

Argentina 130.000

Polônia 92.000

Turquia 80.000

Irã 80.000

Canadá 80.000

Uzbequistão 70.000

Austrália 59.400

Alemanha 42.000

Brasil 40.000

Uruguai 19.000

Venezuela 2.500

Chile 1.000

Honduras 900

México 500

Figura 4: Diáspora armênia. Fonte: ARMENIA 2020: Diaspora-Homeland issue paper (2003). Yerevan, Armênia: Arak-29 Foundation, pp. 3-4.

Ainda que tais números sejam controversos, é possível compreender claramente a

dimensão da diáspora no mundo e a sua distribuição. O Brasil não figura como um dos

principais destinos dos armênios no mundo. Ainda que tenha um número mais expressivo de

armênios do que outros países americanos, os 40 mil armênios no Brasil93 ficam muito aquém

dos 130 mil residentes na vizinha Argentina ou dos quase 1,5 milhão na poderosa diáspora

norte-americana.

93 Embora a publicação armênia contabilize 40 mil armênios no Brasil, o número mais recorrentemente citado é entre 20 e 25 mil. GRÜN, R. (1992). op. cit., p. 17; KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 66; SAPSEZIAN, A. (2010), op. cit., p. 288; MADOYAN, Marc (2007). Arméniens en Amerique du Sud: immigration, insertion et structures communautaires a Buenos Aires, São Paulo et Montevideo. Paris: Université Paris X, Départament de Sociologie, Mémoire de Master 2, pp. 48-49.

Page 37: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

36

Não há um número exato de quantos armênios emigraram para o Brasil. Roberto

Grün refere-se a algo em torno de 20 a 25 mil armênios, número este que é reproduzido por

Hagop Kechichian94. Aharon Sapsezian não ousa fazer uma estimativa precisa, mas nos revela

acreditar que haja cerca de 50 mil armênios somando principalmente Brasil e Uruguai, mas

também no Chile, Venezuela e México95. Entretanto, em reedição de seu trabalho, Sapsezian

também adere ao número de 25 mil96. O documentário televisivo “Chegados: Armênia”, de

2007, por sua vez, estima em 40 mil o número de armênios no Brasil atualmente97,

contabilizando assim os descendentes. A mesma cifra é utilizada por Pedro Bogossian Porto98.

Consonante com estas estimativas está o trabalho de Giralda Seyferth, no qual os armênios

não figuram na lista de etnias que continham mais de 100 mil indivíduos no Brasil no século

XX99, embora algumas fontes na coletividade superestimem o tamanho para além desta

cifra100.

Seja nos EUA, Canadá, Argentina ou Brasil, os armênios conseguiram se

estabelecer e criar comunidades, com diferentes trajetórias de país para país, mas com

instituições e traços em comum por todo o mundo. É isso que nos importa aqui: as estratégias

e trajetórias dos armênios para sobreviverem e se desenvolverem socioeconomicamente em

São Paulo.

A primeira característica a se observar na imigração desse povo para o Brasil é

que da mesma forma que judeus, sírios e libaneses, a imigração armênia foi

predominantemente urbana. Embora tenha havido uma experiência rural, com a vinda de

algumas famílias com destino às fazendas de café no interior do estado de São Paulo, a

tentativa não logrou êxito, sendo tais indivíduos levados para a capital pouco depois101.

Roberto Grün destaca o caráter urbano dos armênios, destacando que a grande maioria destes

imigrantes no Brasil se instalou nas cidades de São Paulo e Osasco102. Os que foram para essa

última, na época ainda como distrito Presidente Altino, desenvolveram a criação de gado

94 GRÜN, R. (1992). op. cit., p. 17; KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 66. 95 Para a imigração de armênios no México, cf. ANTARAMIAN, Carlos (2009). “La Merced, mercado y refugio. El caso Armenio”. In: ISTOR. Cidade do México: División de Historia del Centro de Investigación y Docencia Económicas (CIDE), pp. 106-140; SAPSEZIAN, A. (1988). op. cit., p. 166. 96 SAPSEZIAN, A. (2010). op. cit., p. 288. 97 O documentário pode ser assistido em formato não-oficial no website YouTube: <http://www.youtube.com/watch?v=D2q-EwXKRic> acesso em 09/03/2010. 98 PORTO, P. (2011). op. cit., p. 52. 99. Os armênios são tidos pela autora como uma etnia pouco expressiva estatisticamente. SEYFERTH, G. (1999). op. cit., p. 202. 100 O Conselho Nacional Armênio em São Paulo estima entre 70 e 100 mil o número de armênios no país. FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo: segunda-feira, 26 de março de 2012, p. A3. 101 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., pp. 49-50. 102 GRÜN, R. (1992). op. cit., pp. 22-23.

Page 38: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

37

leiteiro para o trabalho com os derivados do leite, mas tão logo Osasco se urbanizou, os

armênios daquela região também procuraram se inserir em ramos tipicamente urbanos, como

a confecção e o comércio de sapatos103.

A imagem dos “armênios sapateiros” está enraizada na coletividade. Ainda

segundo Roberto Grün, um comerciante de sapatos descendente de armênios estima que 50%

do comércio varejista de calçados de São Paulo estejam sob controle de membros deste

povo104. Sebastião Burbulham, descendente de armênios e presidente do Sindicato de

Indústrias de Calçados no Estado de São Paulo por seis anos, estimava que 60% da produção

de calçados estivessem nas mãos de armênios no ano de 1967105. Para Marçal Rizzo, foi um

armênio – Avak Bodouian – o pioneiro na fabricação de sapatos no polo de calçados infantis

de Birigui, interior do estado106. Mesmo em Campo Grande, os armênios viam a si mesmos

como detentores do monopólio do comércio calçadista na capital sul-mato-grossense107.

É fato que existe uma sobrerrepresentação de imigrantes armênios nos negócios

ligados aos calçados. Isso pode ser facilmente percebido numa análise rápida de publicações

da coletividade. Na publicação comemorativa aos dez anos da Sociedade Recreativa Marachá,

datada de 1957, há nada menos do que 39 anúncios de fábricas e lojas de calçados, ocupando

mais da metade da brochura108. Dez anos depois, a publicação de vinte anos da Marachá, por

sua vez, traz 22 anúncios ligados ao ramo calçadista, além de inúmeras outras propagandas de

armarinhos, tecidos, dentre outros109. Tal prática se tornou uma tradição para os armênios de

São Paulo e assim permanece até hoje. Sônia Maria de Freitas já havia atentado para este fato

em sua tese de doutorado. Analisando um calendário armênio de 1941110, ela percebeu que

50% dos 48 anunciantes da publicação estavam ligados aos calçados111.

É evidente que a coletividade armênia em São Paulo não tinha tamanho o

suficiente para absorver toda a produção de sapatos de seus conterrâneos. Logo, a propaganda

103 MARTINI, S. (2004). op. cit., p. 76. 104 GRÜN, R. (1992). op. cit., p. 9. 105 Revista ARMÊNIA . São Paulo: outubro de 1967, ano I, nº 3, p. 24. 106 RIZZO, Marçal Rogério (2005). A Evolução da Indústria Calçadista de Birigui: um estudo sobre a capital brasileira do calçado infantil. Birigui, São Paulo: Boeral Editora, p. 20. 107 ARCA – revista do Arquivo Histórico de Campo Grande (1992): “Emigração: de como árabes e armênios se instalaram em Campo Grande”. Campo Grande: Arquivo Histórico de Campo Grande, nº 3, p. 6. 108 SOCIEDADE RECREATIVA MARACHÁ. 10º aniversário de grandes realizações. São Paulo: 15 de novembro de 1957 (AHK). 109 SOCIEDADE RECREATIVA MARACHÁ: 20 anos a serviço da cultura e do progresso dos marachtsi da coletividade armênia do Brasil. São Paulo: 15 de novembro de 1967 (AHK). 110 Impresso por Garabed Amiralian, responsável pela primeira tipografia capaz de imprimir em caracteres armênios em São Paulo. Em um dos números do jornal Ararat, é possível ver um anúncio dos serviços da família Amiralian neste ramo. ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo, ano IV, nº 37-38, outubro-novembro de 1949, p. 3. 111 FREITAS, S. (2001). op. cit., p. 94.

Page 39: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

38

nas publicações de circulação restrita aos armênios não tinha como finalidade aumentar as

vendas dos produtos fabricados e comercializados por eles. Anunciar a loja, os produtos e o

nome da família nas páginas das publicações era uma forma de angariar prestígio e status no

seio da comunidade. A prática corroborava que aquele imigrante conseguiu vencer, após

sobreviver a um genocídio, o cotidiano em terras estranhas e a chegada ao Brasil, sem

conhecer os costumes e a língua do país.

Contudo, há muito que pensar entre a fuga do Império Otomano e a presença no

comércio calçadista na cidade de São Paulo. É sobre isso que nos iremos debruçar a partir de

agora.

4.2 De mascates e sapateiros a empresários

Os trabalhos mais tradicionais sobre a coletividade armênia de São Paulo datam

de meados do século XIX a chegada dos primeiros armênios ao Brasil112. Caracterizada por

empreitadas individuais, normalmente de homens em busca de oportunidades profissionais, a

chegada da primeira leva de armênios no Brasil ganhou força nos últimos anos da década de

1890. Alguns armênios entraram no Brasil pelo Rio Grande do Sul, via Uruguai, exercendo

atividades de mascateação nas cidades gaúchas e ampliando assim a clientela113.

Foi justamente a atividade de mascate que permitiu inicialmente que os armênios

se inserissem economicamente nos países da América do Sul114. Oswaldo Truzzi reflete em

seu trabalho de referência sobre os sírios e libaneses em São Paulo o porquê desses povos

terem se tornado mascates no Brasil, uma vez que em suas terras de origem tal prática era

característica de gregos, judeus e armênios115. Para o autor, a estrutura fundiária presente no

país nos primeiros anos do século XX não favorecia que os recém-chegados se tornassem

camponeses, sendo a atividade comercial a alternativa que se apresentou mais viável para

esses indivíduos116.

Para os armênios, tal processo de inserção econômica no Brasil é ainda mais

claro. A pouca necessidade de habilidades específicas para a realização da mascateação117,

112 VARTANIAN, Y. (1948). op. cit.; KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 36. 113 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 46. 114 Clark Knowlton declara que entre os 229 mascates que ele entrevistou em 1950, 22 eram armênios – sobretudo da cidade de Marash – o que demonstra que alguns armênios ainda se dedicavam à mascateação, mesmo após quase 20 anos decorridos da chegada da maior remessa de imigrantes. KNOWLTON, C. (1960). op. cit., p. 141. 115 TRUZZI, O. (2009). op. cit., p. 51. 116 Idem. 117 Ibid., p. 54.

Page 40: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

39

inclusive o conhecimento básico do idioma, permitiu que esses imigrantes se aventurassem

pelo interior até chegar a regiões que permitissem o desenvolvimento comercial. Assim, os

primeiros armênios no Brasil chegaram a São Paulo nas décadas de 1900 e 1910, mas,

sobretudo, na década de 1920, se estabelecendo no centro da cidade, juntamente com os sírios

e libaneses, nas imediações das Ruas 25 de março, Pagé118, Santo André119 etc120.

118 Atual Rua Comendador Afonso Kherlakian. 119Atual Rua Comendador Abdo Schahin. 120 KNOWLTON, C. (1960). op. cit., p. 109.

Page 41: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

40

Figura 5: Mapa do centro de São Paulo em 1951. Em destaque, a região das Ruas 25 de Março, Santo André e Pagé. Fonte: Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano. Disponível em:

<http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/img/mapas/1951.jpg>, acesso em 01/09/2011

Page 42: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

41

Pouco a pouco, alguns mascates acumulavam capital, que permitia a eles abrir

uma pequena loja e evitar as fatigantes viagens pelo país. Assim foi com Karnig, primogênito

e chefe da família Bazarian. Ao chegar ao Brasil em 1928, se dirigiu para o interior de São

Paulo. Na cidade de Itapetininga, mascateou miudezas como meias e lenços em feiras e festas

de igrejas, até acumular capital para abrir a primeira loja, que também serviu de residência. O

armarinho prosperou e outras lojas foram abertas e administradas pelos irmãos de Karnig. Em

1934, a família deixou de vender para o público amplo e concentrou esforços no comércio

atacadista, fornecendo mercadorias a comerciantes menores121. Da mesma forma aconteceu

com Rizkallah Jorge Tahanian, sírio de Alepo, mas de origem armênia, que já na sua cidade

natal fundia metais e, no Brasil, conseguiu abrir a sua própria empresa nesse setor – A Casa

da Boia – e tornou-se o principal benemérito da comunidade armênia de São Paulo122.

A partir da Casa da Boia de Rizkallah Jorge, muitos armênios se inseriram na

economia paulistana. O proprietário desse estabelecimento fornecia insumos para os

compatriotas e esses partiam negociando os produtos feitos com aquele material. Quando a

situação permitia, os armênios abriram pequenas oficinas de confecção e reparo de calçados,

lançando mão da borracha, cola, linha, etc., financiadas por Jorge123. Segundo Grün, o

empresário dava crédito ao conterrâneo recém-chegado mediante a apresentação deste por

alguém ligado à comunidade – sobretudo à Igreja – formando assim uma hierarquia dentro da

coletividade, bem como uma cadeia de prestígio e respeito dos seus pares124.

Todavia, a entrada maciça dos armênios na indústria calçadista em São Paulo não

foi tão rápida assim. Baseado no Almanaque de 1930, Knowlton nos traz que das 735 lojas

varejistas registradas na cidade de São Paulo, apenas 24 eram de sírios e libaneses, sendo

todas as demais de armênios. Na mesma época, das 153 sapatarias mencionadas, apenas sete

eram de armênios, enquanto 24 tinham sírios ou libaneses como proprietários125. Ou seja, na

década de 1930, os armênios ainda se dedicavam mais ao comércio do que à pequena

indústria calçadista.

Porém, em pouco tempo, tal panorama mudou. Os armênios deixaram de lado o

comércio varejista para se dedicarem aos calçados, enquanto os sírios e libaneses

121 BAZARIAN, Jacob (1988). A Trajetória de um Patriota Armênio: a vida e as atividades do comendador Karnig Bazarian. São Paulo: edição do autor, pp. 16-17. 122 TRUZZI, O. (2009). op. cit., p. 52. 123 GRÜN, R. (1992). op. cit., p. 48. 124 Ibid., pp. 48-55. 125 KNOWLTON, C. (1960). op. cit., pp. 148-150.

Page 43: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

42

permaneceram no ramo126. Refletindo sobre isso, Knowlton indagava-se nas últimas linhas de

sua obra:

Será essa especialização o resultado da concorrência, de modo que cada grupo acabou por se encontrar nas atividades que lhe permitem sobreviver melhor e às quais está mais bem ajustado, ou será devido ao fato de ter o grupo encontrado certas ocupações vagas, de modo que pôde infiltrar-se nelas sem ter de enfrentar a forte competição de outros grupos?127

Boris Fausto acredita que isso se deu pelo conhecimento prévio do ofício, vindo

junto com os imigrantes de sua cidade natal128. Roberto Grün também leva em conta a

possibilidade da habilidade adquirida previamente, mas destaca que tal análise está embebida

da própria visão que os armênios têm de seu principal ofício129. Para o autor, os armênios

oriundos da cidade de Marash – maioria na coletividade de São Paulo – acreditam que seus

antepassados já eram hábeis artesãos com o couro no Império Otomano, vindo daí a

“vocação” que os inseriu de forma definitiva na economia de São Paulo130. Opinião

semelhante tem Pedro Bogossian Porto, que ressalta ainda que a entrada no negócio de

calçados requeresse um capital inicial menor do que a ourivesaria e a joalheira, setores

também muito apreciados por armênios em suas cidades-natal131. O historiador turco Taner

Akçam pontua que na região de Marash, 80% dos comerciantes e homens de negócios antes

do genocídio eram cristãos132. Ou seja, os armênios que chegaram ao Brasil já

desempenhavam funções mercantis e fabris na Ásia Menor e Oriente Médio, porém, não

acreditamos que tal hipótese seja suficiente para explicar a sobrerrepresentação de armênios

no ramo calçadista em São Paulo.

A visão do armênio como um laborioso povo dentro das fronteiras do Império

Otomano é antiga e tem duas origens: a primeira é oriunda dos próprios armênios, que se

colocavam como hábeis comerciantes e artesãos, para se distanciar do turco tido como rude,

bárbaro e nômade; a segunda imagem foi alimentada por setores da sociedade turca pré-

genocídio, para justificar a morte dos armênios, pois estes seriam “os judeus do oriente”,

segundo a definição de um oficial nazista durante o III Reich133.

126 Embora os primeiros armênios a chegarem a São Paulo tenham seguido a trajetória sírio-libanesa também no ramo de armarinhos e tecidos. KNOWLTON, C. (1960). op. cit., pp. 118-119. 127 Ibid., pp. 189-190. 128 FAUSTO, Boris (1991). Historiografia da Imigração para São Paulo. São Paulo: Sumaré, p. 32. 129 GRÜN, R. (1992). op. cit., pp. 39-41. 130 Ibid., pp. 39-40. 131 PORTO, P. (2011). op. cit., p. 42. 132 Passados dois anos do começo do Genocídio, apenas 5% destes eram cristãos. AKÇAM, Taner (2004). From Empire to Republic: Turkish nationalism and the Armenian Genocide. Nova York: Zed Books, p. 142. 133 BALAKIAN, P. (2004). op. cit., p. 148.

Page 44: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

43

Inevitavelmente, muitas das análises sobre os armênios no Império Otomano ou

sobre o Genocídio iniciado em 1915 ficaram embebidas deste estereótipo que não refletia a

realidade da população armênia. Segundo Arnold Toynbee, em texto publicado em 1916, os

armênios dominavam cerca de 90% de todo o comércio no Império no começo do século

XX134. O embaixador dos EUA no Império na época do genocídio, Henry Morgenthau,

atribuía aos gregos e armênios a força econômica otomana135. Todavia, Stepan Astourian

pontua que 70% dos armênios otomanos viviam como camponeses, longe das grandes

cidades136.

É fato que os armênios eram protagonistas na economia otomana no começo do

século XX. Isso é comprovado pela política sistemática de sequestro de propriedades

armênias em províncias como Adana e Diyarbekir. Nessas regiões, o governo dos Jovens

Turcos confiscou grandes produções de algodão, seda e cobre, pertencentes a armênios para

redistribuí-las entre turcos, a fim de nacionalizar a economia otomana e eliminar o armênio,

elemento cristão, do mercado137.

Contudo, ainda que haja a sobrerrepresentação armênia no comércio otomano, não

podemos fazer uma relação direta disto com a especialização étnica na fabricação e comércio

de calçados em São Paulo a partir da década de 1930. Nesse sentido, a afirmação de

Knowlton pode ser esclarecedora:

Informantes armênios relatam que os sapateiros armênios imigrados em meados de 1920 dedicaram-se aos calçados ao chegar ao Brasil. Estabelecendo-se no meio dos sírios e libaneses da Rua Pagé, alugaram salas e trabalhavam com afinco. O sapateiro cortava o couro e dava forma ao sapato, enquanto sua esposa e filhos cuidavam da parte mais fácil, isto é, a costura. Aos poucos muitos deles puderam comprar maquinaria e instalar pequenas indústrias. Emigraram outros armênios os quais, por sua vez, depois de aprender o negócio, montaram suas próprias fábricas. Pouco a pouco, a colônia armênia na cidade de São Paulo especializou-se na manufatura e venda de calçados138.

Segundo o autor norte-americano, baseado em informantes da coletividade, foi no

Brasil que os armênios iniciaram o ofício de sapateiros. Por mais que a profissão fosse

conhecida de alguns em Marash ou em outras cidades otomanas, é pouco provável que a

maioria expressiva dos armênios exercesse essa profissão antes de emigrar. Tal argumento

134 TOYNBEE, Arnold J. (2003). Atrocidades Turcas na Armênia. São Paulo: Paz e Terra, p. 111. 135 MORGENTHAU, Henry. (1918). Ambassador Morgenthau’s History. Nova York: Doubleday, Page and Company, p. 166. 136 ASTOURIAN, Stephan H. (2004). Modern Turkish Identity and the Armenian Genocide: from prejudice to racist nationalism. Yerevan: Museum-Institute of the Armenian Genocide of the National Academy of Sciences of Republic of Armenia, p. 9. 137 ÜNGÖR, Ugur Ümit & POLATEL, Mehmet (2011). Confiscation and Destruction: the Young Turk seizure of Armenian Property. Nova York/Londres: Continuum. 138 KNOWLTON, C. (1960). op. cit., p. 147.

Page 45: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

44

ganha força se pensarmos que armênios radicados em outros países, como no México,

também se destinaram à fabricação e comércio de sapatos e não eram oriundos de Marash,

como os armênios paulistanos139.

Para compreender essa questão, antes de observarmos a cidade de origem dos

artesãos, devemos perceber qual foi a trajetória dos armênios após o Genocídio. Muitos

armênios aprendiam uma profissão nas cidades da Síria ou Líbano, onde estavam refugiados.

Por exemplo, Avak Bodouian, sapateiro pioneiro em Birigui, aprendeu o ofício com o pai, que

já exercia a profissão desde os tempos que morava na província de Adana140. Mas Bodouian

também pertencia a uma minoria. Acreditamos que a grande maioria dos refugiados tenha

aprendido o ofício nos diversos orfanatos espalhados pelo Oriente Médio após o genocídio e

alguns exerceram a profissão por algum tempo nas cidades da Síria e do Líbano141. Nessas

instituições, mantidas por grupos filantrópicos ocidentais como missões protestantes norte-

americanas, os órfãos poderiam aprender a trabalhar com o tecido, couro etc., dependendo da

aptidão e vontade da criança142. Segundo um informante de Kim Hekimian, depois de fugir de

Marash, um refugiado se dirigiu a Beirute, onde estudou numa escola americana e aprendeu o

ofício de sapateiro143. Nas casas para os órfãos mantidas pela Near East Relief, uma

instituição fundada nos EUA para dar apoio às vítimas do Genocídio Armênio, estima-se que

132 mil órfãos foram amparados em locais onde poderiam receber cuidados médicos,

educação e alimentação144. Em suma, a educação profissionalizante recebida nos orfanatos

por uma grande parcela das crianças sobreviventes ao genocídio foi fundamental para dotá-los

de um ofício que lhes seria útil tanto no Oriente Médio quanto na Europa e América.

Roberto Grün chama a atenção para o fato dos italianos em São Paulo trabalharem

com calçados de melhor qualidade do que os feitos pelos armênios, desconstruindo assim em

parte o mito da habilidade ancestral ímpar destes imigrantes145. Também antes dos armênios,

os sírios e libaneses fabricavam e vendiam chinelos e calçados, mas abandonaram o ramo com

a chegada e concorrência dos armênios146. Para Grün, a inserção dos armênios no ramo dos

calçados em São Paulo se deu graças a necessidade deste tipo de produto para abastecer uma

139 ANTARAMIAN, C. (2009). op. cit., pp. 117-118. 140 RIZZO, M. (2005). op. cit., pp. 22-23. 141 MIGLIORINO, N. (2008) op. cit., pp. 76-77. 142 BAIDARIAN, Mariam [org.] (2011). Não se Deve Esquecer: memórias de um sobrevivente do genocídio armênio. São Paulo: Scortecci, p. 63. 143 HEKIMIAN, K. (1990). op. cit., p. 91. 144 ADALIAN, Rouben Paul. “Near East Relief and the Armenian Genocide” In: Encyclopedia Entries on the Armenian Genocide. Washington: Armenian National Institute. Disponível em <http://www.armenian-genocide.org/ner.html>, acesso em 22/08/2011. 145 GRÜN, R. (1992). op. cit., p. 40. 146 KNOWLTON, C. (1960). op. cit., p. 147.

Page 46: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

45

população crescente de trabalhadores de uma cidade em expansão147. Márcio Mendes da Luz

compartilha desta mesma opinião de Grün, em trabalho que compara sírios, armênios e

judeus148.

Ou seja, a especialização profissional desse grupo de imigrantes deu-se como

forma de aproveitar o nicho econômico do local no qual eles se instalaram. Em entrevista à

Revista Armênia, o fabricante de calçados Zaven Sapsezian explica que o “preço do calçado

deve acompanhar, sempre, o valor do poder aquisitivo do consumidor”149. Isto é, o calçado

produzido pelos armênios na São Paulo dos anos 1930, por exemplo, devia se encaixar no

perfil do consumidor-alvo daquela época, ou seja, operários e trabalhadores.

É evidente que, mesmo diante de tal explicação, o argumento do domínio prévio

do ofício tem sim alguma relevância para o entendimento da sobrerrepresentação dos

armênios no mercado de calçados. Isso inclusive ajuda a capitalizar simbolicamente o produto

feito pelos armênios e seus descendentes, na medida em que um produto feito da forma que

faziam pais e avós nas terras ancestrais, cujo conhecimento sobreviveu a um genocídio e foi

trazido para o Brasil, tem todo um significado que pode inclusive ser convertido em um preço

mais elevado para a mercadoria150.

Com o tempo, muitos conseguiram aumentar as suas oficinas – até então de

caráter doméstico – para fábricas com um bom número de funcionários. A Fábrica de

Calçados Dadian, segundo prontuário da Delegacia de Ordem Política e Social em 1944,

possuía 45 operários e uma produção anual que chegava a quase 65 mil pares de calçados151.

No ano de 1947, Avak Bodouian, pioneiro do ramo em Birigui, produzia de 40 a

50 pares de sapatos e botinas por dia, empregando dez pessoas na “Indústria da Calçados

Biriguiense”152. Após idas e vindas, em 1968, Bodouian abriu nova fábrica na cidade do

interior paulista, com produção diária de 800 pares, já firmando sua empresa como uma

grande indústria153.

147 GRÜN, R. (1992). op. cit., p. 44. 148 LUZ, M. (2011). op. cit., p. 185. 149 Revista ARMÊNIA . São Paulo: janeiro/fevereiro de 1969, ano II, nº 14, p. 12 (AHK). 150 GRÜN, R. (1992). op. cit., p. 41. 151 Pront. 108.936 – Fábrica de Calçados Dadian. 152 RIZZO, M. (2005). op. cit., p. 22. 153 Ibid., p. 23.

Page 47: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

46

Em 1964, Kervork Pamboukian, natural de Marash, teve um prontuário aberto em

seu nome na DEOPS/SP154 por conta de um incêndio que destruiu sua fábrica de artefatos de

borracha – provavelmente matéria-prima para calçados – causando um prejuízo de quinze

milhões de cruzeiros155.

Em 1967, a Companhia de Calçados Semerdjian, proprietária da marca “Calçados

Merci” possuía fábrica própria, depósito de vendas a atacado e uma filial no Rio de Janeiro156.

A trajetória da Merci começu em 1928, com a chegada ao Brasil de Ohannes Semerdjian, o

pioneiro na família. Em 1930, os Semerdjian já possuíam uma pequena fábrica, aumentando

de tamanho gradativamente até alugarem um galpão com 1000 m² em 1947, adotando o nome

de “Merci”157. Segundo Freitas, foi também a família Semerdjian a responsável pela primeira

fábrica especializada em maquinário para a indústria calçadista no Brasil, no início da década

de 1950158.

Alguns armênios investiam apenas no comércio dos calçados, seja no atacado ou

varejo. Ainda em 1967, é possível ler no anúncio da “Creações Cry’s Calçados” que a

empresa possui três lojas na cidade de São Paulo159. As “Casas Econômica”, por sua vez, se

vangloriavam de serem “a maior rede de calçados de São Paulo”, tendo 39 lojas a disposição

do cliente160. A “Calçados Moleza” também possuía quatro lojas bem localizadas no centro da

cidade, mostrando assim a prosperidade dos negócios de calçados entre os armênios161.

Hagop Kechichian destaca a grande quantidade de oficinas e lojas de sapatos

pertencentes aos armênios na Rua Pagé – atual Rua Comendador Afonso Kherlakian – no

centro de São Paulo. Era muito comum que o local de fabricação e venda dos calçados fosse o

mesmo das residências de diversas famílias armênias, otimizando espaço e barateando o custo

de vida, bem como mantendo sempre uma vigilância ao local de trabalho, vulnerável a roubos

e incêndios162. Com o tempo, muitos armênios enriqueceram e se mudaram para regiões mais

nobres da cidade – a exemplo dos sírios e libaneses163 –, enquanto outros que não tiveram a

mesma trajetória procuraram regiões com valor de imóveis mais baixos para viver e manter

154 Como veremos mais a frente, nem sempre um prontuário aberto era sinônimo de subversão por parte da pessoa fichada. No caso de Pamboukian, a Polícia entrou no caso a fim de averiguar as razões do incêndio. 155 Pront. 139.842 – Kervork Pamboukian. 156 Revista ARMÊNIA . São Paulo: julho de 1967, ano I, nº 2, p. 2 (AHK). 157 FREITAS, S. (2001). op. cit., p. 94. 158 Idem. 159 Revista ARMÊNIA . São Paulo: outubro de 1967, ano I, nº 3, p. 33 (AHK). 160 Op. cit., novembro/dezembro de 1967, ano I, nº 4, p. 2 (AHK). 161 Op. cit., janeiro/fevereiro de 1968, ano I, nº 5, p. 21 (AHK). 162 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 12. 163 TRUZZI, O. (2009). op. cit., pp. 103-104.

Page 48: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

47

seus negócios calçadistas, como as regiões de Santana e Imirim, na zona norte da capital

paulista164. Sobre tal fenômeno, Clark Knowlton explica:

[...] grupos de imigrantes ao entrar numa cidade grande, em geral formam colônias compactas em zonas de aluguel baixo, de construções velhas e de cortiços localizados perto do centro comercial ou de bairros industriais importantes. À medida que membros do grupo de imigrantes aprendem a língua e se elevam na escala profissional, tendem a deixar a zona inicial e mudar-se para distritos residenciais melhores, formando colônias secundárias. Com o tempo, os que continuaram a sua ascensão, na estrutura ocupacional e social da comunidade, mudam-se para bairros melhores ainda, formando uma nova concentração secundária ou então mudam-se para zonas habitadas por membros de diversos grupos, e gradualmente cortam seus laços com o seu grupo étnico165.

Ainda segundo o autor americano, a alta no preço dos imóveis na região da Rua

25 de março se deu após a II Guerra Mundial, sendo neste momento que os armênios menos

favorecidos economicamente procuraram na zona norte um local para instalarem suas oficinas

de calçados e residências166. Entretanto, a análise dos prontuários da DEOPS/SP nos permite

questionar tal assertiva. Nascido em Marash em 1907, o professor Nazareth Avedikian foi

investigado pela Polícia Política em dezembro de 1935 por suspeita de praticar atividades

comunistas. À época da investigação, o imigrante residia à Rua Ararimã, nº. 13, nas

redondezas do cemitério Chora Menino, no bairro do Imirim167. Ou seja, o prontuariado em

questão já residia na região antes mesmo do início da II Guerra Mundial, o que indica que tal

processo de mobilidade espacial dos armênios em São Paulo é anterior ao que Knowlton

concebeu.

164 KNOWLTON, C. (1960). op. cit., pp. 124-125. 165 Ibid., p. 111. 166 Ibid., p. 125. 167 Pront. 3.125 – Nazareth Avedikian.

Page 49: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

48

Figura 6: Região do Chora Menino em 1951. As setas indicam as ruas Ararimã e dos Portugueses, logradouros indicados com frequência nos prontuários. Fonte: Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano. Disponível em: <http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/img/mapas/1951.jpg>, acesso em 01/09/2011.

Embora seja notável a sobrerrepresentação de armênios nos ramos de calçados em

São Paulo, os anúncios nas publicações da coletividade deixam claro que havia uma

diversificação na atividade econômica dos indivíduos. Roberto Grün (1992, p. 40) indica que

grande parte da terceira geração de armênios abandonou o setor produtivo e se dedicou ao

comércio e serviços. Kechichian esclarece que alguns armênios tentaram permanecer no

negócio de tecidos, típico de ex-mascates, mas a concorrência forte dos sírios e libaneses não

permitiu uma evolução neste ramo168. Nesse sentido, o autor está em consonância com

Knowlton, que é da mesma opinião169. Tal afirmativa, todavia, pode ser relativizada, pois não

são poucos os anúncios que nos deparamos de armênios cujo negócio seja o de tecidos e

vestuário, sendo Levy Gasparian, armênio de São Paulo que operava um grande lanifício no

estado do Rio de Janeiro, um dos maiores industriais têxteis do Brasil na década de 1960170.

O apelo de fazer dos filhos “doutores”, assim como Truzzi percebe nos sírios e

libaneses171, também ocorreu entre os armênios. A decisão de educar os filhos para ingressar

em profissões liberais era uma forma relativamente rápida de ascensão social daquela família

que teve que trabalhar durante anos no comércio ambulante ou de estabelecimentos172. Truzzi

168 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 12. 169 KNOWLTON, C. (1960). op. cit., p. 124. 170 Revista ARMÊNIA . São Paulo: novembro/dezembro de 1967, ano I, nº 4, p. 7 (AHK). 171 TRUZZI, O. (2009). op. cit. 172 Ibid., p. 148.

Page 50: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

49

menciona que na década de 1920, o médico da comunidade sírio-libanesa, Chucri Zaidan, era

o preferido pela coletividade armênia para tratar os seus doentes173. É possível encontrarmos,

inclusive, um anúncio de seus serviços em uma publicação da comunidade armênia174 e ainda

uma nota do editor da revista Armênia que menciona que Zaidan era o “médico da colônia

armênia há quarenta anos”175. Ou seja, podemos inferir que neste tempo, os armênios ainda

não tinham formado doutores que pudessem servir à comunidade176. Entretanto, a segunda

geração já desfrutava de ampla inserção na universidade. Stepan Soukiassian, imigrante

oriundo de Marash, aprendeu o ofício de alfaiate em Beirute, Líbano, exercendo esta profissão

no Brasil desde sua chegada em 1926. Bem sucedido em São Paulo, Soukiassian se casou e

teve quatro filhos – três mulheres e um homem –, dentre os quais dois se formaram médicos,

uma engenheira química e a caçula, arquiteta177. Outros partiram para bacharelados que de

alguma forma pudessem ser instrumentalizados para a otimização dos negócios da família.

Nesse sentido, a graduação em Administração ganhou importância no seio da coletividade

armênia em São Paulo178.

Para Robertro Grün, a possibilidade de cursar uma faculdade ampliou os

horizontes de muitos descendentes de armênios que passaram a se sociabilizar fora dos

círculos internos da comunidade179. Assim, muitas famílias formaram “doutores” que

procuraram se destacar entre seus pares através da sua profissão, como aos que criaram o

Hospital Monte Ararat em São Paulo, ou os inúmeros armênios ligados à engenharia,

arquitetura e construção civil180. Também merecem destaque àqueles envolvidos com o

mundo das finanças, como os diretores do “Banco Induscred de Investimentos S.A”, fundado

173 TRUZZI, O. (2009). op. cit. P. 163. 174 Revista ARMÊNIA . São Paulo: outubro de 1967, ano I, nº 3, p. 24 (AHK). 175 Op. cit., fevereiro de 1968, ani I, nº 5, p. 2 (AHK). 176 A relação da coletividade armênia com as profissões liberais, aos moldes do que Truzzi realizou com os sírios e libaneses é um estudo ainda a ser desenvolvido por pesquisas futuras. TRUZZI, O. (2009). op. cit. 177 “Exemplo de bom imigrante armênio Stepan Soukiassian: em terra brasileira desde 1926”. In: Jornal do Imigrante. São Paulo: ano VII, nº 73, abril/maio de 1984, p. 8 (AHK). 178 GRÜN, Roberto (2002). “Dinheiro no bolso, carrão e loja no shopping: estratégias educacionais e estratégias de reprodução social em famílias de imigrantes armênios”. In: ALMEIDA, Ana Maria F. & NOGUEIRA, Maria Alice [org.]. A Escolarização das Elites: um panorama internacional da pesquisa. Petrópolis: Vozes, pp. 67-69. 179 GRÜN, R. (1992). op. cit., p. 62. 180 Idem. É possível ler na Revista Armênia inúmeros anúncios de empreendimentos imobiliários, como a “Corbala Incorporadora e Construtora Ltda.”, dirigida por Hamparzum Balabanian, ou a “Dadian Engenharia e Construção Ltda.”, dos engenheiros Paulo e João Dadian. Revista ARMÊNIA . São Paulo: julho de 1968, ano II, nº 9, p. 9; Revista ARMÊNIA . São Paulo: julho de 1967, ano I, nº 2, p. 23, respectivamente (AHK).

Page 51: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

50

em 1959 pela família Kissadjikian181, ou a “corretora de títulos e câmbios Montanarini”, do

diretor financeiro José Tchakmakian182.

As Casas Pejan, de propriedade dos irmãos Varujan e Pedro Burmaian183 são

outro bom exemplo de como o comércio de calçados pode servir como trampolim sócio-

econômico para os armênios de São Paulo. Os Burmaian entraram tardiamente no negócio de

calçados. Ainda em abril de 1963, é possível ler o anúncio dos serviços de advocacia de

Varujan Burmaian, no jornal Tribuna Armênia, do qual o próprio era o diretor responsável184.

Foi mais ao final da década de 1960 que os Burmaian abriram a “Pejan” e iniciaram uma

trajetória ascendente na economia nacional.

Paralelamente a isso, os irmãos criaram o “Sofisa S.A. Crédito, Financiamento e

Investimentos” em 1961, como forma de financiamento e crédito à pessoa física185. Em 1990,

o nome foi mudado para Banco Sofisa S.A., consolidando assim a empresa de origem

familiar186, hoje coordenado por Alexandre Burmaian, filho de Varujan, como uma das

grandes instituições financeiras do Brasil, com patrimônio líquido estimado em 2010 em 770

milhões de reais187.

Ainda que Varujan Burmaian tenha usado o ramo calçadista como trampolim

sócio-econômico, largando-o mais tarde para se dedicar a atividades financeiras, houve uma

continuidade na família no ramo original. Ricardo Burmaian, outro filho de Varujan, dirigia a

calçados DIC nos anos 1980, voltada para um público mais amplo. Nos anos 2000, Ricardo

Burmaian investiu pesado nos shoppings centers, tendo participação em quatro deles no

estado de São Paulo. Mas os calçados continuaram sendo o carro-chefe de Burmaian. A

World Tennis, grande rede de lojas de calçados esportivos no Brasil, em 2010 tinha cerca de

181 Em um dos números da revista Armênia, na lista de anunciantes regulares, vem escrito “Kissadjikian Irmãos – Banco Induscred de Investimentos S.A.”. Revista ARMÊNIA . São Paulo: julho de 1968, ano II, nº 9, p. 1 (AHK). 182 Revista ARMÊNIA . São Paulo: outubro de 1967, ano I, nº 3 (AHK). 183 Também anunciante regular. Op. cit., julho de 1968, ano II, nº 9, p. 1. 184 TRIBUNA ARMÊNIA . São Paulo: abril de 1963, p. 3. Acervo de Stepan Hrair Chahinian. 185 Website do Banco Sofisa. Disponível em <http://www.mzweb.com.br/sofisa/web/conteudo_pt.asp?idioma=0&tipo=7471&conta=28#1>, acesso em 19/03/2011. 186 Em uma notícia da Gazeta Mercantil de 10 de abril de 2007, é possível observar que os principais acionistas do banco ainda são membros da família Burmaian. Disponível em: <http://www.fazenda.gov.br/resenhaeletronica/MostraMateria.asp?page=&cod=367353>, acesso em 19/05/2011. 187 “Informações do Banco Sofisa S.A. em Atendimento à Instrução CVM 481/09”. Disponível em: <http://www.mzweb.com.br/sofisa/web/arquivos/Sofisa_Proposta_Adm_20110419_port.pdf>, p. 4, acesso em 02/02/2012.

Page 52: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

51

170 lojas espalhadas em todo o país e fazia parte do grupo Vahrcav, que controla ainda

lanchonetes e lojas de jeans188.

Os Burmaian são o exemplo para a trajetória que Roberto Grün descreve sobre as

gerações de armênios nos negócios. Para o autor, enquanto a primeira e a segunda geração se

envolvem com pequenas oficinas e indústrias e comércio voltado para uma clientela de baixa

renda, a terceira geração investe pesado em um público-alvo de maior poder aquisitivo, com

negócios mais ousados em novos ambientes, como o shopping center, ou até mesmo a

internet189. A rede mundial de computadores ampliou o escopo de possibilidades para que

armênios e descendentes continuassem a trabalhar com os calçados de uma forma bem

diferente da prática inaugurada por seus pais e avós. O melhor exemplo nos anos 2000-2010

certamente é a Netshoes. Criada pelo empresário Márcio Kumruian, a empresa vende calçados

e material esportivo pela internet, sem uma loja física, tendo a sua movimentação financeira

em 2011 estimada em 600 milhões de reais190. Em 2011, a Netshoes ampliou seus negócios

para outros países da América Latina, como o México191.

Contudo, as transformações das características dos negócios dos descendentes de

armênios tendem a passar pela universidade. Na medida em que a academia cria espaços para

os descendentes de armênios ampliarem seus laços sociais e econômicos, ela desarticula de

certa forma a “armenidade”, pois leva para fora das instituições da coletividade a vivência dos

seus indivíduos192. Amizades, casamentos ou sociedades são feitas com brasileiros e/ou outros

grupos de imigrantes, completando assim a integração total dos armênios na sociedade

brasileira. A universidade se tornou uma ferramenta importante para os descendentes de

armênios manterem os negócios da família, através dos conhecimentos técnicos aprendidos

nas faculdades. A partir dessa qualificação, os descendentes de armênios procuravam se

diferenciar dos pais e avós, ao direcionarem os negócios para um público de maior poder

aquisitivo em ruas de alto padrão ou shopping centers na capital paulista193. Ou seja, fazer um

filho “doutor”, além do status social obtido pelo diploma, se tornou uma questão de

sobrevivência dos negócios em um mundo cada vez mais competitivo.

188 “Dono da World Tennis negocia a compra da Roxos e Doentes”. In: Valor online. Disponível em <http://www.valoronline.com.br/impresso/empresas/102/109990/dono-da-world-tennis-negocia-a-compra-da-roxos-e-doentes> acesso em 17/04/2011. 189 GRÜN, R. (1992). op. cit., pp. 61-67. 190 “A Netshoes abre o jogo”. In: IstoÉ Dinheiro. Disponível em <http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/65184_A+NETSHOES+ABE+O+JOGO>, acesso em 05/09/2011. 191 “Llega hoy brasileña Netshoes, líder de AL en venta de zapatos en Internet...”. In: El Universal.mx. Disponível em <http://www.eluniversal.com.mx/columnas/92283.html>, acesso em 20/10/2011. 192 GRÜN, R. (2002). op. cit., p. 70. 193 Ibid., p. 72.

Page 53: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

52

Em suma, a imigração armênia para o Brasil se deu da seguinte forma: foi um

processo predominantemente urbano, feito por indivíduos que chegaram ao Brasil na sua

maioria nas décadas de 1920-1930, vindos de vilas da Síria e Líbano, mas oriundos da região

da Cilícia no Império Otomano194. No Brasil, os pioneiros viram na mascateação uma maneira

de se inserir rapidamente na economia, garantindo assim a sua sobrevivência e manutenção no

novo país. Após acumularem algum capital, abriram pequenas lojas e oficinas, evitando assim

os deslocamentos próprios do tipo de comércio ambulante que praticavam, numa trajetória

muito parecida com os árabes, seus contemporâneos de imigração e vizinhos, tanto nas

cidades no Oriente Médio quanto no centro de São Paulo.

As gerações subsequentes conseguiram apoio nos pioneiros, que forneciam

insumos para que estes pudessem trabalhar no Brasil. A fabricação de calçados de baixo custo

para trabalhadores se apresentou como uma boa alternativa de inserção dos armênios em uma

São Paulo em franca expansão industrial. Embora seja clara a especialização ocupacional dos

armênios no ramo dos calçados, há também muitos membros desta comunidade operando em

atividades próximas, como tecidos, vestuários ou armarinhos, e também temos bons exemplos

de empresários armênios no mundo dos imóveis, construção civil e finanças.

Já por volta de 1936, havia 57 estabelecimentos calçadistas em nome de armênios

em São Paulo195. Foram nessas inúmeras oficinas que a vida social da coletividade começou a

tomar forma. As primeiras reuniões religiosas, seja de fiéis da Igreja Apostólica Armênia ou

da Presbiteriana foram feitas nos mesmos espaços das sapatarias196. Da mesma forma

surgiram as primeiras representações no Brasil de agremiações partidárias armênias, seguindo

a organização que existia no Império Otomano e, posteriormente, no Líbano. Clark Knowlton

chama a atenção para que na Rua Barão de Duprat, onde os armênios possuíam lojas e

fábricas, foram alugadas salas que abrigavam “desde a Igreja Presbiteriana Armênia até

grupos políticos revolucionários”197.

Ou seja, em torno das relações de trabalho os armênios se sociabilizaram e a partir

daí criaram suas igrejas, escolas e instituições sociais e políticas, tão características desse

povo. Os calçados, embora não exclusivamente, foram sólidos alicerces da fixação dos

armênios em São Paulo, proporcionando a eles tanto a sobrevivência imediatamente após a

sua chegada, bem como a ascensão social em São Paulo ao longo dos anos.

194 KECHICHIAN, H. (1983). op. cit., p. 12. 195 Idem. 196 Idem. 197 KNOWLTON, C. (1960). op. cit., p. 129.

Page 54: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

53

CAPÍTULO II – Instituições armênias na diáspora: partidos e agremiações políticas

Após adquirirem condições mínimas de subsistência em São Paulo, os armênios

iniciaram um processo de construção de uma coletividade, ou seja, de solidificação de

instituições – formais ou não – que tinham como finalidade a manutenção do arcabouço

cultural o qual o governo otomano tentou destruir por meio do genocídio iniciado em 1915.

Para Nicola Migliorino, as associações e entidades são novos pontos de referência no sentido

de socializar os armênios em torno de tradições culturais que necessitam ser preservadas, bem

como dar coesão ao grupo imigrante para que o indivíduo consiga prover suas necessidades

dentro daquela coletividade198.

O genocídio deixou mais do que mortos. A ação perpetrada pelo Comitê União e

Progresso confiscou e destruiu inúmeros bens materiais e provocou a dispersão de centenas de

milhares de pessoas que encontraram uma relativa segurança em campos de refugiados no

Oriente Médio, principalmente na Síria e no Líbano199. Além de lutarem diariamente pela

sobrevivência nesses campos, os refugiados precisavam recriar laços de sociabilidade e

relações sócio-pessoais destruídas pelos massacres. A estrutura familiar foi devastada pelo

desaparecimento de milhares de homens, criando um desequilíbrio de gênero nos campos de

refugiados, bem como um grande número de crianças de todas as idades que permaneciam em

orfanatos ou sob a guarda de famílias muçulmanas que muitas vezes obliteravam suas reais

identidades. Por outro lado, a situação extrema colocou lado a lado armênios de diferentes

classes sociais, origens e culturas, o que permitiu que novas relações interpessoais fossem

criadas para substituir as que foram rompidas com as deportações200.

Aharon Sapsezian definiu as igrejas e as agremiações partidárias armênias como

os dois pilares da vida diaspórica, responsáveis pela preservação da identidade nacional201.

Ainda que haja inúmeras instituições relevantes para a vida comunitária armênia na diáspora,

a maioria delas são ramificações dessas duas matrizes. Contudo, o processo de formação das

instituições em diferentes partes da diáspora é distinto, ainda que apresente semelhanças entre

si. A seguir, veremos como as principais entidades armênias se desenvolveram em São Paulo,

principalmente as correntes políticas que disputaram espaço e poder na coletividade desde as

suas origens.

198 MIGLIORINO, N. (2008). op. cit., p. 62. 199 Ibid., pp. 32-33. 200 Ibid., p. 45. 201 SAPSEZIAN, A. (1988). op. cit., p. 167.

Page 55: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

54

4.3 Instituições religiosas, educacionais e culturais

Em geral, as primeiras instituições armênias na diáspora tinham o objetivo de

prestarem assistência aos compatriotas mais necessitados, seja no país hospedeiro, seja na

Anatólia e Oriente Médio, onde milhares de refugiados viviam em parcas condições. Já no

final do século XIX, havia instituições de caridade no Oriente Médio ligadas à Igreja

Apostólica Armênia, onde mais tarde também surgiram organizações como a União Geral

Armênia de Beneficência – UGAB, fundada no Cairo em 1906 por Nubar Boghos Paxá, além

de asilos, sanatórios e orfanatos criados na década de 1920 para atender a leva de refugiados

pós-genocídio que se instalavam na região do Levante202. Nos EUA, instituições semelhantes

atraíam centenas de refugiados que viam o país como símbolo de liberdade e paz203. Na

Argentina, entidades assistenciais existiam desde o começo da década de 1910, também

contribuindo para o estabelecimento dos imigrantes pioneiros e funcionando como chamariz

para os que vieram na sequência204.

No Brasil, a situação seguiu o mesmo padrão: os imigrantes pré-genocídio se

preocuparam em montar redes de ajuda mútua e entidades que organizassem algum tipo de

auxílio para os necessitados durante a I Guerra Mundial e o genocídio. Nesse sentido,

segundo Hagop Kechichian, em 1915 foi criada em São Paulo a Cruz Vermelha Armênia205

com a intenção de angariar recursos e enviá-los para o Fundo de Salvação Nacional, sediado

em Paris e chefiado por Boghos Nubar Paxá206. Em 1917, a Sociedade Armênia de

Beneficência foi fundada para substituir a Cruz Vermelha, mas na prática a função era a

mesma: arrecadar fundos e enviá-los para a Europa, a fim de serem redirecionados para os

armênios em condições delicadas na Anatólia, Oriente Médio e Cáucaso207. As mesmas

pessoas que estavam envolvidas nesses esforços também se mobilizaram no sentido de

pressionar o então presidente Epitácio Pessoa a defender os armênios na Conferência de Paz

de Paris em 1919, sendo apoiados pelo engenheiro Mihran Latif, tido por muitos como um

dos primeiros armênios chegados ao Brasil208, e pelo escritor francês Etienne Brasil209.

202 MIGLIORINO, N. (2008). op. cit., pp. 62-64. 203 HEKIMIAN, K. (1990). op. cit., p. 88. 204 Ibid., p. 97. 205 Não confundir com a Associação Armênia de Assistência (Hay Oqnutian Miut'yun – HOM), entidade internacional presente em toda a diáspora armênia que também é conhecida como Cruz Vermelha Armênia. A instituição criada no Brasil em 1915 apenas partilhava do mesmo nome da HOM, mas sem nenhum tipo de relação entre elas. 206 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 40. 207 Ibid., pp. 40-41. 208 Ibid., p. 36. 209 Ibid., pp. 42-43.

Page 56: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

55

Com o considerável aporte migratório pós-genocídio, sobretudo na segunda

metade da década de 1920, outras instituições foram criadas em São Paulo com o intuito de

dar conta da demanda espiritual, educacional e cultural dos armênios na sociedade receptora.

Na diáspora armênia, as igrejas têm um papel primordial na construção dessas esferas da vida

social. Assim, entidades foram fundadas para consolidar o desejo comunitário de erguer os

templos e dar materialidade às distintas comunidades religiosas. Em São Paulo, assim como

na maior parte da diáspora armênia, os fiéis são divididos entre a Igreja Apostólica Armênia, a

Igreja Católica Apostólica Armênia e, genericamente, a Igreja Protestante Armênia.

4.3.1 As Igrejas Armênias

Em 1923, foi criada uma comissão para a fundação da comunidade da Igreja

Apostólica Armênia de São Paulo. Enquanto a comissão angariava fundos para erguer o

templo, o recém-chegado padre Gabriel Samuelian se incumbiu de oficializar a criação da

Igreja junto às esferas eclesiásticas competentes210. Assim, em janeiro de 1924 foi celebrada a

primeira missa em rito armênio no Brasil, mas ainda não em uma igreja própria, que somente

seria erguida alguns anos mais tarde211. Em 1938, em terreno doado por Rizkallah Jorge na

Rua Senador Queiroz, próxima às Ruas Pagé e Santo André, núcleo da coletividade armênia

naquele momento, foi erguida a Igreja Apostólica Armênia de São Paulo. Contudo, o templo

foi demolido em 1945, devido ao projeto de urbanização do centro da capital paulista que

atingiu a região nessa época, no mandato do prefeito Francisco Prestes Maia212. No mesmo

ano, o mesmo benemérito comprou outro terreno para a construção da nova igreja, dessa vez

na então Av. Tiradentes213, entre os bairros da Luz e do Bom Retiro, outro local de

aglomeração de armênios em São Paulo. E em 25 de março de 1945, segundo Sônia Maria de

Freitas, os padres Gabriel Samuelian e Yesnig Vartanian sagraram a pedra fundamental do

templo, inaugurado oficialmente em abril de 1949214 e nomeado Igreja Apostólica Armênia de

São Jorge. Para Pedro Bogossian Porto, o nome da Igreja foi escolhido também como uma

forma de homenagem a Rizkallah Jorge215.

210 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., pp. 69-70. 211 SAPSEZIAN, A. (2010). op. cit., p. 288. 212 FREITAS, S. M. (2001). op. cit., p. 97. 213 Atualmente o trecho onde a Igreja está localizada pertence a Av. Santos Dumont. 214 Ibid., p. 97. 215 No topo do altar da Igreja, há as iniciais “R. J.” de Rizkallah Jorge com a data de 1949, ano de inauguração do templo. PORTO, P. (2011). op. cit., p. 62.

Page 57: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

56

Mas o imponente prédio da Igreja Apostólica Armênia de São Jorge não foi o

primeiro templo desse rito no Brasil. O pioneirismo nesse sentido é da pequena, mas concisa,

coletividade instalada no distrito de Presidente Altino, atual município de Osasco. Oriundos

em sua maioria da cidade otomana de Sis216, os armênios de Presidente Altino foram para a

região atraídos pela oferta de emprego em um frigorífico e também pelos preços acessíveis

dos terrenos no local, diferentemente do centro de São Paulo onde os imóveis tinham valor

mais elevado. Em 1928, o terreno foi comprado graças ao esforço conjunto dos moradores da

região e em 1935 a primeira missa foi celebrada no local, ainda com as obras inacabadas217.

Assim surgiu a Igreja Apostólica Armênia de São João Batista, catorze anos antes de sua irmã

na capital paulista.

O desejo de erguer o templo para os serviços dos armênios católicos é tão antigo

quanto o dos gregorianos. A Capelania da Missão Armênia Católica foi criada em 1935 pelo

padre Vicente Davidian, em resposta aos pedidos dos católicos de Marash que residiam na

capital paulista desde 1923218. Contudo, a Igreja só foi erguida em 1971, na Av. Tiradentes,

muito próxima da Igreja Apostólica Armênia. Entre as décadas de 1930 e 1960, as missas

católicas armênias eram realizadas na Igreja São Cristovão, na mesma avenida219. A primeira

missa no templo próprio foi realizada no natal de 1967, com a igreja ainda em construção. O

terreno da igreja foi comprado por Cirille Zohrabian e o comendador Avedis Clemente

Kherlakian foi o presidente da Missão, que contava com outros armênios que a essa altura

haviam prosperado economicamente em São Paulo220. Para angariar fundos, a Missão

realizava eventos tais como sorteios de rifas e bazares221. Na década de 1970, com a

construção do templo, a então missão ganhou autonomia e se tornou uma paróquia do

Exarcado Católico Armênio para a América Latina222.

Em São Paulo, as primeiras atividades da Igreja Central Evangélica Armênia – do

ramo presbiteriano – datam de meados de 1926, quando o reverendo Michael Bitchmaian

tomou a frente da congregação e iniciou os trabalhos que foram oficializados em 1927223.

Nesse ano, os protestantes já realizavam ofícios nas casas dos fiéis e, segundo Aharon

Sapsezian, pouco depois alugaram um salão para a celebração dos cultos224. O templo próprio

216 MARTINI, S. (2004). op. cit., pp. 35-36. 217 Idem. 218 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 72. 219 Ibid., p. 73. 220 Revista ARMÊNIA . São Paulo: ano I, nº 5, janeiro/fevereiro de 1968, p. 10 (AHK). 221 Ibid., p. 11. 222 SAPSEZIAN, Aharon (1997). Cristianismo Armênio. São Paulo: Bentivegna, p. 193. 223 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 73. 224 SAPSEZIAN, A. (2010). op. cit., p. 287.

Page 58: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

57

só foi erguido na década de 1950, nas proximidades das demais igrejas armênias em São

Paulo225, em frente onde seria construída anos mais tarde a estação Armênia do metrô. Na

cidade de Ferraz de Vasconcelos, onde alguns armênios se estabeleceram na década de 1930

por acharem a cidade geograficamente parecida com Marash226, foi mantida uma capela

ligada à Igreja Central Evangélica Armênia em São Paulo227.

No rastro da organização e criação das igrejas, foram também feitos os primeiros

esforços para a constituição de escolas onde os descendentes dos imigrantes pudessem

aprender os valores culturais tidos como vitais para a manutenção de uma identidade armênia

na diáspora.

4.3.2 Instituições educacionais armênias em São Paulo

Antes da fundação e construção de uma escola, havia pequenos grupos que se

organizavam no sentido de prover instrução para um pequeno número de jovens. Assim

sendo, segundo Hagop Kechichian, foi fundada uma escola primária em 1928 por uma

entidade feminina denominada “As Armênias Progressistas”, sobre as quais não encontramos

nenhum registro além desse228.

Ainda segundo o historiador, em 1931 houve a unificação dos esforços

educacionais feitos por entidades isoladamente no Conselho da Igreja Apostólica Armênia,

que criou o Hay Askain Turian Varjaran229 – Escola Nacional Armênia Turian – regularizado

apenas em 1935, conforme chama a atenção Pedro Bogossian Porto, num período de aumento

do controle do governo Vargas às instituições de ensino. Data desse período a adoção do

nome Externato José Bonifácio (EJB), para ocultar o caráter étnico da educação na instituição

e evitar problemas com as autoridades governamentais230. O prédio do EJB só foi inaugurado

em 29 de fevereiro de 1948, em edifício anexo à Igreja Apostólica Armênia de São Jorge e ao

Centro Armênio231. É possível encontrar numa publicação da coletividade textos que tornam

públicas as necessidades da escola e pedem contribuições para que seja possível inaugurá-la.

225 SAPSEZIAN, A. (2010). op. cit., p. 290. 226 FREITAS, S. (2001). op. cit., p. 91. 227 SAPSEZIAN, A. (2010). op. cit., p. 290. 228 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 92. Ainda segundo o historiador, a Sociedade Recreativa e Beneficente Marachá criou a escola Yeghiche Turian no mesmo ano que as “Armênias Progressistas”. Entretanto, a Marachá somente foi fundada em 15 de novembro de 1947, quase vinte anos mais tarde. SOCIEDADE RECREATIVA MARACHÁ: 10º aniversário de grandes realizações. São Paulo: 15 de novembro de 1957 (AHK). 229 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 95. 230 PORTO, P. (2011). op. cit., p. 75. 231 REVISTA CULTURAL BRASIL-ARMÊNIA. São Paulo: ano 2, nº 16, abril de 1948, p. 20 (AHK).

Page 59: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

58

Em um desses textos, há uma lista de beneméritos que contribuíram para a aquisição de

carteiras e quadros negros para o novo prédio232. Em outro, há uma nota sobre um torneio

beneficente de Buraco em prol do EJB233.

O atrelamento da educação com as instituições religiosas não foi uma

exclusividade do EJB e da Igreja Apostólica Armênia. Em 1931, uma pequena escola primária

foi fundada pela Igreja Evangélica234. A Igreja Católica Apostólica Armênia também manteve

uma instituição educacional até 1992, com a colaboração das Irmãs de N. S. da Imaculada

Conceição235. Em Osasco, a instrução das crianças, que antes era feita nas casas dos armênios,

passou a ser realizada numa ramificação do EJB naquela cidade – denominado Khirimian

Askain Varjaran, ou Escola Nacional Khirimian –, que durou até os anos 1960236. Em 1932,

segundo a pesquisa de Sueli Martini, havia 45 crianças matriculadas na escola que tinham

aulas das matérias regulares, além do idioma armênio e outras ligadas à cultura armênia. Com

o tempo, o número de alunos descendentes de armênios diminuiu e o de brasileiros sem

ascendência desse povo cresceu, o que também aconteceu nas demais instituições étnicas já

citadas237.

Um esforço educacional laico por parte da comunidade foi a fundação da cátedra

de armênio na Universidade de São Paulo em 1964, idealizada pelo professor Eurípedes

Simões de Paula e dirigida até 1975 por Yessai Ohannes Kerouzian. Contudo, o bacharelado

em armênio levou alguns anos até se enraizar. Em 1967, Fernando Celso de Castro

Mangarielo – que depois viria a se tornar o proprietário da Editora Alfa-Ômega e editor de

Jacob Bazarian – e sua companheira na época, Clarice Lima, ingressaram no curso de armênio

da USP para evitar que o mesmo fechasse as portas recém-abertas por falta alunos

interessados238. No ano seguinte o cenário mudou drasticamente: 54 candidatos se

inscreveram para prestar os exames vestibulares que dão acesso ao curso, no qual 34 foram

aprovados, ainda que apenas uma estudante tivesse ascendência armênia239.

232 REVISTA CULTURAL BRASIL-ARMÊNIA. São Paulo: ano 2, nº 13, janeiro de 1948, p. 30 (AHK). 233 Revista ARMÊNIA . São Paulo: ano I, nº 5, janeiro/fevereiro de 1968, p. 9 (AHK). 234 SAPSEZIAN, A. (2010). op. cit., p. 287. Embora Kechichian afirme que a fundação dessa escola tenha acontecido em 1937. KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 74. 235 SAPSEZIAN, A. (1997). op. cit., p. 193. 236 MARTINI, S. (2004). op. cit., pp. 113-114. 237 Ibid., pp. 114-115. 238 Revista ARMÊNIA . São Paulo: ano I, nº 2 Julho de 1967, p. 18 (AHK). 239 Op. cit., ano I, nº 5, janeiro/fevereiro de 1968, p. 9 (AHK).

Page 60: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

59

4.3.3 As Associações Culturais e Esportivas

As associações culturais e esportivas fundadas pelos armênios em São Paulo

principalmente a partir da década de 1930 não eram, em sua grande maioria, autocéfalas e

independentes. Quase todas elas eram ramificações de outras instituições, como partidos

políticos ou igrejas. Entretanto, isso não quer dizer que todos os seus frequentadores

necessariamente eram partidários de determinada agremiação política ou credo religioso.

Muitos armênios iam aos clubes esportivos e associações culturais no intuito de viver

socialmente a coletividade, através de festas, bailes, corais ou torneios esportivos. Tal

fenômeno era acentuado pelo veto não explícito da elite paulistana, que de início, não

permitia o ingresso dos imigrantes que enriqueceram e pleiteavam participar dos círculos

sociais nos tradicionais clubes e entidades da cidade. Assim, os armênios – a exemplo dos

sírios e libaneses240 – precisaram criar seus próprios espaços sociais.

4.3.4 Primeiros esforços

Excetuando as já citadas entidades criadas no ínterim do socorro às vítimas do

genocídio, a primeira organização institucional dos armênios em São Paulo foi em torno da

comissão fundadora da comunidade em 1924, marcada pela realização de um recital no Teatro

Municipal em janeiro de 1925 dedicado aos órfãos do genocídio241. Nesse mesmo ano, foi

criada a “Sociedade dos Jovens” e o “Clube Atlético Armênio”, sobre as quais não temos

muitas informações, além de uma malfadada tentativa de unificação de ambas em 1925242.

Em 1928, foi organizada a “União Salmo Tzor de Presidente Altino”, no atual

município de Osasco, com o intuito de servir como mantenedor da cultura armênia nesse

distrito afastado da capital paulista e, por consequência, do núcleo da coletividade armênia no

Brasil, mas também tinha em seu estatuto o compromisso com o auxílio e assistência aos

compatriotas necessitados243. Em 1942, as atividades esportivas foram separadas na

Sociedade Esportiva e Cultural – Mocidade Armênia de Presidente Altino (SEC-MAPA), que

também manteve uma escola por algum tempo244.

240 TRUZZI, O. (2009). op. cit., p. 113. 241 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 75. 242 Ibid., p. 76. 243 MARTINI, S. (2004). op. cit., pp. 110-111. 244 FREITAS, S. (2001). op. cit., pp. 90-91.

Page 61: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

60

4.3.5 Entidades de compatriotas

As proporções continentais do Império Otomano e seu caráter multiétnico e

multilinguístico dificultavam a construção de uma sólida e preponderante identidade única

otomana, em detrimento a uma identificação de pertença baseada principalmente nas relações

construídas dentro das vilas e cidades espalhadas por todo o Império. Sobre isso, Oswaldo

Truzzi mostra em sua obra como as identidades dos sírios e libaneses eram forjadas mais

pelas referências das vilas nas quais residiam antes de emigrar do que necessariamente por um

sentimento de ser sírio ou libanês245. Nesse sentido, é compreensível a tentativa desses

imigrantes de recriar os laços de sociabilidade nos países receptores de acordo com as

afinidades construídas ainda no Oriente Médio e Ásia Menor. Assim, foram fundados em São

Paulo diversos clubes e entidades cujos membros eram preferencialmente originários de

determinada vila, como os clubes Homs, Rachaya, Zahle, Sociedade Beneficente Beirutense

etc246.

Com os armênios não foi diferente. Algumas das entidades de primeira hora em

São Paulo foram justamente essas que congregavam compatriotas de uma determinada vila no

Império Otomano. Em março de 1929, foi criada a filial paulistana da Sociedade Compatriota

de Zeytun247, cidade essa que organizou resistência armada aos massacres do sultão Abdul-

Hamid II no final da década de 1890 e também às investidas genocidas em 1915, o que

despertou a ira das autoridades estatais e tornou-a lendária para os armênios248. Entre as

atividades da Sociedade, estavam a encenação de peças e outras expressões artísticas que

reconstruíam as histórias das resistências na cidade249. Outra sociedade compatriota foi a dos

sobreviventes de Fendedjak, uma vila próxima de Zeytun, fundada em meados de 1929 com

os mesmos propósitos da outra instituição250. A “União dos Compatriotas Armênios de

Aintab” também data da mesma época251. Não temos registro do período de funcionamento de

nenhuma delas, nem dos motivos do encerramento de suas atividades.

Certamente, a entidade de compatriotas mais relevante em São Paulo foi a

“Sociedade Beneficente e Cultural Marachá”, formada por oriundos de Marash, cidade-natal

da maior parte dos imigrantes armênios que se estabeleceram na capital paulista. Fundada em

245 TRUZZI, O. (2009). op. cit., p. 110. 246 Ibid., p. 113. 247 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 100. 248 Cf. MEKHITARIAN, Nichan (2005). O Reino Armênio da Cilícia e História de Zeytun. São Paulo: Edições Inteligentes. 249 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 100. 250 Ibid., p. 104. 251 SIPAN: órgão da comunidade armênia da Igreja Apostólica Armênia do Brasil. São Paulo: nº 12, 15 de agosto de 1983, p. 2

Page 62: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

61

15 de novembro de 1947 por iniciativa de Karnig Bazarian – irmão mais velho de Jacob

Bazarian, cuja trajetória veremos em capítulos seguintes –, Krikor Apovian e mais 16

conterrâneos252, a Marachá teve como objetivo:

a divulgação cultural das tradições armênias em São Paulo, da maior integração de nossa gente na coletividade bandeirante do mais amplo entendimento e da firme cooperação dos filhos de Marash com os armênios procedentes de outras cidades e regiões de nosso saudoso país [...] os filhos de Marash procuram sustentar em São Paulo, como o fazem em todas as partes do Mundo, a tocha ardente e iluminadora da fé dos seus antepassados, sempre confiantes no futuro da Armênia e do povo armênio253.

Primeiramente sediada à Rua 25 de março, mudando-se depois para a Av. Santos

Dummont, próximo à Igreja Apostólica Armênia de São Jorge, a Marachá promovia diversos

eventos como teatro, danças, bailes, torneios de tênis de mesa, corais, além da manutenção de

um bar, uma biblioteca e de classes de língua armênia para aqueles que estivessem

interessados em aprender o idioma ancestral254. Além dessas atividades, havia diretorias

específicas para as mulheres e para os jovens, delimitando exatamente qual era o espaço de

cada grupo dentro da entidade255. Tal entidade funcionava em constante diálogo com outras

associações de compatriotas de Marash espalhadas pela diáspora, criadas ainda no Levante,

no primeiro momento da fuga do Império Otomano256.

4.4 Partidos e agremiações políticas

Em comum, as entidades tem a preocupação em formar espaços de sociabilidade

em torno de características e ideias comuns a um grupo de armênios em São Paulo.

Evidentemente, em uma comunidade não muito extensa praticamente toda concentrada em

uma só cidade, a proliferação de entidades é indicativo de que havia uma pluralidade de ideias

e que em algum ponto elas eram divergentes e incompatíveis, de modo que era necessária a

criação de novas instituições para expressar ideias não contempladas pelas organizações já

existentes.

A história dos armênios no final do século XIX e começo do século XX é

marcada pela criação de movimentos nacionais e políticos para dar vazão aos anseios de

reformas que proporcionaram uma melhor condição de vida para os armênios no interior do

252 SOCIEDADE RECREATIVA MARACHÁ: 10º aniversário de grandes realizações. São Paulo: 15 de novembro de 1957, p. 43 (AHK). 253Ibid., pp. 35-36. 254 Ibid., p. 44. 255 SOCIEDADE MARACHÁ: 20 anos a serviço da cultura e do progresso dos marachtsi da coletividade armênia do Brasil. São Paulo: 15 de novembro de 1967, pp. 25 e 27-29 (AHK). 256 MIGLIORINO, N. (2008). op. cit., p. 57.

Page 63: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

62

Império Otomano, ou até mesmo agremiações cujas ideias de revolução e independência

chacoalharam a estrutura de todo o Império257. A ação de tais organizações, seja na esfera

política legal, seja na organização de resistências às investidas genocidas, foram decisivas nos

acontecimentos que moldaram a história dos armênios no interior do Império e na diáspora. A

seguir, veremos como os principais partidos políticos foram criados e desenvolvidos e como

operaram em São Paulo.

4.4.1 Partido Revolucionário “Hentchakian”

O Partido Revolucionário Hentchakian258- conhecido pela forma abreviada de seu

nome, Hentchak, palavra em armênio para “trombeta” ou “sino”, objetos que denotam ato de

despertar – foi um dos primeiros movimentos políticos armênios sistematizados na forma de

agremiação política, criado com o intuito de lutar pela Questão Armênia – isto é, de

autonomia dos armênios no Império Otomano – e por justiça social259. Fundado em 1887 na

cidade de Genebra, Suíça, o Hentchak foi um empreendimento levado a cabo por jovens

armênios oriundos de cidades da porção russa da Armênia fortemente influenciados pelo

marxismo, já nessa altura amplamente difundido e discutido na Europa, mas também pelo

nascente movimento revolucionário russo – principalmente por Plekhanov e pela organização

Narodnaya Volia – que se expandiu no começo do século XX260.

Em 1888, o programa do partido foi publicado no seu órgão homônimo,

defendendo o caminho do socialismo e do nacionalismo para os armênios dos três impérios –

russo, otomano e persa – atingirem sua liberdade e autonomia261. Em sete meses, cerca de 700

militantes ingressaram as fileiras do Hentchak só em Constantinopla, capital do Império

Otomano262, criando bases à agremiação formada por uma elite intelectual na diáspora. Tal

explosão de adeptos permitiu que em meados de 1890, dois anos após a fundação da

agremiação, os primeiros protestos organizados pelo Hentchak acontecessem no Império,

exigindo que o sultão Abdul-Hamid II fizesse reformas na estrutura política do país a fim de

melhorar a condição das minorias, principalmente nas províncias do interior. O protesto foi

duramente reprimido pelo Estado, resultando em vinte armênios mortos, cerca de 300 feridos

257 TERNON, Yves (1996). Les Arméniens: histoire d’un génocide. Paris: Seuil, 2ª ed., p. 87. 258 Atualmente é chamado de Partido Social-Democrata Hentchakian. 259 MIGLIORINO, N. (2008). op. cit., p. 27. 260 MINASSIAN, Anahit Ter (1982). “L’Arménie et l’éveil des nationalités (1800-1914)”. In: DEDEYAN, Gerard [org.]. Histoire des Arméniens. Paris: Privat, p. 465. 261 TERNON, Y. (1996). op. cit., p. 90. 262 Idem.

Page 64: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

63

e muitos presos, inclusive membros da cúpula do partido. Segundo Yves Ternon, essa foi a

primeira vez em séculos que as autoridades otomanas autorizam que tropas atirassem contra

cristãos no Império Otomano263. No ínterim de eventos semelhantes, as potências europeias –

que pressionavam o sultão a reformar o Império Otomano – condenaram as ações do

Hentchak, pois, embora tenham dado visibilidade ao problema dos armênios no interior do

Império, os protestos serviram de pretexto para que o sultão reprimisse com violência,

legitimando o uso da força como uma medida de reintegração da ordem no país264.

A década de 1890 foi uma época de expansão do Hentchak, com a fundação de

representações em diversas cidades onde havia coletividade estabelecida de armênios, bem

como a organização e publicação de material teórico para orientar a ação revolucionária dos

armênios, como o “Manifesto do Partido Comunista” de Marx e Engels, traduzido para o

armênio em 1894265. Ao final dessa década, o partido havia sido responsável por diversas

manifestações em Constantinopla, bem como pelas rebeliões das cidades de Sassoun e

Zeytun, que foram desarticuladas pelas forças do sultão.

No entanto, a audácia das ações do Hentchak teve como consequência, além da

dura repressão por parte do governo otomano, a perda de apoio político por parte de algumas

lideranças, que divergiam da direção do partido no que dizia respeito a grandes ações

revolucionárias e aos caminhos institucionais que a agremiação poderia tomar para atingir

seus objetivos. A ação de uma ala do partido no IV Congresso da II Internacional Socialista

sediado em Londres em 1896 foi denunciada pelos membros do Hentchak do Império

Otomano e Egito como uma tentativa de vincular a causa armênia ao movimento operário

russo e fraquejar na luta perante o conservadorismo da sociedade muçulmana e da burguesia

capitalista ocidental266. Assim, houve uma cisão no Hentchak, que passou a contar com um

grupo chamado de Hentchakian Verakazmial – Hentchakian reorganizado – com base nas

células do partido no Império Otomano, Egito e EUA, enquanto a outra ala ficou isolada nas

células da Armênia Russa e Bulgária, mantendo o socialismo no programa, mas renunciando a

grandes manifestações267.

263 TERNON, Y. (1996). op. cit., p. 91. 264 Ibid., pp. 92-93. 265 MINASSIAN, A. (1982). op. cit., p. 466. 266 Idem. 267 Ibid., pp. 466-467.

Page 65: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

64

As atividades do partido, seja em manifestações públicas de descontentamento

com o tratamento dos armênios nos impérios Otomano, Russo ou Persa, seja na organização

de resistências armadas às investidas do sultão Abdul-Hamid II, fizeram com que muitas

lideranças do Hentchak fossem os

primeiros a serem procurados pelas

forças do Comitê União e Progresso

no início do genocídio, em 1915. Os

vinte líderes do partido enforcados

em uma praça de Constantinopla em

junho daquele ano se tornaram

símbolos da resistência armênia e

ainda hoje são lembrados pelos

partidários do Hentchak.

Na diáspora pós-

genocídio, o Hentchak, que já era um

partido diaspórico por definição,

confirmou tal característica e se

solidificou em países como Síria,

Líbano, EUA, França, Egito e

Grécia268, a essa altura como uma

agremiação social-democrata. Com a

Revolução Russa em 1917 e o crescimento do comunismo na região, uma fração do partido se

aproxima dos bolcheviques, pois, segundo Jean-Pierre Alem, a sovietização da Armênia a

partir de 1920 contemplou as aspirações iniciais do Hentchak, o que permitiu que o partido

apoiasse o programa comunista no país269, ainda que a social-democracia tenha se tornado a

principal rival do comunismo soviético na década de 1920270. Tal proximidade fez com que os

partidários da Federação Revolucionária Armênia – declaradamente anticomunistas, como

veremos a seguir – acusassem o outrora aliado Hentchak de terem abandonado as aspirações

históricas armênias e formado com a ODL – outro partido político armênio – e o governo da

RSS da Armênia uma frente única para atacar a FRA271.

268 ALEM, Jean-Pierre (1961). A Armênia. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, p. 97. 269 Ibid., p. 98. 270 PINHEIRO, Paulo Sérgio (1992). Estratégias da Ilusão: a revolução mundial e o Brasil 1922-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª. ed., p. 163. 271 KERIMIAN, N. (1998). op. cit., p. 252.

Figura 7: Primeira diretoria do Hentchakian em São Paulo. O primeiro em pé, à esquerda, é o alfaiate Stepan Soukiassian. Sentado à sua frente, está Yervant Mekitarian, um dos responsáveis pelo jornal Hayastan Tsayin na década de 1940 (Acervo da família Mekitarian).

Page 66: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

65

Em São Paulo, o

Hentchakian foi fundado em

1932272 como uma

ramificação da União

Cultural Sharyun de Buenos

Aires273. Ligada ao partido,

foi criada uma ala estudantil

que funcionou até 1934,

realizando eventos sociais

ligados à cultura armênia274.

Não há mais informações

sobre o funcionamento do

partido no Brasil na

bibliografia ou documentos,

nem registros de ações ou

iniciativas que mostram até

quando as suas atividades

foram mantidas em São Paulo. Por isso, é necessário recorrer ao depoimento de Walter

Mekitarian, filho de Yervant Mekitarian, fundador e principal liderança do partido em São

Paulo.

Segundo o seu filho, Yervant Mekitarian chegou ao Brasil em 1929. Oriundo de

Erzurum, ele foi com a família para Constantinopla durante a I Guerra Mundial e de lá fugiu

para a Grécia no início do genocídio. Nesse país, Mekitarian passou apenas seis meses,

rumando rapidamente para a França, onde viveu durante nove anos antes de rumar para São

Paulo. Na capital paulista, trabalhou como mascate entre 1930 e 1931, se casando com a irmã

de Stepan Soukiassian nesse ano. A união o aproximou do cunhado tanto profissionalmente –

272 De acordo com Walter Mekitarian, filho de um dos fundadores do partido, Yervant Mekitarian , em entrevista concedida em sua residência, em São Paulo. Apesar disso, Hagop Kechichian afirma em sua tese de doutorado que o Hentchak foi fundado em 1928, tendo promovido em julho de 1929 uma missa em homenagem aos vinte líderes enforcados em Constantinopla em 1915. KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 102. Preferimos adotar a data informada por Walter Mekitarian, pois ela está de acordo com o ano que está estampado na bandeira do Hentchak na fotografia da primeira diretoria do partido (Figura 7), enquanto no trabalho de Kechichian não há referência para corroborar 1928 como o de fundação da agremiação. 273 MADOYAN, Marc (2007). op. cit., p. 109. 274 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., p. 102.

Figura 8: Reunião do Hentchakian em São Paulo em 1932 mostra que o partido tinha certo apelo na coletividade armênia naquele período (Acervoda família Mekitarian).

Page 67: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

66

no ofício de alfaiate – quanto na política, pois ambos tinham posições políticas semelhantes

que resultaram na fundação da filial brasileira do partido em 1932275.

Intelectual e orador de destaque na coletividade armênia de São Paulo, Yervant

Mekitarian se dedicou a partir de 1947 ao jornal Hayastan Tsayin – A Voz da Armênia – a

fim de levar aos seus compatriotas notícias e discussões sempre avalizadas pela sua leitura

partidária da situação mundial pós-II Guerra Mundial. Apesar de um primeiro ano próspero, a

publicação não mais conseguiu se manter apenas com as assinaturas, tendo que encerrar as

atividades três anos após o seu início276. Endividado graças ao alto custo e baixo retorno

financeiro do jornal, Yervant Mekitarian abandonou a política partidária por volta do ano de

1950, data que também marca a decadência das atividades do Hentchak em São Paulo, cujos

poucos militantes foram absorvidos pela União Geral Armênia de Beneficência em 1964,

quando da sua fundação, pois essa instituição reconhecia a RSS da Armênia enquanto

expressão pátria do povo armênio – pauta comum ao Hentchak –, em contraste com a FRA,

opositora do regime soviético.

4.4.2 A Organização Democrática Liberal (ODL) – Ramgavar

Em 1885, foi criado por Megherditch Portoukalian e Khrimian Hairig o primeiro

partido revolucionário armênio chamado Armenakan, na cidade de Van, interior do Império

Otomano277. O objetivo do Armenakan era a luta pelo direito dos armênios governarem a si

mesmos, a despeito do sultão. O partido foi um dos responsáveis pela organização da

resistência na cidade de Van278 às investidas das tropas de Abdul-Hamid II nos massacres de

1896, que mataram cerca de 10 mil armênios279. Suas atividades logo foram colocadas na

ilegalidade e as lideranças do partido foram perseguidas.

Com a dissidência no Hentchak em 1896, a ala denominada Hentchakian

Reorganizado se aproximou das lideranças do Armenakan e uniram ambas as agremiações em

um só partido em 1908, numa reunião no Cairo, Egito. A nova força política foi chamada de

Partido Democrata Constitucional, de orientação liberal, e atuou na resistência de algumas

cidades ante as investidas genocidas em 1915. Com a entrada de outras frentes políticas, o

partido foi transformado na Organização Democrata Liberal – Ramgavar (ODL) em

275 Walter Mekitarian. Economista. Entrevista concedida em sua residência, no bairro do Morumbi, São Paulo, 20/04/2012. 276 Idem. 277 SHAHINIAN, Haig (1984). Conceitos Básicos da Organização Democrata Liberal Armênia. São Paulo: Associação Cultural Tekeyan, pp. 5-6; TERNON, Yves (1996). op. cit., p. 89. 278 SHAHINIAN, H. (1984). op. cit., p. 7. 279 TERNON, Y. (1996). op. cit., p. 133.

Page 68: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

67

Constantinopla em 1921280. A ODL, apesar de seu caráter de centro-direita, também

reconhecia a legitimidade do governo soviético na Armênia, o que também a colocou numa

posição de oposição à FRA281. Segundo Haig Shahinian, teórico do partido, a sovietização da

Armênia, para além de ser um acontecimento “feliz ou triste”, foi:

a única solução para a subsistência do Estado armênio, diante da ameaça turca, a ponto de concretizar seu plano de aniquilação total da Armênia. A ODL crê que diante da impossibilidade de defender atualmente nossa subsistência, a presença russa no Cáucaso marxista, czarista ou seja do regime que for, é preferível à exposição aberta frente a Turquia. À ODL, não lhe interessam os qualificativos dados à Armênia pelos governos circunstanciais [nesse ponto, um ataque direto à FRA, que esteve à frente da república armênia de 1918-1920]. Considera terminantemente necessária a conservação do território nacional posto que sua desaparição impossibilitaria a concretização dos ideais da ODL em um futuro. É por isso que sustenta a iminente necessidade de manter o pouco que se pôde salvar282.

Na diáspora, a ODL opera por meio da Associação Cultural Tekeyan283 e da

União Geral Armênia de Beneficência – UGAB, que embora não seja uma entidade

institucionalmente ligada à Organização, tem na prática seus principais diretores como

pertencentes aos quadros do partido. Nas palavras de Haig Shahinian: “para a ODL é

terminantemente necessário lutar pelo engrandecimento desta instituição [UGAB], e pela

vigência de seus princípios originais”284. Para o escritor francês Jean-Pierre Alem, claramente

de orientação pró-FRA, a ODL é um “partido sem massa, mas rico, [...] deve a influência que

lhe resta, ao controle da ‘União Geral Armênia de Beneficência’, poderoso organismo que

comporta escolas, dispensários, associações de caridade, e desenvolve suas ramificações em

numerosos países”285.

A UGAB foi fundada no Cairo, Egito, em 1906 por Boghos Nubar Paxá, visando

ao auxílio aos armênios que foram atingidos por perseguições e crises no Império Otomano

durante o final do século XIX e começo do século XX. Com o genocídio iniciado em 1915, a

União teve um papel-chave no auxílio às vítimas do genocídio, principalmente na manutenção

de orfanatos e na construção de escolas na diáspora, a fim de promover espaços onde a cultura

armênia pudesse ser preservada286.

280 SHAHINIAN, H. (1984). op. cit., pp. 8-9. 281 MIGLIORINO, N. (2008). op. cit., p. 56. 282 SHAHINIAN, H. (1984). op. cit., pp. 26-27. 283 MIGLIORINO, N. (2008). op. cit., p. 67. 284 SHAHINIAN, H. (1984). op. cit., p. 25. 285 ALEM, J. (1961). op. cit., pp. 100-101. 286 JORNAL DO IMIGRANTE. São Paulo: ano VII, nº 83, fevereiro de 1985, p. 12 (AHK).

Page 69: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

68

A filial da UGAB em São Paulo foi inaugurada em 27 de agosto de 1964287, por

vinte e três membros da coletividade reunidos em um salão anexo à “Indústria de Calçados

Merci”, de propriedade de Ohannes Semerdjian288, partidário moderado da Federação

Revolucionária Armênia. Como a instituição foi de estabelecimento tardio no Brasil – se

comparado com a filial argentina que existe desde 1911289 –, a construção de uma sede

própria foi mais rápida, pois os principais benfeitores já eram prósperos homens de negócios

na capital paulistana, podendo assim fazer consideráveis aportes de recursos para erguer a

sede social de 3.500 m² no bairro de Alto dos Pinheiros em 1974290.

Com a fraca expressão do Hentchak e a decadência das organizações armênias de

caráter comunista em São Paulo – conforme veremos no capítulo seguinte –, a UGAB

aglutinou boa parte daqueles que apoiavam a Armênia Soviética e eram contrários a política

oposicionista da Federação Revolucionária Armênia. No limite, após a fundação da UGAB

em 1964 houve a unificação de simpatizantes do comunismo, da socialdemocracia – ideologia

à qual o Hentchak adotou após abandonar a ação revolucionária – e da centro-direita em uma

só entidade, o que alimentou o discurso de consolidação de uma “frente única” de oposição à

FRA, sustentados por alguns integrantes desse partido291.

Um exemplo dessa unificação de correntes na UGAB é Stepan Soukiassian:

nascido em Marash em 1910, o imigrante que chegou ao Brasil em 1926 era quadro do

Hentchak em São Paulo, mas também participava da Sociedade Beneficente e Cultural

Marachá, bem como da União Geral Armênia de Beneficência292. Outro exemplo é Paren

Bazarian, irmão de Jacob – idealizador do jornal Ararat - a voz do povo armênio. Em 1949,

Paren Bazarian foi fichado pela Polícia Política por ser assinante do jornal editado pelo irmão

e na década de 1960, foi um dos fundadores da UGAB, sendo sua esposa, Regina Woskergian

Bazarian, presidente da entidade por dois mandatos293.

287 Data informada pelo website da UGAB Brasil, embora Sônia Maria de Freitas date de 1º de setembro de 1964 a fundação da entidade. FREITAS, S. (2001). op. cit., pp. 99-100. A UGAB no Brasil. Disponível em <http://www.ugab.com.br/historia_ugab_brasil.html>, acesso em 05/03/2012. 288 FREITAS, S. (2001). op. cit., pp. 99-100. 289 HEKIMIAN, K. (1990). op. cit., p. 97. 290 JORNAL DO IMIGRANTE. São Paulo: ano VII, nº 83, fevereiro de 1985, p. 12 (AHK). 291 KERIMIAN, N. (1998). op. cit., p. 252. 292 JORNAL DO IMIGRANTE. São Paulo: ano VII, nº 73, abril/maio de 1984, p. 8 (AHK). 293 Op. cit. Ano VII, nº 83, fevereiro de 1985, p. 12 (AHK).

Page 70: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

69

4.4.3 A Federação Revolucionária Armênia - FRA

A Federação dos Revolucionários Armênios nasceu da reunião de vários

movimentos revolucionários – como grupos ligados aos partidos Armenakan e Hentchakian –

em Tiflis – atual Tbilisi, na Geórgia, cidade mais importante para os armênios no Cáucaso294,

onde viviam cerca de 200 mil deles295 – no ano de 1890 por iniciativa de Christapor

Mikaelian e Simon Zavarian296. A luta pela independência está pautada no primeiro parágrafo

do manifesto inaugural da organização: “armênios, hoje, a Questão Armênia entra numa nova

fase. Após séculos de escravidão, a Armênia exige a sua Liberdade”297, embora Nicola

Migliorino afirme que tal pauta não estivesse posta nos primeiros momentos da FRA298.

Nesse manifesto, a FRA conclama todos os armênios para lutarem pelos seus direitos, seja

“jovem, velho, rico ou eclesiástico”, todos teriam um papel a desempenhar na missão

revolucionária que resultaria na independência da Armênia299.

A princípio, o Hentchak tomou parte na Federação, delegando à nova agremiação

a tarefa de conclamar as bases através do Droshak300, órgão do partido, enquanto o primeiro

ficaria responsável pelas formulações teóricas que modelariam a ação revolucionária301.

Contudo, um ano depois da fundação da FRA, o Hentchak rompeu com a agremiação, com o

argumento que uma ala nacionalista teria tomado o controle do partido, negligenciando o

socialismo e a justiça social. Após isso, a FRA foi reformulada – atendendo pela nova

denominação de Federação Revolucionária Armênia – pelas mãos dos dois fundadores, além

de Stepan Zorian – de codinome Rostom – em um programa de onze pontos, nos quais a

organização tomou de fato feições de um partido político e define o modus operandi da luta

“a propaganda, a educação revolucionária das massas, a autodefesa armada, o terrorismo, a

sabotagem, a execução dos funcionários do governo e dos delatores armênios”302. É nessa

reformulação que o partido definiu a forma descentralizada de ação, com comitês regionais

que se articularam nas diversas cidades com presença armênia substancial, que reportavam ao

bureau central em Tiflis e à redação do Droshak que a essa altura era mantida em Genebra,

Suíça, na mesma cidade onde o Hentchak foi fundado.

294 TERNON, Yves. (1982). “Le génocide de Turquie et la guerre (1914-1923). In: DEDEYAN, Gerard [org.]. Histoire des Arméniens. Paris: Privat, p. 506. 295 MINASSIAN, A. (1982). op. cit., p. 473. 296 TERNON, Y. (1996). op. cit., p. 95. 297 DROSHAG – Associação Cultural Armênia. São Paulo: Novembro de 1970, p. 1. Acervo de Simão Kermian. 298 MIGLIORINO, N. (2008). op. cit., p. 28. 299 DROSHAG, op. cit., p. 1; TERNON, Y. (1996). op. cit., p. 96. 300 “Bandeira”, em armênio. 301 TERNON, Y. (1996). op. cit., p. 96. 302 Idem.

Page 71: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

70

Com a divisão ocorrida no Hentchak em 1896, a FRA ganhou força na

mobilização dos armênios que tinham o partido socialista como referência303. A Federação

compareceu no 4º congresso da II Internacional Socialista – mesmo evento no qual houve a

cisão no partido adversário – como observadora, redefinindo a partir disso seu programa, cujo

modo de luta seria uma vasta insurreição revolucionária em todo o Império Otomano.

Ademais, a luta contra a opressão tsarista foi posta também como prioridade – ao lado da

derrubada do sultão otomano – conseguindo simpatizantes no Cáucaso. Tal definição foi

aprovada pelo III congresso da FRA em Sófia, Bulgária, em 1904304.

No IV Congresso da Federação – Viena, 1907 –, houve a opção pelo socialismo,

mas com o privilégio da Questão Nacional. Na mesma ocasião, a FRA decidiu se tornar

membro oficial da II Internacional, com violenta oposição dos bolchevistas russos, que

denunciaram a natureza burguesa e nacionalista do partido305. Yves Ternon pondera que tal

adesão da FRA foi uma manobra política para angariar o apoio da esquerda ocidental,

simpatizante com a Causa Armênia306.

Paralelamente a essas discussões, a FRA teve participação na revolução russa de

1905 e na revolução liberal persa em 1906307. A ação repressiva tsarista pós-1905 se abateu

sobre os armênios na forma da suspensão dos privilégios que os armênios gozavam no

Império Russo, como por exemplo, a autonomia da Igreja Apostólica Armênia308. Tal fato fez

com que tanto o clero quanto uma parte da elite armênia tivessem uma postura hostil à FRA, o

que era agravado pela pauta socialista – e por definição, anticlerical – cuja Federação flertava

desde o final do século XIX309. Ações como a de 26 de agosto de 1986, quando um grupo da

FRA liderado por Armen Karo tomou o Banco Otomano em Constantinopla ameaçando

explodir o prédio se a constituição de 1876 não fosse restaurada310, também eram polêmicas e

não contavam com grade apoio entre a população armênia, que temia uma retaliação furiosa

por parte do Estado otomano, ainda que tais atos contribuíssem para dar visibilidade mundial

à Questão Armênia.

303 TERNON, Y. (1996). op. cit., p. 156. 304 Ibid., pp. 156-157. 305 Ibid., p. 158. 306 Idem. Opinião compartilhada por Anahit Ter Minassian. MINASSIAN, A. (1982). op. cit., p. 477. 307 ALEM, J. (1961). op. cit., p. 98. 308 TERNON, Y. (1996). op. cit., p. 159. 309 MIGLIORINO, N. (2008). op. cit., p. 41; TERNON, Y. (1996). op. cit., p. 159. 310 MINASSIAN, A. (1982). op. cit., p. 472.

Page 72: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

71

Com a vitória dos Jovens Turcos e a derrubada do sultão Abdul-Hamid II em

1908, a constituição de 1876 foi retomada e a FRA – aliados dessa oposição turca311 –

abandonou as armas e partiu para a política parlamentar312, o que prejudicou uma resistência

mais consistente quando das investidas genocidas a partir de 1915, motivo de críticas agudas

por parte do Hentchak, a essa altura já reorganizado313. Mesmo assim, à revelia do bureau do

partido, alguns militantes continuaram mobilizados a fim de defender suas vilas e cidades314.

a) A República de 1918

Com a primeira fase da Revolução Russa em fevereiro de 1917, ascendeu ao

poder desse país um governo provisório simpático à Causa Armênia, que governou somente

até outubro do mesmo ano, quando a Revolução atingiu a sua segunda fase, na qual o

comunismo se consolidou como a ideologia política dominante315. Os bolcheviques, ao

contrário dos seus predecessores, não eram simpatizantes dos movimentos nacionais na

Transcaucásia – região de Geórgia, Armênia e Azerbaijão – que ainda em 1917 montou um

comitê transnacional a fim de barrar o avanço comunista na região. Tal comitê era composto

pela FRA, pelos mencheviques georgianos e pelo partido Mussavat do Azerbaijão316.

Os armênios russos se organizaram no Conselho Nacional Armênio (CNA),

composto por quinze membros, entre populistas, social-revolucionários, social-democratas,

mas com maioria de partidários da FRA. O CNA organizou um corpo de voluntários para

servir como exército, uma vez que com a Revolução Russa, as tropas que antes ocupavam o

Cáucaso e impediam o avanço dos turcos não existiam mais317. No início de 1918, com a

assinatura do Tratado de Brest-Litovsk entre Rússia e Turquia, as lideranças da Geórgia e

Azerbaijão – à revelia da FRA – declaram a independência da República Federativa

Democrática Transcaucasiana318. Contudo, a nova república não durou mais que alguns

poucos meses. No final de maio, a Geórgia se colocou sob proteção alemã e se declarou

independente, seguida pelo Azerbaijão, que fez o mesmo no dia 28 daquele mês. Isolado, o

CNA não teve alternativa senão acompanhar os vizinhos. Também em 28 de maio de 1918, o

311 Os documentos que selam a aliança entre a FRA e o Comitê União e Progresso estão disponíveis no website do Arquivo da Federação. <http://arfarchives.org/?p=680#more-680>, acesso em 12/03/2012. 312 TERNON, Y. (1996). op. cit., pp. 174-176. 313 MINASSIAN, A. (1982). op. cit., p. 480. 314 KATCHZNOUNI, Hovannes (1955). The Armenian Revolutionary Federation Has Nothing to Do Anymore. Nova York: Armenian Information Service, p. 4. 315 PASDERMADJIAN, Hrand (1986). Histoire de L’Arménie. Paris: Librarie Orientale H. Samuelian, 4ª ed, p. 416. 316 Ibid., p. 417; TERNON, Y. (1982). op. cit., p. 495. 317 TERNON, Y. (1982). op. cit., p. 495. 318 Ibid., pp. 497-498.

Page 73: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

72

Conselho declarou a

independência das províncias

armênias e a formação de um

governo nacional319.

A declaração de

independência em 28 de maio de

1918 é um dos capítulos mais

controversos da história dos

armênios e é motivo de

discussões entre grupos políticos

rivais por toda a diáspora. De

acordo com Yves Ternon, o país

não tinha condições de se tornar

independente e se manter sobre suas próprias pernas320. Em primeiro lugar, o CNA e a maior

parte da burguesia armênia estava em Tiflis, principal centro intelectual armênio321, que agora

era a capital da Geórgia independente. Baku, capital do Azerbaijão, era outra cidade vital para

os interesses dos homens de negócios armênios. Yerevan, que se tornou a capital da

República da Armênia, não era mais do que uma cidade rural e pouco povoada, com cerca de

30% da sua população composta por muçulmanos azeris. Em julho de 1918, sob pressão dos

georgianos, o CNA abandonou Tiflis e partiu para Yerevan, a fim de governar o país em seu

próprio território322.

O caótico cenário político era agravado pela gravíssima situação humanitária. A

população da Armênia era composta basicamente de refugiados do genocídio iniciado em

1915. Como se já não bastasse, a produção agrícola estava reduzida em 75% da sua

capacidade, o que acarretou uma grande fome entre a população. O cólera, o tifo e o inverno

rigoroso entre 1918 e 1919 foram outros fatores que colaboraram para a morte de 20% da

população armênia durante esses anos323. O caos foi amenizado graças à ajuda humanitária

vinda de entidades norte-americanas que fizeram doações de dinheiro, mantimentos, remédios

e enviaram médicos e enfermeiros para tratar os doentes. A radicalização do nacionalismo na

319 TERNON, Y. (1982). op. cit., p. 495. 320 Ibid., p. 499. 321 Segundo a historiadora Mary Matossian em “A vida no Estado armênio da URSS”, em O Estado de São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1970 (AHK). 322 TERNON, Y. (1982). op. cit., p. 506. 323 Ibid., p. 507.

Figura 9: Lenin (de pé) no congresso fundador da Terceira Internacional em 1919. No pano de fundo, é possível ver a frase "Viva a III Internacional" em armênio, o que revela a importância desse povo para os planos dos bolcheviques. Fonte: Lenin Internet Archive. Disponível em :<http://www.marxists.org/archive/lenin/photo/1919/002.htm>, acesso em 19/03/2012.

Page 74: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

73

Geórgia e Azerbaijão fazia com que os armênios que viviam nesses países deixassem-os e

emigrassem para a Armênia, o que agravava a situação crítica que a nova república vivia324.

A FRA, que já era a principal força política no país, se tornou ainda mais forte na

medida em que os populistas abandonaram o governo, deixando o caminho livre para a

Federação ocupar os quatro – num total de nove – principais ministérios de Estado, inclusive

tendo a prerrogativa de nomear o Primeiro Ministro325, cargo o qual por toda a duração da

República foi ocupado por um quadro desse partido.

A ascensão de Mustafá Kemal – Atatürk – na Turquia revigorou o nacionalismo

nesse país, que partiu para uma retomada de territórios controlados pelos Aliados e ocupados

pelos armênios ao final da I Guerra Mundial. Nesse sentido, a Cilícia – região historicamente

de forte presença armênia – foi ocupada pelas tropas kemalistas, causando a fuga de milhares

de armênios que tentavam retomar suas vidas após o genocídio. Tal campanha fortaleceu a

imagem de Kemal no país, que reclamava o direito de comandar a Turquia na cidade de

Ancara, em detrimento do governo vacilante em Constantinopla. Paralelamente a isso, Kemal

negociava com a Rússia bolchevique a consolidação das fronteiras entre os dois países, que

passava necessariamente pela questão dos territórios armênios que separavam as possessões

de Moscou e Ancara326.

Em 1919, os turcos avançaram sobre os territórios armênios recuperando as

regiões que hoje compõem as províncias orientais da República da Turquia e vitimando cerca

de 200 mil armênios. A essa altura, já havia sido organizado em Tiflis o Partido Comunista

Armênio – com cerca de três mil membros – que propunham a sovietização da Armênia, a fim

de manter a extensão territorial do país, que estava seriamente ameaçada pelo avanço das

tropas kemalistas. Entretanto, a FRA era totalmente contrária à ocupação soviética da

Armênia, mesmo com o aumento da pressão em 1920 e com a sovietização do Azerbaijão,

cuja capital abrigava um importante núcleo bolchevique que contava inclusive com armênios

em sua composição327.

O ímpeto da ofensiva turca aos territórios armênios surpreendeu a bolcheviques e

partidários da FRA, que se viram obrigados a negociar para não serem subjugados pelo

governo de Kemal Atatürk. Em novembro de 1920, assumiu o primeiro ministro Simon

Vratsian, que assinou em dezembro um tratado com a Turquia, abrindo mão dos territórios

que eram por direito da Armênia – de acordo com o Tratado de Sèvres – e reconhecendo as

324 TERNON, Y. (1982). op. cit., p. 509. 325 Ibid., p. 506. 326 Ibid., pp. 514-515. 327 Ibid., pp. 516-517.

Page 75: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

74

novas fronteiras328. Como se não bastasse esse duro golpe, foi iniciada por ordem de Josef

Stálin uma ofensiva contra a Armênia, com o intuito de derrubar o governo da FRA e

sovietizar o país, a exemplo do que havia acontecido com o vizinho Azerbaijão e aconteceria

meses mais tarde com a Geórgia. O fragilizado exército armênio se recusou a combater o

Exército Vermelho que avançava rapidamente sobre o território. Em dezembro de 1920,

lideranças da FRA iniciaram as negociações para a proclamação de uma república armênia

socialista e independente.

Um comitê revolucionário foi criado para cuidar dessa transição, composto por

cinco comunistas e dois membros da ala esquerdista da FRA. Todavia, a aliança entre as duas

forças políticas não durou muito tempo. Em 20 de dezembro de 1920, o Comitê aprovou que

as leis da República Socialista Federativa Soviética da Rússia seriam aplicáveis à Armênia329.

Tal medida foi seguida de um profundo processo de sovietização do país, que contou com a

perseguição da Federação Revolucionária Armênia, cuja resistência, em fevereiro de 1921,

conseguiu derrubar temporariamente o governo soviético e foi abafada pelo XI Exército,

vindo da Geórgia330. Os membros da Federação que conseguiram escapar da prisão e

fuzilamento se retiraram para a Pérsia – e depois se dirigiram para o Oriente Médio –,

deixando o caminho livre para Alexandre Miasnikian, que toma a frente da missão de

sovietizar o país, implantando a Nova Política Econômica – NEP331.

Em 1922, a Armênia passou a compor a Federação das Repúblicas Soviéticas da

Transcaucásia ao lado de Geórgia e Azerbaijão até 1936, quando uma nova constituição

soviética foi promulgada e cada um desses países se tornou uma República Socialista

Soviética, autônomas entre si332. Com a perda de territórios nos conflitos armênio-turcos e a

assinatura de um acordo entre bolcheviques e turcos que devolveu cerca de 25.000 km² e 27

mil habitantes da Armênia para a Turquia333, a RSS da Armênia se tornou a menor das quinze

repúblicas que compunham a URSS334, com 889 mil habitantes335. Apesar disso, a

sovietização impediu o avanço das tropas turcas e a consequente ocupação de toda a chamada

“Armênia Russa” pelos soldados de Ancara. Uma vez no bloco bolchevique, as preocupações

328 TERNON, Y. (1982). op. cit., p. 518. 329 Ibid., p. 519. 330 De acordo com Mary Matossian em “A vida no Estado armênio da URSS”, em O Estado de São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1970 (AHK); TERNON, Y. (1982). op. cit., p. 519. 331 TERNON, Y. (1982). op. cit., p. 519. 332 SAPSEZIAN, A. (2010). op. cit., p. 199. 333 TERNON, Y. (1982). op. cit., p. 519. 334 SAPSEZIAN, A. (2010). op. cit., p. 199. 335 MOURADIAN, Claire (1990). L’Arménie: de Staline à Gorbatchev – histoire d’une république soviétique. Paris: Ramsay, p. 305.

Page 76: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

75

territoriais se voltavam para dentro, em disputas com os vizinhos Geórgia e, principalmente,

Azerbaijão.

b) A FRA na diáspora

A sovietização da Armênia infligiu à FRA uma dupla derrota: primeiro, alijou o

partido do poder no país que governou praticamente sozinho por dois anos; e segundo,

transformou a Armênia independente – não obstante a gama de problemas que o país tinha –

numa nação sob tutela externa. A primeira experiência de um país livre e independente desde

a medieval dinastia dos Bagratidas336 foi derrotada junto com o projeto de nação da FRA.

Contudo, se a derrota na Armênia foi um duro golpe para as ações do partido no

país, foi também a oportunidade de reconstrução da entidade na diáspora e a manutenção de

seus projetos – agora fortemente carregados de uma pauta anticomunista – em diversos países.

Ou seja, a impossibilidade da vitória na Pátria-Mãe forçou o partido a optar pela diáspora337.

A FRA fez do Líbano, por exemplo, um de seus principais redutos. Operando na região desde

1901, a agremiação política mantinha um forte núcleo anticomunista na região desde 1920338,

formado por quadros que já se opunham aos bolchevistas desde o início da influência desses

no Cáucaso.

Foi também na diáspora que o partido estruturou suas ramificações, como a

Associação Armênia de Assistência339 – HOM, na sigla em armênio –, ala feminina da FRA

fundada em Boston, EUA, em 1910340; ou o braço esportivo Homenetmen – Istambul,

1918341; ou ainda a ala cultural denominada Hamazkayin – Cairo, Egito, 1928342. Através

dessas instituições, a FRA conseguiu inserção nas populações diaspóricas armênias por todo o

mundo e angariou a simpatia destas, tornando-se a principal força política armênia na

diáspora, a despeito da ODL e dos social-democratas Hentchakian. Em países como Líbano,

Síria, Rússia, Egito, França, EUA, Canadá, Argentina, Uruguai e Brasil, a FRA obteve o que

nunca possuiu no Império Otomano e na Armênia Russa: o apoio popular para suas ações. Em

alguns lugares, como no Líbano, a força política da FRA tomou tamanha dimensão que em

1934 os políticos libaneses disputavam o apoio da Federação nas eleições parlamentares que

336 PASDERMADJIAN, H. (1986). op. cit., p. 421. 337 MIGLIORINO, N. (2008). op. cit., p. 58. 338 Ibid., p. 56. 339 Hay Oqnutian Miut'yun, em armênio. 340 Ibid., p. 62. 341 Ibid., p. 65. 342 Ibid., p. 67.

Page 77: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

76

aconteceram naquele ano, pois sabiam que o partido tinha a capacidade de aglutinar um

grande número de armênios que votavam em bloco no candidato indicado pelos líderes343.

A influência da Federação Revolucionária Armênia chegava até mesmo à Igreja.

Nos anos 1930, a Igreja Apostólica Armênia com sede em Etchmiadzin, então uma cidade da

RSS da Armênia, foi reestruturada, embora o país estivesse sob a tutela da URSS. Dominada

pelo sentimento anticomunista, a FRA não era simpática à Igreja, pois temia que os clérigos

ligados à Etchmiadzin servissem como espiões do regime soviético e pudessem delatar as

ações da diáspora para os comunistas na Armênia. Frente a esse quadro, a FRA declarou

reconhecer no Patriarcado da Grande Casa da Cilícia – sediado em Antelias, Líbano – a chefia

da Igreja Apostólica Armênia e não em Etchmiadzin. A divisão chegou às últimas

consequências, com dois atentados a sacerdotes ligados à Santa Sé na Armênia, um nos EUA

em 1933 e outro em Damasco, Síria, em 1956344. A divisão dos dois patriarcados foi

oficializada em 1962 e em algumas comunidades, como em Toronto, Canadá, permanece até

hoje uma cisão clara entre as duas sedes, estando, por exemplo, a Igreja Apostólica Armênia

de Santa Maria – ligada ao patriarcado da Cilícia – localizada num complexo pertencente à

FRA e a Igreja Apostólica Armênia da Santíssima Trindade – que responde a Etchmiadzin –

instalada em uma área comum à filial da UGAB na cidade, entidade tradicionalmente ligada à

ODL.

O anticomunismo não estava restrito à política diaspórica. Durante a II Guerra

Mundial, os militantes da FRA em Paris declararam apoio à Alemanha Nazista345, pois ambos

tinham um inimigo comum: a URSS e, se a guerra fosse vencida pelo Eixo, poderia ser a

oportunidade para a Armênia reconquistar a sua independência. Muitos armênios chegaram a

integrar a Legião Armênia, voluntária na Wehrmacht – forças armadas alemãs durante o III

Reich – e lutaram ao lado de voluntários azeris, georgianos, russos, etc. contra os Aliados346.

Cabe ressaltar, entretanto, que não há vínculo institucional conhecido entre a Legião Armênia

e a FRA. A oposição ao comunismo soviético, aos demais partidos políticos diaspóricos

armênios, o flerte por parte de alguns membros com o Eixo durante a II Guerra Mundial e a

exacerbação do discurso nacional em negação à Armênia Soviética deram à FRA, aos olhos

de alguns críticos, contornos de um partido ultranacionalista que se aproximava da direita, à

revelia de sua origem marxista. No romance histórico “The Story of the Last Thought” do

343 MIGLIORINO, N. (2008). op. cit., p. 59. 344 SAPSEZIAN, A. (2010). op. cit., pp. 206-207. 345 ALEM, J. (1961). op. cit., p. 101. 346 JURADO, Carlos Caballero & LYLES, Kevin (1991). Foreign Volunteers of the Wehrmacht 1941-45. Londres: Osprey Publishing.

Page 78: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

77

escritor alemão Edgar Hilsenrath, há uma passagem na qual dois armênios discutem sobre

política e um apresenta os partidos ao outro, sendo o Hentchak indicado como a expressão

marxista dos armênios e a FRA como a voz do “nacionalismo radical armênio de direita”347.

Ainda, em uma das muitas discussões travadas nas páginas de publicações da coletividade

armênia em São Paulo, o Ararat critica duramente uma atitude de um dirigente da

agremiação, a qual o jornal classifica como “partido reacionário, cuja colaboração com os

nazistas durante a última guerra é sobejamente conhecida”348.

Em São Paulo, partidários e simpatizantes da FRA se organizaram em 1928 em

uma filial da Associação Cultural Armênia349, denominação pela qual o partido opera na

América do Sul350. Em 1929, a entidade organizou uma solenidade para comemorar o 11º

aniversário da República de 1918, além de eventos alusivos ao aniversário da FRA e a queda

da cidade de Hadjin, onde os armênios também montaram uma resistência contra as investidas

genocidas351.

Na década de 1940, houve uma profusão de entidades criadas para agregar

armênios e descendentes em um conjunto de ideias ou valores. Em 1941, é criada a Sociedade

Artística de Melodias Armênias (SAMA) por Arsen Mikaelian352, um emissário enviado pela

FRA ao Brasil a fim de fundar espaços na América do Sul onde os seus correligionários

pudessem se reunir e conviver dentro dos costumes ancestrais e, obviamente, compor com as

demais entidades do partido na diáspora uma rede de contatos e ações em prol das diretrizes

traçadas pelo comitê central. Até 1948, a entidade era sediada à Rua Paula Souza, não muito

distante das Ruas 25 de Março, Pajé e Santo André, reduto dos armênios àquela época353. As

principais atividades da SAMA estavam ligadas a projetos musicais, como a organização de

um coral – sob a regência do maestro Vahakn Minassian354 – e a produção de um programa

radiofônico homônimo aos domingos355.

Em 1947, a SAMA iniciou a publicação da “Revista Cultural Brasil-Armênia”, de

periodicidade mensal no início, mas com alguns números saindo de forma bimestral ou até

mesmo trimestral. Publicada em formato brochura, totalmente em português e com um

trabalho gráfico elaborado, a revista se preocupava nos primeiros números em deixar claro a

347 HILSENRATH, Edgar (1990). The Story of the Last Thought. Londres: Scribners, p. 249. 348 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 31, abril de 1949, p. 4. 349 A filial paulistana se chama Associação Cultural Armênia de São Paulo (na sigla, ACASP Ho.Hi.Ta-Tro). 350 MADOYAN, M. (2007). op. cit, p. 106. 351 KECHICHIAN, H. (2000). op. cit., pp. 98-99. 352 JORNAL DO IMIGRANTE. São Paulo: ano V, nº 58, janeiro/fevereiro de 1983, p. 18 (AHK). 353 FREITAS, S. (2001). op. cit., p. 99. 354 Cf. CONCERTO SINFÔNICO do Vahakn Minassian (1964). São Paulo: Centro Armênio (AHK). 355 REVISTA CULTURAL BRASIL-ARMÊNIA. São Paulo: maio-junho de 1957 (AHK).

Page 79: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

78

condição de armênios e brasileiros na qual todos os seus leitores estavam inseridos. Tal

discurso fica claro, por exemplo, ao analisarmos a capa do terceiro número da publicação, que

traz no layout do título uma composição com as imagens do Monte Ararat e do Pão de

Açúcar, símbolo de Armênia e Brasil, respectivamente, ainda que para muitos armênios da

coletividade armênia de São Paulo, o Pão de Açúcar nunca tenha sido visualizado ao vivo.

Abaixo do título, há a imagem do poeta brasileiro Castro Alves, seguidas no interior da

revista por poemas de sua autoria, bem como uma pequena biografia356. No mesmo número,

contudo, é possível ler também a biografia de um literato armênio, como uma forma de

contrapor Castro Alves a um autor armênio à altura357.

Além de servir como elo entre as culturas brasileira e armênia, a revista contava

com notícias sociais – reportando sobre nascimentos, falecimentos, casamentos, etc. –,

eventos como bailes e shows, textos extensos sobre a história da Armênia traduzidos para o

português e também colunas nas quais a política era o principal ponto de pauta. Era através

desses espaços que a FRA marcava sua posição antissoviética e travava uma batalha,

sobretudo com a União Armênia de São Paulo e alguns dos seus membros, que por meio de

seu boletim Verelk e do jornal Ararat – a voz do povo armênio defendiam e divulgavam a

prosperidade da Armênia sob a égide do comunismo. Tal postura da FRA poderia se exprimir

em textos traduzidos de lideranças do partido como Simon Vratsian. Em seu livro “Armênia e

a Questão Armênia”, cujos trechos foram traduzidos e publicados na revista, Vratsian discorre

sobre o governo soviético na Armênia – o qual alijou o próprio autor da presidência do país –

ressaltando que “a revolução bolchevista e a subsequente cooperação amistosa russo-turca,

foram de trágicos efeitos para a sorte da Armênia e da questão armênia”358. Também os

editores da revista escreviam seus textos de crítica ao comunismo. Nesse sentido, podemos

encontrar notícias de censura de intelectuais armênios na URSS, bem como a condenação do

programa de repatriamento de armênios para a Armênia Soviética359, ação essa que era

apoiada pela União Armênia de São Paulo.

A revista circulou de forma interrupta de 1947 até 1950, tendo suas atividades

paralisadas até 1957, quando o projeto foi retomado – com a periodicidade seriamente

comprometida – durando apenas até meados de 1958, quando foi interrompida de vez. A

interrupção da primeira fase da revista coincide com o fechamento da sede na Rua Paula

356 REVISTA CULTURAL BRASIL-ARMÊNIA. São Paulo: ano 1, nº 3, março de 1947, pp. 1-7 (AHK). 357 Ibid., p. 11. 358 REVISTA CULTURAL BRASIL-ARMÊNIA. São Paulo: ano 1, nº 7-8, julho/agosto de 1947, pp. 17-18 (AHK). 359 Op. cit., ano 2, nº 15, março de 1948, pp. 5-6 (AHK).

Page 80: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

79

Souza e a mudança para uma sede provisória no Centro Armênio, junto ao prédio da Igreja

Apostólica Armênia na região dos bairros do Bom Retiro e Luz. Em 1962, a SAMA comprou

um terreno de cerca de 7.000 m² nas proximidades do Parque do Ibirapuera360 – na zona sul de

São Paulo, não muito distante de entidades correlatas de sírios, libaneses e outras etnias

imigrantes, que por sua vez seguiam para regiões da cidade onde a elite paulistana estava

presente. Tal processo de locomoção corrobora a ideia de Clark Knowlton, que afirma que os

imigrantes quando enriquecem seguem as atitudes das elites tradicionais, como uma forma de

angariar prestígio social na sociedade receptora361.

Em 28 de dezembro de 1968, a nova sede da SAMA – a partir de então

consolidada como “Clube Armênio” – foi inaugurada no número 1450 da Avenida Prof.

Ascendino Reis, com a presença de diversas autoridades de instituições armênias do Brasil e

Argentina, além de vereadores, deputados e o prefeito da cidade de São Paulo, Faria Lima362.

Tais presenças demonstram que os armênios na década de 1960 já gozavam de amplo

prestígio social junto à sociedade paulistana, o que justificava a presença do prefeito que, em

discurso, fez menção ao sofrimento causado pelo genocídio e a contribuição que a fundação

do Clube daria no sentido de oferecer uma vida mais pacífica a um povo que tanto sofreu363.

A fundação da nova sede da SAMA-Clube Armênio foi seguida de uma intensa campanha de

associação de armênios por meio de aquisição de títulos da entidade, como uma forma de

angariar novos membros através da oferta de estrutura recreativa e esportiva ímpares na

coletividade armênia de São Paulo364.

Das ramificações da FRA, apenas a Associação Armênia de Assistência – HOM –

se estabeleceu tanto em São Paulo quanto em Osasco. A filial paulistana da ala feminina do

partido foi criada em 21 de janeiro de 1934 com o intuito de preservar a cultura e prover

assistência social aos que necessitam365. Nos primeiros anos de funcionamento, a HOM se

dedicou a auxiliar na manutenção do Externato José Bonifácio e anos mais tarde fundou uma

casa de repouso para os idosos da coletividade que necessitassem de abrigo e cuidados

especiais366. A ala esportiva Homenetmen nunca operou em São Paulo, provavelmente pelo

360 JORNAL DO IMIGRANTE. São Paulo: ano VII, nº 83, fevereiro de 1985, p. 10 (AHK). 361 KNOWLTON, C. (1960). op. cit., pp. 120-121. 362 JORNAL DO IMIGRANTE. São Paulo: ano VII, nº 83, fevereiro de 1985, p. 10 (AHK). 363 Idem. 364 Revista ARMÊNIA . São Paulo: ano II, nº 14, janeiro-fevereiro de 1969, pp. 14-17 (AHK). 365 FREITAS, S. (2001). op. cit., p. 99. 366 MADOYAN, M. (2007). op. cit., p. 107.

Page 81: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

80

fato da SAMA-Clube Armênio desempenhar a função para qual o braço esportivo da FRA

fora criado. O setor cultural – Hamazkayin – somente foi fundado em São Paulo em 2008367.

Não há registros nos arquivos da DEOPS/SP sobre o funcionamento de quaisquer

dessas entidades mencionadas acima, nem mesmo da ativa Federação Revolucionária

Armênia, cujas atividades eram de grande adesão dentro da coletividade armênia de São

Paulo e a denominação do partido, por si só, já seria capaz de despertar suspeitas nas

autoridades policiais entre os anos 1930 e 1960 – ainda que a agremiação estivesse

“disfarçada” de Associação Cultural Armênia de São Paulo. Por outro lado, a estrutura e o

funcionamento da União Armênia de São Paulo foram dissecados pela Polícia Política, que

via na entidade uma importante célula subversiva que operava no seio dos armênios na capital

paulista, ainda que a entidade fosse menor do que a instituição correlata da FRA e os seus

impressos – seja o Verelk ou o jornal Ararat – fossem de periodicidade menos regular e de

qualidade gráfica inferior à Revista Cultural Brasil-Armênia.

Tal constatação é sintomática do tipo de inimigo contra o qual a DEOPS/SP

lutava: os estrangeiros, mas principalmente aqueles que apresentavam pautas como o

anarquismo ou o comunismo como orientação de sua ação em São Paulo368. Nesse sentido, as

entidades de imigrantes que não se encaixavam nesse estereótipo funcionavam sem grandes

problemas com a Polícia Política, em muitos casos trabalhando junto com as autoridades

policiais no sentido de delação dos compatriotas envolvidos em atividades tidas como

subversivas369.

Nos capítulos seguintes, veremos como a Delegacia Especializada de Ordem

Política e Social de São Paulo funcionava e qual era o perfil das entidades e pessoas que a

Polícia Política tinha como perigosas para a ordem estabelecida na sociedade paulistana e

brasileira.

367 Disponível em <http://www.armenia.com.br/Hamazkayn/HAMAZKAYN.htm>, acesso em 14/03/2012. 368 Ainda que durante a II Guerra Mundial os fascistas também tenham se tornado alvo da Polícia Política. 369 Como no caso do consulado lituano em São Paulo que delatava à DEOPS/SP os imigrantes que estavam envolvidos em atividades comunistas. ZEN, E. (2010). op. cit., p. 79.

Page 82: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

81

CAPÍTULO III - O comunismo armênio em São Paulo e a vigilância da DEOPS/SP

Não é possível falar em um partido ou agremiação política oficialmente comunista

fundada por armênios no país, como acontece com outras tendências políticas armênias ou

com comunistas oriundos de outros países. O que existiu no Brasil, mais especificamente em

São Paulo, foram ações de alguns armênios e descendentes em apoio e exaltação do

comunismo e à Armênia Soviética, que a partir da década de 1920 se tornou parte integrante

da URSS.

Este capítulo tem por finalidade compreender justamente o movimento desses

armênios entusiastas do comunismo em São Paulo, elencando os principais nomes e as

principais iniciativas nesse sentido. Evidentemente, tal ação não passou despercebida nem

pela coletividade armênia, muito menos pelo Estado, por meio de seu braço repressor e

vigilante que tinha em São Paulo, na Delegacia Estadual de Ordem Política e Social –

DEOPS/SP, a Polícia Política –, a sua principal expressão. Portanto, nas páginas seguintes,

discorreremos também acerca da vigilância da DEOPS/SP sobre os armênios em São Paulo e

de como estes agiam na cidade e no estado, apesar do cerco fechado pela repressão estatal.

São justamente os documentos produzidos pela DEOPS/SP no exercício de suas

funções de vigilância e repressão dos “elementos nocivos” à ordem estabelecida as principais

fontes de pesquisa para recontarmos essa história. Os prontuários criados pela Polícia Política

para identificar todos aqueles que atentassem contra a ordem são documentos riquíssimos

para mergulharmos no mundo daqueles que, de diferentes maneiras, lutavam por uma

sociedade diferente da que existia. Contudo, sempre que possível, as informações dos

prontuários serão cruzadas com outros materiais como periódicos da coletividade ou livros e

artigos, a fim de enriquecer a análise.

Entretanto, antes de começarmos a destrinchar o perfil das principais personagens

do comunismo armênio em São Paulo, vamos nos concentrar no propósito da criação e

funcionamento da DEOPS/SP para compreendermos o contexto da vigilância sobre os

armênios em São Paulo e entender o que a Polícia Política rotulava de “comunismo” na ação

desta coletividade de imigrantes entre os anos de 1930-1960.

4.1 O funcionamento da DEOPS/SP e o projeto autoritário em vigor no período

Page 83: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

82

A Delegacia Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo foi criada pela lei

nº 2.034 de 30 de dezembro de 1924370 e teve diferentes denominações ao longo dos anos, de

acordo com as mudanças administrativas que eram feitas a fim de aperfeiçoar o trabalho desta

repartição371. Apesar da mudança constante de nomes e siglas, a função principal da

Delegacia se manteve a mesma durante os anos de 1930-1960:

(...) a prevenção e repressão das infrações que atentavam contra a existência da política e da República; contra a Constituição da República; forma de seu governo e contra a atual organização social; contra a segurança interna da República; sedição e ajuntamento ilícito; contra a segurança dos meios de transportes ou comunicação e das sociedades secretas e contra fraudes eleitorais. Eram também atribuições da Delegacia o processo de entrada de estrangeiros no território nacional (...); a organização das estatísticas operárias pelos métodos mais adequados; a fiscalização e observação do trabalho e da movimentação operária e as decorrentes das leis e decretos em vigor; a preservação e repressão ao anarquismo e demais doutrinas de subversão social372.

Ou seja, as atribuições do DEOPS/SP eram claramente as de uma Polícia Política, que sob a

lógica da suspeição, combatia as ideologias tidas como exóticas, trazidas ao Brasil pelos

estrangeiros que aqui aportavam373, sendo o comunismo a principal ameaça de desagregação

da sociedade brasileira. O historiador Rodrigo Patto Sá Motta chama a atenção para o fato de

que embora não tenha sido somente o anticomunismo a causa da criação das Polícias Políticas

pelo Brasil, foi o combate a tal ideologia a “principal razão de ser” destas repartições374,

nascidas a reboque dos movimentos tenentistas e operários que ocorreram durante a primeira

metade da década de 1920, principalmente os acontecimentos em São Paulo em 1924375.

A ação da Polícia Política era altamente invasiva e autoritária. Ao menor indício

ou suspeita de crime político, os agentes públicos vigiavam e perseguiam o suspeito, além de

invadir residências e outros estabelecimentos em busca de tudo que servisse como prova de

subversão da ordem por aquele indivíduo nocivo ao projeto de nação levado a cabo por

Getúlio Vargas em 1930376. Fotografias, cartas, livros, jornais, revistas e qualquer tipo de

material “suspeito” era filtrado e recolhido pelos policiais e anexados aos prontuários pessoais

e dossiês dos investigados. A esses prontuários, eram anexados os pareceres dos

370 PESTANA, José César (1955). Manual de Organização Policial do Estado de São Paulo. São Paulo: Escola Paulista de Polícia de São Paulo, p. 188. 371 Para todas as denominações da DEOPS/SP, cf. AQUINO, M. (2001). op. cit., p. 19. 372 Decreto n. 4715, de 23 de abril de 1930, Art. 92 e 94 apud: PEDROSO, R. (2005). op. cit., pp. 113-114. 373 DIETRICH, A. (2007). op. cit., p. 34. 374 MOTTA, Rodrigo Patto Sá (2010). “Comunismo e anticomunismo sob o olhar da polícia política” In: Locus: revista de história. Juiz de Fora: Edufjf, v. 30, nº 1, p. 21. 375 PINHEIRO, P. (1992). op. cit., p. 110. 376 A DEOPS/SP foi criada em 1924, mas foi aperfeiçoada e ganhou novas atribuições principalmente após 1930 com a ascensão de Vargas. De modo geral, não houve profundas rupturas na ação repressiva da polícia ou do Judiciário entre a Primeira República e o governo Vargas, mas sim uma otimização de suas funções nesse sentido. Ibid., p. 127.

Page 84: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

83

investigadores, os avanços e alterações do processo em questão e outros documentos

relevantes que, por ventura, mudassem o rumo das investigações, quase sempre, em

detrimento dos interesses do réu.

Um bom exemplo deste tipo de apreensão que tem como finalidade provar a

infração do investigado é o caso do sapateiro Agop Boyadjian. Preso em 1949 juntamente

com Levon Yacubian ao irem aos correios retirar uma correspondência suspeita, Boyadjian

teve sua residência vasculhada por agentes da Polícia Política. Diante das evidências

recolhidas com os acusados, o delegado adjunto Thomas Palma Rocha, responsável pelo

Serviço Especial de Vigilância, definiu o material como “copioso e convincente de suas

atividades comunistas”, tendo a polícia o poder de zelar pela “defesa e soberania

nacionais”377. Entretanto, a análise feita pelo Juiz de Direito Manoel Itagiba Porto não

convergiu com a opinião do delegado adjunto. O magistrado afirmou que “tudo quanto se

apurou não passa de mera presunção”, acolhendo a argumentação do advogado de defesa,

para quem tudo não passava de “medismo da Polícia Política da capital”378.

Ana Maria Dietrich destaca que, muitas vezes, os investigadores iam atrás de

documentos que encaixam nos rótulos criados a priori pelo Estado. Os agentes da repressão

interpretavam as leis de acordo com as suas convicções, muitas vezes ignorando ordens da

Justiça, o que deixava os cidadãos a mercê dos interesses das autoridades policiais379. O

jornalista Levon Yacubian foi um dos alvos dessas arbitrariedades da Polícia Política. Quando

da ocasião de sua prisão em 1949, o jornalista foi mandado para a Casa de Detenção, onde

ficou preso de meados daquele ano até o início de 1950, mesmo tendo sido absolvido em

outubro de 1949 pelo juiz supracitado380. Um abaixo-assinado foi organizado pelos estudantes

da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo – onde Yacubian

estudava – protestando contra a atitude do então Departamento de Ordem Política e Social de

São Paulo que mantinha o colega detido ilegalmente381. O caso foi divulgado pelos números

37-38 do jornal “Ararat – a voz do povo armênio” de outubro-novembro de 1949, que

manchetava a absolvição de Yacubian e Boyadjian, bem como noticiava o abaixo-assinado

realizado pelos colegas do jornalista e afirmava ainda que coletividades armênias no exterior

também se manifestavam contra a manutenção da prisão do compatriota. O jornal define a

atitude policial como

377 Pront. 46.273 – Agop Boyadjian. 378 Idem. 379 DIETRICH, A. (2007). op. cit., p. 38. 380 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 381 Idem.

Page 85: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

84

(...) das mais arbitrárias, porquanto é inconcebível que, alguém apesar de absolvido, continue preso. Erradamente em princípio, desrespeitando a constituição de 46, espezinhando o Poder Judiciário, desprezando o mais elementar direito humano, a polícia só tem a perder, porque desmoraliza-se á medida que comete monstruosidades desta espécie382.

Essa atitude da polícia, que se coloca acima da justiça e da própria constituição

nacional, estava inserida na lógica de constantes atropelos à legalidade, que vem de longa

data, passando pela revolução de 1930. As forças armadas, principalmente o exército, se

colocavam no papel de árbitro da política nacional desde a proclamação da república em

1889383. Entre a renúncia de Washington Luís e a posse de Getúlio Vargas em três de

novembro de 1930, uma junta militar assumiu o poder e justificou a intervenção como uma

maneira de evitar o derramamento de sangue do povo brasileiro384. Ainda antes da posse de

Vargas, a mesma junta emitiu um manifesto em 27 de outubro de 1930 alertando a população

para os elementos perigosos e nocivos à ordem social385, mostrando assim que o medo do

“perigo vermelho” já estava presente no Brasil mesmo antes da criação da Aliança Nacional

Libertadora, dos levantes de 1935386.

Nesse contexto, em 1934, as Polícias Políticas de todo o país foram colocadas

sobre jurisdição do executivo, por meio da direção centralizada na Chefia de Polícia do

Distrito Federal, que passou a comandar diretamente as ações policiais em todo o país, à

revelia do Ministério da Justiça387. A vinculação da Polícia Política ao executivo tinha como

finalidade, além do controle direto do presidente e governadores sobre as DEOPS, a utilização

das ações de repressão e desarticulação de movimentos suspeitos como formas de propaganda

política do governo, que mostrava à população como as autoridades estariam combatendo o

perigoso inimigo comunista e outras ideologias “alienígenas” e perigosas à sociedade388.

Se as ações da Polícia Política estavam subordinadas às autoridades políticas,

fazendo dos próprios a “encarnação da lei”, nas palavras de Dietrich389, por vezes os agentes

da ordem pública eram chamados a intermediar relações pessoais, que pouco ou nada tinham

a ver com crimes políticos, mas que eram delatados enquanto tais pela população, justamente

por reconhecerem na DEOPS essa instituição capaz de regular várias instâncias da vida social.

382 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 37-38, outubro-novembro de 1949, p. 1. 383 SKIDMORE, Thomas (1969). Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). Rio de Janeiro: Saga, 2ª ed., p. 25. 384 Idem. 385 Ibid., p. 29. 386 SILVA, Carla Luciana (2001). Onda Vermelha: imaginários anticomunistas brasileiros (1931-1934). Porto Alegre: Edipucrs, Coleção História, 41, pp. 48-50. 387 ZEN, E. (2010). op. cit., p. 57. 388 Ibid., p. 58. 389 DIETRICH, A. (2007). op. cit., p. 42.

Page 86: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

85

A política de delação incentivada pelas autoridades permitia que muitos indivíduos

denunciassem vizinhos, conhecidos ou colegas de trabalho como perigosos e subversivos,

quando na verdade, o que estava por trás das denúncias eram desavenças pessoais em

diferentes graus390.

O já citado Agop Boyadjian nos fornece outro exemplo de delação cujas

motivações políticas não ficaram suficientemente provadas. Em 13 de agosto de 1942,

Boyadjian denunciou para a Polícia Política o dentista e maestro da comunidade armênia

Vahakn – ou Wahakn – Minassian por ser simpático ao nazismo e comemorar o afundamento

de navios brasileiros por submarinos do Eixo391. Segundo a denúncia de Boyadjian, Minassian

seria nazista e dava banquetes em Santo Amaro para regozijar-se das baixas brasileiras ante a

ofensiva alemã392. Preso para averiguação no dia 21 de agosto de 1942, o maestro passou

treze dias detido sem ser ouvido pelas autoridades, tendo apenas contra ele uma acusação feita

por um compatriota sem embasamento de qualquer tipo. Em junho de 1943, quase um ano

após os acontecimentos, Minassian compareceu à delegacia para ser interrogado pelo

delegado. Na ocasião, Minassian declarou não conhecer seu acusador pessoalmente e

desconhecer qualquer tipo de motivação que tenha levado Boyadjian a fazer tal denúncia. O

dentista aproveitou o ensejo para pedir uma acareação com Boyadjian, a fim de esclarecer os

fatos. As testemunhas ouvidas depuseram no sentido de confirmar que tudo não passava de

boatos infundados. Assim, a autoridade competente julgou as denúncias “sem fundamento” e

arquivou o processo393.

Não é possível, com base na documentação dos prontuários, compreender o

porquê da acusação de Boyadjian. Diante dos fatos apresentados, não há elementos suficientes

para concluir que a delação do sapateiro e a detenção de Minassian tivesse algo de político ou

que atentasse contra a sociedade brasileira, o que justificaria, na ótica da repressão, a ação.

Mesmo sem provas e baseado apenas na palavra de um cidadão que já tinha antecedentes

criminais – Agop Boyadjian foi preso em 1940 por porte ilegal de armas394 – a Polícia Política

não hesitou em deter Minassian e mantê-lo na prisão por quase duas semanas. O caso

exemplifica como bastava pouco para que um cidadão fosse arrancado do seu lar e colocado

390 ZEN, E. (2010). op. cit., p. 61. 391 Pront. 17.834 – Wahakn Minassian. Minassian possui outro prontuário na DEOPS, com o nome grafado como “Vahakn”. Nesse prontuário, consta apenas um pedido do dentista e maestro para obtenção de passaporte a fim de viajar para a Argentina em 1946 (Pront. 66.154 – Vahakn Minassian). Talvez ao ter fornecido o nome grafado de outra forma, o maestro e dentista teve outra ficha aberta e o registro antigo, onde constava a sua passagem anterior pela polícia, não veio à tona. 392 Pront. 17.834 – Wahakn Minassian. 393 Idem. 394 Pront. 46.273 – Agop Boyadjian.

Page 87: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

86

atrás das grades e mantido lá, desrespeitando todos os princípios democráticos em nome da

segurança nacional.

Se ampliarmos o nosso olhar para outras fontes de pesquisa externas aos

prontuários da DEOPS/SP, podemos achar algumas pistas que indiquem uma provável

motivação para a contenda. Vahakn Minassian era um homem público e bem conhecido na

coletividade armênia em São Paulo. Nascido em Erzerum em 1905395, Minassian viveu em

Constantinopla até 1919, sob a tutela do patriarcado armênio da cidade, onde estudou até

1922, quando se viu obrigado a ir para Paris, fugindo das perseguições contra os armênios na

Turquia396. Após anos estudando música na Turquia e na França, Minassian se muda para o

Brasil em 1927, onde estuda odontologia, mas sem nunca abandonar a música397. Nos

primeiros anos da década de 1940, quando da fundação da União da Mocidade Armênia, no

que viria a se tornar a Sociedade Artística de Melodias Armênias – SAMA –, Minassian

organiza um coral e se torna o maestro do grupo, encontrando assim um local onde pode

expressar as suas habilidades musicais em consonância com a cultura armênia398.

Conforme vimos no capítulo anterior, a SAMA, onde o maestro organizou um

coral e foi entusiasta de primeira hora, era um braço da FRA em São Paulo. No programa do

Concentro Sinfônico do maestro Vahakn Minassian, em razão da estréia do músico em uma

apresentação aberta ao público armênio e à crítica especializada399, é possível ler várias

resenhas sobre apresentações anteriores de Minassian, inclusive em festividades ligadas à

FRA, como o 70º aniversário da agremiação política, ou ainda a comemoração à primeira

independência da Armênia, em 28 de maio de 1918400. É sintomático que o maestro Vahakn

Minassian, em 1961, de acordo com a resenha contida no programa do Concerto Sinfônico,

tenha participado das festividades, inclusive executando o “Mer Hairenik” – Nossa Pátria-

Mãe – que era o hino nacional da república de 1918-1920401. Com a anexação da Armênia

pela URSS, os símbolos nacionais existentes até então, como a bandeira tricolor, o brasão de

armas e o hino nacional foram substituídos por outros coerentes com a nova realidade da

Armênia. Assim, o Mer Hairenik continuou a ser executado apenas pelos partidários da FRA,

que não reconheciam a Armênia Soviética enquanto a expressão pátria dos armênios no

mundo, mas sim mais um dos muitos jugos sob os quais o povo armênio esteve submetido ao

395 VARTANIAN, Y. (1948). op. cit., p. 267. 396 CONCERTO SINFÔNICO do Vahakn Minassian (1964). São Paulo: Centro Armênio, p. 31 (AHK). 397 Idem. 398 Ibid., p. 34. 399 Ibid., p. 2. 400 Ibid., pp. 30-31. 401 Ibid., p. 30.

Page 88: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

87

longo da história. Em suma, o registro de que o maestro Vahakn Minassian executou a canção

na década de 1960 comprova o alinhamento ideológico que este tinha com a FRA.

Vimos ainda no capítulo anterior que alguns partidários da Federação

Revolucionária Armênia se aproximaram do Eixo durante a II Guerra Mundial, por

acreditarem que uma vitória deste grupo contra os Aliados colocaria um fim à URSS e

libertaria a Armênia da opressão soviética. Não sabemos em que medida este apoio

reverberou entre os integrantes da FRA em São Paulo, muito menos temos elementos para

afirmar que o maestro seria um dos entusiastas desta postura. Contudo, num exercício de

conjectura, o apoio de uma parcela da FRA aos países do Eixo, contra o inimigo em comum

que era a URSS, poderia ter sido facilmente associado a um apoio strictu sensu ao nazismo do

III Reich, ainda mais em um cenário de radicalização das posições políticas durante uma

guerra mundial e em um período que muitas organizações políticas armênias viviam o seu

apogeu no Brasil.

É curioso notar que o prontuário de Minassian não recebeu o rótulo “nazismo” por

parte dos agentes da Polícia Política, como era praxe da prática policial, talvez pelo fato da

associação do maestro com tal ideologia não ter sido comprovada402. Era o comunismo o

principal inimigo da Polícia Política e do Estado a partir da revolução de 1930. Embora a

historiadora Carla Luciana Silva chame a atenção para que o anticomunismo estivesse

presente no Brasil em diferentes momentos da história403, não sendo inaugurado, portanto,

com os levantes de 1935, foi a partir dos anos 1930 que este perigo se tornou mais concreto,

devido à maior organização do PCB404. Citando Paulo Sérgio Pinheiro, a autora argumenta

que já em 1934, havia uma movimentação das forças armadas a fim de limitar os direitos

constitucionais com base no “perigo vermelho”405. Antes ainda do lançamento da Aliança

Nacional Libertadora em 30 de março de 1935, quando Luiz Carlos Prestes foi aclamado

como presidente de honra da organização406, já transitava na Câmara dos Deputados um

projeto de Lei de Segurança Nacional para cercear as liberdades individuais407.

Contudo, as organizações de direita de viés autoritário também foram alvos da

Polícia Política, principalmente depois do putsch integralista em 1938 e a entrada do Brasil na

II Guerra Mundial em 1942, ao lado dos aliados, contra a Alemanha Nazista e os países do 402 De todos os prontuários de armênios que localizamos no Fundo DEOPS/SP do APESP, não consta nenhum tipo de atividade além do “comunismo”, excetuando, é claro, aqueles que não têm nenhum tipo de atividade vinculada aos seus prontuários. 403 SILVA, C. (2001). op. cit., p. 15. 404 Ibid., p. 48. 405 Ibid., p. 50. 406 VIANNA, M. (2007). op. cit., p. 81. 407 SILVA, C. (2001). op. cit., p. 50.

Page 89: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

88

Eixo. Os integralistas, principalmente por meio da Ação Integralista Brasileira – AIB –

fundada em 1932, foram aliados valiosos do Governo Vargas, principalmente na montagem e

implantação do Estado Novo em 1937408. Contudo, após a ilegalidade dos partidos políticos

em 1938 e as divergências entre integralistas e Getúlio Vargas por mais espaço no governo,

uma ala da AIB tentou tomar o Palácio Guanabara, sede do governo federal409. Até então, os

jornais e publicações integralistas circulavam sem problemas pelo país, garantidos pelos

poderes locais, conservadores e católicos por tradição, de acordo com Maria Luiza Tucci

Carneiro410. Os nazistas foram tolerados pelo governo Vargas, servindo inclusive como

exemplo e inspiração para as práticas de eugenia levadas a cabo após a implantação do Estado

Novo411. A partir de 1938, algumas medidas como a nacionalização da educação e a

obrigatoriedade do ensino em língua portuguesa começaram a restringir a ação dos imigrantes

alemães412. O cenário mudou definitivamente em 1942, com a entrada do Brasil na II Guerra

Mundial, quando os alemães passaram a ser vigiados pela Polícia Política e sujeitos às

mesmas práticas que a repressão utilizava para calar os que eram tidos como militantes de

esquerda413.

Portanto, é perfeitamente compreensível que Boyadjian, ao denunciar um

compatriota por supostamente comemorar o afundamento de navios brasileiros por

submarinos alemães, desencadeasse por parte da Polícia Política uma investigação sobre o

fato. Contudo, ainda que houvesse a disposição da DEOPS/SP para vigiar as ações da direita,

era a subversão de esquerda o principal alvo das autoridades. Isso se torna claro ao lermos,

por exemplo, o Manual de Organização Policial do Estado de São Paulo, escrito por José

César Pestana e publicado em 1955, como um material didático para a formação de policiais

no estado414. Pestana descreve da seguinte forma as atribuições do serviço secreto da Polícia:

“tem a árdua missão de descobrir os planos de agitação ou de revolução de organizações que

visem, por meio violento, a mudança do atual regime social e político [...] sua atividade mais

importante é o combate ao Partido Comunista”415. Para Rodrigo Patto Sá Motta, este tipo de

408 MAIO, Marcos Chor & CYTRYNOWICZ, Roney (2007). “Ação Integralista Brasileira: um movimento fascista no Brasil (1932-1938)”. In: FERREIRA, Jorge. & DELGADO, Lucília. O Brasil Republicano. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2ª ed., pp. 47-48. 409 Ibid., p. 48. 410 CARNEIRO, M. (2003). op. cit., p. 25. 411 DIETRICH, A. (2007). op. cit., pp. 55-56. 412 Ibid., p. 57. 413 Ibid., p. 61. 414 PESTANA, J. (1955). op. cit., p. 3. 415 Ibid., p. 207.

Page 90: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

89

publicação, embora disfarçado de material didático para a formação de policiais, eram

verdadeiros “tratados de combate ao comunismo”416.

Destarte, voltaremos as atenções a partir de agora justamente para a ação da

DEOPS/SP de repressão aos armênios em São Paulo, que segundo a Polícia Política, estava

ligada ao comunismo.

4.2 As primeiras incursões da DEOPS/SP sobre o comunismo dos armênios em São

Paulo

Entre os dias 23 e 27 de novembro de 1935, eclodiram em guarnições militares de

Natal, Recife e Rio de Janeiro os levantes que ficaram conhecidos pejorativamente como a

“Intentona Comunista”. Organizadas pelo PCB, as ações de 1935 foram pensadas para

aproveitar o momento propício para a revolução no Brasil, de acordo com a análise que a

Internacional Comunista fazia do país, baseada nas revoltas tenentistas na primeira metade da

década de 1920, especialmente em São Paulo417. Tais acontecimentos, juntamente com a

Coluna Prestes, seriam para a IC a centelha do movimento revolucionário brasileiro, já que na

América Latina, segundo a leitura da Internacional, era o exército o elemento mais

revolucionário418.

Contudo, se 1935 era o momento ideal para a revolução, segundo a análise da IC,

os acontecimentos decorrentes dos levantes não comprovaram na prática o que a instância

máxima do comunismo mundial havia teorizado. O fracasso da ação mostrou a deficiência de

uma estratégia que priorizava a mobilização das forças armadas e negligenciava a

participação popular, segundo Paulo Sérgio Pinheiro419. Aproveitando o ensejo dado pelos

levantes, o governo Vargas incutiu o pânico na população brasileira via imprensa,

denunciando o plano moscovita de dominação do Brasil e enrijecendo a vigilância e a

repressão aos suspeitos de subversão420.

416 MOTTA, R. (2010). op. cit., p. 22. 417 PINHEIRO, P. (1992). op. cit., pp. 76-77. 418 Ibid., pp. 185-187. Embora Marly de Almeida Vianna acredite que os levantes de 1915 foram fundamentados na tradição golpista e autoritária de uma parcela do Exército, tendo como causas principais os fatores internos de insatisfação dos militares, principalmente do Exército, ao invés de uma motivação comunista orientada pelo PCB e pela Internacional Comunista. VIANNA, M. (2007). op. cit., pp. 80 e 84. 419 PINHEIRO, P. (1992). op. cit., p. 308. 420 Ibid., p. 319.

Page 91: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

90

Esse é o contexto da investigação de Nazareth Avedikian421, primeiro armênio

fichado por “comunismo” que pudemos encontrar no Fundo DEOPS/SP. Nascido na cidade

de Marash em 1907, Avedikian tem a sua primeira alteração registrada em seu prontuário em

09 de dezembro de 1935422, quando o país ainda tentava compreender o que teria acontecido

nos quartéis do Brasil durante os Levantes. Na ocasião, a autoridade responsável relata que foi

procurada pelos cidadãos José Pela, Lucinda Sabuja e Efigina Ketejam, que relataram que

eram vizinhos de Nazareth Avedikian, professor da Escola Armênia do bairro, e que este

participava de reuniões de caráter comunista. Nessas oportunidades, havia a presença de um

padre armênio de nome desconhecido, também partidário do credo de Moscou423. A denúncia

afirmou que a escola onde o professor Avedikian lecionava obrigaria os estudantes a usarem

uma faixa vermelha, simbolizando assim o Partido Comunista. Relatava ainda que, no

aniversário da Revolução Russa, grandes festas em homenagem a Lênin e outros líderes

soviéticos seriam promovidas e aqueles que não participassem das comemorações seriam

maltratados e agredidos, sob dizeres que anunciavam “o triunfo do Partido Vermelho424”.

No dia seguinte, o investigador João Telles de Souza apurou as denúncias. Em

relatório enviado ao delegado de Ordem Social, o investigador ratificou as acusações dos três

indivíduos que deram parte à Polícia Política. Souza credita a ação violenta e subversiva a um

grupo de armênios chefiados por Panos Kapugian425, morador do bairro do Chora Menino,

que por meio da violência angariava apoio às ideias comunistas426. Com base nas suas

incursões, o investigador afirmou que o professor Nazareth Avedikian de fato obrigava seus

alunos a usarem a faixa vermelha alusiva à Revolução Russa e as pessoas que viviam na

região tremulavam bandeiras da mesma cor, também em apoio aos ideais comunistas. Além

disso, há o relato do assalto à carrocinha de leite, narrado no começo deste trabalho, no qual

consta que indivíduos estrangeiros – sem definir de qual nacionalidade seriam – teriam

tomado a mercadoria de um leiteiro, justificando a ação pela chegada da revolução

comunista427. Não está explícito no relatório como o investigador teria chegado à conclusão

que estes “indivíduos estrangeiros” seriam armênios e muito menos, das motivações

revolucionárias do crime.

421 Pront. 3.125 – Nazareth Avedikian 422 Idem. 423 Idem. É possível encontrarmos entre os prontuários de armênios no Fundo DEOPS/SP o registro do padre Yesnig Vartanian (Pront. 98.399), que consta como assinante do Ararat. Todavia, não temos como afirmar categoricamente que Vartanian seja o sacerdote que comparecia às reuniões. 424 Pront. 3.125 – Nazareth Avedikian. 425 Curiosamente, não encontramos nenhum prontuário para esse indivíduo. 426 Pront. 3.125 – Nazareth Avedikian. 427 Idem.

Page 92: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

91

Dois dias depois, o professor investigado compareceu à Delegacia de Ordem

Social a fim de prestar esclarecimentos sobre as denúncias. Entretanto, no seu prontuário, há

apenas a confirmação de Avedikian que lecionava na Escola Armênia situada na Rua Benta

Pereira nº 50 – a poucas quadras da Rua Ararimã, onde morava – e que a instituição de ensino

era totalmente legalizada e funcionava de acordo com os requisitos do Estado428.

As informações contidas no prontuário de Avedikian não são esclarecedoras. Não

existe um interrogatório ou registros de prisão do acusado. Sendo assim, torna-se difícil

compreender se as acusações de fato procedem e se havia um entusiasmo pelo comunismo nas

vizinhanças dos bairros Imirim e Chora Menino, na zona norte paulistana. Tampouco é

possível averiguar se os estudantes da Escola Armênia em questão usavam faixas e portavam

bandeiras vermelhas em festividades relacionadas às lideranças soviéticas. Concretamente,

temos somente as acusações dos três cidadãos – sobre o quais também os documentos

contidos no Fundo DEOPS/SP não fornecem maiores informações – e a confirmação do

investigador, cujos métodos para averiguação das denúncias não são claros e, portanto, pouco

confiáveis para os nossos propósitos.

A última informação acrescida no prontuário de Avedikian é uma cópia da lista de

assinantes do jornal “Ararat – a voz do povo armênio”, sobre o qual pormenorizadamente

falaremos mais tarde. Essa lista foi confiscada em 1949 – ou seja, catorze anos depois das

denúncias contra o professor – no contexto de repressão à imprensa tida como subversiva e

anexada ao prontuário de cada um dos que assinavam o periódico. Mas também não houve

uma investigação decorrente desta apreensão.

Contudo, no compêndio de documentos e informações que constitui o trabalho

“Massacre de armênios”, de Nubar Kerimian429, encontramos uma pequena biografia do

professor, narrada por ele mesmo ao autor em 1985. Nessa narrativa, Nazareth Avedikian

conta como sobreviveu ao genocídio, apesar da morte de seus pais e irmãos. Logo em seguida

à menção da chegada do professor ao Brasil em 1927 – ou seja, na época das denúncias,

Avedikian estava a oito anos no país – o professor esclarece: “Não sou comunista e não torço

para nenhum partido, sou Chesoc [neutro]”430. O sintomático aqui é a menção aparentemente

desconexa da sua neutralidade. No final da vida, já com oitenta anos, Nazareth Avedikian fez

questão de afirmar a sua neutralidade em relação aos partidos políticos – armênios,

subentende-se – mas, mais do que isso, ele negou enfaticamente ser comunista.

428 Pront. 3.125 – Nazareth Avedikian. 429 KERIMIAN, N. (1998). op. cit., p. 279. 430 Idem.

Page 93: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

92

Podemos nos questionar sobre o significado dessa afirmação, cinquenta anos

depois de ter sido fichado como “comunista” nos arquivos da Polícia Política. No

depoimento, Avedikian afirmou que “o progresso para libertar a Armênia está muito lento,

estou desesperançado”431. Ou seja, é nítido o desânimo do professor ante a política levada a

cabo na Armênia, que a essa altura ainda fazia parte da URSS. Portanto, é plausível pensar

que após todos os anos sob tutela soviética, Avedikian tenha perdido as esperanças que seria

pelas mãos da URSS que os armênios teriam seus territórios recuperados junto à Turquia e

enfim a justiça seria feita. Pode ser decorrente desta frustração a negação veemente do

comunismo. Ainda, Avedikian pode ter aproveitado a oportunidade da visibilidade que lhe

seria dada no livro de Nubar Kerimian para negar de forma definitiva para a coletividade

armênia de São Paulo as acusações de comunismo, violência e autoritarismo feitas ao seu

respeito por vizinhos à Polícia Política anos antes.

Apesar de não ser possível precisar a trajetória política de Nazareth Avedikian nos

documentos escritos aos quais tivemos acesso, as informações desconexas e rarefeitas que

temos são reveladoras. Primeiro, da atmosfera de insegurança que pairava sobre São Paulo e o

Brasil logo após os levantes de 1935, a ponto de delações pouco fundamentadas e

investigadas serem levadas à diante pelas autoridades. Todavia, a negação do comunismo por

parte do acusado cinquenta anos após a imputação desse rótulo expõe as implicações no

mínimo negativas do “ser comunista” na mentalidade da coletividade armênia em São Paulo

também na década de 1980.

4.2.1 A “União Armênia de São Paulo” e a primeira expressão

institucional do apoio à Armênia Soviética

Se a trajetória de Nazareth Avedikian é difícil de ser compreendida por meio dos

prontuários da Polícia Política, o mesmo não acontece com outros indivíduos que estiveram

ligados a instituições, como a Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo” (UASP)432,

fundada em 20 de agosto de 1944433. Em fevereiro de 1950, durante o governo de Eurico

Gaspar Dutra, os agentes do então denominado Departamento de Ordem Política e Social

procuraram Zaven Sabundjian, primeiro secretário da UASP, a fim de solicitar que este

abrisse a sede da entidade – localizada na Rua Dr. Itapura Miranda, nas imediações do

431 KERIMIAN, N. (1998). op. cit., p. 279. 432 Pront. 94.341 – Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. 433 VERELK: boletim informativo da Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. São Paulo: nº 17, agosto de 1947, p. 6 (AHK).

Page 94: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

93

Mercado Municipal – para que os investigadores executassem uma vistoria no local434. Após a

busca e a apreensão no local, Sabundjian foi levado ao Serviço Especial de Vigilância, a fim

de prestar esclarecimentos às autoridades sobre as atividades da União.

Na repartição, o secretário descreveu a sua trajetória de vida. Embora em seus

documentos conste a naturalidade de Marash, Turquia, o interrogado afirmou ser legalmente

apátrida, embora se considere armênio, uma vez que a nacionalidade turca não lhe cabe de

acordo com o princípio de jus sanguinis vigente na Europa. Feita esta ressalva acerca de sua

origem, Sabundjian deu as explicações solicitadas pelas autoridades sobre o funcionamento da

entidade. O secretário afirmou que as atividades políticas da UASP cessaram quando da

retirada da embaixada da URSS do Brasil. Tais atividades consistiam numa campanha de

repatriamento de armênios para a Armênia Soviética, além de encampar a luta em prol da

recuperação dos territórios armênios ocupados pela Turquia, de onde a maioria dos armênios

da diáspora são oriundos435.

Desde a anexação do que sobrou dos territórios armênios pela URSS até 1936,

cerca de 42 mil armênios de toda a diáspora foram repatriados para a então Armênia

Soviética436. Após o fim da II Guerra Mundial, o governo soviético acenou com a

possibilidade de lutar pela retomada dos territórios armênios sob controle turco e, por volta de

1946, uma nova campanha de repatriamento foi lançada em todo o mundo. Cerca de 360 mil

armênios da diáspora manifestaram a vontade de partir para a Armênia Soviética, a fim de

ocupar os territórios históricos de onde foram expulsos por consequência do Genocídio

iniciado em 1915. A postura dos EUA e aliados de estreitar laços com a Turquia, frustrando

assim os planos soviéticos de anexação da parte oriental do território turco, bem como um

esfriamento dos incentivos soviéticos pela repatriação de armênios vindos da diáspora,

enfraqueceram as campanhas de retorno para a Armênia pelo mundo. Nesse sentido, ao invés

dos 360 mil esperados, cerca de cem mil imigrantes aportaram na Armênia Soviética até

1949437.

Em 1947, foi protocolado junto à Delegacia de Ordem Política e Social um pedido

de criação de uma “comissão de auxílio a repatriação de armênios”438, que tinha por

finalidade orientar aqueles membros da coletividade armênia no Brasil que desejavam voltar à

Armênia, “apesar de terem aportado nesta terra hospitaleira e segura”, na palavra dos

434 Pront. 94.341 – Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. 435 Idem. 436 AGBU: Armenian General Benevolent Union. Nova York: Volume 20, nº 2, novembro de 2010, p. 5. 437 Ibid., pp. 5-6. 438 Pront. 86.428 – Comissão de Auxílio a Repatriação de Armênios.

Page 95: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

94

requerentes439. Para dirigir os trabalhos desta comissão, foram nomeados “alguns membros de

melhor conceito na coletividade armênia”440, quais sejam, Takvor Guiragossian441, Yervant

Mekitarian442, Estepan Abkarian443, Hovnan Tecekalian e, por fim, o primeiro secretário da

UASP, Zaven Sabundjian444. Ainda segundo o documento, o governo da Armênia – oblitera-

se que este governo é parte integrante da URSS – atendendo aos anseios de muitos armênios

na diáspora que desejavam voltar à Pátria-Mãe, iniciou uma política de retorno destes ao país.

Para Argentina, Brasil e Uruguai, coube uma quota de mil armênios que poderiam entrar na

RSS da Armênia no ano de 1947445. Após a averiguação dos antecedentes criminais dos

solicitantes – nada constando contra nenhum deles –, o documento não indica se o pedido foi

deferido ou se algum armênio que vivia no Brasil teria emigrado para a Armênia Soviética

neste contexto.

A ação de incentivo da repatriação de armênios para a Armênia Soviética

encampada pela UASP e descrita por Zaven Sabundjian estava em consonância com o que

acontecia em toda a diáspora. Na França e nos EUA, por exemplo, organizações armênias

eram fundadas para facilitar a emigração para a Pátria-Mãe, ao mesmo tempo em que faziam

propaganda do regime soviético armênio para os compatriotas que estavam distante do país446.

Por outro lado, o encerramento das atividades políticas da entidade coincide com o abandono

da política imigratória soviética em 1949, mas também com a proibição do PCB em 1947 e o

acirramento da Guerra Fria447. Ou seja, a UASP operou nesse sentido enquanto havia um

horizonte favorável para o incentivo da emigração de armênios para a URSS.

Na sequência do depoimento, Sabundjian afirmou que era anticomunista,

inclusive tendo contribuído com a Polícia Política no intuito de evitar que elementos

subversivos se infiltrassem na UASP. Nesse sentido, a diretoria da entidade teria advertido

Jacob Bazarian, Levon Yacubian e Agop Boyadjian que, descontentes com os rumos da

UASP, abandonaram a instituição fundando o jornal “Ararat – a voz do povo armênio”448, que

439 Pront. 86.428 – Comissão de Auxílio a Repatriação de Armênios. 440 Idem. 441 Secretário da UASP na gestão de 1946. VERELK: boletim informativo da Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. São Paulo: nº 13, agosto de 1946, p. 5 (AHK). 442 De orientação marxista e membro do Partido Social-Democrata Hentchakian. Mekitarian foi também um dos fundadores de um jornal bilíngue em São Paulo, o Hayastan Tsayin, em 1947. VARTANIAN, Y. (1947). op. cit., pp. 537-539. 443 Idem. Também secretário da UASP na gestão de 1946. 444 Pront. 86.428 – Comissão de Auxílio a Repatriação de Armênios. 445 Idem. 446 MOURADIAN, C. (1990). op. cit., pp. 313-317. 447 SKIDMORE, T. (1969). op. cit., pp. 93-94. 448 Pront. 98.526 – Ararat e Pront. 98.416 - A Voz do Povo Armênio.

Page 96: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

95

“mantém uma linha tipicamente comunista e que não interessa, nem à União e nem à

verdadeira colônia armênia de São Paulo”, nas palavras do primeiro secretário449.

No final de seu depoimento, Zaven Sabundjian reafirmou sua conduta coerente

com as tradições armênias e a postura de manter-se distante de questões políticas. Nesse

sentido, não caberia à UASP manifestar-se contra ou a favor da URSS450. Para garantir a

postura anticomunista da entidade, Sabundjian afirmou que iria pedir junto ao presidente da

UASP a solicitação no Ministério da Justiça de um interventor brasileiro, “no sentido de

evitar a infiltração de elementos nocivos aos interesses nacionais, ajudando-os a cumprir as

leis vigentes e a manter em funcionamento a UASP.”451. Com essa estratégia colaboracionista,

o primeiro secretário esperava afastar de uma vez por todas as suspeitas de comunismo da

UASP, dos seus membros, bem como de si mesmo.

Contudo, se analisarmos a trajetória da União Armênia de São Paulo durante os

anos 1940 não encontraremos a postura neutra ante a URSS sobre a qual Sabundjian informou

à DEOPS/SP. Em 1945, no primeiro aniversário de fundação da UASP, foi lançado o Verelk –

em armênio: recuperação; homônimo de um dos muitos jornais armênio-soviéticos editados

na França na década de 1920452 – boletim informativo da entidade, de circulação interna453.

Inicialmente de periodicidade mensal, bilíngue e de confecção quase artesanal nos primeiros

números, os textos em português eram datilografados e os em armênio eram manuscritos e

reproduzidos em mimeógrafo, devido à falta de uma tipografia no Brasil que fosse capaz de

imprimir os caracteres armênios em larga escala454.

É inegável a postura entusiasta do boletim acerca da Armênia Soviética e da

URSS. Ainda que os textos contidos no Verelk não sejam densos teoricamente, discutindo

princípios do marxismo-leninismo ou do comunismo, os artigos analíticos sobre o que

acontecia da República Socialista Soviética da Armênia eram claramente de aprovação à

política levada a cabo por lá. No nº 9-10 de abril-maio de 1946, a capa anuncia uma

“homenagem aos deputados armênios eleitos pelo povo para o Parlamento Soviético”, com as

449 Pront. 94.341 – Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. 450 Idem. 451 Idem. 452 MOURADIAN, C. (1990). op. cit., p. 313. 453 Infelizmente, não tivemos acesso à coleção completa do Verelk. O material que foi possível recolher inicia-se nos nº. 9-10 de abril-maio de 1946 até o nº 17 de agosto de 1947. Não temos conhecimento se este foi o último número do boletim. 454 Embora Garabed Amiralian tenha confeccionado no Brasil um calendário armênio em 1941, na tipografia Massis, as obras maiores como o livro de Yesnig Vartanian eram impressos na Argentina. VARTANIAN, Y. (1948). op. cit.

Page 97: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

96

fotografias de tais políticos: Anastas Mikoyan e Matzag Babian455. A fundação da UASP, do

boletim interno Verelk e alguns anos mais tarde do jornal Ararat, se deu na mesma época que

os políticos armênios estavam em seu apogeu na política e burocracia soviética, por isso

nomes como Mikoyan e Babian ganharam destaque nas páginas de tais publicações. Segundo

Marc Ferro, essa fase ocorreu durante os anos 1940-50, decaindo após a saída de Kruschev do

comando da URSS456.

No texto de abertura desse número do boletim, com um perfil de editorial, além de

uma saudação aos deputados eleitos, há a afirmação da Armênia Soviética enquanto expressão

pátria legítima do povo armênio: “após muitos séculos de escravidão, ressurge a Armênia,

autônoma progressista e rejuvenescida”457. Conforme vimos no capítulo anterior, os

partidários da Federação Revolucionária Armênia – agremiação política mais expressiva em

São Paulo – não encararam a RSS da Armênia como um país livre e independente, mas sim

como mais uma opressão e jugo sobre os quais a Armênia viveu por toda a história. Assim, a

afirmação do autor do texto que a república soviética em questão é sim o torrão nacional dos

armênios, nos parece uma resposta à conduta da FRA através dos anos.

O mais curioso no editorial deste número são as iniciais “Z. S.” ao final,

indicando assim ao leitor quem o teria escrito. Excetuando os textos de autoria de Jacob

Bazarian e Levon Yacubian, os demais eram normalmente assinados apenas pelas iniciais dos

autores. A prática de assinar com as iniciais pode ter sido utilizada a fim de despistar os

leitores estranhos, que não saberiam identificar os autores apenas com as primeiras letras dos

nomes, mas também identificar os que escreviam aos olhos dos membros daquele grupo que,

conhecendo os colegas, saberiam quem seria o autor apenas por essa pista. Sendo assim,

torna-se impossível confirmar quem é o autor de determinado texto, porém é plausível que “Z.

S.” seja referente ao primeiro secretário Zaven Sabundjian, cujo depoimento dado à Polícia

Política quatro anos mais tarde refutaria veementemente o envolvimento da UASP ou de seus

membros com o comunismo. Essa tese ganha força ao encontrarmos a fotografia de

Sabundjian no número treze do boletim, publicada junto a outros membros da diretoria da

UASP. Abaixo de sua foto, há a legenda “Zaven Sabundjian – diretor do ‘Verelk’” 458. Ou seja,

o depoimento dado para a repressão pode ter sido uma estratégia para despistar a polícia das

455 VERELK: boletim informativo da Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. São Paulo: nº. 9-10, abril-maio de 1946 (AHK). 456 FERRO, Marc (1983). A Manipulação da História no Ensino e nos Meios de Comunicação. São Paulo: Ibrasa, p. 203. 457 VERELK: boletim informativo da Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. São Paulo: nº. 9-10, abril-maio de 1946 (AHK). 458 Op. cit., nº 13, agosto de 1946, p. 9 (AHK).

Page 98: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

97

atividades da UASP ou mesmo negar a postura de anos antes, fruto da cisão na entidade que

originou o jornal Ararat, publicação essa que nos anos 1950 manteve o tom entusiasta da

Armênia Soviética que antes era feito pelo Verelk.

A leitura do boletim nos dá a dimensão

de seu papel: primeiro, informar aos leitores o que

acontecia na União Armênia de São Paulo e na

coletividade; segundo, dar notícias gerais sobre a

Causa Armênia e outras comunidades da diáspora; e

terceiro, exaltar a República Socialista Soviética da

Armênia através de textos alusivos à sua história,

cultura, política, etc. Esse último elemento fica claro

em números como o de novembro de 1946459, cuja

capa traz em grandes caracteres vermelhos a frase

“Salve 29 de novembro”, em alusão ao 26º

aniversário da RSS da Armênia. Em tal número, o

editorial – desta vez sem assinatura, mas no mesmo

estilo dos anteriores subscritos por “Z. S.” – enaltece

a data:

A República Socialista Soviética da Armênia, completa mais um ano de existência. São portanto 26 anos de “regimem” [sic], que

deram a “Haiasdan”460 um esplendor e um progresso admiráveis. Nós, armênios do exterior, comemoramos esta data com grande orgulho, porque ela tem um significado todo especial para o nosso coração de patriota. Foi neste dia memorável que se implantou na Armênia, o “regimem” que lhe assegurou a liberdade econômica e social. Foi nesta data que os armênios, após 600 anos de indescritíveis martírios, encontraram a paz e a tranquilidade. Hoje, quando recebemos notícias alvissareiras do repatriamento de todos os armênios do exterior, sentimos nossos corações emocionados pela esperança de novo pisar o solo pátrio461.

Nesse trecho, é possível novamente identificar um claro apoio à Armênia Soviética e a

compreensão que esta república é a cristalização dos anseios do povo armênio que sofreu

“indescritíveis martírios”. Além disso, há também a menção à política de repatriamento de

armênios para a RSS da Armênia, cujo depoimento de Zaven Sabundjian à DEOPS/SP deixa

459 VERELK: boletim informativo da Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. São Paulo: nº 16, novembro de 1946 (AHK). 460 “Armênia”, no idioma armênio. 461 Ibid., p. 2.

Figura 10: Capa do boletim informativo da União Armênia de São Paulo, Verelk. Fonte: Acervo do Prof. Dr. Hagop Kechichian.

Page 99: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

98

claro que era uma das principais funções da UASP, encabeçadas por ele próprio, conforme

vimos no prontuário da comissão criada para este fim462.

Apesar de ser temática recorrente nas páginas do boletim, a política não era o

único assunto da publicação. Notícias sociais, anedotas, indicações de literatura e cinema

também podem ser encontradas no Verelk. Isso dá a dimensão que a UASP não era uma

agremiação política, com feições de partido, ao contrário de outras instituições armênias em

São Paulo. Atividades esportivas como tênis de mesa tinham lugar na sede da entidade, sob a

tutela da “Erevan”, braço esportivo e juvenil da União463. Apresentações teatrais e musicais

também eram eventos corriqueiros, os quais mobilizavam um grande número de adeptos da

União e em toda a comunidade464. A apreensão pela DEOPS/SP de uma lista com 46 nomes

de candidatos à diretoria da entidade em 1950 nos revela que era expressiva também a

participação de mulheres – treze candidatas à diretoria, algumas fichadas pela Polícia Política

por esse fato465.

Figura 11: Apresentação teatral produzida pela juventude da União Armênia de São Paulo. (Acervo da família

Magarian).

462 Pront. 86.428 – Comissão de Auxílio a Repatriação de Armênios. 463 Erevan (ou Yerevan) foi a capital da RSS da Armênia e se mantém como centro da administração nacional na atual República. 464 De acordo com o depoimento de Haroutiun Magarian. Aposentado. Entrevista concedida em sua residência, no bairro da Casa Verde, São Paulo, 13/02/2012. 465 Como por exemplo: Pront. 116.549 – Anahid Poladian ou Pront. 116.569 – Kassia Magarian, dentre outros.

Page 100: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

99

Figura 12: Atores da UASP em cena. (Acervo da família Magarian)

Figura 13: Membros da juventude da UASP trajados com o figurino da peça. (Acervo da família Magarian)

Não encontramos anexado junto aos prontuários de armênios e descendentes o

boletim Verelk, tampouco foi aberto um prontuário exclusivamente para a publicação, como

Page 101: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

100

aconteceu com o jornal “Ararat – a voz do povo armênio”. Entretanto, segundo o prontuário

de Levon Yacubian466, a Polícia Política realizou a apreensão de doze números do Verelk na

residência do jornalista, na ocasião de sua prisão em junho de 1949, inclusive lançando mão

de artigos assinados pelo jornalista a fim de interrogá-lo e acusá-lo467.

A última alteração registrada no prontuário da UASP data de 1963. Na ocasião,

foi reportado ao então Departamento de Ordem Política e Social que três latas contendo

quinze rolos de filme chegaram aos correios tendo como destinatário a União Armênia de São

Paulo. Sendo o remetente de Yerevan, capital da RSS da Armênia, a Polícia Política

“presumiu”, segundo suas próprias palavras, ser material comunista e subversivo,

necessitando então a apreensão para que a censura fosse executada468. Embora endereçada à

UASP, o endereço de entrega, segundo o prontuário, era para a “Importadora Comercial Ótica

Cine Foto Poladian e Cia. Ltda.”. O proprietário do estabelecimento, Valtevar Manouc

Poladian, então com 48 anos, negou enfaticamente à Polícia Política que tenha solicitado tal

material, declarando que, desde que chegou ao Brasil, em 1931, nunca teria voltado à

Armênia, porque segundo ele: “a União Soviética dominou o seu país; que, como é um

convicto democrata e não querendo permanecer em seu país sob o jugo moscovita, fugiu para

a Grécia e de lá para o Brasil [...]469. Poladian teve que escrever uma carta ao remetente dos

filmes, solicitando que não enviasse mais aquele tipo de material. A carta, bem como uma

tradução, encontra-se anexada ao prontuário470. Embora a enfática negativa de Poladian de ter

pedido o material ou de envolvimento com o comunismo, os prontuários revelam que o

mesmo foi presidente da UASP em 1945, na mesma gestão que tinha Jacob Bazarian como

vice-presidente e Zaven Sabundjian como primeiro secretário471. Ou seja, é possível que

Poladian tenha recebido o material por ter sido o primeiro presidente da entidade, anos antes.

Não sabemos ao certo quando a UASP encerrou as atividades, embora houvesse

um pedido de fechamento da entidade correndo na Delegacia Especializada de Ordem Social

em 1952472. O que é perceptível, se analisarmos os boletins internos, é que depois da saída de

Jacob Bazarian, Levon Yacubian e Agop Boyadjian em 1947473, a linha editorial do

466 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 467 Idem. 468 Pront. 94.341 – Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. 469 Idem. 470 Idem. Em 24 de maio de 1963, Pedro Melemendjian solicitou a liberação dos filmes, que seriam sobre a invasão de tropas nazistas à Armênia. As autoridades aceitaram liberar um dos filmes, enquanto outro, sobre a ocupação da Armênia por tropas russas, continuaria retido por ser “pura propaganda comunista”. 471 Pront. 98.526 – Ararat. 472 Idem. 473 Pront. 121.455 – Levon Jacobian. Este é outro prontuário de Levon Yacubian, com o nome grafado de forma diferente.

Page 102: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

101

informativo foi alterada. Após a edição em homenagem ao 26º aniversário da RSS da

Armênia,474 de novembro de 1946, o número seguinte só foi publicado em agosto do ano

seguinte, como edição comemorativa ao aniversário de três anos da UASP e aos dois anos do

Verelk. Nesta edição, não é possível encontrar textos entusiastas à Armênia Soviética como

antes, tampouco notícias sobre a política na URSS que diziam respeito aos interesses

armênios. O editorial enaltece o crescimento da União Armênia de São Paulo e as ações da

entidade na coletividade armênia paulistana, enquanto afronta os críticos e opositores, que

segundo o autor, “tem seus dias contados” 475.

Entretanto, não é o abandono por parte do Verelk de uma linha editorial mais

pautada nas discussões políticas que sepultou a expressão pró-Armênia Soviética da

coletividade armênia em São Paulo. O declínio do boletim marca também a criação do jornal

“Ararat – a voz do povo armênio”, que seria o órgão mais entusiasta do regime soviético que

já foi publicado pelos armênios em São Paulo.

474 VERELK: boletim informativo da Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. São Paulo: nº 16, novembro de 1946 (AHK). 475 Op. cit., nº 17, agosto de 1947 (AHK).

Page 103: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

102

CAPÍTULO IV - O jornal “Ararat – a voz do povo armênio” e seus idealizadores: o

comunismo a serviço da Armênia

O afastamento de Bazarian, Yacubian e Boyadjian da UASP, segundo o

depoimento dado por Zaven Sabundjian, teria se dado após uma advertência da diretoria da

entidade a esses indivíduos que, insatisfeitos com as resoluções políticas da União, romperam

com esse grupo fundando um jornal independente, o Ararat – a voz do povo armênio476.

Entretanto, se analisarmos atentamente diversos prontuários criados pela Polícia Política no

contexto da repressão dos armênios em São Paulo, veremos que essa dissidência não foi tão

radical como os depoimentos indicaram.

No próprio prontuário da UASP, no qual podemos encontrar o depoimento

supracitado de Zaven Sabundjian, há o registro da apreensão na sede da entidade de registros

de assinantes do Ararat. Nessa lista, constam dezesseis nomes que de acordo com dados

cruzados pelos investigadores seriam de sócios da UASP477. Ou seja, mesmo fora da entidade

o jornal coordenado por Bazarian tinha algum apelo dentro da União, a ponto dos associados

serem assinantes e leitores da publicação dissidente.

Em 1952, na investigação aberta pela Polícia Política contra o jornal, as

autoridades já apontavam a ligação de Levon Yacubian, secretário do Ararat com a UASP –

de onde foi segundo secretário – e indicavam que a entidade seria a verdadeira sede do jornal

dirigido pelo trio. Para o delegado-chefe do Serviço Especial de Vigilância (SEV), Antônio

Ribeiro de Andrade, a UASP “era considerada um dos lugares onde se faz a mais intensa

propaganda comunista” e tinha conexões com outras instituições subversivas, como a

“Sociedade Estrela Vermelha”, com o “Comitê Russo para as vítimas da guerra” e com

jornais armênios da Argentina, supostamente comunistas478.

Os indícios de que o grupo que encabeçava o Ararat e a UASP ainda caminhavam

juntos são ainda mais fortes quando analisamos o último número do Verelk – alusivo ao

terceiro aniversário da entidade – ao qual tivemos acesso. Embora haja um claro

abrandamento na sua linha editorial, conforme discutimos antes, o número 17 do boletim

interno da UASP desmente a versão de cisão dos armênios entusiastas da RSS da Armênia em

476 Pront. 94.341 – Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. 477 Idem. 478 Pront. 98.526 – Ararat.

Page 104: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

103

São Paulo. Na página sete deste número, vemos cenas do filme “Nercaht”, que mostra a volta

de muitos armênios retornando a terra-natal, enaltecendo assim a campanha de repatriamento

que foi o carro-chefe da entidade durante os seus três primeiros anos de funcionamento479.

Contudo, o mais interessante é que junto aos créditos das fotografias retiradas do filme está

escrito “gentileza de ARARAT”, revelando que foi o jornal dos “dissidentes” que cedeu as

imagens para o Verelk480.

Se o agradecimento do Verelk pelas fotos cedidas pelo jornal Ararat não fosse

suficiente para provar a continuidade da ligação entre os grupos, as páginas seguintes do

número comemorativo do boletim seriam. Na parte dedicada às notícias sociais da entidade,

junto ao anúncio de nascimento de filhos de associados, há um pequeno anúncio no qual se lê:

“Leiam e divulguem ‘ARARAT – a voz do povo armênio’” 481.

O anúncio do Ararat nas páginas do Verelk é indicativo de uma série de

estratégias criadas pelos envolvidos em ambas as publicações. Em primeiro lugar, tal

envolvimento nos indica que Zaven Sabundjian não foi preciso ao dizer à Polícia Política que

Bazarian, Yacubian e Boyadjian saíram da UASP para fundar o Ararat, denotando assim certo

grau de rompimento entre os dois grupos. Está claro pelas investigações da polícia e pelo

próprio Verelk que havia sim contato e mesmo colaboração entre o trio do Ararat e a UASP, a

despeito do afastamento dos mesmos da entidade, o que nos leva ao segundo ponto: a saída

dos fundadores do Ararat pode ter sido orquestrada pelos grupos a fim de dispersar a atenção

da repressão sobre a União Armênia de São Paulo. Criar uma nova publicação

institucionalmente desvinculada de qualquer entidade da coletividade armênia de São Paulo,

ao mesmo tempo em que a linha editorial do boletim interno da UASP é alterada, em conjunto

com uma efusiva negativa da diretoria da entidade no envolvimento com o comunismo,

convenceria a Polícia Política que a União não tinha nenhum tipo de vínculo com ideais

subversivos. A criação da nova publicação dissimularia a repressão e seria um espaço mais

livre e independente para uma postura e um discurso político mais incisivo por parte dos

editores, uma vez que não havia uma instituição por detrás, responsável pelas opiniões

emitidas nas páginas do jornal.

Antes de analisarmos o papel do “Ararat – a voz do povo armênio” na

coletividade armênia, bem como o seu discurso entusiasta do comunismo na Armênia, vamos

479 O filme foi exibido em sessão que teve lugar no Centro Armênio em 31 de maio de 1949, segundo apreensão de convites para a exibição em posse de Agop Boyadjian. Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 480 VERELK: boletim informativo da Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. São Paulo: nº 17, agosto de 1947, p. 7 (AHK). 481 Ibid., p. 17.

Page 105: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

104

examinar a trajetória de seus idealizadores, tanto sob a ótica dos prontuários produzidos pela

Polícia Política, quanto pelos rastros que eles deixaram na vida comunitária da diáspora

armênia em São Paulo.

O primeiro a ser analisado é o já citado Agop Boyadjian que, conforme

abordamos acima, tem uma trajetória curiosa de acordo com o seu rico prontuário no Fundo

DEOPS/SP. Preso em setembro de 1940 – um mês depois de ganhar 4.030 contos de réis na

Loteria Federal482 – pelo porte ilegal de um revólver, Boyadjian foi posto em liberdade no

mesmo dia após pagamento de multa483. Em 1942, a ficha do sapateiro ganha sua primeira

alteração por uma contenda política, justamente por ocasião da delação supracitada de Vahakn

Minassian. Todavia, foi em 1949 que Boyadjian enfrentou maiores problemas com a Polícia

Política.

Boyadjian – natural de Marash, Turquia, embora de nacionalidade libanesa,

sapateiro484 de instrução primária incompleta, morador da Mooca na zona leste da cidade,

com 43 anos à época da prisão, segundo o registro das autoridades policiais – foi detido junto

com Levon Yacubian às 15h do dia seis de junho de 1949, ao irem aos correios retirar três

volumes que, de acordo com a análise da Polícia Política, seriam de materiais subversivos485.

Por terem sido presos juntos, os prontuários de Boyadjian e Yacubian podem nos dizer muito

um sobre o outro, permitindo assim ao pesquisador cruzar as informações contidas em ambos

os documentos, a fim de tentar se aproximar o máximo possível dos acontecimentos.

Em depoimento dado à polícia no momento da detenção, Agop Boyadjian disse

que encontrou com Levon Yacubian na Rua Santo André – próximo à residência de Jacob

Bazarian, principal responsável pelo Ararat486 – e que o convidou para ir até os correios retirar

correspondências que teriam chegado destinadas a Bazarian487. Boyadjian, desconhecendo o

conteúdo das correspondências, aceitou fazer companhia ao amigo jornalista até o centro da

cidade488. No momento em que chegavam aos correios, os dois foram presos em flagrante e

levados para a sede do Departamento de Ordem Política e Social, onde prestaram depoimento

e ficaram detidos por doze dias antes de serem transferidos para a Casa de Detenção489.

482 CORREIO PAULISTANO. São Paulo: ano LXXXVII, nº. 25.910, sexta-feira, 23 de agosto de 1940, p. 11 (BN). 483 Pront. 46.273 – Agop Boyadjian. 484 Idem. Ainda que outros documentos do prontuário declarem a profissão “industrial” para Boyadjian, é possível que a indústria em questão fosse do ramo de calçados. 485 Idem. 486 Pront. 95.621 – Jacob Bazarian. 487 Conforme nos indica um documento em posse de Levon Yacubian no momento da prisão, que o autorizava a retirar as correspondências endereçadas a Jacob Bazarian. Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 488 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 489 Pront. 46.273 – Agop Boyadjian.

Page 106: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

105

Com a prisão e o processo decorrente dela, Boyadjian teve a sua residência

revistada na presença do delegado Thomas Palma Rocha, do escrivão e de duas testemunhas.

No quarto onde residia o sapateiro, foram encontradas além dos móveis, roupas e utensílios de

uso pessoal, algumas apólices de empresas e uma caderneta da Caixa Econômica Federal490.

Não foi encontrado na busca policial nada considerado subversivo ou incriminador que

pudesse ser usado contra Boyadjian no processo que foi aberto contra ele. Entretanto, em sua

posse no momento da prisão nos correios, os policiais apreenderam uma lista de renovação de

assinaturas para 1949 do jornal Ararat, quatro talões de assinatura anual da mesma

publicação, oito convites para a exibição do filme Necaht que aconteceu no dia 31 de maio do

mesmo ano no Centro Armênio491.

Contudo, na certidão emitida pelo delegado supracitado sobre a busca e apreensão

na casa dos acusados, consta uma série de publicações confiscadas na casa de Boyadjian, que

não foram arroladas na primeira lista. Nessa segunda lista de material apreendido, há a

apreensão de 45 exemplares do Ararat, bem como de outros jornais492, incluindo o “Hoje”,

órgão do Partido Comunista do Brasil493. Não sabemos o motivo da existência da segunda

lista que, ainda que conste o nome de testemunhas e as demais formalidades burocráticas, não

está assinada por elas, nem pelo acusado. Não nos parece ser o caso da polícia “plantar”

provas contra os acusados, mas de qualquer forma é pouco compreensível tal lógica de ação

da Polícia Política.

Não está claro qual seria a participação de Agop Boyadjian no Ararat, assim como

também não conseguimos rastrear seus passos na União Armênia de São Paulo e, por

consequência, no Verelk. Pelo conteúdo do material que foi apreendido com Boyadjian no

momento da prisão e no quarto onde ele habitava, nos parece que a sua função no Ararat era

de administração das assinaturas e distribuição dos exemplares. O sapateiro não tinha mais do

que instrução primária incompleta – sua instrução foi classificada como “rudimentar” pelas

autoridades policias494 –, enquanto os outros envolvidos no Ararat, Levon Yacubian e Jacob

Bazarian, eram graduados pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Ou seja, é pouco

provável que Boyadjian desempenhasse alguma tarefa na redação dos textos publicados no

jornal. Não foram encontrados livros ou outras publicações de esquerda ou sobre a história da

Armênia na residência do sapateiro que nos indique que ele tivesse uma carga de leitura que o

490 Pront. 46.273 – Agop Boyadjian. 491 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 492 Idem. 493 Pront. 87.838 – Hoje – Jornal do Povo à Serviço do Povo. Cf. CARNEIRO, M. & KOSSOY, B. (2003). op. cit., pp. 140-141. 494Pront. 73.631 – Levon Yacubian.

Page 107: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

106

habilitasse a produzir artigos para o jornal495. O nome do sapateiro não consta sequer no

espaço reservado à informação sobre o jornal nas páginas da publicação. Nesse lugar, consta

somente o nome de Bazarian, como diretor, Yacubian, como secretário e Mary – ou Meire –

Apocalipse, a diretora-responsável pelo jornal496.

Agop Boyadjian e Levon Yacubian foram considerados elementos nocivos à

ordem pública e estavam sujeitos a expulsão do país, conforme previsto na Constituição

Federal em vigor desde 1946. Nesse sentido, a polícia, em consonância com o direito “de

zelar pela defesa e soberania nacionais, que nos impelem a representar aos mais altos poderes

da República solicitando a expulsão desses maus elementos, do território nacional”497, tinha o

poder de decidir pela retirada ou não do suspeito do país. A medida de expulsão poderia ser

aplicada a qualquer estrangeiro que de alguma forma comprometesse a “segurança nacional”.

Tal conceito genérico foi cunhado de forma ampla o suficiente para poder abarcar todos

aqueles que de diferentes formas, incomodassem as autoridades a partir de 1907, data da

primeira lei de expulsão no país498.

Assim, Boyadjian, tido como indivíduo indesejável ao país, sem laços familiares

que o prendessem ao Brasil, teve sua expulsão recomendada pelo delegado Thomas Palma

Rocha em 06 de setembro de 1949 e esperou pela execução da medida encarcerado na Casa

de Detenção. Contudo, no dia 03 de outubro, menos de um mês depois da prisão, o juiz

Manoel Itagiba Porto julgou a causa e absolveu Boyadjian e Yacubian por não considerar

subversivas as atividades de ambos, conforme já abordamos neste capítulo. Entretanto, as

autoridades de segurança pública só colocaram Boyadjian em liberdade no dia 27 de outubro,

ou seja, vinte e quatro dias após o habeas corpus ter sido expedido, após o SEV enviar um

ofício solicitando a liberação do sapateiro neste dia499.

Tal atitude das autoridades policiais e do Serviço de Segurança Pública de São

Paulo como um todo não foi mera falha de comunicação entre as repartições ou outro engano

de qualquer natureza que impediu que Boyadjian fosse posto em liberdade tão logo o alvará

de soltura fosse expedido. A manutenção da prisão do sapateiro e de Levon Yacubian foi uma

prática intransigente e deliberada por parte das autoridades policiais, que, desrespeitando a

495 Embora haja no número 31 do Ararat um texto assinado por Hagop Boyadjian. Apesar de ser homônimo do prontuariado Agop Boyadjian, não se tratam da mesma pessoa, pois segundo a chamada do texto no jornal o seu autor tinha apenas 18 anos na ocasião, enquanto Agop tinha 48 na época. Há outro artigo de Hagop no número 34. ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: Ano III, nº. 31, abril de 1949, p. 3; op. cit., Ano III, nº. 34, julho de 1949, p. 3. 496 Op. cit., Ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 3. 497 Pront. 46.273 – Agop Boyadjian. 498 ZEN, E. (2010). op. cit., p. 52. 499 Pront. 46.273 – Agop Boyadjian.

Page 108: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

107

decisão judicial, apelaram para o ministro da justiça a fim de manter ambos os acusados

detidos preventivamente por mais noventa dias. O diretor responsável pela Casa de Detenção

enviou um ofício no dia 04 de outubro de 1949, ou seja, um dia após a absolvição dos dois

acusados, informando que havia recebido o habeas corpus, mas também tinha em mãos a

ordem de prorrogação da prisão de ambos, expedida pelo Ministério da Justiça500.

Podemos perceber então que a Polícia Política, dentro da sua lógica autoritária e

repressora, atropelava as instâncias constitucionais em prol da chamada “segurança nacional”.

Enquanto Agop Boyadjian é liberado tardiamente no dia 27 de outubro de 1949, quando sua

residência foi deslacrada pelas autoridades, Levon Yacubian permanece preso por mais alguns

meses – até 16 de janeiro de 1950 – a despeito da absolvição e do habeas corpus emitido

também em seu nome501.

4.1 Levon Yacubian: de jornalista promissor a preso político

Levon Yacubian e Agop Boyadjian foram presos juntos acusados de subversão,

sofreram o mesmo processo judicial, sendo absolvidos na mesma sentença. Contudo, as

semelhanças entre as duas trajetórias param por aí. Yacubian e Boyadjian tinham funções

muito distintas nas entidades que participaram e receberam tratamentos bem diferentes

também da Polícia Política.

Segundo levantamento feito à Polícia Marítima do Porto de Santos, Levon

Yacubian chegou ao Brasil em 27 de junho de 1928 com somente dois anos de idade, a bordo

do navio Valdívia, que partiu de Marselha, na França. Em seus documentos consta a

naturalidade de Alepo, Síria, ainda que a nacionalidade do jornalista seja sempre anotada

como “indefinida”, apesar do próprio se considerar armênio502.

Os primeiros registros que encontramos de Levon Yacubian na vida comunitária

armênia de São Paulo são nas atividades da União Armênia de São Paulo. Na edição referente

aos meses de abril e maio de 1946 do boletim Verelk, Yacubian, então com vinte anos,

escreveu uma pequena biografia do Marechal Ivan Bagramyan, oficial do Exército Vermelho

que comandou o I Exército na frente do Báltico e foi responsável pela captura de diversas

cidades e territórios sob domínio nazista durante a II Guerra Mundial. Em reconhecimento aos

seus feitos militares, Yacubian destaca que o oficial foi nomeado “Marechal da União

500 Pront. 46.273 – Agop Boyadjian. 501 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 502 Idem.

Page 109: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

108

Soviética” e recebeu uma alta condecoração do “generalíssimo Stalin”, sendo eleito deputado

do povo armênio para o Soviete Supremo em fevereiro de 1946503. No mesmo número, há

uma nota em uma coluna denominada “Bibliografia – os grandes escritores da UASP” na qual

se anuncia para breve a 30ª edição do “Jornalismo Noturno”, de autoria do “conhecido poeta

Leon [sic] Yacubian”504. Ainda que não haja mais informações sobre o que seria este

“Jornalismo Noturno”, tampouco algum poema que tenha tornado Yacubian “conhecido”, a

informação do lançamento da 30ª edição de um empreendimento nos dá uma ideia de que o

jornalista já vinha atuando nos círculos culturais da coletividade armênia de São Paulo505.

Yacubian começou a sua carreira de jornalista em São José do Rio Preto, no

interior do estado de São Paulo, como revisor da “Folha de Rio Preto” por volta de seus

dezoito anos de idade. Yacubian se mudou para a cidade com sua família três ou quatro anos

após chegar ao Brasil e residiu por lá entre os anos de 1937-1944506. Em 1945, o jovem

jornalista regressou para São Paulo, onde trabalhou na “Revista dos Tribunais”, além da

“Folha da Manhã”, jornal onde foi empregado até junho de 1949, quando foi preso pela

Polícia Política507. Ou seja, se as informações cedidas pelo depoente à polícia estiverem

corretas, com apenas um ano de residência em São Paulo – fixada na Avenida Cruzeiro do

Sul, zona norte da capital – Yacubian se integrou à coletividade armênia da cidade, associou-

se à recém-fundada União Armênia de São Paulo e passou a colaborar com o boletim da

entidade.

Escrevendo textos frequentemente para o Verelk, como uma resenha do livro “Os

Quarenta Dias de Musa Dagh”508, em ocasião da sua publicação no Brasil509, ou o artigo “Para

a Armênia”510, sobre a repatriação de conterrâneos para a Armênia Soviética – tema

recorrente na UASP – Levon Yacubian tornou-se uma das figuras mais ativas da entidade,

sendo inclusive eleito secretário da União durante a gestão que teve Jacob Bazarian como

503 VERELK: boletim informativo da Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. São Paulo: nº. 9-10, abril-maio de 1946, p. 8 (AHK). Este artigo está assinado apenas com as iniciais “L. Y.”. 504 Ibid., p. 19 (AHK). 505 A única referência encontrada à poesia de Yacubian foi o parecer desfavorável do Jornal das Moças para a publicação do soneto “Silêncio da Tarde” de autoria do armênio, considerado “bastante fraco” pelo editor do periódico em 1942. JORNAL DAS MOÇAS. Rio de Janeiro: 26 de março de 1942, p. 90 (BN). 506 Apesar de ter regressado a São Paulo em 1941 para concluir os estudos, Yacubian desistiu deste plano em 1943, voltando para o interior. Pront. 121.455 – Levon Jacobian. 507 Idem. 508 Romance escrito pelo tcheco Franz Werfel que conta a história da resistência de uma vila armênia às investidas genocidas do governo otomano durante o Genocídio Armênio. WERFEL, Franz (1995). Os Quarenta Dias de Musa Dagh. Rio de Janeiro: Paz & Terra. 509 VERELK: boletim informativo da Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. São Paulo: nº 11, junho de 1946, p. 11 (AHK). 510 Op. cit., nº 12, julho de 1946, p. 12 (AHK).

Page 110: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

109

vice-presidente511. Provavelmente foi nos círculos da UASP que Yacubian e o então recém-

formado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo, Jacob

Bazarian, se conheceram e começaram a trocar ideias sobre os rumos da Armênia Soviética e

da fração diaspórica no Brasil.

A amizade e a familiaridade de ideias entre os dois foram consolidadas em 1946,

com a criação do jornal “Ararat – a voz do povo armênio”512, do qual Bazarian foi o principal

responsável e tinha o jornalista Levon Yacubian como braço direito. Talvez influenciado por

Bazarian, o jornalista também ingressou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São

Paulo, onde estudou até ser preso em 1949513.

À frente das máquinas de escrever da redação do Ararat e acumulando a função

com a secretaria do jornal514, Yacubian foi um jornalista audaz. Seus textos tinham por

característica serem diretos nas críticas e nos diagnósticos dos problemas da Armênia e da

diáspora. As análises sobre os fatos históricos da Armênia eram rigorosas nos acontecimentos,

indicando um alto grau de estudo e conhecimento, ainda que a avaliação política dos

acontecimentos fosse enviesada, de acordo com as suas ideias políticas.

Certamente, tais características contribuíram para Levon Yacubian chamar a

atenção da Polícia Política, que o monitorava desde quando ele prestou depoimento no

desenrolar da investigação de Jacob Bazarian515. Quando foi detido com Agop Boyadjian em

junho de 1949, a dupla já era investigada pela polícia que provavelmente iria efetuar a prisão

mais cedo ou mais tarde, se não houvesse o pretexto da retirada do material suspeito dos

correios516. Os textos que Yacubian escrevia no Verelk, mas principalmente no Ararat, eram

as provas necessárias para as autoridades policiais pedirem a expulsão do jornalista. Em

relatório de setembro de 1949, o delegado do caso afirma em relatório que diante das

evidências anexadas ao documento, não havia a necessidade de tecer maiores comentários

sobre a subversão de Yacubian, pois estas já eram convincentes das atividades comunistas do

acusado517.

A batida policial na casa de Yacubian reforçou o estereótipo de subversivo que a

Polícia Política ajudou a criar e manter durante os anos. Embora a relação de livros

enumerados pelas autoridades não haja muito de incriminador – sendo os títulos, na sua

511 Pront. 121.455 – Levon Jacobian. 512 Idem. 513 ARARAT – a voz do povo armênio. Ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 1. 514 Ibid., p. 3. 515 O CRUZEIRO. Rio de Janeiro: ano XXI, nº 47, 10 de setembro de 1949, p. 6. 516 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 517 Idem.

Page 111: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

110

maioria, livros comuns na biblioteca de um estudante universitário, além de obras sobre a

história da Armênia e da Turquia518 –, no texto da certidão da prisão de Yacubian e Boyadjian

há vários livros e publicações que não constam na relação de livros anterior, mas que

provariam a subversão do jornalista519. Dentre o material encontrado na residência de

Yacubian, destacam-se boletins de embaixadas da URSS, títulos sobre a história soviética, a

causa palestina, material crítico ao sionismo, obras de Stalin, Lênin – como “Estado e

Revolução” – e Marx – “O Capital”, além do “Manifesto do Partido Comunista”, textos sobre

Luis Carlos Prestes e o PCB520. As publicações eram em português, inglês, francês e

espanhol, além de outros livros em “língua estrangeira”, revelando a gama de idiomas

dominados pelo jornalista. Na ocasião, a revista “O Cruzeiro”, que trazia uma série de

reportagens sobre “A 5ª Coluna Vermelha no Brasil”521, destacou a origem do material

apreendido com o jornalista:

Levon Yacubian recebia folhetos, revistas e livros escritos em russo diretamente da União Soviética, através das embaixadas russas no México e no Uruguai. Os envelopes traziam inscrições no próprio idioma russo e carimbos da foice e martelo em relevo, além de selos com a palavra “Moscou”. Yacubian se encarregava de distribuir esse material de propaganda entre os seus amigos intelectuais. Tão ousado era Levon Yacubian na sua atividade de conspiração, que mandava endereçar a correspondência de Moscou diretamente para a “Folha da Manhã”, embora o jornal nada tivesse a ver com a atividade extremista do seu funcionário522.

Se tomarmos como base os documentos anexados ao registro policial de Levon

Yacubian, a imagem que construímos do acusado é a de um indivíduo de “cultura elevada”,

nas palavras da Polícia Política, cuja vasta biblioteca comunista o habilita a escrever textos de

caráter subversivo e publicá-los num jornal de uma comunidade étnica radicada em São

Paulo, cujo país de origem a essa altura era uma das repúblicas integrantes da URSS. Tal

rótulo colaborou na construção da imagem de um criminoso de alta periculosidade para os

interesses nacionais, que deveria ser preso e expulso a qualquer preço.

A estada de Yacubian na prisão desencadeou uma crise no aparelho burocrático

composto pela polícia, judiciário e até mesmo o Ministério da Justiça. Presos em junho de

1949, Yacubian e Boyadjian foram mandados para a Casa de Detenção, a fim de esperarem o

fim do processo de expulsão de ambos do país, que ficaria a cargo da Seção de

Expulsandos523. Em setembro do mesmo ano, a expulsão do jornalista foi publicada no jornal

518 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 519 A exemplo do que ocorreu com Agop Boyadjian, há duas listas de objetos apreendidos, com itens diferentes arrolados em cada uma delas. 520 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 521 O CRUZEIRO. Rio de Janeiro: ano XXI, nº 47, 10 de setembro de 1949, p. 79. 522 Ibid., p. 6. 523 Pront. 73.631 – Levon Yacubian.

Page 112: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

111

Diário Carioca, embora não tenha sido

executada524. No mesmo mês, o Ministério da

Justiça prorrogou a prisão administrativa dos

dois acusados por noventa dias. Contudo, no

dia 03 de outubro, o juiz Manoel Itagiba

Porto acatou o argumento da defesa dos dois

armênios e os absolveu, alegando que todas

as acusações não passavam de “mera

presunção” da Polícia Política, baseadas no

anticomunismo latente desta organização,

expressado pelo advogado dos acusados. Na

mesma sentença, o juiz ordenou a emissão de

alvarás de soltura para os acusados525.

Entretanto, conforme vimos, a

libertação da dupla não foi tão rápida quanto

deveria. Boyadjian só foi solto no dia 27 de

outubro, quase quatro semanas após ser

absolvido526. A manutenção de Yacubian

encarcerado foi ainda mais abusiva. No dia

04 de outubro, ou seja, um dia após o julgamento, a Casa de Detenção recebeu o habeas

corpus dos acusados. No mesmo dia, o diretor da instituição enviou ao delegado responsável

pelo caso um ofício perguntando se deveria liberar os dois armênios, uma vez que havia

também em sua mesa a ordem de prorrogação da prisão preventiva por noventa dias, expedida

pelo Ministério da Justiça527. Enquanto isso, corria em paralelo desde o início de setembro o

processo de expulsão de Yacubian e Boyadjian, que não era uma medida judicial, mas

administrativa, competente ao poder executivo, portanto, não anulável com a absolvição dos

acusados pelo juiz528.

Começava então uma disputa entre o juiz que absolveu Yacubian e Boyadjian e o

delegado do SEV, responsável pelo caso. Em 14 de outubro de 1949, 98 estudantes da

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo assinam um documento exigindo do

524 DIÁRIO CARIOCA. Rio de Janeiro: Ano XXII, nº 6493, quinta-feira, 01 de setembro de 1949, p. 4 (BN). 525 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 526 Pront. 46.273 – Agop Boyadjian. 527 Idem. 528 ZEN, E. (2010). op. cit., p. 52.

Figura 14: Fotografia do prontuário de Levon Yacubian na DEOPS/SP utilizada pela reportagem de “O Cruzeiro”. Fonte: O CRUZEIRO. Rio de Janeiro: ano XXI, nº 47, 10 de setembro de 1949, p. 80.

Page 113: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

112

secretário de segurança pública a libertação imediata do colega, em cumprimento a decisão

judicial529. A DEOPS/SP classificou o abaixo-assinado como “tática comunista”, sendo a

maioria dos signatários ignorantes quanto ao “cérebro que o concebeu e que sempre se oculta

sob o anonimato”530, se referindo a um suposto complô conspiratório comunista que agiria em

ocasiões como esta. Aproveitando o ensejo, o delegado-chefe do SEV, Antônio Ribeiro de

Andrade, opinou no sentido de que a direção da Faculdade fosse avisada de tal atividade

subversiva531.

O jornal Ararat – a voz do povo armênio deu ampla visibilidade ao caso em suas

páginas. Na primeira página da edição de dezembro de 1949 a janeiro de 1950, há uma

matéria sobre as manifestações contra a prisão de seu colaborador. Segundo o texto, no dia 13

de dezembro de 1949, os estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo

fizeram uma manifestação na Rua Maria Antônia, em frente ao prédio onde Yacubian

estudava, pedindo a libertação do jornalista532. Na ocasião, dezenas de estudantes paralisaram

o tráfego na via colocando paralelepípedos como barreiras para os automóveis, retendo assim

um grande número de pessoas que passavam pela região e informando-os sobre os motivos do

protesto. Outra manifestação foi feita na Praça Ramos de Azevedo, centro de São Paulo, com

cartazes erguidos pelos estudantes que traziam dizeres contra o autoritarismo da polícia.

Outro apoio importante que Levon Yacubian recebeu foi do deputado estadual do

Partido Trabalhista Brasileiro, Castro Neves. Além de declarações dadas a grande imprensa

paulista sobre a ilegalidade de algumas ações da polícia, citando o caso, o político leu no

plenário da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo o manifesto intitulado “A Colônia

Armênia do Brasil quer a liberdade de Levon Yacubian”, que ressaltava a longa reclusão

ilegal a qual o compatriota estava submetido533.

No dia 26 de outubro, diante da pressão exercida por um setor da coletividade

armênia, pelos colegas de Yacubian, que reverberou inclusive na Assembleia Legislativa, o

juiz que absolveu o jornalista e Agop Boyadjian cobrou do delegado responsável explicações

para a manutenção da prisão de ambos. O delegado argumentou na comunicação entre os

aparelhos administrativos de segurança pública e poder judiciário que Yacubian era mantido

encarcerado, pois ele estava sob regime de expulsão do Brasil, esperando apenas o traslado a

ser providenciado pela Seção de Expulsandos. Todavia, o delegado frisou que Agop

529 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 530 Idem. 531 Idem. 532 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 1 (AHK). 533 Ibid., pp. 4-5.

Page 114: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

113

Boyadjian já estava em liberdade. O juiz Manoel Itagiba Porto considerou que a explicação da

autoridade policial não “satisfaz por completo” o seu questionamento e pediu maiores

esclarecimentos em um prazo máximo de vinte e quatro horas534.

A manutenção da prisão do jornalista e a tensão entre as autoridades policiais e o

juiz que absolveu os armênios são reveladoras do autoritarismo reinante na polícia – em

especial no Departamento de Ordem Polícia e Social – no estado de São Paulo mesmo em

períodos democráticos, como na virada da década de 1940. Tal autoritarismo não se traduz no

desacato da ordem judicial por inteiro, mas em uma seletividade do que acatar quando a

determinação do juiz vai contra o que a Polícia Política acredita ser o melhor para a segurança

pública. Portanto, quando as autoridades policiais decidem por liberar o sapateiro de 43 anos,

de ensino básico incompleto e manter na prisão o jovem jornalista universitário, isso indica o

tipo de cidadão que eles escolheram como inimigo político neste momento: aquele que

ardilosamente, se infiltra nas universidades e na imprensa, para com o seu discurso subversivo

moscovita, cativar as massas incultas e inocentes que estão à mercê deste tipo de criminosos.

Para não ceder à pressão do juiz e manter Yacubian preso, as autoridades

policiais, na figura do delegado auxiliar Elpídio Reali, mandaram um ofício ao Delegado

Especializado de Estrangeiros no dia 30 de dezembro de 1949, requisitando que fosse

efetuado “com urgência” o embarque do jornalista expulso. No dia anterior, o mesmo

delegado enviou ao cônsul da República do Uruguai em São Paulo um documento solicitando

a este um visto de trânsito “ao cidadão armênio Levon Yacubian”, o qual “deseja ir a

Montevidéu, onde há a mais próxima embaixada da URSS, a fim de receber destino

conveniente”535.

O destino de Yacubian ao ser expulso do país era incerto. O prontuário do

jornalista na Polícia Política informa que funcionários do Ministério de Relações Exteriores

consultaram autoridades polonesas sobre a possibilidade de receberem o indivíduo expulso.

Estas teriam respondido que, de acordo com a legislação da Polônia, Yacubian seria aceito em

território polonês, caso este fosse cidadão soviético536. Ainda que as autoridades brasileiras

tenham pedido para a polícia providenciar os documentos que provassem a nacionalidade de

Yacubian a fim de enviá-lo para a Polônia, isto não foi possível uma vez que ele não tinha tal

origem. A Polícia Política chegou a tal conclusão após pedir junto a Polícia Marítima de

Santos a confirmação da nacionalidade do acusado, que embora tivesse nascido na Síria, se

534 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 535 Idem. 536 Idem.

Page 115: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

114

declarava armênio, enquanto constava nacionalidade “indeterminada” ou “apátrida” em seus

documentos537.

Este cenário ilustra bem a ignorância que pairava na Polícia Política sobre a

situação dos armênios. Como naquele momento a Armênia era uma República Socialista

Soviética, as autoridades inferiam que todos os armênios e descendentes que estavam no

Brasil eram, por consequência, cidadãos soviéticos “adeptos e admiradores de Stalin”538,

ignorando assim que os imigrantes que chegaram ao Brasil saíram de cidades que pertenciam

ao Império Otomano, antes da Revolução Russa ou da anexação da Armênia pela URSS.

Assim sendo, no modo de pensar da Polícia Política, se Levon Yacubian era armênio e a

Armênia era parte da URSS, logo, ele era comunista e cidadão soviético, de forma que a

Polônia poderia recebê-lo após a expulsão do Brasil.

Conforme vimos, a União Armênia de São Paulo, da qual Yacubian participou,

tinha como uma de suas razões de ser o auxílio de armênios que desejavam emigrar para a

República Socialista Soviética da Armênia. O jornal Ararat, do qual o jornalista era um dos

responsáveis, noticiava frequentemente este movimento de repatriação de armênios do mundo

para a “Pátria-Mãe”, que, apesar de ser uma nação diferente daquela de onde eles haviam

saído anos antes, ainda guardava elementos culturais em comum que permitiam que muitos –

porém não todos – armênios da diáspora olhassem para a experiência da Armênia Soviética e

a vissem como uma expressão pátria de seu povo.

Contudo, Yacubian e outros nutriam um sentimento diferente pela Armênia

Soviética. Além de ter a República como uma referência de sua ancestralidade, o jovem

jornalista era um entusiasta de seu regime político. Por conta disso, e talvez imbuído de toda a

atmosfera que cercava a emigração de armênios diaspóricos, Levon Yacubian cogitou a

possibilidade de ir para a RSS da Armênia e a expulsão do Brasil seria um catalisador dessa

ida. Os documentos contidos em seus prontuários no Fundo DEOPS/SP do APESP nos dão

indícios sobre isso. Primeiro, a solicitação de ir para a embaixada da URSS no Uruguai teria

partido dele, segundo a comunicação oficial entre as autoridades paulistanas e uruguaias539,

ainda que o vizinho sul-americano fosse um destino comum de expulsos políticos, segundo

Erick Zen540. O Uruguai foi um dos primeiros países a reconhecer o governo da URSS como

537 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 538 Pront. 98.526 – Ararat. 539 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 540 ZEN, E. (2010). op. cit., p. 100.

Page 116: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

115

legítimo – em 1926 – e a estabelecer com esse país relações comerciais e diplomáticas541, se

tornando rapidamente uma referência para os comunistas de toda a América Latina.

Segundo, o próprio Yacubian declarou à Polícia Política – ainda em 1948, quando

o Ararat e seus coordenadores começaram a ser investigados – que teve interesse de ir à

Armênia, ainda que tal ideia não mais o seduzisse542. Evidentemente, diante do delegado que

tinha conhecimento do teor dos textos do jornalista bem como do apoio à campanha de

repatriação de armênios, negar veementemente que ele próprio tivesse o desejo de ir para a

RSS da Armênia soaria como um cinismo pouco prudente em um depoimento à Polícia

Política. Por isso, Yacubian explicitou tal vontade passada em sua fala. O terceiro e mais

importante indício é a existência, anexado ao seu prontuário, de um formulário em branco da

Embaixada da URSS no Brasil sediada no Rio de Janeiro, de solicitação de repatriamento para

a Armênia Soviética. O documento foi anexado em fevereiro de 1950 ao prontuário do

jornalista543, isto é, após a sua liberdade, e não está claro se o formulário era um dos vários

pertences apreendidos do acusado ou se foi requisitado pela própria Polícia Política a fim de

agilizar o processo de expulsão.

Apesar de toda a tentativa da Polícia Política em expulsar o jornalista Levon

Yacubian, passando por cima da sentença judicial que determinava a sua liberdade, as

autoridades de segurança pública liberaram o jovem armênio em 13 de janeiro de 1950,

acatando uma decisão do Ministro da Justiça Adroaldo Mesquita da Costa, após o acusado ter

cumprido uma última prorrogação de quarenta dias de sua detenção544. Assim, na briga entre

o judiciário e a polícia pela prisão e expulsão do “alienígena subversivo”, por fim, venceu a

Justiça. Entretanto, a Polícia Política deixou suas marcas na vida de Levon Yacubian e na

coletividade armênia de São Paulo.

No relatório do delegado adjunto da Delegacia de Expulsandos, Roberto de

Lorenzi, feito em janeiro de 1949, quando Yacubian ainda não estava preso, mas já era

investigado pela polícia, fica clara a visão que a Polícia Política tinha do jornalista. A

autoridade policial faz um grande discurso sobre os subversivos que atuavam na imprensa e

traziam nos seus textos a solução miraculosa para todos os problemas da sociedade545.

Contudo, para a felicidade da população brasileira, o governo estaria a postos para defender a

todos deste perigo. As autoridades “não permitem que tais ervas se alastrem, sufocando as

541 PINHEIRO, P. (1992). op. cit., p. 133. 542 ZEN, E. (2010). op. cit., p. 100. 543 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 544 Idem. 545 Idem.

Page 117: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

116

boas plantas que, mais do que aquelas, precisam do húmus que pelas primeiras lhes é

furtado”546. Ervas daninhas essas que para o delegado seriam os jornalistas estrangeiros, que

fariam uma “verdadeira guerra química em tempos de paz”, que são como “germes nocivos à

saúde da inteligência e do espírito é um mal tão grande como, para a saúde do corpo, poluir as

águas potáveis com germes do tifo ou do cólera morbus”547.

São recorrentes no relatório do delegado sobre Levon Yacubian tais metáforas

biológicas, comparando a sociedade com um corpo e os que não se encaixavam nos padrões

estabelecidos de comportamento e conduta com “germes” ou “ervas daninhas”. A autoridade

desumaniza o acusado, qualificando-o como uma doença a ser extirpada, não como um

cidadão, ou melhor, como um ser humano. As ideias divergentes daquela entendida como

aceitável pela Polícia Política e pela ordem política posta eram indícios que aquele cidadão

que as alimentava não era mais um homem, com direitos inalienáveis, mas sim um

“alienígena”, que deveria ser neutralizado a todo custo e expulso do corpo hospedeiro. No

caso de Yacubian, o “parasita” em questão, a “cura da doença” viria pela expulsão do

território nacional. Findadas as metáforas, o relatório do delegado prossegue com outro mote

recorrente em discursos de desumanização do outro, do inimigo eleito. Agora, o delegado

coloca Yacubian como traidor, pois na pátria “liberal e democrática” que o acolheu, ele ousou

implantar ideias estranhas à nação, ameaçando instituições como a religião e a família, como

é próprio do comunismo548.

O passo seguinte do delegado Roberto de Lorenzi foi no sentido de desqualificar a

defesa de Levon Yacubian, que segundo ele, “não defende ninguém”, mas somente realiza

ataques às autoridades de segurança pública e desfere argumentos inválidos, como o de que

Yacubian não versava sobre assuntos que diziam respeito ao Brasil, sendo então insustentável

a tese de que ele efetuava uma subversão da sociedade brasileira549. De fato, se analisarmos os

textos de Yacubian tanto no Verelk como no Ararat, verificaremos que a Armênia é a

principal preocupação do jornalista, não sendo a realidade brasileira uma temática eleita como

relevante para a discussão e reflexão naqueles espaços. Todavia, para o delegado, isso é uma

falácia e para provar ele lançou mão de um texto que Levon Yacubian escreveu, no qual o

jornalista defendia que “somente com o auxílio fraternal dos povos soviéticos” a Armênia

encontrou condições para se reerguer diante dos problemas que teve ao longo dos anos.

Roberto de Lorenzi afirmou que tal excerto tem por finalidade inferir que a URSS seria um

546 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 547 Idem. 548 Idem. 549 Idem.

Page 118: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

117

“país generoso e altruísta” que “estendeu a mão fraternal à Armênia”, o que, segundo ele,

seria mentira, pois não é vantagem para nenhum país perder a sua soberania e submeter-se à

Moscou550.

Após citar outro artigo de Yacubian, o delegado reiterou a sua posição que mesmo

sem abordar questões relativas ao Brasil em seus textos, o jornalista enaltecia de tal maneira o

regime soviético que incutia no “espírito das massas (principalmente, as nossas, de

insignificante nível intelectual) [sic]”551 a ideia subversiva e nociva de que uma nação, no

caso, a Armênia, cresceu e prosperou após entregar a sua autonomia à Moscou. E mais, para

Lorenzi, se o regime soviético é tão benéfico quanto afirma o jornalista, o delegado convida

ironicamente

o Sr. Levon Yacubian pregar na ultra-democrática Rússia, vá pregar na Praça Vermelha de Moscou ou na de Vladivostock, na Sibéria [...] terá, assim, uma ótima oportunidade para verificar qual o conceito de lá resolvem os casos de outra maneira, pois, não dispondo de tempo para processos de expulsão, são obrigados a meios... um tanto mais sumários... [sic]552.

Se já não bastasse todo o grau de preconceito, autoritarismo e intolerância do

discurso e da prática da Polícia Política e do Estado para lidar com o inimigo político, o

delegado ainda traz na sua fala a ideia que o sistema ao qual ele pertence seria justo e correto,

na medida em que na URSS a subentendida execução era a ferramenta utilizada para lidar

com os dissidentes do regime. Assim, Levon Yacubian, chamado literalmente de “espião” e

“traidor” pelo delegado, ainda teve que assistir a abertura do processo de expulsão contra ele,

sendo essa a “melhor das hipóteses” defendida por Lorenzi, que não se arriscou a explicitar

textualmente qual seria a pena que ele achava que o jornalista mereceria553.

De janeiro de 1949, quando este relatório foi escrito, até janeiro de 1950, quando

Yacubian foi solto, uma movimentação intensa ocorreu seja na Polícia Política – a fim de

expulsar o jornalista subversivo –, seja numa parcela da coletividade armênia de São Paulo,

que tentava dissuadir as autoridades de segurança pública de punir um de seus membros. O

fato é que depois de solto, não encontramos nas publicações dos armênios de São Paulo mais

contribuições do jornalista. Nos arquivos da Polícia Política, consta apenas um registro de

1976, no qual Yacubian pediu um “nada consta” à polícia para emitir uma carteira de

habilitação554. Em suma, o jornalista não foi expulso do país e nem desistiu de viver em São

Paulo, porém, a repressão da Polícia Política conseguiu calar esta voz dissidente, que não

550 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 551 Idem. 552 Idem. 553 Idem. 554 Idem.

Page 119: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

118

mais se expressou por meio da imprensa armênia no Brasil. Contudo, este não foi o fim do

apoio armênio-brasileiro a Armênia Soviética. O colega de Yacubian, Jacob Bazarian,

continuou por mais algum tempo a dar voz a esta parcela dos seus compatriotas radicados em

São Paulo.

4.2 Jacob Bazarian: de militante comunista a crítico da URSS

De refugiado do genocídio a grande intelectual soviético, passando por

empreendimentos jornalísticos em São Paulo e em Paris, a trajetória de Jacob Bazarian é rica

em elementos para analisarmos tanto o comunismo desse personagem, como também para

refletirmos sobre o modus operandi da Polícia Política na repressão ao comunismo.

Mais do que um membro da coletividade armênia de São Paulo entusiasmado em

algum grau com a Armênia Soviética, como eram a maioria dos armênios encarados como

subversivos pela DEOPS/SP, Bazarian foi um intelectual ativo tanto na Causa Armênia

quanto nos assuntos concernentes ao mundo contemporâneo, sobretudo acerca de filosofia.

Sua rica bibliografia, que inclui alguns livros e dezenas de artigos publicados, facilita o

trabalho do pesquisador que deseja compreender a carreira desse intelectual. Para o nosso

propósito aqui, as obras de Bazarian nos dão pistas mais concretas de sua ação do que

poderíamos inferir apenas analisando as informações que foram filtradas pelos agentes da

Polícia Política.

Jacob Bazarian nasceu na cidade de Marash em 1919, caçula de uma família de

cinco filhos. Após a deterioração da condição de vida dos armênios no Império Otomano, a

família Bazarian se refugiou na cidade de Alepo, Síria em 1922. Em 1926, Jacob e uma parte

da família se mudaram para Marselha, a exemplo de outros milhares de armênios que

buscaram na cidade portuária do sul da França condição de vida melhor do que aquela que

lhes era oferecida no Oriente Médio555.

Em 1928, alguns membros da família Bazarian vieram para o Brasil, no mesmo

contexto da vinda de outros tantos armênios para a América. Em São Paulo, foram recebidos

por um tio já estabelecido na cidade que lhes deu a primeira assistência. Na década de 1930, a

família estava toda reunida no Brasil, com a exceção da mãe, que morreu num hospital

libanês. Após trabalhar de mascate, a família chefiada pelo pai, Artin, e o primogênito,

Karnig, conseguiu acumular capital e abriu a primeira loja em Itapetininga, interior de São

555 BAZARIAN, J. (1988). op. cit., pp. 14-15.

Page 120: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

119

Paulo. Logo, os negócios se ampliaram para outros estabelecimentos comerciais na cidade e

na capital556.

Em meados da década de 1940, Jacob Bazarian já era membro de uma família

estabilizada em São Paulo, o que lhe deu condições financeiras de estudar até o ensino

superior, fato pouco comum entre imigrantes de primeira geração557. Entre 1944 e 1945,

cursou Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo, ao mesmo tempo

em que trabalhava em jornais da capital paulista, dentre eles, o já citado “Hoje”, órgão do

PCB558. Antes disso, contudo, ele havia iniciado os estudos na Faculdade de Medicina da

Universidade de São Paulo, bem como na Faculdade de Filosofia São Bento, abandonando

ambas559. Bazarian também foi discente na Escola de Sociologia e Política, de onde foi

expulso em 1944 por conta de seu envolvimento com o PCB, que naquele momento era uma

agremiação ilegal560.

Em 1945, enquanto completava a licenciatura em Filosofia na Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras, Bazarian requisitou sua cidadania brasileira561. Entretanto, três

anos depois de solicitar a naturalização, o filósofo foi alvo de investigação do Estado por

atividades contra a ordem do mesmo país do qual ele tentava se tornar cidadão legítimo.

As investidas da Polícia Política contra o filósofo foram motivadas pela criação do

jornal “Ararat – a voz do povo armênio” em outubro de 1946. A publicação, como vimos na

ação movida contra Levon Yacubian, era acusada pela Polícia Política de ser panfletária e

exaltar o comunismo. Nesse sentido, em 1948 iniciou-se uma investigação contra Bazarian

que resultaria no pedido de cancelamento da naturalização e a consequente expulsão do

armênio562.

A investigação ficou por conta do delegado Roberto de Lorenzi, o mesmo que, no

ano seguinte, seria implacável no caso Yacubian. Em outubro de 1948, em depoimento à

autoridade policial a fim de esclarecer a razão de ser da publicação, Bazarian afirmou que o

jornal nasceu para defender as históricas reivindicações armênias às terras ocupadas pela

Turquia e, assim sendo, garantir dimensões territoriais vastas o suficiente para receber de

volta todos os armênios que precisaram se refugiar em diversos países do mundo. Segundo o

556 BAZARIAN, J. (1988). op. cit., pp. 15-17. 557 TRUZZI, O. (2009). op. cit., pp. 145-146. 558 BAZARIAN, J. (1973). op. cit., p. 139. 559 BAZARIAN, Jacob. (1986). Intuição Heurística: uma análise científica da intuição criadora. São Paulo: Alfa-Ômega, 3ª ed., p. 29. 560 BAZARIAN, Jacob (1991). Por que Nós, os Brasileiros, Somos Assim? Os traços psicológicos característicos dos brasileiros, suas causas e consequências. São Paulo: Alfa-Ômega, 2ª ed., p. VIII. 561 BAZARIAN, J. (1973). op. cit., p. 153. 562 Pront. 95.621 – Jacob Bazarian.

Page 121: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

120

filósofo, o jornal não teria uma linha política oficial e clara, mas seria mais um veículo de

união dos armênios em prol da sua causa. Bazarian complementou frisando que o jornal era

registrado legalmente e era impresso em língua portuguesa, portanto, não teria nada a

esconder563.

Não por acaso, os objetivos da publicação declarados pelo seu principal

responsável são os mesmos que norteavam a União Armênia de São Paulo e os textos do

boletim interno Verelk. Segundo depoimento de Levon Yacubian, Bazarian foi vice-

presidente nas duas primeiras gestões da entidade, que tinham o jornalista como secretário564,

entre 1944 e 1946. Durante esse período, podemos encontrar com frequência nas páginas do

Verelk as ideias e contribuições do filósofo para o boletim. Textos sobre a eleição de

deputados armênios para o Supremo Soviete565, a repatriação de armênios566, as

reivindicações territoriais históricas567, ou ainda sobre a coletividade armênia de São Paulo568

foram escritos por Bazarian, transformando-o no principal articulista do boletim, ao lado do

jovem Yacubian. Jacob Bazarian encontrou nas páginas do Verelk o canal para dar vazão às

suas ideias e anseios sobre a Armênia Soviética e, no exercício da função de colaborador do

boletim interno da UASP, nasceu a ideia de criar um periódico exclusivamente para esse fim.

Assim, em 1946 surgiu o jornal “Ararat – a voz do povo armênio”, capitaneado

por Jacob Bazarian, com o suporte de Levon Yacubian e a colaboração de Mary Moraes

Apocalipse569. Essa última, então com 25 anos, era esposa de Bazarian na época da fundação

do jornal e a responsável legal pela publicação, por força da exigência da legislação da época

que obrigava que o diretor de um órgão de imprensa deveria ser um brasileiro nato, a fim de

dificultar a expressão dos imigrantes tidos como subversivos nos jornais e revistas.

Demoraram dois anos para as autoridades policiais ficharem Bazarian como um

elemento perigoso à ordem pública diante de seu papel à frente do Ararat. Curiosamente, ao

contrário do que ocorreu com Yacubian, não consta no prontuário do filósofo nenhuma

menção às suas atividades anteriores na UASP ou acusações baseadas nos textos escritos no

Verelk, exceto por compor a diretoria do “Subcomitê Russo em São Paulo de Socorro às

Vítimas de Guerra”, em 1945, entidade que, embora legal, funcionava sob vigilância e

563 Pront. 95.621 – Jacob Bazarian. 564 Pront. 73.631 – Levon Yacubian. 565 VERELK: boletim informativo da Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. São Paulo: nº. 9-10, abril-maio de 1946, p. 4 (AHK). 566 Op. cit., nº 11, junho de 1946, p. 9 (AHK). 567 Op. cit., nº 12, julho de 1946, p. 9 (AHK). 568 Op. cit., nº 13, agosto de 1946, p. 15 (AHK). 569 Pront. 97.180 – Mary Apocalipse.

Page 122: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

121

desconfiança da Polícia Política570. Sequer as atividades do intelectual dentro do PCB foram

citadas pelas autoridades como forma de agravar as acusações.

Entretanto, para o delegado Roberto de Lorenzi, as páginas do Ararat já bastavam

para incriminar Jacob Bazarian. Segundo o investigador, os subversivos abusariam da

liberdade brasileira e o comunismo seria incompatível com a democracia do país:

O regime aqui vigente, embora para muitos haja necessidade de verdadeira ginástica intelectual para isso compreender, é um regime democrático, onde todas as liberdades são asseguradas, onde se admite e se respeita a pluralidade político-partidária, onde se permite a qualquer do povo a disputa, por intermédio dos partidos, na forma clássica dos postulados de democracia francesa, dos postos políticos, dos de menor aos de maior responsabilidade e representação, inclusive a presidência da República, onde não existem privilégios de classes, nem diferenças de raças, religiões ou crenças, para a aquilatação dos valores individuais571.

Percebemos a reprodução do discurso dominante do Brasil como país da democracia racial, da

liberdade de pensamento e de credo, onde diferentes ideias não só são livres para florescer,

mas também são protegidas pelo Estado e seus agentes, como o Departamento de Ordem

Política e Social. Nessa sociedade perfeita idealizada, sem privilégios de classes, na qual

qualquer cidadão poderia se tornar até presidente da República, o comunismo era o principal

inimigo, elemento desarticulador dessa paz construída sobre os pilares franceses de

democracia.

Para Roberto de Lorenzi, a principal arma do Partido Comunista para ruir este

castelo da democracia era a imprensa, tratada como “alavanca do comunismo mundial” pelo

delegado, pois o jornal “penetra em todos os lares, é passado de mão em mão, e por ele se

fazem as maiores campanhas de agitação, de ação revolucionária, de propaganda dos

métodos, de ensino das ações, de orientação dos manipuladores das massas [...]”572. Logo, a

empreitada editorial de Bazarian e Yacubian seria um instrumento do comunismo para agitar

e subverter a sociedade brasileira.

570 Pront. 1.325 – Subcomitê Russo em São Paulo de Socorro às Vítimas de Guerra. 571 Pront. 95.621 – Jacob Bazarian. 572 Idem.

Page 123: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

122

Nesse sentido, a

justificativa que o Ararat nada

mais era do que um órgão de

reivindicação dos direitos

históricos armênios não

convenceu o delegado adjunto.

Para ele, essa era uma desculpa

grosseira, pois, as páginas do

jornal de fato serviam para

glorificar Stalin e seus feitos, bem

como tratar o regime soviético

como “a oitava maravilha do

mundo”573 e este tipo de

propaganda não era condizente

em nada com a repatriação de

armênios e afins. Ainda segundo o delegado:

não é preciso, pois, mais do que a simples leitura de um único número do jornal “Ararat” para pulverizar as declarações de Jacob Bazarian e para ficar evidente a má fé com que as prestou: a finalidade do Ararat outra não é, do que a propaganda do regime soviético entre nós574.

Involuntariamente, o delegado assumiu o modo como procedeu a investigação: após a leitura

de um único número da publicação, considerou o jornal subversivo e propagandístico do

comunismo em São Paulo. Assim sendo, o infrator Jacob Bazarian deveria ter o seu pedido de

naturalização cassado pelas autoridades, por atentar contra a ordem democrática de um país

onde a liberdade de pensamento impera, seguindo o raciocínio de Lorenzi.

Ao contrário do que aconteceu com Boyadjian e Yacubian, a dupla presa nos

correios, não é possível encontrar no prontuário de Bazarian documentação referente à

detenção, ou mesmo saber se houve um processo judiciário contra ele. Tampouco é

mencionado o resultado do processo administrativo de expulsão ou da cassação da

nacionalidade concedida ao filósofo. Os fatos que sabemos sobre a vida de Jacob Bazarian

após a investigação não constam nos arquivos da DEOPS/SP, mas sim nos textos que ele

próprio escreveu.

573 Pront. 95.621 – Jacob Bazarian. 574 Idem.

Figura 15: Na imagem, estão Agop Boyadjian (em pé, a esquerda), Levon Yacubian (sentado à sua frente) e Jacob Bazarian (sentado, a direita), juntamente de outros armênios entusiastas do comunismo em um encontro em Nova York em 1947. Ao fundo, é possível ver o brasão de armas da RSS da Armênia. Fonte: O CRUZEIRO. Rio de Janeiro: ano XXI, nº 47, 10 de setembro de 1949, p. 79.

Page 124: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

123

Em 1949, segundo a biografia que consta em um de seus livros, Bazarian foi

processado, partindo assim para a França a fim de escapar da perseguição política no

Brasil575. Lá, continuou os estudos em Filosofia, se envolveu com o Partido Comunista

Francês e conheceu personalidades como Jean-Paul Sartre e Pablo Picasso576. Em Paris,

conforme lembrou a revista “O Cruzeiro”, Bazarian participou do “‘Congresso Mundial da

Paz’, realizado em Paris, e no qual estiveram presentes também os comunistas – Mário

Schemberg, Caio Prado Júnior, Jorge Amado, Carlos Sellar e outros a respeito de que, aliás, o

‘Ararat’ deu farto noticiário”577. Alguns desses intelectuais, como o escritor baiano, eram

amigos pessoais de Bazarian, o que mostra a sua capilaridade no PCB.

Em território francês, o filósofo se envolveu na redação do jornal Arménie, órgão

da juventude comunista armênia daquele país, e também militou na célula universitária do

Partido Comunista Francês. Contudo, ele permaneceu apenas um ano na França, de onde foi

expulso em 1950 por conta das suas atividades políticas, rumando para Yerevan, capital da

Armênia Soviética578.

A ida de Bazarian para a URSS, onde ele viveria por dezesseis anos, é um ponto

de virada na trajetória do filósofo. Na Armênia Soviética, informa-nos um jornalista em

resenha anexada ao livro “Mito e Realidade sobre a União Soviética”579, Bazarian aprendeu

russo e armênio, revelando assim que o mesmo não era fluente no idioma de seus

compatriotas antes de morar na RSS da Armênia. Isso pode explicar o porquê de, ao contrário

do Verelk que era uma publicação bilíngue – ainda que impresso de forma semiartesanal –, o

jornal Ararat ser inteiramente em português.

No mesmo ano de sua chegada à Armênia, Bazarian ingressou na Academia de

Ciências da Armênia a fim de obter o título de doutor em Filosofia. Envolto no cotidiano

dessa República Socialista Soviética, Jacob Bazarian estudou e ganhou notoriedade entre os

seus compatriotas, o que lhe rendeu o mandato de deputado do Soviete Supremo da

Armênia580. Porém, a sua carreira política, que começou no seio da coletividade armênia de

São Paulo, passando pela França e culminando na Armênia, terminou em 1954, quando ele a

abandonou de vez e partiu para Moscou, para se dedicar inteiramente aos estudos

filosóficos581.

575 BAZARIAN, J. (1973). op. cit., p. 154. 576 Ibid. 577O CRUZEIRO. Rio de Janeiro: ano XXI, nº 47, 10 de setembro de 1949, p. 6. 578 BAZARIAN, J. (1992). op. cit., p. VIII-IX. 579 BAZARIAN, J. (1973). op. cit., p. 138. 580 Ibid., p. 155. 581 Idem.

Page 125: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

124

A tese de Jacob Bazarian defendida na URSS versa sobre a filosofia latino-

americana e foi defendida em 1956. Na opinião do filósofo, o brasileiro Tobias Barreto foi o

primeiro materialista a difundir as suas ideias no Brasil e o mesmo teria sido o maior filósofo

do seu tempo em toda a América Latina582. A tese foi aceita pela academia em Moscou, mas

foi muito contestada por intelectuais no Brasil, cujas críticas Bazarian publicou em anexo à

segunda edição de seu livro “Mito e Realidade na União Soviética”583.

Em 1959, o filósofo ingressou nas fileiras do Partido Comunista da União

Soviética, com a tarefa de organizar o Instituto de Filosofia. A partir de 1962, ele começou a

lecionar Filosofia Marxista para estudantes brasileiros que iam até Moscou para se formarem

nas instituições soviéticas voltadas aos militantes estrangeiros584. Esse foi provavelmente o

auge da carreira de Jacob Bazarian na URSS, quando ele tinha acesso à cúpula do PCUS e à

nomenklatura. Segundo o seu amigo, discípulo e editor, Fernando Mangarielo, Bazarian era o

elo entre o Comitê Central do PCUS e Luís Carlos Prestes por falar português e ser um

intelectual dos quadros da Academia de Ciências da URSS585.

Foram dezesseis anos de residência na URSS, a maior parte deste tempo em

Moscou. Bazarian, já desquitado de Mary Apocalipse desde a época do processo do jornal

Ararat, casou-se com uma russa e teve dois filhos586. O filósofo viveu como investigador e

professor do Instituto de Filosofia da Academia de Ciências, publicando dezenas de artigos.

Em março de 1964, ele vem ao Brasil para recolher material para pesquisas futuras587.

Contudo, o golpe militar que aconteceria no final daquele mês o obrigaria a voltar para

Moscou. Pouco tempo mais tarde, em agosto de 1966, voltou sozinho ao Brasil alegando

problemas de saúde588, após ter se “divorciado do comunismo”, conforme suas próprias

palavras em artigo publicado na revista Armênia589 e anexado ao livro supracitado590.

Depois de passar anos editando um jornal entusiasta da Armênia Soviética em São

Paulo, mudar-se para a França, onde se aproximou do Partido Comunista local e, por fim,

582 BAZARIAN, J. (1973). op. cit., p. 143. 583 Ibid., pp. 146-148. 584 BAZARIAN, J. (1992). op. cit., pp. IX-X. 585 Fernando Mangarielo. Proprietário da editora Alfa-Ômega. Entrevista concedida na sede da editora no bairro de Pinheiros, São Paulo, 15/05/2012. 586 BAZARIAN, J. (1973). op. cit., p. 65. 587 BAZARIAN, J. (1992). op. cit., p. X. 588 Idem. 589 Artigo este que foi anexado ao seu prontuário pela Polícia Política em 1971 como prova das suas práticas comunistas, ainda que o texto verse sobre o rompimento do autor com esta postura política. Pront. 95.621 – Jacob Bazarian. 590 BAZARIAN, J. (1973). op. cit., pp. 63-82.

Page 126: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

125

viver por dezesseis anos na URSS, o que teria feito Bazarian “divorciar-se do comunismo”,

deixar mulher e filhos em Moscou para retornar ao Brasil em pleno regime militar?

Havia seis anos que Jacob Bazarian morava na URSS quando aconteceu o XX

Congresso do Partido Comunista da União Soviética, no qual Nikita Kruschev, primeiro-

secretário do Partido, denunciou os crimes cometidos pelo seu antecessor, Josef Stalin591. As

denúncias balançaram os alicerces dos partidos comunistas pelo mundo, ainda que tivessem

demorado anos para chegar ao amplo conhecimento da própria população soviética592. Nesse

ínterim, muitos comunistas abandonaram os partidos, descrentes de que a postura política que

causou um fenômeno totalitário na URSS pudesse ser regenerada.

Após o XX Congresso, Bazarian ainda viveu por mais dez anos em Moscou, o que

nos faz pensar que ele não foi abalado imediatamente pelas revelações de Kruschev acerca de

Stalin, quem outrora o filósofo e Levon Yacubian chamaram de “pai dos armênios”, nas

páginas do Ararat593. Tal alcunha causou frisson na coletividade paulista. Josef

Vissarionovich Dzhugashvili Stalin nunca foi ponto pacífico entre os armênios. De origem

georgiana, país vizinho e com divergências históricas com a Armênia, à frente do governo da

URSS em 1923, Stalin colocou os territórios armênios de Artsakh – Nagorno Karabakh, com

95% de população armênia – e Nakhichevan sob tutela do Azerbaijão594.

Fernando Mangarielo argumenta que uma das motivações para a saída de

Bazarian da URSS foi o forte cerco à liberdade de expressão e pensamento. Segundo o editor

e discípulo do filósofo, a defesa pública das teses de Caio Prado Jr. – a quem conhecia

pessoalmente – por parte de Bazarian em Moscou atraiu a antipatia de alguns quadros do

Comitê Central do PCUS e de colegas da Academia de Ciências595. Sob pressão, ele

conseguiu ajuda junto ao diplomata brasileiro Dário Moreira de Castro Alves, que se

encontrava em Moscou naquele momento, para deixar o país em segurança e voltar a São

Paulo em 1966596. A gratidão de Bazarian ao diplomata e a outros membros da embaixada

591 REIS FILHO, Daniel Aarão (2007). Uma Revolução Perdida: a história do socialismo soviético. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2º edição atualizada, pp. 196-197. 592 Ibid., p. 198. 593 ARARAT – a voz do povo armênio. Ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 1. 594 Os armênios nunca aceitaram essa decisão, principalmente sobre Artsakh, e reivindicam até hoje o direito sobre esse território. Na década de 1980, uma guerra estourou entre armênios e azeris, mostrando ao mundo que as questões étnicas na URSS não estavam resolvidas. SEGRILLO, Angelo (2000). O Declínio da URSS: um estudo das causas. Rio de Janeiro: Record, p. 351. 595 Fernando Mangarielo. Proprietário da editora Alfa-Ômega. Entrevista concedida na sede da editora no bairro de Pinheiros, São Paulo, 15/05/2012. 596 Idem.

Page 127: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

126

brasileira em Moscou foi explicitada na dedicatória do “Mito e Realidade sobre a União

Soviética”597.

Em carta enviada a Jacob Bazarian, Zaven Karakhanian – partidário da Federação

Revolucionária Armênia598, ou seja, opositor ao comunismo soviético – pede explicações ao

filósofo por esse ter abandonado o comunismo. Relembrando o episódio polêmico da alcunha

dada à Stalin nas páginas do Ararat, Karakhanian perguntou ao compatriota “o que se passou

a respeito de seus ideais políticos e quais são eles atualmente, pois muita dúvida paira no ar a

respeito deles. Abra seu coração e diga se sua posição anterior [o comunismo] era fruto de sua

imaturidade”599. Tal questionamento ensejou o artigo supracitado explicando o “divórcio”.

Bazarian inicia o texto explicando porque ele se tornou comunista. Relembrando

os massacres e perseguições os quais o povo armênio sofreu durante a história, o filósofo se

coloca como vítima das injustiças que acometeram os armênios. Diante da inoperância das

grandes potências e da Igreja face ao genocídio armênio, Bazarian confessa ter sido simpático

às ideias de Hitler, que visavam, segundo o filósofo, derrotar o imperialismo e o

clericalismo600.

Contudo, o ataque à Armênia Soviética no contexto da política expansionista da

Alemanha nazista fez com que Bazarian revisse suas posições. Assim, procurou na literatura

marxista as respostas para as suas indagações acerca do mundo em que vivia. Nas palavras do

autor:

eu fui me convencendo cada vez mais que o marxismo-leninismo e o comunismo era a única solução para o estabelecimento da paz e da justiça social, tanto para o meu povo [armênio], quanto para todos os povos do nosso sofrido planeta [...] em uma palavra – tornei-me adepto fervoroso do marxismo e do regime soviético por acreditar piamente que só eles realizariam meu ideal de justiça social601.

Considerando-se um privilegiado dentre os comunistas, por ter sido contemplado

com a oportunidade de viver por dezesseis anos na URSS, Bazarian estava convencido que a

melhor forma de ver o erro no qual o comunismo consistia era viver por algum tempo no país.

Assim sendo, na opinião do filósofo, se algum dia o regime soviético caísse, seria fruto da

crítica interna de seus componentes, não dos ataques externos dos opositores espalhados pelo

mundo602.

597 BAZARIAN, J. (1973). op. cit., p. 13. 598 Revista ARMÊNIA . São Paulo: ano II, nº 13, novembro/dezembro de 1968, p. 9 (AHK). 599 Op. cit., ano III, nº 16, maio/junho de 1969, p. 3 (AHK). 600 BAZARIAN, J. (1973). op. cit., p. 68. 601 Ibid., p. 69. 602 Ibid., p. 70.

Page 128: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

127

Porém, Bazarian enxergou também pontos positivos na URSS. Aos seus olhos, a

mudança da estrutura servil da Rússia para o sistema de produção em funcionamento após a

Revolução de Outubro e a estrutura de assistência social oferecida ao cidadão eram

impressionantes. Todavia, para o autor, o mesmo poderia ser obtido através do capitalismo,

sem a necessidade da violenta repressão soviética para tal. A obliteração das liberdades e

necessidades individuais, bem como o fim dos estímulos materiais que impulsionam qualquer

indivíduo, foram postos pelo filósofo como as principais causas da crise soviética que ele

diagnosticava no final da década de 1960603.

Além disso, o motivo que fez o jovem Jacob Bazarian se encantar pelo

comunismo e pela URSS não existia mais. A manutenção do torrão nacional armênio após

anos de investidas turcas, bem como a luta pela retomada dos territórios ocupados pela

Turquia eram fatores sedutores para apoiar a República Socialista Soviética da Armênia.

Entretanto, após os quatro anos em que viveu na Armênia, Bazarian chegou à conclusão que a

“igualdade de direitos, a soberania e a autodeterminação da Armênia” não existiam de fato,

sendo apenas formalidades contidas na Constituição soviética604. Outro erro crucial dos

dirigentes soviéticos, na avaliação do filósofo, foi acreditar que o comunismo – benéfico para

os russos, em sua opinião – seria o regime mais adequado para todos os povos que

compunham a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas605. Assim sendo, por acreditar em

uma Armênia livre e independente, Bazarian se tornou opositor da URSS, que passou a ser

mais um dos muitos opressores que subjugaram a sua pátria.

Ao adotar tal postura, Jacob Bazarian se aproximou do discurso dos seus antigos

adversários na coletividade armênia em São Paulo, os partidários da Federação

Revolucionária Armênia. Contudo, o filósofo se distanciou de tal discurso ao afirmar que

àquela altura, a Armênia não poderia se separar da URSS, pois enfraquecida após anos como

RSS, não teria como resistir aos ataques turcos que viriam com a aquiescência dos países

imperialistas606.

Em suma, Bazarian se declara um iludido pelos “apologistas do regime soviético”

dos quais foi leitor quando era jovem607. Anos depois, mais maduro e após ter passado

dezesseis anos na URSS, o filósofo se viu na posição de ser um crítico do regime pelo qual

lutou por tanto tempo. Em artigos como o que acabamos de analisar, ou em outros como

603 BAZARIAN, J. (1973). op. cit., pp. 71-72. 604 Ibid., p. 75. 605 Ibid., p. 79. 606 Ibid., p. 75. 607 Ibid., p. 65.

Page 129: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

128

“Comunista, onde estás que não respondes?”608, ou ainda em “Carta aberta aos

comunistas”609, o autor concentra esforços em relatar os males da postura política lançando

mão do argumento de autoridade de quem viveu a realidade soviética, envolto no “ópio da

religião comunista”610: “Quem te diz isso [as críticas ao comunismo] não é renegado, nem

agente do DOPS ou da CIA. Quem te diz isso já foi membro do Partido Comunista do Brasil e

viveu 16 anos na URSS, onde foi deputado e membro do Partido Comunista da União

Soviética”611.

A publicação do livro “Mito e Realidade sobre a União Soviética: análise

imparcial do regime soviético por um ex-membro do Partido Comunista” em 1970, no qual

podemos encontrar os artigos supracitados, causou diferentes reações no público leitor.

Algumas pessoas escreveram cartas ao autor em regozijo à sua nova postura política. Dentre

estes leitores entusiastas da nova obra de Bazarian, estavam o então presidente Emílio

Garrastazu Médici, símbolo dos anos mais sombrios da história contemporânea do Brasil, e o

Ministro da Educação, Jarbas Passarinho. Os setores da esquerda, obviamente, renegaram

Jacob Bazarian, como o mesmo menciona em prefácio ao seu livro, contudo, sem reproduzir o

teor das discordâncias ou o nome de seus críticos612. Até mesmo o seu editor e amigo,

Fernando Mangarielo, que iria publicar todas as obras de seu mentor a partir de 1973 a partir

da fundação da editora Alfa-Ômega, se recusou a publicar as edições seguintes dessa obra

crítica à URSS por não concordar com o seu teor, sendo o “Mito e Realidade” o único livro de

Bazarian que não foi editado pela empresa de Mangarielo613.

É verdade que o terror stalinista provocou a autocrítica em muitos membros dos

Partidos Comunistas pelo mundo, que abandonaram essas entidades em busca de novas

alternativas políticas. Entretanto, muitos permaneceram fiéis às posturas da esquerda, criando

novos grupos e agremiações nas quais poderiam militar pela derrota do capitalismo e pelo

socialismo. Jacob Bazarian pertence à outra frente de ex-comunistas: os que negaram a

história pessoal que tinham no Partido Comunista – e até mesmo na URSS, no caso do

filósofo – e engrossaram as fileiras contra a esquerda radicalizada. Esse movimento é

percebido pela historiadora Mary Matossian como sendo comum a muitos dos cerca de cem

608 BAZARIAN, J. (1973). op. cit., pp. 83-89. 609 Ibid., pp. 115-134. 610 Ibid., p. 86. 611 Ibid., p. 89. 612 Ibid., p. 20. 613 Fernando Mangarielo. Proprietário da editora Alfa-Ômega. Entrevista concedida na sede da editora no bairro de Pinheiros, São Paulo, 15/05/2012.

Page 130: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

129

mil armênios que emigraram da diáspora para a URSS, que se tornaram os principais críticos

do regime soviético após algum tempo vivendo na RSS da Armênia614.

Não obstante ter tecido severas críticas ao sistema político no qual militou por

anos, Bazarian permitiu ser endossado por figuras como Médici e frequentou os mesmos

círculos sociais que altos funcionários do Departamento de Ordem Política e Social, como o

delegado Alcides Cintra Bueno Filho, amigo de Karnig, irmão mais velho de Jacob615.

Após passar algum tempo escrevendo artigos sobre o cotidiano na URSS para

revistas e jornais brasileiros, Jacob Bazarian lançou-se em um novo empreendimento

jornalístico em junho de 1967: a revista “Armênia”. Definida pelo próprio como imparcial616,

a publicação noticiava amplamente os acontecimentos da coletividade armênia do Brasil –

principalmente de São Paulo, mas com destaque também para o Rio de Janeiro –, bem como

as mais importantes notícias sobre a Causa Armênia e a República Socialista Soviética,

embora com menor ênfase do que no Verelk e Ararat. O caráter militante de outrora

praticamente desapareceu.

A existência da revista nos permite mensurar o quão influente e conhecido

Bazarian era na coletividade armênia em São Paulo, mesmo passando muitos anos distante

dos seus compatriotas. Ainda que levemos em consideração o fato que seu irmão mais velho,

Karnig Bazarian, era um proeminente benemérito da coletividade, membro de diversas

entidades e destacado homem de negócios, parece-nos que a nova fase de Jacob agradou os

seus pares, que contribuíam maciçamente com a revista Armênia, ainda que seja possível

encontrar nas páginas de seu periódico constantes reclamações sobre a saúde financeira da

publicação. Em uma “lista de ouro” publicada em um dos números da revista, contamos 413

assinantes e anunciantes de diversos estados do país e até mesmo do Líbano, Turquia, França,

Argentina, EUA e Inglaterra617. É possível encontrar nas páginas da revista notas sobre

festividades da União Geral Armênia de Beneficência (UGAB)618, bem como acerca dos

eventos da Federação Revolucionária Armênia (FRA)619, duas forças políticas importantes no

seio da coletividade e tradicionalmente situadas em polos diferentes. Isso mostra o equilíbrio

no qual Bazarian vivia e mantinha a sua publicação.

614 Em “A vida no Estado armênio da URSS”. O Estado de São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1970 (AHK). 615 BAZARIAN, J. (1988). op. cit., p. 69. 616 BAZARIAN, J. (1973). op. cit., p. 65. 617 Revista ARMÊNIA . São Paulo: ano I, nº 5, janeiro/fevereiro de 1968, pp. 3-4 (AHK). 618 Op. cit., ano II, nº 13, novembro/dezembro de 1968, pp. 8-10 (AHK). 619 Op. cit., ano II, nº 11, setembro de 1968, pp. 5-7 (AHK).

Page 131: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

130

Apesar da nova fase na vida de Bazarian, Fernando Mangarielo nos revelou que a

revista Armênia – onde o próprio trabalhou como colaborador de Bazarian desde o primeiro

número620 – recebia um pequeno aporte financeiro da agência soviética de notícias Novosti –

APN, na sigla em russo – para que a publicação continuasse a existir621. Tal afirmação de

Mangarielo pode ser comprovada pela quantidade de imagens que ilustram as páginas da

revista Armênia cujos créditos são dados à APN, bem como algumas matérias que foram

traduzidas e publicadas no periódico622. O editor de Bazarian afirma ainda que alguns

exemplares da revista eram enviados para a embaixada da URSS no Rio de Janeiro, como

contrapartida pelo aporte financeiro623. Provavelmente, as revistas de Bazarian eram enviadas

para outras embaixadas soviéticas no mundo e para Moscou, da mesma forma que acontecia

com periódicos pró-soviéticos editados em outros países, como por exemplo, no México624.

Porém, em maio de 1969 foi publicado o último número da revista Armênia, que

nos meses anteriores ao seu fechamento enfrentava problemas financeiros graves, sempre

explicitados pelo editor em suas páginas. Nesse número de encerramento, Bazarian publicou o

debate que teve com Zaven Karakhanian sobre o “divórcio” do comunismo, sendo a primeira

vez em três anos de publicação que debates políticos foram travados abertamente na

revista625. Na mesma edição, há uma cobertura ampla à inauguração da Fundação Karnig

Bazarian, instituição de ensino superior aberta pelos cunhados de Jacob e patrocinada por seu

irmão mais velho em Itapetininga, no interior de São Paulo626. Nessa Fundação, Jacob

Bazarian se tornou professor de sociologia nas faculdades de Direito, Administração e

Relações Públicas627.

A revista Armênia não foi investigada pelas autoridades da Polícia Política como

aconteceu com o jornal Ararat e em menor medida, com o Verelk. A única referência que

temos a ela é o último número anexado ao prontuário de Jacob Bazarian como uma prova do

seu afastamento do comunismo, após este pedir um “nada consta” à DEOPS/SP em 1971 a

fim de regularizar a sua situação junto ao Ministério da Educação e Cultura, para lecionar na

Fundação Karnig Bazarian628.

620 Revista ARMÊNIA . São Paulo: ano I, nº 2 Julho de 1967, p. 18 (AHK). 621 Fernando Mangarielo. Proprietário da editora Alfa-Ômega. Entrevista concedida na sede da editora no bairro de Pinheiros, São Paulo, 15/05/2012. 622 Revista ARMÊNIA . São Paulo: ano II, nº 11, setembro de 1968, pp. 17-18 (AHK). 623 Depoimento concedido na sede da Editora Alfa-Ômega. São Paulo, 15/05/2012. 624 Conforme registrou a Polícia Política, o Ararat recebeu alguns exemplares do boletim informativo da embaixada soviética no México. Pront. 98.526 – Ararat. 625 Revista ARMÊNIA . São Paulo: ano III, nº 16, maio/junho de 1969, pp. 3 e 13-15 (AHK). 626 Ibid., p. 25. 627 BAZARIAN, J. (1973). op. cit., p. 155. 628 Pront. 95.621 – Jacob Bazarian.

Page 132: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

131

Aparentemente, ao voltar da URSS, Jacob Bazarian teria abandonado os ideais de

esquerda e decidido partir para um empreendimento jornalístico comunitário desvinculado de

suas antigas posições político-partidárias. Contudo, o aporte financeiro – por menor que tenha

sido – da agência soviética de notícias Novosti nos indica que ainda havia um vínculo do

filósofo com as suas antigas ideias. Findada a Armênia, Bazarian se volta para a vida

acadêmica, como professor da Fundação patrocinada por seu irmão. A docência e as

atividades acadêmicas de Bazarian fogem ao recorte temporal deste trabalho, mas é válido

pontuar que, como professor universitário, o filósofo publica diversas obras de filosofia e

sociologia embebidas do materialismo dialético desenvolvido em anos de atividades na

Academia de Ciências na URSS. Em 1984, Jacob Bazarian fundou com Fernando Mangarielo

a revista Socialismo e Democracia, periódico destinado aos debates dos temas relevantes à

esquerda naquele período. Segundo Bazarian, a revista deveria ser um espaço livre de

partidarismos e aberta a todas as correntes políticas que estivessem em busca da Democracia

Socialista629. Na Socialismo e Democracia, importantes atores políticos do passado e daquele

momento, como Luís Carlos Prestes, Luiz Inácio Lula da Silva, Ulysses Guimarães, Heitor

Ferreira Lima, José Genoíno, Paul Singer, Francisco Weffort, Frei Betto, dentre outros,

assinaram artigos ou entrevistas e contribuíram para o fomento dos debates a fim de

“enriquecer seus conhecimentos teóricos, a fim de facilitar-lhes a consecução dos nossos

objetivos socialistas”630, segundo Bazarian. Ou seja, através da academia, o filósofo recuperou

a sua ação política de esquerda que parecia ter sido abandonada após a sua saída da URSS. A

trajetória política sinuosa de Jacob Bazarian pode ser muito bem traduzida na reflexão que

Fernando Mangarielo afirma ser a “quintessência” do pensamento de seu mestre: “a vida é

contraditória por excelência e a contradição é a essência da própria vida”631.

Da teoria comunista dos livros de Filosofia até chegar a fomentar um jornal de

esquerda e viver a experiência socialista soviética por dezesseis anos, Jacob Bazarian

construiu a sua trajetória como o principal nome do comunismo dos armênios em São Paulo

entre as décadas de 1940 e 1960, embora tenha revisto os seus antigos ideais em 1970. O

silêncio e o posterior desaparecimento de Levon Yacubian – seu companheiro de luta política

–, não nos permite dizer se a crítica aos tempos de “subversão” também atingiu o jornalista do

Ararat. Tendo isto ocorrido ou não, o fato é que as páginas do jornal idealizado por Bazarian

629 BAZARIAN, Jacob (1986). “Três anos em defesa do Socialismo e da Democracia”. In: Socialismo e Democracia. São Paulo: Alfa-Ômega, nº 12, outubro-dezembro de 1986, p. 7. 630 Idem. 631 Fernando Mangarielo. Proprietário da editora Alfa-Ômega. Entrevista concedida na sede da editora no bairro de Pinheiros, São Paulo, 15/05/2012.

Page 133: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

132

e Yacubian ficaram marcadas tanto nos prontuários da Polícia Política, quanto na memória da

coletividade como expressão máxima do comunismo armênio em São Paulo. Para

exemplificar o que de fato era este comunismo peculiar deste grupo de imigrantes,

analisaremos a partir de agora o conteúdo de alguns números do Ararat.

4.3 “Ararat – a voz do povo armênio”

De uma forma panorâmica, o contexto da criação do jornal Ararat – a voz do povo

armênio já foi dado durante a análise da trajetória de seus idealizadores e colaboradores.

Cabe-nos agora refletir de forma mais aprofundada sobre o conteúdo dessa publicação e qual

era a informação que o jornal emitia para a coletividade armênia de São Paulo e para os

armênios espalhados pelo país, uma vez que o Ararat circulava em diversos estados do Brasil.

O título da publicação é carregado de significados. Ararat é a montanha bíblica

onde a arca de Noé teria encalhado após o Dilúvio e a partir desse lugar, um mundo novo e

purificado se iniciou632 e em torno da montanha sagrada, surgiram os povos que deram origem

aos armênios, que se tornariam o primeiro povo a adotar o cristianismo como religião de

Estado em 301633. Assim, o Monte Ararat é visto pelos armênios como um lugar sagrado da

sua religião e ancestralidade. Entretanto, com a conquista do reino da Armênia em 1064 pelos

turcos seljúcidas, as terras armênias foram incorporadas aos impérios que seguiram, inclusive

ao Otomano634. Anos mais tarde, após o genocídio e a recusa da República da Turquia de

desocupar as terras que os tratados internacionais declaravam como de propriedade armênia,

bem como com a negação sistemática do genocídio, o Ararat se tornou o símbolo das

reivindicações territoriais e dos apelos por justiça dos armênios. O Monte Ararat foi

desenhado no centro do brasão de armas da República de 1918 – com a Arca de Noé no topo

–, se manteve como símbolo nacional mesmo no período soviético635 e foi confirmado como

tal após a independência em 1991, que recuperou o brasão de 1918. Ou seja, quando um

armênio batiza algum empreendimento com o nome de “Ararat”, mais do que homenagear a

632 “E a arca repousou no sétimo mês, no dia dezessete do mês, sobre os montes de Ararate” (Gênesis 8:4). 633 SAPSEZIAN, A. (2010). op. cit., p. 39. 634 TERNON, Y. (1996). op. cit., p. 24. 635 Há uma anedota popular na diáspora armênia que conta quando representantes do governo turco reclamaram com Nikita Kruschev sobre o Ararat ser o símbolo da Armênia Soviética. Tal fato para as autoridades turcas significava uma afronta, pois a montanha era oficialmente turca e estar no brasão de armas de outro país denotaria uma intenção expansionista. Reza a lenda que a réplica de Kruschev teria sido: “Vocês tem a lua estampada na bandeira, isso significa que vocês pretendem anexá-la?”. Disponível em <http://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/TakeThat/RealLife>, acesso em 01/11/2011.

Page 134: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

133

Pátria-Mãe, ele toma uma atitude política que demarca que aquele monte e as terras em torno

são por direito dos armênios.

É lugar-comum na imprensa militante rotular suas publicações como sendo a voz

de um grupo específico. Nesse sentido, vários jornais foram nomeados a voz de alguém ou

algo. “A Voz dos Alfaiates”, “A Voz dos Trabalhadores”, “A Voz Sionista”, “Voz Operária”,

“Voz Portuária”, “La Voz” – jornal espanhol antifascista apreendido pela DEOPS/SP – são

alguns exemplos de órgãos que se autodenominam a expressão da voz, por via da palavra

escrita, de algum grupo étnico ou de trabalhadores636. O “Ararat – a voz do povo armênio”

estava inserido na mesma lógica. Seus idealizadores pretendiam que as pautas colocadas pela

publicação expressassem os anseios dos armênios, portanto, se tornasse a voz daquele povo

ainda que na realidade o jornal fosse apenas a opinião de uma fração minoritária deste.

Algo que distingue o Ararat de outras publicações étnicas correlatas que também

sustentavam algum tipo de discurso político é que o jornal de Bazarian não circulava como

um órgão clandestino. O Ararat era credenciado junto às repartições competentes, possuía

redação à Rua Santo André nº 215 – numa via de grande concentração de residências e

negócios de armênios, na qual o próprio Jacob Bazarian residiu – e explicitava em suas

páginas os nomes dos idealizadores, ainda que a diretora-responsável Mary Apocalipse fosse

apenas uma “testa de ferro” utilizada por Jacob Bazarian a fim de driblar a legislação637.

A aquisição de um exemplar do periódico era feita mediante assinatura anual de

Cr$ 50,00, valor divulgado em edição do jornal no final de 1950638. Em relação de assinantes

extraída em junho de 1952 pelo Serviço Especial de Vigilância, constam cerca de 350 nomes

e endereços. Apesar da maioria dos assinantes serem da coletividade armênia em São Paulo, a

Polícia Política parece ter lido nome por nome para identificar possíveis conexões subversivas

com outros grupos de esquerda. Assim, os nomes de pessoas suspeitas como Caio Prado Jr

foram grifados pelos agentes da repressão. Os dados de outros tantos assinantes foram

cruzados com informações prévias do SEV, que descobriu vários suspeitos de subversão na

lista de colaboradores do Ararat. Também nos chama a atenção a inclusão de nomes de

repartições públicas como as bibliotecas municipal, da Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras e da Faculdade de Direito. Outras instituições como o Sindicato dos Jornalistas, o

Consulado da Polônia em São Paulo, a Escola Livre de Sociologia e Política – onde Jacob

636 CARNEIRO, M. & KOSSOY, B. (2003). op. cit. 637 Pront. 97.180 – Mary Apocalipse. Muito embora haja um texto assinado por ela no número 34 do Ararat, no qual ela protesta pela prisão de Levon Yacubian. ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano III, nº. 34, julho de 1949, p. 6. 638 Op. cit., ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 3.

Page 135: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

134

Bazarian havia estudado – e jornais como “O Volante” e “O Espiritualista” também constam

na lista obtida pela polícia639.

Embora os prontuários analisados não nos revelem de quando data tal lista –

apenas constando o ano que a Polícia Política a produziu – ela nos permite inferir a influência

que a publicação alcançou em seus últimos meses, entre o final de 1949 e o começo de 1950.

Apesar de não sabermos a tiragem exata do Ararat, a cifra de 350 assinantes é expressiva,

ainda mais se levarmos em consideração que em uma lista anterior publicada pelo jornal em

dezembro de 1946 constavam apenas cerca de 130 nomes, todos de armênios ou

descendentes, de diversas partes do Brasil640. Ou seja, em um período de dois ou três anos, a

publicação de Bazarian se consolidou e mais que dobrou o número de pessoas que assinavam

e recebiam o jornal, isso sem mencionarmos o público leitor amplo que poderia ter acesso à

publicação por meio de instituições ou de terceiros, sem necessariamente ser um assinante.

A repressão não ficou apenas por conta de vigiar os idealizadores do Ararat,

Jacob Bazarian e Levon Yacubian. Cada um dos cerca de 130 nomes da primeira lista ganhou

um prontuário na DEOPS por assinar o jornal, pois, de acordo com a mentalidade

homogeneizante e preconceituosa dos agentes da Polícia Política, “todos pertencem à

Armênia Soviética e são comunistas, adeptos e admiradores de Stalin”641, ou seja, são

elementos subversivos que necessitam ser investigados.

Todavia, muitos prontuários inaugurados abertos nesse contexto não têm nenhuma

outra informação anexada além de uma cópia da lista supracitada, o que indica que a Polícia

Política não levou a cabo as investigações sobre cada assinante. Como exemplo, temos o

pacato comerciante José Balikian, já citado, que residiu em Londrina – PR desde 1936 até a

sua morte642. Totalmente isolado da vida comunitária armênia que era restrita a São Paulo – e

ao Rio de Janeiro, em menor grau – Balikian era assinante do Ararat643, seu único elo com a

Pátria-Mãe. Embora um prontuário tenha sido aberto em seu nome na DEOPS/SP, não há

nenhuma outra informação contida nele, nem mesmo um pedido à Polícia Política do Paraná

para que provesse o órgão congênere paulista de informações sobre o prontuariado644. É

provável que Balikian nunca tenha sabido que havia sido fichado na polícia paulista.

639 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 3. 640 Idem. 641 Pront. 98.526 – Ararat. 642 FOLHA DE LONDRINA . Londrina - PR: 08 de agosto de 1983. 643 Pront. 98.433 – José Balikian. 644 A cooperação entre as DEOPS do Brasil era comum, como nos indica o prontuário de Miran Kalagiany, armênio residente em Uberlândia, Minas Gerais. Considerado subversivo pela Polícia Política mineira, o delegado responsável pela repartição pediu aos colegas paulistas informações sobre o prontuariado, a fim de proceder uma investigação contra ele. Pront. 37.525 – Miran Kalagiany.

Page 136: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

135

Ao todo, são 139 prontuários no Fundo DEOPS/SP de armênios rotulados como

“comunistas” pelos agentes de segurança pública. Desses, 113 foram fichados como tais

apenas pelo fato de serem assinantes do Ararat, não havendo nada mais constando contra eles.

Em muitos outros prontuários, constava a lista de assinantes do jornal – sempre com o nome

do prontuariado em questão ressaltado com um lápis vermelho pelos policiais – e alguma

outra alteração, como pedidos de nada consta para emissão de carteiras de motoristas ou

passaportes. Em alguns casos, o atestado de antecedentes foi emitido pelas autoridades,

mesmo o requerente estando grifado como assinante do Ararat645. Em outros, o fato foi sim

um impedimento para a retirada do atestado pretendido646. Em outros casos ainda, como o do

professor Nazareth Avedikian, o fato de assinar o Ararat não serviu de centelha para

reacender uma investigação sobre suas ações políticas, como aconteceu devido às denúncias

nunca provadas de dez anos antes647.

Em suma, para mais de cem armênios e descendentes que foram fichados como

comunistas por assinarem a publicação de Bazarian, não havia nada na documentação

recolhida pela Polícia Política que permitisse associá-los com uma prática comunista stricto

sensu, como divulgação de ideias perniciosas, agitação de pessoas ou envolvimento formal

com o Partido Comunista.

É certo que para alguns, os textos publicados no Ararat eram sim em alguma

medida a expressão do que entendiam como certo para a Armênia e para a coletividade em

São Paulo, como, por exemplo, para Zaven Sabundjian, ex-companheiro de Bazarian e

Yacubian na UASP e Verelk e assinante do Ararat segundo consta na lista montada pela

DEOPS/SP em 1952648. Para outros, todavia, o Ararat era mais um órgão da coletividade

armênia publicado em São Paulo, que trazia informações relevantes sobre aquele grupo de

pessoas. As colunas sociais repletas de anúncios de nascimentos, batizados, noivados e

falecimentos, bem como de eventos sociais, eram certamente a página preferida – talvez a

única lida – de muitos leitores. Ou seja, temos que enxergar além do que o rótulo

homogeneizante da repressão nos impõe. Devemos pensar não somente quem lia esse jornal,

mas principalmente, como o liam. Para muitos, como nos parece ser o caso do comerciante

José Balikian, a leitura do Ararat era pautada pelo interesse em ter novas informações sobre

seus compatriotas em São Paulo e sobre os rumos da Armênia Soviética, expressão pátria

645 Pront. 98.525 – Yervant Mahsaredjian. 646 Pront. 98.470 – Yervant Kechichian. Nesse prontuário consta também o nome de Kechichian entre os membros da diretoria da UASP. 647 Pront. 3.215 – Nazareth Avedikian. 648 Pront. 98.526 – Ararat.

Page 137: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

136

legítima para muitos armênios. Nesse sentido, as discussões políticas travadas por Bazarian e

Yacubian nas páginas do jornal poderiam ser ignoradas pelo leitor ou até mesmo contestadas.

Não podemos assim perder de vista o que a repressão não conseguiu apreender: assinar o

Ararat não fazia necessariamente de um armênio que vivia em São Paulo entre os anos de

1940-1950 um comunista.

Mas de fato, qual era o comunismo que estaria explícito nas páginas do Ararat que

tanto incomodava a Polícia Política? O que estava escrito nos artigos do jornal era lido da

mesma forma por armênios e pelas autoridades da repressão? Para responder as perguntas,

analisaremos panoramicamente o conteúdo de alguns números do Ararat, antes de nos

atermos a uma edição específica que seria a expressão máxima do discurso de esquerda da

publicação.

Diversos números do Ararat foram confiscados pela Polícia Política e anexados ao

prontuário de Jacob Bazarian como prova de que o jornal que ele dirigia era de caráter

subversivo e pró-soviético649. O primeiro número confiscado pela DEOPS/SP data de

novembro de 1946 – o primeiro ano de circulação do jornal –, cuja manchete é “Cerca de

800.000 armênios do exterior querem retornar à mãe pátria”, dando visibilidade àquele que foi

o carro-chefe da UASP e seria uma das principais pautas também do Ararat: a repatriação de

armênios para a RSS da Armênia650. Outro número, de 1948, traz na manchete: “Os grandes

pintores da Armênia: o acadêmico Mardirôs Sarian fala de si mesmo e dos pintores da

Armênia”651. Na matéria, há uma explanação sobre as influências que a Armênia Soviética

tem sobre a obra deste artista, destacando assim as belezas e encantos do país. Outra matéria

de destaque na capa é a que informa sobre uma pintura realizada por um artista armênio

baseada na obra de Castro Alves, com o apoio do governo de São Paulo e que estava exposta

na capital paulista naquele mês. Por fim, em meio a matérias retiradas de agências de notícias

como a France Press ou a Reuters, há um artigo sobre Henry Truman escrito por Bazarian,

denunciando a política imperialista e expansionista do presidente americano na tentativa de

por em prática o Plano Marshall652.

Portanto, a estrutura básica do Ararat era: manchete e a reportagem principal

sobre a Armênia Soviética; um artigo sobre política internacional analisada sobre a ótica

ideológica que orientava a publicação, baseado em conceitos como “imperialismo”; um artigo

sobre a coletividade armênia do Brasil ou a política nacional. No total, foram vinte números

649 Pront. 95.621 – Jacob Bazarian. 650 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano I, nº 2, novembro de 1946, p. 1. 651 Op. cit.: ano II, s/ nº, março de 1948, p. 1. 652 Idem.

Page 138: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

137

de Ararat anexados ao prontuário de

Jacob Bazarian e mais um número, o mais

“subversivo” anexado diretamente em um

prontuário aberto para a publicação653.

Alguns números foram apenas anexados

aos prontuários sem nenhum tipo de

exame por parte da Polícia Política.

Outros, todavia, foram lidos pelos agentes

de segurança pública que destacavam com

um lápis vermelho os trechos

considerados sediciosos.

Nesse sentido, uma foto de

Stalin ao lado de um político armênio que

estampava a primeira página de um

número do Ararat, um anúncio de

transmissões da Rádio Moscou654, a

notícia sobre a outorga do Prêmio Stalin

para um músico armênio que teria

exprimido sua admiração pelo líder da

URSS655, e até mesmo votos de feliz natal

e ano novo656 foram grifados

efusivamente pelos agentes da Polícia

Política, que viam em tais linhas a prova do crime político do jornal e seus idealizadores. Os

votos de boas festas foram sublinhados porque estavam em armênio, atitude considerada

suspeita pelos repressores, que poderiam até lançar mão de tradutores juramentados para

decifrar o documento em questão, conforme nos chama a atenção Taciana Wiazovski657.

Contudo, ainda que o jornal como um todo fosse considerado suspeito pelas

autoridades, a Polícia Política precisou realizar um esforço de coleta de informações mais

claramente subversivas nas páginas do Ararat a fim de provar o crime político. De fato, esse

comunismo procurado pela DEOPS/SP não estava expresso em letras garrafais nas manchetes

653 Pront. 98.526 – Ararat. 654 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano I, nº 8, maio de 1947, p. 1. 655 Op. cit., ano II, nº 16, janeiro de 1948, p. 1. 656 Op. cit., ano II, nº 15, dezembro de 1947, p. 1. 657 WIAZOVSKI, T. (2001). op. cit., p. 25.

Figura 16: Capa do ARARAT – a voz do povo armênio. Fonte: São Paulo: ano IV, nº. 39-40, dezembro de 1949 e janeiro de 1950; Pront. 98.526 – Ararat; Cf. também CARNEIRO, M. & KOSSOY, B. (2003). op. cit., p. 115.

Page 139: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

138

de primeira página da publicação. O que havia era um grande destaque para a Armênia

Soviética, seus feitos e realizações, mas muito por via do campo da cultura nacional ou da

Causa Armênia, como no caso dos textos que discutem a situação interna e a política externa

da vizinha e adversária histórica Turquia658. Era justamente isso que muitos armênios

buscavam ao assinar e ler a publicação de Bazarian, ou seja, saber mais sobre a RSS da

Armênia que até aquele momento, era o que eles tinham de mais próximo a uma Pátria-Mãe, e

também se inteirar dos acontecimentos da própria coletividade em São Paulo, que era

amplamente noticiada nas páginas do Ararat. O não envolvimento com a política brasileira

levou o promotor Barros Bernardes a arquivar o processo contra o jornal em março de 1949,

ainda que as ações contra Yacubian e Boyadjian por receptação de material suspeito

prosseguissem659. Na ocasião, o editorial do Ararat reafirma sua disposição em levar a frente

o projeto, atacando os adversários – supostos delatores das atividades do jornal para a política

– e agradecendo aos apoiadores da empreitada:

Quanto à oposição e traição feitas à nossa causa por uma pequena minoria de reacionários armênios e de outras nacionalidades, longe de nos enfraquecer e nos desanimar, nos fortalece e nos entusiasma consideravelmente em nossa luta patriótica, exigindo de nós o emprego de todas as nossas forças e reservas para o êxito de nossa missão [...] com mais essa vitória popular sobre os provocadores reacionários fica sobejamente provado que, nem os processos forjados, nem as ameaças de toda espécie conseguem nos afastar de nossa luta patriótica; porque, como agora, também no futuro, sempre contaremos com o apoio e a solidariedade moral e material dos armênios democratas e patriotas e com a justiça do povo brasileiro, da qual nunca duvidamos um momento sequer660.

Contudo, em dezembro do mesmo ano, o número geminado 39-40 do jornal, cuja

manchete era “Stalin e os armênios”661, reacendeu a polêmica em torno da publicação. Esse

número é o que melhor exemplifica no que consistia o comunismo dos armênios de São

Paulo, que tinha um caráter distinto dos comunismos de outras etnias e grupos políticos que

agiam no Brasil.

Essa edição tem dois propósitos principais: homenagear o 70º aniversário do então

secretário-geral do PCUS e autoridade máxima da URSS, e também dar visibilidade à questão

de Levon Yacubian, que a esta altura era mantido preso de forma ilegal pelas autoridades de

segurança pública do estado de São Paulo. É Yacubian, inclusive, o principal articulista dessa

658 É possível encontrar as discussões sobre a Turquia na manchete de três números do jornal. ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano II, nº 15, dezembro de 1947, p. 1; Ano II, s/ nº, julho de 1948, p. 1; ano II, s/ nº, junho de 1948, p. 1. 659 Op. cit., ano III, nº 30, março de 1949, p. 1. 660 Ibid., p. 3. 661Op. cit., ano IV, nº. 39-40, dezembro de 1949 e janeiro de 1950. A essa altura, o Ararat circulava bimestralmente.

Page 140: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

139

edição do Ararat, assinando os textos de dentro da Casa de Detenção662, pois Jacob Bazarian

já estava na França desde abril de 1949, país onde procurou refúgio após as investigações

encaminhadas pela DEOPS/SP, deixando assim o Ararat nas mãos de Yacubian. Como a

Polícia Política não confiscou nenhum número da publicação entre setembro de 1948 até

dezembro de 1949, não sabemos em que medida a linha editorial da publicação foi alterada

com a ida de Bazarian para a França. O fato é que tanto o número em questão, que traz a

polêmica manchete “Stalin e os armênios”, quanto o número anterior, cuja manchete destaca a

absolvição de Yacubian e Boyadjian663, são orientadas de uma forma distinta dos números

anteriores.

Embora Jacob Bazarian continuasse a contribuir com o Ararat, sendo ainda

formalmente o diretor e remetendo textos sobre os eventos que participava na Europa,

Yacubian tomou a frente como principal redator da publicação após a saída do colega do país.

Isso é possível afirmar após a análise dos dois últimos números de 1949, nos quais os artigos

principais antes oriundos de agências de notícias ou da própria redação do jornal, agora são

assinados pelo jovem jornalista, assumindo, por consequência, a responsabilidade sobre os

mesmos.

Talvez por estar preso e pessimista sobre o seu futuro, diante das seguidas

arbitrariedades da Polícia Política ao tratar do seu caso, Yacubian ditou uma postura muito

mais agressiva nos textos publicados do que outrora. No texto principal do número 37-38 de

outubro-novembro de 1949, Yacubian conduz o texto que relata a sua absolvição, apesar da

manutenção da prisão, com um teor feroz contra aqueles que seriam os “autores intelectuais”

da prisão dele, de Boaydjian e da investigação contra o jornal664. Embora esse texto não esteja

assinado, os termos utilizados para qualificar os seus opositores dentro da coletividade

armênia são os mesmos que o próprio utiliza em um artigo assinado no número anterior. Para

Yacubian, foram os partidários da Federação Revolucionária Armênia – chamados pelo

jornalista de tachnags – que estavam por trás da sua prisão, numa tentativa de silenciar o

Ararat, entusiasta da Armênia Soviética, Estado o qual a FRA não reconhecia como uma

nação verdadeiramente livre

No número seguinte, parece que Yacubian intencionou dar uma resposta

contundente a seus opositores665. No texto principal do jornal intitulado “Os tachnags no

caminho da traição” e também no artigo de capa, sob a manchete “Stalin e os Armênios, o

662 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 39-40, dezembro de 1949 e janeiro de 1950, p. 1. 663 Op. cit., ano IV, nº. 37-38, outubro-novembro de 1949. 664 Idem. 665 Op. cit., ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950.

Page 141: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

140

jornalista faz severas críticas à FRA, não baseado no seu caso, mas sim com base na história

da Armênia, do final do Genocídio até a anexação pela URSS.

O texto de abertura tem um duplo propósito: comemorar o 70º aniversário de

Josef Stalin, ao mesmo tempo em que vangloria a Armênia Soviética e ataca a participação da

FRA nos acontecimentos históricos nas primeiras décadas do século XX. Nesse sentido,

Levon Yacubian afirma que os povos democráticos do mundo estão em festa pelo aniversário

do chefe máximo da URSS, com diversas manifestações na imprensa popular mundial sobre o

fato, enquanto os jornais vinculados às grandes corporações de mídia atacam “a figura

singular de Stalin”666. Assim sendo, o Ararat, “órgão popular da colônia democrática e

patriótica dos armênios do Brasil”667 se junta a essa imprensa entusiasta e exalta a data e a

importância do secretário-geral da URSS para os armênios e para o mundo.

Para o autor, o interesse humanitário pelas nações oprimidas pelo tsarismo foi a

grande virtude de Stalin. Graças a ele que a Armênia de fato se tornou independente em 29 de

novembro de 1920, data da anexação do país à URSS, quando as forças proletárias da

Armênia atenderam ao chamado dos camaradas russos e se levantaram em uma luta

revolucionária contra as forças contrarrevolucionárias da Federação Revolucionária Armênia,

expoentes da burguesia nacional668. Ao ressaltar o aspecto burguês da FRA, Yacubian está em

consonância com o próprio discurso de Moscou para com a agremiação política. Conforme

Marc Ferro analisa em uma de suas obras, os livros didáticos soviéticos que eram utilizados

para o ensino de crianças e jovens no país colocavam o partido como “burgueses” e exaltavam

a ação de líderes bolchevistas no país, em detrimento do papel da Federação669.

Com essas linhas, Yacubian ataca à tradição da FRA, entidade política mais forte

na coletividade armênia de São Paulo. O primeiro enfrentamento está em declarar a data de 29

de novembro de 1920 como dia da independência armênia, uma vez que essa é a ocasião que

a Federação lamenta ter perdido a autonomia conquistada em 28 de maio de 1918, dia esse

que os tashnags comemoram a primeira independência da Armênia. Ou seja, um dia de luto

para os partidários da FRA é a data escolhida por Yacubian para exaltar a liberdade e

verdadeira independência da Armênia. Tal comemoração em 29 de novembro já estava

666 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 39-40, dezembro de 1949 e janeiro de 1950, p. 1. 667 Op. cit., ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950. 668 Idem. 669 FERRO, M. (1983). op. cit., p. 196.

Page 142: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

141

presente nas páginas do Verelk670, mas sem o teor de afronta que estaria nas linhas do Ararat

anos depois.

O jornalista vai além nas qualificações empregadas a Stalin e seus feitos. Nas

linhas seguintes, Yacubian afirma que o secretário-geral da URSS é o herdeiro máximo de

Lênin, excluindo assim toda a tradição trotskista que estava em polvorosa desde o assassinato

do revolucionário em 1940, a mando de Stalin, segundo os partidários de Leon Trotsky.

Assim, Yacubian reafirma o valor das obras do líder soviético, as quais, segundo ele, estão

diretamente ligadas à libertação da Armênia, sendo Stalin “o melhor dos amigos

incondicionais de nossa Pátria [Armênia]”671, pois dele se originou uma fraternidade entre os

povos que permitiu o reflorescimento da Armênia graças ao socialismo672.

E foi justamente o socialismo pregado por Stalin, na avaliação de Levon

Yacubian, que libertou a Armênia “das forças retrógradas do governo tashnag” e “deu o poder

governamental nas mãos do povo armênio, outrora escravizado e espoliado por meia dúzia de

lacaios tashnags”673. Com a URSS, Yacubian acreditava que “estamos agora na era do

socialismo. Todos os povos são irmãos”674, ainda que o socialismo soviético tenha colocado

dois setores da coletividade armênia em São Paulo em franco enfrentamento. Ao usar o termo

“lacaio”, Yacubian se aproximou do vocabulário bolchevista russo nos primeiros anos da

sovietização da Armênia que definia os partidários da FRA como “lacaios burgueses”675,

inimigos da revolução.

Para finalizar o texto, o jornalista é explícito sobre a visão que tem de Stalin, da

Federação Revolucionária Armênia e de si próprio, enquanto colaborador do Ararat:

Josef Stalin é um patrimônio imortal da Humanidade. É a garantia da paz, entre os povos do mundo. Stalin é contra as guerras injustas dos imperialistas ianques. Stalin luta pela libertação dos povos oprimidos do mundo. ARARAT, neste septuagésimo aniversário de Stalin, reafirma a sua inflexível linha de conduta: desmascarar os tashnags, lutar contra o imperialismo e a guerra em defesa da paz. Casa de Detenção de São Paulo, Dezembro de 1949676.

Yacubian fez questão de assinar o artigo acusando a condição de prisioneiro na qual se

encontrava quando escreveu o texto. Preso porque trabalhava no Ararat, esse jornal que tinha

670 VERELK: boletim informativo da Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo. São Paulo: nº 16, novembro de 1946 (AHK). 671 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 1. 672 Idem. 673 Op. cit., Ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 1. 674 Idem. 675 Segundo a historiadora Mary Matossian em “A vida no Estado armênio da URSS”, em O Estado de São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1970 (AHK). 676 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 1.

Page 143: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

142

a missão de lutar contra o imperialismo, a guerra e contra os armênios que eram contrários à

Armênia Soviética e conspiraram para colocá-lo atrás das grades, segundo o próprio inferiu.

Isto é, o jornalista assumiu a condição de preso político pelos agentes contrarrevolucionários e

imperialistas expressos nos seus opositores compatriotas e na Polícia Política e desferiu suas

críticas aos adversários, imbuído desse fervor militante que tentou ser silenciado com a

detenção.

Entretanto, esse não era o único artigo do jornal cujo ímpeto acusatório de Levon

Yacubian pode ser detectado. Também na primeira página, há o título “Viva a Armênia

Soviética” para abrir um texto traduzido do órgão soviético Pravda em dezembro de 1920677,

no qual o próprio Josef Stalin escreve sobre a sovietização da Armênia678. Nesse texto, Stalin

acusa a Entente – Império Britânico, França e Império Russo – juntamente com a FRA de

causar sofrimento à população, mas a partir da declaração da sovietização dos territórios

armênios, os cidadãos armênios encontraram a libertação. De acordo com Stalin: “só a ideia

do poder soviético deu a Armênia a paz e a possibilidade de um renascimento nacional”679. O

líder soviético exemplifica essa paz e o renascimento citando a devolução voluntária por parte

do Azerbaijão Soviético dos territórios de Zangezur, Nakhichevan e Nagorno-Karabakh à

Armênia680, territórios esses que foram devolvidos aos azerbaijanos pelo próprio Stalin

poucos anos mais tarde, permanecendo apenas o primeiro sob controle armênio.

Não obstante o alto número de textos políticos e militantes nesse número do

Ararat, ainda havia espaço para as notícias sociais e da coletividade, que tradicionalmente

ocupavam a página dois da publicação. Nessa página, há uma coluna exclusiva para notas

sobre a mocidade Erevan, braço juvenil da União Armênia de São Paulo681. Isso ajuda a

fortalecer a ideia de que os dois grupos não romperam totalmente os laços, ao contrário do

que foi dito por alguns investigados à Polícia Política.

Os desdobramentos do caso Yacubian também foram publicados pelo jornal,

desde a absolvição até a libertação, passando pelas manifestações dos estudantes e de

deputados contra a manutenção da detenção do jovem jornalista682. Também nesse número, há

as já tradicionais notícias sobre progresso da Armênia Soviética683, além de textos sobre o que

677 O texto pode ser encontrado na íntegra em Marxists Internet Archive. Disponível em <http://www.marxists.org/reference/archive/stalin/works/1920/12/04.htm>, acesso em 06/11/2011. 678 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 1. 679 Idem. 680 Ibid., p. 5. 681 Ibid., p. 2. 682 Ibid., pp. 1, 5-6. 683 Ibid., p. 4.

Page 144: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

143

estava em discussão na coletividade armênia da França, enviados da Europa por Jacob

Bazarian.

Entretanto, o número 39-40 de fato estava dominado pela pauta política. Em outro

artigo, mais longo e mais agressivo que o anterior, Yacubian denuncia “Os tashnags no

caminho da traição”684. Neste texto, Yacubian ataca a comemoração de 28 de maio de 1918,

dia que os partidários da FRA comemoraram a independência da República da Armênia após

séculos vivendo dentro das fronteiras dos Impérios Otomano e Russo. Para Yacubian, as

comemorações dessa data sob a bandeira tricolor685 eram na realidade manifestações anti-

armênias, uma vez que havia a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas na qual a Armênia

estava representada686.

O jornalista trava uma disputa no campo da memória. Através de uma revisão da

história da Armênia, Yacubian tem por intenção provar os erros dos seus adversários

políticos. Isso fica claro quando ele compara a independência de 1918 com o apoio da FRA à

constituição otomana de 1908. Na ocasião, um grupo de turcos organizados no Comitê União

e Progresso, com o apoio da FRA, derrubaram o sultão do Império Otomano a fim de assumir

o poder e modernizar a decadente nação, inclusive por meio da promulgação de uma

constituição. Essa vitória desarticulou os movimentos armados da FRA que foram criados

com o intuito de defender a população armênia das investidas de turcos e curdos687. Contudo,

anos depois, foi o Comitê União e Progresso que arquitetou e executou o genocídio contra os

armênios. Os opositores da FRA sempre chamaram a Federação a assumir parcela de culpa no

genocídio, uma vez que a aliança com os perpetradores e a decorrente desmobilização dos

grupos armados armênios potencializou a destruição do plano sistemático de extermínio.

Levon Yacubian reviveu essa antiga rusga no campo mais delicado e sensível para

os armênios para fortalecer o seu argumento de que a Federação Revolucionária Armênia é

inimiga do povo armênio. Assim, o jornalista considera contraditória a postura de alguns

compatriotas comemorarem tanto o dia 28 de maio quanto 29 de novembro como datas

importantes para a história dos armênios, uma vez que “estas duas datas se negam e se opõem,

como a morte à vida, as trevas à luz”688. A constatação que havia armênios em São Paulo que

compareciam às duas comemorações indica que para esses a política era menos importante do 684 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 3. 685 A bandeira da Armênia Soviética era nas cores azul e vermelho, com o brasão da RSS. A bandeira utilizada pela Federação Revolucionária Armênia era vermelha, azul e laranja, a mesma que é hoje o símbolo da República da Armênia. A bandeira tricolor, portanto, era um símbolo da resistência dos armênios anticomunistas. 686 Ibid., p. 3. 687 TERNON, Y. (1996). op. cit., p. 174. 688 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 3.

Page 145: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

144

que a vida em comunidade, pois o que importava era comparecer nos eventos organizados

pela coletividade, ainda que esses fossem diametralmente opostos. Essa parece ser também a

posição de muitos que assinavam o Ararat. Mais do que se importar com as discussões

políticas travadas nas páginas da publicação, interessava ter em mãos mais aquela publicação

idealizada por compatriotas em São Paulo.

Contudo, para alguns outros, a assinatura e leitura de Ararat poderiam sim

expressar uma proximidade de pensamentos e opiniões. Certamente, não era só Levon

Yacubian que se incomodava com a política levada pela FRA através dos anos, seja na

Armênia, seja na diáspora. Ou seja, é perfeitamente plausível que alguns armênios se

aproximaram do comunismo ou do grupo entusiasta da Armênia Soviética justamente por esse

se colocar enquanto alternativa política à Federação Revolucionária Armênia. Ainda que os

ideais e práticas comunistas não estivessem claros para todos, é possível que armênios em São

Paulo se autodeclarassem comunistas para assim se dotarem de uma pauta política a fim de

fazer frente ao discurso político da FRA.

Yacubian nos parece ser um indivíduo que lançava mão de uma interpretação da

história para desconstruir o papel da FRA ao longo dos anos a fim de enfraquecer o alcance

que a Federação tinha em São Paulo. Para o jovem jornalista, em consonância com o discurso

comunista na Armênia689, a FRA era a expressão da burguesia que desprezou a Revolução de

Outubro e a força do proletariado russo690. Os tashnags, em conjunto com setores

nacionalistas de Azerbaijão e Geórgia, se lançaram em uma batalha considera por Yacubian

como fratricida contra os russos. Enquanto isso, no outro front, o avanço das tropas turcas

tornava a situação insustentável. A única salvação para a Armênia era aceitar um armistício

assinado entre Rússia e Turquia para interromper a perda de território para os turcos.

Entretanto, tal atitude reconheceria por consequência o governo revolucionário russo. Os

nacionalistas armênios, azerbaijanos e georgianos preferiram se proclamar independentes e

criam a República da Transcaucásia para negociar diretamente com o governo da Turquia sem

precisar reconhecer os bolchevistas como governo legítimo da Rússia e por consequência,

legitimar o domínio bolchevique também na Transcaucásia691. Para o jornalista, a

aquiescência da FRA por essa decisão se deu por receio de perder o controle de cidades

importantes como Tiflis e Baku, capitais de Geórgia e Azerbaijão respectivamente.

689 FERRO, M. (1983). op. cit., p. 200. 690 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 3. 691 Idem.

Page 146: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

145

Os turcos não cessavam de avançar sobre o Cáucaso, ameaçando chegar até Tiflis

e Yerevan. Frente a isso, a Geórgia proclamou-se independente e colocou-se sob a proteção

do governo alemão, aliado turco desde o começo do século XX, o que findou a ameaça sob o

país692. Em 27 de maio de 1918, o Azerbaijão também se proclamou independente, pois não

temia o avanço dos turcos, povo com laços históricos com os azerbaijanos. Assim, a Armênia

ficou isolada na decomposta República da Transcaucásia e a FRA declarou independência no

dia 28 de maio, à revelia dos demais partidos políticos armênios, segundo Yacubian. O

jornalista ressalta que o Conselho Nacional Armênio, órgão máximo dos armênios durante a

República da Transcaucásia e dirigido pela FRA, estava receoso de ir até Yerevan, então a

capital da nova República da Armênia para assumir o poder, permanecendo assim em Tiflis e

somente sob pressão do novo governo georgiano os dirigentes armênios saíram do país e

foram em direção à Armênia693.

Seguida a essa longa explanação sobre os acontecimentos de 1918, Yacubian

pergunta ao leitor se é esse o tipo de independência que os armênios devem comemorar. Na

opinião dele, a data de 28 de maio deveria ser um dia de luto para a Armênia, não um dia de

júbilo. Luto, pois a independência proclamada pela FRA proporcionou três longos anos de

sofrimento e lutas para a população da recém-criada república, que somente foi salva pela

“revolução de 29 de novembro de 1920. É realmente nesta data que começa a independente e

livre Armênia Soviética” 694.

Esse número do Ararat causou grande impacto sobre a coletividade armênia de

São Paulo. Embora não tenhamos encontrado nenhum texto publicado diretamente em

resposta à Levon Yacubian nos periódicos armênios que circulavam na época na cidade, a

afirmação já citada de Zaven Karakhanian em carta a Jacob Bazarian anos depois

relembrando a manchete “Stalin e os armênios” é um bom indicativo da polêmica criada pela

opinião de Yacubian695. Sobre os debates entre o Ararat e o grupo da FRA que editava a

“Revista Cultural Brasil-Armênia”, o periódico “O Cruzeiro” afirmou, em setembro de 1949:

Esse jornal circula no seio da colônia armênia bandeirante, fazendo oposição tenaz a um outro periódico da mesma colônia – o “Brasil Armênia”, publicação de um grupo de armênios nacionalistas, que sonham com uma Armênia independente e democrática nos moldes das nações livres do ocidente. Esse punhado de patriotas é mal visto e até odiado pelos comunistas armênios, entrincheirados na redação do “Ararat”696.

692 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 39-40; dezembro de 1949 a janeiro de 1950, p. 5. 693 Idem. 694 Idem. Grifos de Levon Yacubian. 695 Revista ARMÊNIA . São Paulo: ano III, nº 16, maio/junho de 1969, p. 3 (AHK). 696 O CRUZEIRO. Rio de Janeiro: ano XXI, nº 47, 10 de setembro de 1949, p. 6.

Page 147: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

146

Isto é, além de assumir o discurso das autoridades policiais, com as quais a reportagem d’O

Cruzeiro obteve as informações e as imagens utilizadas na matéria, a revista ainda se mostrou

simpática ao projeto da FRA, cujos partidários seriam os verdadeiros democratas e libertários

da Armênia, ao contrário dos comunistas subversivos do jornal Ararat.

Apesar da falta de registros que temos sobre o Ararat – a voz do povo armênio

após o número na virada de 1949 para 1950, consta no prontuário da publicação que ela teria

circulado até 1951, de acordo com o depoimento prestado por Yacubian697. Também não

temos mais registro de outros textos redigidos pelo jornalista, ainda que seja possível que se a

publicação continuou nos anos de 1950 e 1951, com Bazarian fora do Brasil, Yacubian tenha

continuado a editar o periódico.

As últimas informações sobre as atividades do Ararat que constam no prontuário

da publicação são de 1952, quando boletins de informação da embaixada da URSS no México

endereçados à publicação foram apreendidos pela Polícia Política, o que motivou as

autoridades a pedirem a reabertura das investigações sobre o jornal e a União Armênia de São

Paulo. Nesse sentido, Yacubian foi intimado a depor novamente, apenas dois anos após a sua

libertação. Na ocasião, Levon Yacubian declarou que os boletins soviéticos eram enviados

para o Ararat porque o remetente não sabia do encerramento das atividades do jornal e que

após o fechamento, ele teria ido trabalhar no jornal “O Tempo” na “Agência France Press”698.

Em janeiro de 1953, um investigador foi enviado até o local onde funcionava a

redação do Ararat, a fim de averiguar se o mesmo havia cessado suas atividades. Segundo o

relatório do policial, no número 213 da Rua Santo André não mais servia como redação de

jornal, mas sim como residência. Os inquilinos que lá estavam e foram arguidos pela

autoridade nada souberam responder sobre o Ararat. A única indicação que o investigador

conseguiu foi na Rua Barão de Duprat, onde um senhor informou ao policial que o jornal

tinha fechado as portas, pois “o redator do referido jornal se achava em Moscou, estudando ou

lecionando em uma Universidade, pois era um moço inteligente e formado pela Faculdade de

Filosofia e Ciências de São Paulo”699. Frente a isso, a nova investigação sobre o periódico não

prosseguiu.

697 Pront. 98.526 – Ararat. 698 Idem. 699 Idem.

Page 148: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

147

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em “A Derrota da Dialética”, Leandro Konder disserta sobre os obstáculos que o

marxismo precisou enfrentar para frutificar no Brasil 700. O quase total desconhecimento do

pensamento de Karl Marx e a impossibilidade de ter acesso a sua obra no país eram latentes

até pelo menos a Revolução Russa701. Mesmo os acontecimentos de 1917 atravessaram o

Atlântico de forma confusa e foram ainda mais deturpados por intelectuais como Oliveira

Vianna, que duvidava dos benefícios do bolchevismo para o Brasil702.

Enquanto aconteciam as primeiras tentativas de organização do movimento

operário – até então de orientação anarquista – aos moldes ditados pela Internacional

Comunista, por intermédio de figuras como Heitor Ferreira Lima, Edgar Leuenroth e

Astrojildo Pereira, que iriam resultar na fundação do Partido Comunista do Brasil em 1922, o

centro do comunismo mundial tentava compreender a natureza do proletariado sul-americano

observando-o através das suas próprias lentes que viam nas ações tenentistas no Rio de

Janeiro em 1922 e em São Paulo em 1924 as primeiras ações favoráveis à revolução no

Brasil703. Por outro lado, o Estado se equipava com a instituição de departamentos de “ordem

social” para coibir ações como as que paralisaram a cidade em 1924 e para vigiar os

imigrantes e operários que poderiam por em xeque a ordem posta. Assim nasceria em

dezembro de 1925 a DEOPS/SP que em 1928 já havia identificado e fichado um terço dos

operários do estado de São Paulo704.

Paralelamente a essa realidade, os primeiros armênios chegavam a São Paulo e

lutavam para se estabelecer na cidade. Contudo, a maior parte dos imigrantes que entrariam

na cidade no final da década de 1920 e por toda a década de 1930 ainda estava em regiões da

Síria e do Líbano, onde suas instituições e entidades ajudavam a reorganizar aquela sociedade

devastada por um genocídio. Enquanto isso, a Armênia vivia seus primeiros anos como

República Socialista Soviética, o que permitiu que sua população se recuperasse

gradualmente dos horrores de anos de guerras e genocídio, embora uma grande parte de seu

700 KONDER, Leandro. (2009). A Derrota da Dialética: a recepção das ideias de Marx no Brasil, até o começo dos anos 30. São Paulo: Expressão Popular, 2ª ed. 701 Ibid., p. 108. 702 Ibid., p. 155. 703 PINHEIRO, P. (1992). op. cit., pp. 69-77. 704 Ibid., pp. 110-111.

Page 149: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

148

território histórico e da sua população tenha sido ceifada por acordos internacionais que não

tinham os interesses armênios como prioridade.

Ainda que o marxismo e os ideais da esquerda não fossem propriamente

difundidos entre a grande maioria dos armênios nas décadas de 1920 e 1930, é inegável a

familiaridade que esses tinham com tais pautas se comparados com a maior parte dos

brasileiros e imigrantes que aqui estavam no período. Desde a década de 1890, os armênios

contavam com dois partidos revolucionários que organizaram resistências armadas às

investidas genocidas turcas em cidades como Zeytun, Urfa, Hadjin, origem de muitos

imigrantes que viriam para São Paulo anos depois. A influência russa e a consequente tutela

soviética sobre o que sobrou da Pátria-Mãe aproximaram ainda mais alguns indivíduos que

viam com simpatia os benefícios que as ideias de esquerda poderiam trazer para um povo que

precisou se fortalecer politicamente para sobreviver como nação. No Levante, a estrutura

social dos armênios era reconstruída em entidades vinculadas aos partidos políticos.

Associações assistenciais, esportivas, educacionais, culturais, escotismo, dentre outras,

estavam inseridas numa ampla rede hierarquizada que atingia toda a diáspora, com constante

intercâmbio de pessoas e ideias entre elas.

No Brasil, enquanto a IC dissolvia toda a cúpula do PCB numa tentativa de

reorganizar a ação comunista no país, que lutava para inserir suas ideias em meio ao furor

tenentista e a revolução de 1930705, as filiais da Federação Revolucionária Armênia e do

Hetchakian já estavam em funcionamento em São Paulo. Entretanto, a movimentação no seio

da coletividade, por estar voltada mais por uma organização social para dentro do povo

armênio – não apresentando ameaça à ordem e à política brasileira – não foi apreendida pelos

órgãos repressivos do Estado. Somente com o crescimento e maior organização do PCB nos

anos 1930, que teve como ponto alto os levantes em finais de 1935, que a Polícia Política

voltou o seu olhar para a comunidade armênia de São Paulo à procura de crimes políticos.

Nesse sentido, o prontuário do professor Nazareth Avedikian – cujas convicções comunistas

nunca foram comprovadas, apesar das denúncias – é o marco inicial dessa vigilância.

Na medida em que o PCB se desenvolvia em São Paulo e a URSS se estabelecia

no cenário internacional como uma potência, os armênios que se mostravam simpáticos ao

comunismo e ao regime que então imperava na Armênia se organizaram em grupos e

entidades a fim de dar uma institucionalidade a essa faceta da política armênia em São Paulo,

705 KONDER, L. (2009). op. cit., p. 206.

Page 150: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

149

em contraposição aos partidos revolucionários, agremiações de primeira hora em toda a

diáspora. Dessa forma, a União Armênia de São Paulo, através de seu boletim interno Verelk

começou a rascunhar o apoio de uma fração dos armênios da capital paulista à URSS e ao

comunismo, enquanto processos similares aconteciam em outros países da diáspora, como

França e EUA.

Contudo, não seria antes de 04 de outubro de 1946 que os armênios paulistanos

teriam um órgão explicitamente entusiasta da Armênia Soviética. Nessa data, Jacob Bazarian

– o único armênio cuja militância era também exercida no PCB – e Levon Yacubian,

principais articulistas do Verelk, criaram o jornal Ararat – a voz do povo armênio, cuja pauta

política passava não só pelo apoio à Pátria-Mãe, mas pela crítica contundente aos rumos do

país durante o governo da Federação Revolucionária Armênia entre 1918-1920. Por conta de

textos como “Stalin e os armênios” e “Viva a Armênia Soviética”, bem como a troca de

material com instituições soviéticas ao redor do mundo, a DEOPS/SP, cuja ação já havia se

direcionado para a vigilância das atividades da UASP poucos anos antes, agiu duramente

contra os idealizadores do Ararat, resultando na prisão de Yacubian – quando esse foi retirar

uma correspondência oriunda do exterior, na companhia de Agop Boyadjian – e na ida de

Jacob Bazarian para a França e em seguida para a URSS, a fim de evitar que o mesmo

acontecesse com ele.

Não era usual nas páginas do Ararat haver discussões acerca da política brasileira,

tampouco de forma crítica à ordem posta. Quando havia referências ao cenário político

nacional, era em tom de apoio e aprovação, como no caso de uma análise do “governo

popular” do então governador do estado de São Paulo, Ademar de Barros706, ou na ocasião do

aceno positivo de Oswaldo Aranha em acatar os apelos dos armênios para que o político

intervisse em favor da questão armênia na ONU, em consonância com diversas outras nações

que, segundo o Ararat, fariam o mesmo707. Todavia, tal linha editorial pautada pela simpatia à

ordem nacional não impediu que a DEOPS/SP apreendesse exemplares do jornal, fichasse

todos os 158 assinantes do periódico em 1946, fizesse uma varredura em alguns exemplares,

que tiveram textos e fotos suspeitas grifadas em vermelho pelos policiais e, por fim, iniciasse

o processo judicial a fim de condenar Yacubian, Bazarian e Boyadjian por subversão e

consequentemente expulsar o trio do território nacional.

706 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano I, nº 6, março de 1947, p. 1. 707 Op. cit., ano II, nº 13, outubro de 1947, p. 1.

Page 151: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

150

Todavia, excetuando Levon Yacubian e Jacob Bazarian, não havia nos arquivos

da DEOPS/SP indícios de qualquer armênio que de fato tivesse uma ação política próxima do

que a polícia entendia como o padrão do militante comunista. Embora a repartição tenha

aberto um prontuário para cada assinante do Ararat, nenhuma investigação foi feita sobre

essas pessoas que assinavam e recebiam o jornal fichado, sendo essa a razão pelo grande

número de armênios “sem nacionalidade” contidos no Fundo DEOPS/SP, uma vez que não

houve nenhum tipo de pesquisa por parte dos policiais a fim de colher maiores informações

sobre os prontuariados. Isso nos leva a seguinte questão: que tipo de comunismo os armênios

praticavam que possa explicar como ao mesmo tempo em que 139 pessoas são rotuladas pela

Polícia Política como “comunistas”, apenas três deles tem processos judiciais abertos?

Com efeito, a trajetória dessas pessoas, principalmente de Levon Yacubian – que

se afastaria da vida comunitária após ser preso – e Jacob Bazarian – que refutaria o

comunismo anos mais tarde – em pouco se assemelha com a atividade organizada pelo PCB

ou por outras coletividades imigrantes na cidade. Porém, a adoção do comunismo por alguns

armênios de São Paulo deve ser vista por outro viés, para além do cotejamento com outras

ações de militância comunista. Se os pilares dos armênios na diáspora são os partidos e as

igrejas, de acordo com Sapsezian708, ter uma pauta política é essencial para o indivíduo ser

aceito entre seus pares. Assim, a única forma de um armênio se opor às ações promovidas

pela Federação Revolucionária Armênia em São Paulo – o mais forte dos partidos armênios

em toda a diáspora – era dotar-se de uma postura política antagonista e desconstruir o que a

FRA sustentava com maior altivez: o seu papel de protagonista na história dos armênios.

Quando Levon Yacubian escreve de dentro da cadeia um texto no qual chama os partidários

da Federação de “lacaios”, não reconhece a república de 1918 como uma expressão da

independência dos armênios e critica as ações da cúpula da FRA nos acontecimentos pré-

sovietização709, ele não só enaltece o comunismo na Pátria-Mãe, como fornece argumentos

para todos aqueles que em São Paulo não concordavam com as ações da FRA no tocante à

organização da coletividade na cidade, onde o partido era hegemônico.

Em suma, se para a DEOPS/SP pouco importava os motivos da simpatia de uma

parcela da coletividade armênia ao comunismo, agindo de uma forma pragmática contra todos

aqueles que de alguma forma aderiam ao “credo de Moscou”, para os armênios havia muito

por trás do comunismo. Mais do que uma questão de justiça social, luta pela ditadura do

708 SAPSEZIAN, A. (1988). op. cit., p. 167. 709 ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano IV, nº. 39-40, dezembro de 1949 a janeiro de 1950.

Page 152: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

151

proletariado ou da socialização dos meios de produção, o comunismo dos armênios em São

Paulo dizia respeito às questões armênias, seja na Pátria-Mãe, seja na diáspora.

Page 153: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

152

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES

I - Fontes

a) Depoimentos orais

Haroutiun Magarian. Aposentado. Entrevista concedida em sua residência, no bairro da Casa Verde, São Paulo, 13/02/2012.

Fernando Mangarielo. Proprietário da editora Alfa-Ômega. Entrevista concedida na sede da editora no bairro de Pinheiros, São Paulo, 15/05/2012.

Walter Mekitarian. Economista. Entrevista concedida em sua residência, no bairro do Morumbi, São Paulo, 20/04/2012.

b) Prontuários do Fundo DEOPS/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo

Prontuário 1.325 – Subcomitê Russo em São Paulo de Socorro às Vítimas de Guerra Pront. 3.125 – Nazareth Avedikian Pront. 17.834 – Wahakn Minassian Pront. 37.525 – Miran Kalagiany Pront. 46.273 – Agop Boyadjian Pront 66.154 – Vahakn Minassian Pront. 73.631- Levon Yacubian Pront. 86.428 – Comissão de Auxílio a Repatriação de Armênios Pront. 87.838 – Hoje – Jornal do Povo à Serviço do Povo Pront. 94.341 – Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo” Pront. 95.621 - Jacob Bazarian Pront. 97.180 – Mary Apocalipse Pront. 98.399 – Yesnig Vartanian Pront. 98.416 – A Voz do Povo Armênio Pront. 98.433 – José Balikian Pront. 98.470 – Yervant Kechichian Pront. 98.525 – Yervant Mahsaredjian Pront. 98.526 – Ararat Pront. 108.936 – Fábrica de Calçados Dadian Pront. 116.549 – Anahid Poladian Pront. 116.569 – Kassia Magarian Pront. 121.455 – Levon Jacobian Pront. 139.842 – Kervork Pamboukian

c) Jornais, revistas, documentários e outras publicações

AGBU: Armenian General Benevolent Union. Nova York: Volume 20, nº 2, novembro de 2010.

ARARAT – a voz do povo armênio. São Paulo: ano I, nº 2, novembro de 1946. _____. São Paulo: ano I, nº 6, março de 1947 _____. São Paulo: ano I, nº 8, maio de 1947.

Page 154: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

153

_____. São Paulo: ano II, nº 13, outubro de 1947. _____. São Paulo: ano II, nº 15, dezembro de 1947. _____. São Paulo: ano II, nº 16, janeiro de 1948. _____. São Paulo: ano II, s/ nº, março de 1948. _____. São Paulo: ano II, s/ nº, junho de 1948. _____. São Paulo: ano II, s/ nº, julho de 1948. _____. São Paulo: ano III, nº 30, março de 1949. _____. São Paulo: ano III, nº. 31, abril de 1949. _____. São Paulo: ano III, nº. 34, julho de 1949. _____. São Paulo: ano IV, nº. 37-38, outubro-novembro de 1949. _____. São Paulo: ano IV, nº. 39-40, dezembro de 1949 a janeiro de 1950. ARCA – revista do Arquivo Histórico de Campo Grande (1992): “Emigração: de como

árabes e armênios se instalaram em Campo Grande”. Campo Grande: Arquivo Histórico de Campo Grande, nº 3.

CONCERTO SINFÔNICO do Vahakn Minassian (1964). São Paulo: Centro Armênio. CORREIO PAULISTANO. São Paulo: ano LXXXVII, nº. 25.910, sexta-feira, 23 de agosto

de 1940. CHEGADOS: Armênia. Documentário televisivo. Canal Futura, 2007. DIÁRIO CARIOCA. Rio de Janeiro: Ano XXII, nº 6493, quinta-feira, 01 de setembro de

1949. DROSHAG – Associação Cultural Armênia. São Paulo: Novembro de 1970. FOLHA DE LONDRINA . 08 de agosto de 1983. FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo: segunda-feira, 26 de março de 2012. JORNAL DAS MOÇAS. Rio de Janeiro: 26 de março de 1942 JORNAL DO IMIGRANTE. São Paulo: ano V, nº 58, janeiro/fevereiro de 1983. _____. São Paulo: ano VII, nº 73, abril/maio de 1984. _____. São Paulo: ano VII, nº 83, fevereiro de 1985. MASSIS. Rio de Janeiro: ano V, nº 45, junho de 2001. O CRUZEIRO. Rio de Janeiro: ano XXI, nº 47, 10 de setembro de 1949. O ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo: domingo, 27 de setembro de 1970. Revista ARMÊNIA . São Paulo: ano I, nº 2, julho de 1967. _____. São Paulo: ano I, nº 3, outubro de 1967. _____. São Paulo: ano I, nº 4, novembro/dezembro de 1967. _____. São Paulo: ano I, nº 5, janeiro/fevereiro de 1968. _____. São Paulo: ano II, nº 9, julho de 1968. _____. São Paulo: ano II, nº 11, setembro de 1968. _____. São Paulo: ano II, nº 13, novembro/dezembro de 1968. _____. São Paulo: ano II, nº 14, janeiro-fevereiro de 1969. _____. São Paulo: ano III, nº 16, maio/junho de 1969. REVISTA CULTURAL BRASIL-ARMÊNIA. São Paulo: ano 1, nº 3, março de 1947. _____. São Paulo: ano 1, nº 7-8, julho/agosto de 1947. _____. São Paulo: ano 2, nº 13, janeiro de 1948. _____. São Paulo: ano 2, nº 15, março de 1948. _____. São Paulo: ano 2, nº 16, abril de 1948. _____. São Paulo: maio-junho de 1957. SIPAN: órgão da comunidade armênia da Igreja Apostólica Armênia do Brasil. São Paulo: nº

12, 15 de agosto de 1983. SOCIEDADE RECREATIVA MARACHÁ: 10º aniversário de grandes realizações. São

Paulo: 15 de novembro de 1957.

Page 155: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

154

_____: 20 anos a serviço da cultura e do progresso dos marachtsi da coletividade armênia do Brasil. São Paulo: 15 de novembro de 1967.

TRIBUNA ARMÊNIA . São Paulo: abril de 1963. VERELK: boletim informativo da Sociedade Cultural “União Armênia de São Paulo”. São

Paulo: nº. 9-10, abril-maio de 1946. _____. São Paulo: nº 11, junho de 1946. _____. São Paulo: nº 12, julho de 1946. _____. São Paulo: nº 13, agosto de 1946. _____. São Paulo: nº 16, novembro de 1946. _____. São Paulo: nº 17, agosto de 1947.

II - Bibliografia

a) Sobre a história dos armênios

ADALIAN, Rouben Paul. “Near East Relief and the Armenian Genocide” In: Encyclopedia Entries on the Armenian Genocide. Washington: Armenian National Institute. Disponível em <http://www.armenian-genocide.org/ner.html>, acesso em 22/08/2011.

AKÇAM, Taner (2004). From Empire to Republic: Turkish nationalism and the Armenian Genocide. Nova York: Zed Books.

ALEM, Jean-Pierre (1961). A Armênia. São Paulo: Difusão Europeia do Livro. ARMENIA 2020: Diaspora-Homeland issue paper (2003). Yerevan, Armênia: Arak-29

Foundation. ASTOURIAN, Stephan H. (2004). Modern Turkish Identity and the Armenian Genocide:

from prejudice to racist nationalism. Yerevan: Museum-Institute of the Armenian Genocide of the National Academy of Sciences of Republic of Armenia.

BALAKIAN, Peter (2004). The Burning Tigris: the Armenian Genocide and America’s response. Nova York: Harper Perennial.

CAMPOLINA MARTINS, Antônio Henrique (1998). “Armênia, um povo em luta pela liberdade: o mais longo genocídio da história”. Dossiê – Direitos Humanos. In: Ética e Filosofia Política. Juiz de Fora: UFJF, v. 3, nº 1.

HILSENRATH, Edgar (1990). The Story of the Last Thought. Londres: Scribners. KATCHZNOUNI, Hovannes (1955). The Armenian Revolutionary Federation Has Nothing

to Do Anymore. Nova York: Armenian Information Service. KERIMIAN, Nubar (1998). Massacres de Armênios. São Paulo: Comunidade da Igreja

Apostólica Armênia, 2ª ed. MEKHITARIAN, Nichan (2005). O Reino Armênio da Cilícia e História de Zeytun. São

Paulo: Edições Inteligentes. MINASSIAN, Anahit Ter (1982). “L’Arménie et l’éveil des nationalités (1800-1914)”. In:

DEDEYAN, Gerard [org.]. Histoire des Arméniens. Paris: Privat. MORGENTHAU, Henry. (1918). Ambassador Morgenthau’s History. Nova York:

Doubleday, Page and Company. MOURADIAN, Claire (1990). L’Arménie: de Staline à Gorbatchev – histoire d’une

république soviétique. Paris: Ramsay. PASDERMADJIAN, Hrand (1986). Histoire de L’Arménie. Paris: Librarie Orientale H.

Samuelian, 4ª ed. SAPSEZIAN, Aharon (1988). História da Armênia: drama e esperança de uma nação. Rio de

Janeiro: Paz e Terra. _____ (1997). Cristianismo Armênio. São Paulo: Bentivegna.

Page 156: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

155

_____ (2010). História Sucinta e Atualizada da Armênia. São Paulo: Emblema. SHAHINIAN, Haig (1984). Conceitos Básicos da Organização Democrata Liberal

Armênia. São Paulo: Associação Cultural Tekeyan. TERNON, Yves. (1982). “Le génocide de Turquie et la guerre (1914-1923). In: DEDEYAN,

Gerard [org.]. Histoire des Arméniens. Paris: Privat. _____ (1996). Les Arméniens: histoire d’un génocide. Paris: Seuil, 2ª ed. TOYNBEE, Arnold J. (2003). Atrocidades Turcas na Armênia. São Paulo: Paz e Terra. ÜNGÖR, Ugur Ümit & POLATEL, Mehmet (2011). Confiscation and Destruction: the

Young Turk seizure of Armenian Property. Nova York/Londres: Continuum. WERFEL, Franz (1995). Os Quarenta Dias de Musa Dagh. Rio de Janeiro: Paz & Terra.

b) Sobre a imigração dos armênios e a trajetória destes no Brasil

ANTARAMIAN, Carlos (2009). “La Merced, mercado y refugio. El caso Armenio”. In: ISTOR. Cidade do México: División de Historia del Centro de Investigación y Docencia Económicas (CIDE), pp. 106-140.

BAIDARIAN, Mariam [org.] (2011). Não se Deve Esquecer: memórias de um sobrevivente do genocídio armênio. São Paulo: Scortecci.

BAZARIAN, Jacob (1988). A Trajetória de um Patriota Armênio: a vida e as atividades do comendador Karnig Bazarian. São Paulo: edição do autor.

GRÜN, Roberto (1992). Negócios e Famílias: armênios em São Paulo. São Paulo: Sumaré. _____ (2002). “Dinheiro no bolso, carrão e loja no shopping: estratégias educacionais e

estratégias de reprodução social em famílias de imigrantes armênios”. In: ALMEIDA, Ana Maria F. & NOGUEIRA, Maria Alice [org.]. A Escolarização das Elites: um panorama internacional da pesquisa. Petrópolis: Vozes.

HEKIMIAN, Kim. (1990). “Armenian immigration to Argentina: 1909-1938”. In: Armenian Review. Volume 43, n. 1/169, pp. 85-113.

KECHICHIAN, Hagop (1983). “Imigração armênia no Brasil”. In: Jornal do Imigrante. São Paulo: ano V, nº 58, janeiro/fevereiro de 1983.

_____ (2000). Os Sobreviventes do Genocídio: imigração e integração armênia no Brasil, um estudo introdutório. São Paulo: Tese de doutorado em História Social, FFCHL/USP.

KEROUZIAN, Yessai Ohannes. (1983). “Sinopse sobre a colônia armênia do Brasil: da imigração à atualidade”. In: Jornal do Imigrante. São Paulo: ano V, nº 58, janeiro/fevereiro de 1983.

LUZ, Márcio Mendes da (2011). “Ararat, Hermon e Sion paulistanos”. In: HECKER, Alexandre & MARTINS, Ismênia [org.]. E/Imigração: histórias, culturas, trajetórias. São Paulo: Expressão e arte.

MADOYAN, Marc (2007). Arméniens en Amerique du Sud: immigration, insertion et structures communautaires a Buenos Aires, São Paulo et Montevideo. Paris: Université Paris X, Départament de Sociologie, Mémoire de Master 2.

MARTINI, Sueli (2004). IAN - Sufixo da Identidade: presença da comunidade armênia no processo de urbanização de Osasco. São Paulo: dissertação de mestrado em História pela PUC-SP.

MIGLIORINO, Nicola (2008). (Re)constructing Armenia in Lebanon and Syria: ethno-cultural diversity and the state in the aftermath of a refugee crisis. Nova York e Oxford: Berghahn Books.

PORTO, Pedro Bogossian (2011). Construções e Reconstruções da Identidade Armênia no Brasil. Rio de Janeiro: dissertação de mestrado em Antropologia, ICHF/UFF.

Page 157: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

156

VARTANIAN, Yeznig (1948). Brazilioh Hay Kaghuthë: Badmagan Degheguthiunner ev Jamanagakruthiun 1860-ên Mintchev 1947-i Vertchë. Buenos Aires: Siphan. [em armênio].

c) Sobre outros grupos imigrantes

BASTOS, Wilson de Lima (1988). Os Sírios em Juiz de Fora. Juiz de Fora: Paraibuna. FAUSTO, Boris (1991). Historiografia da Imigração para São Paulo. São Paulo: Sumaré. FREITAS, Sônia Maria de (2001). Falam os Imigrantes: memória e diversidade cultural em

São Paulo. São Paulo: Tese de doutorado em História Social, FFCHL/USP. KNOWLTON, Clark (1960). Sírios e Libaneses: mobilidade social e espacial. São Paulo:

Anhambi. TRUZZI, Oswaldo (2005). Sírios e Libaneses: narrativas de história e cultura. São Paulo:

Companhia Editora Nacional. _____ (2009). Patrícios: sírios e libaneses em São Paulo. São Paulo: UNESP, 2ª edição

ampliada.

d) Sobre a DEOPS/SP e a repressão de Estado

AQUINO, Maria Aparecida de, et. alii. (2001). No Coração das Trevas: o DEOPS/SP visto por dentro. São Paulo: Arquivo do Estado/Imprensa Oficial.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (1999). “O Estado Novo, o Dops e a ideologia da segurança nacional”. In: PANDOLFI, Dulce (org). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci & KOSSOY, Boris (2003). A Imprensa Confiscada pelo DEOPS. São Paulo: Ateliê Editorial.

_____ (2003). “Imprensa irreverente, tipos subversivos” In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci & KOSSOY, Boris. A Imprensa Confiscada pelo DEOPS. São Paulo: Ateliê Editorial.

DIETRICH, Ana Maria (2007). Caça às Suásticas: o Partido Nazista de São Paulo sob mira da Polícia Política. São Paulo: Imprensa Oficial.

HECKER, Alexandre (2009). “A repressão aos imigrantes portugueses em São Paulo: os subversivos e os outros”. In: SOUZA, Fernando, et. alii. Nas Duas Margens: os portugueses no Brasil. Porto, Portugal: Afrontamento/Cepese.

KOSSOY, Boris (2003). “O jornalismo revolucionário ilustrado” In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci & KOSSOY, Boris. A Imprensa Confiscada pelo DEOPS. São Paulo: Ateliê Editorial.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá (2010). “Comunismo e anticomunismo sob o olhar da polícia política” In: Locus: revista de história. Juiz de Fora: EDUFJF, v. 30, nº 1, pp. 17-27.

NEGRÃO, João Henrique Botteri (2005). Selvagens e Incendiários: o discurso anticomunista do governo Vargas. São Paulo: Laboratório de Estudos sobre Intolerância/Humanitas/FAPESP.

PEDROSO, Regina Célia (2005). Estado Autoritário e Ideologia Policial. São Paulo: Laboratório de Estudos sobre Intolerância/Humanitas/FAPESP.

PESTANA, José César (1955). Manual de Organização Policial do Estado de São Paulo. São Paulo: Escola Paulista de Polícia de São Paulo.

SEYFERTH, Giralda (1999). “Os Imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo”. In: PANDOLFI, Dulce (org). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV.

Page 158: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

157

WIAZOVSKI, Taciana (2001). Bolchevismo e Judaísmo: a comunidade judaica sob o olhar do DEOPS. Módulo VI – Comunistas. São Paulo: Arquivo do Estado/Imprensa Oficial.

ZEN, Erick Reis Godliauskas (2005). O Germe da Revolução: a comunidade lituana sob a vigilância do DEOPS. São Paulo: Laboratório de Estudos sobre a Intolerância/Humanitas/FAPESP.

_____ (2010). Imigração e Revolução: lituanos, poloneses e russos sob vigilância do Deops. São Paulo: Edusp.

e) Outras obras utilizadas no contexto da pesquisa

BAZARIAN, Jacob (1973). Mito e Realidade sobre a União Soviética: análise imparcial do regime soviético por um ex-membro do Partido Comunista. São Paulo: Record, 2ª edição revista e ampliada.

_____ (1986). Intuição Heurística: uma análise científica da intuição criadora. São Paulo: Alfa-Ômega, 3ª ed.

_____ (1986). “Três anos em defesa do Socialismo e da Democracia”. In: Socialismo e Democracia. São Paulo: Alfa-Ômega, nº 12, outubro-dezembro de 1986.

_____ (1991). Por que Nós, os Brasileiros, Somos Assim? Os traços psicológicos característicos dos brasileiros, suas causas e consequências. São Paulo: Alfa-Ômega, 2ª ed.

BOBBIO, Norberto (1995). Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: UNESP, 2ª reimpressão.

FERRO, Marc (1983). A Manipulação da História no Ensino e nos Meios de Comunicação. São Paulo: Ibrasa.

GLISSANT, Édouard (2005). Introdução a uma Poética da Diversidade. Juiz de Fora: EDUFJF.

GUINZBURG, Carlo (1991). O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras.

HALL, Stuart (2009). Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 1ª edição atualizada.

HECKER, F. Alexandre (1989). Um Socialismo Possível: a atuação de Antonio Piccarolo em São Paulo. São Paulo: T. A. Queiroz Editor.

HOBSBAWM, Eric (1996). The Age of Extremes. Nova York: First Vintage Books. JURADO, Carlos Caballero & LYLES, Kevin (1991). Foreign Volunteers of the Wehrmacht

1941-45. Londres: Osprey Publishing. KONDER, Leandro. (2009). A Derrota da Dialética: a recepção das ideias de Marx no Brasil,

até o começo dos anos 30. São Paulo: Expressão Popular, 2ª ed. MEDEIROS E ALBUQUERQUE, J. J. C. C (1982). Quando Eu Era Vivo. Rio de Janeiro:

Record. MAIO, Marcos Chor & CYTRYNOWICZ, Roney (2007). “Ação Integralista Brasileira: um

movimento fascista no Brasil (1932-1938)”. In: FERREIRA, Jorge. & DELGADO, Lucília. O Brasil Republicano. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2ª ed.

PINHEIRO, Paulo Sérgio (1992). Estratégias da Ilusão: a revolução mundial e o Brasil 1922-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª. ed.

REIS FILHO, Daniel Aarão (2007). Uma Revolução Perdida: a história do socialismo soviético. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2º edição atualizada.

RIZZO, Marçal Rogério (2005). A Evolução da Indústria Calçadista de Birigui: um estudo sobre a capital brasileira do calçado infantil. Birigui, São Paulo: Boeral Editora.

SAID, Edward W. (2007). Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras.

Page 159: Heitor de Andrade Carvalho Loureiro - "O ... - …files.comunidades.net/massacres-e-genocidios/LOUREIRO_Heitor_de... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Heitor

158

SEGRILLO, Angelo (2000). O Declínio da URSS: um estudo das causas. Rio de Janeiro: Record.

SILVA, Carla Luciana (2001). Onda Vermelha: imaginários anticomunistas brasileiros (1931-1934). Porto Alegre: Edipucrs, Coleção História, 41.

SKIDMORE, Thomas (1969). Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). Rio de Janeiro: Saga, 2ª ed.

VIANNA, Marly (2007). “O PCB, a ANL e as insurreições de novembro de 1935”. In: FERREIRA, Jorge. & DELGADO, Lucília. O Brasil Republicano. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2ª ed.

WILLIAMS, Raymond (1979). Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores.