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HLIO GONALVES PARIZ

A FUNO SOCIAL DA POSSE

Dissertao de mestrado apresentada Banca Examinadora da Faculdade Autnoma de Direito FADISP, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Funo Social do Direito, sob a orientao do Professor Doutor Tercio Sampaio Ferraz Junior.

SO PAULO (SP) 2007

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Os cus narram a glria de Deus, o firmamento proclama a obra de suas mos. O dia transmite a mensagem ao dia, e a noite a faz conhecer noite. No um discurso, no h palavras, no se lhes ouve a voz. Sua harmonia se estende sobre toda a terra, e sua linguagem, at as extremidades do mundo.

Salmo 19:1-4Traduo Ecumnica da BbliaPaulinas-Loyola

minha famlia, com todo meu amor.

Agradeo... .... ao Prof. Dr. Tercio Sampaio Ferraz Junior, a quem tive o prazer e a honra de ter como meu orientador. ... Prof Dra. Thereza Celina Diniz de Arruda Alvim, pelo apoio e direo sempre seguros e gentis. ... Direo, Professores e Funcionrios da FADISP. ... aos amigos que fiz no Mestrado. Para sempre agradeo...

RESUMO

O presente trabalho investiga a questo da funo social da posse no Brasil. Apesar de se tratar de um instituto jurdico ancestral (ao lado da propriedade), a posse vem sendo motivo de longas discusses na doutrina e na jurisprudncia. As controvrsias que a envolvem geralmente se referem aos questionamentos dogmticos que so levantados no sentido de destacar a sua dependncia e subsidiariedade em relao propriedade. Este fenmeno se reforou com a codificao do direito a partir do incio do sculo XIX, o que levou, por muito tempo, que a posse fosse sempre desconsiderada no confronto com a propriedade, especialmente no Brasil, um pas em que a misria, a falta de educao e cultura, o descaso das autoridades, a ausncia de polticas pblicas, a irregularidade da ocupao das terras, entre outros fatores, fazem com que a informalidade seja a tnica nas questes possessrias. A funo social dos institutos de direito privado um fenmeno relativamente recente na histria do direito, e a Constituio brasileira de 1988 expressamente previu a funo social da propriedade. Com base na anlise pragmtica do direito, esse trabalho investiga se possvel explorar este dispositivo constitucional em busca da funo social da posse.

ABSTRACT

This paper investigates the question of social function of possession in Brazil. Although possession is an ancient law concept (side by side with property), it has been causing long polemics in Law Doctrine and Jurisprudence. The controversy that involves it generally refers to dogmatic questionings that are taken to stress its dependence and subsidiarity regarding property. This phenomenon strengthened with the codification of the law in early 19th century, what made possession to be disregarded, for a long time, when confronted with property, specially in Brazil, a country where poverty, lack of education and culture, authorities' disdain, absence of public politics, irregularity in land occupation, among other factors, made that informality was the main issue in possessory questions. The social function of Private Law concepts is a relatively recent phenomenon in Law History, and the 1988 Brazilian Constitution literally attributed social function to property. With basis on pragmatic analysis of the law, this paper investigates if it is possible to explore this constitutional principle to search for social function of possession.

Introduo .........................................................................................12 A. Da zettica jurdica....................................................................15 B. Da linguagem ............................................................................21 C. Dos modelos dogmticos..........................................................26 C.1 O modelo analtico...............................................................28 C.2 O modelo hermenutico ......................................................29 C.3 O modelo emprico ..............................................................33 D. Do modelo pragmtico ..............................................................36 E. Do plano de trabalho .................................................................39 1. Linguagem e Discurso do Direito ..................................................41 1.1 Da equivocidade da linguagem................................................42 1.2 Da prtica discursiva jurdica ...................................................51 1.3 Fundamentos gerais do discurso.............................................54 1.3.1 Estruturas dialgica e monolgica: o dubium e o certum..55 1.3.2 "Discusso-com" e "discusso-contra"..............................56 1.3.3 O terceiro comunicador.....................................................58 1.4 O discurso normativo...............................................................60 1.4.1 Os aspectos relato e cometimento ....................................64 1.4.2 Das reaes ao discurso normativo ..................................66 1.4.3 O direito oficial e o direito inoficial.....................................71 1.5 O discurso judicial....................................................................73 1.6 O discurso da cincia do direito...............................................76 1.7 O discurso da norma e a ideologia ..........................................77 1.7.1 O discurso ideolgico constitucional .................................82

2. Anlise histrica do instituto da posse ..........................................86 2.1 A Posse no Direito Romano.....................................................92 2.1.1 O perodo pr-clssico ......................................................94 2.1.2 A transio para o perodo clssico ..................................96 2.1.3 O perodo ps-clssico......................................................99 2.1.4 Modalidades da posse. ...................................................102 2.1.5 Da proteo possessria.................................................103 2.2 A Gewere ............................................................................105 2.3 O direito cannico..................................................................110 2.4 Da influncia bizantina...........................................................113 2.5 A longa transio da posse no ocidente ................................115 2.5.1 O perodo dos glosadores...............................................116 2.5.2 O perodo dos ps-glosadores........................................118 2.6 A teoria subjetiva de Savigny.................................................122 2.7 A teoria objetiva de Ihering ....................................................126 2.8 A teoria da apropriao econmica de Saleilles....................129 2.9 A teoria social de Perozzi ......................................................131 2.10 A caminho da funo social da posse .................................133 3. A funo social dos institutos de direito privado..........................135 3.1 Da relativizao da propriedade greco-romana .....................137 3.2 Da transio proprietria medieval ........................................144 3.3 Da propriedade em seu esplendor iluminista.........................152 3.4 Da reao ao liberalismo: a funo social da propriedade ....162 3.5 A constitucionalizao do direito privado...............................170 4. Da Posse no Brasil: do descobrimento funo social...............180

4.1 O perodo colonial..................................................................181 4.2 O Brasil Imperial ....................................................................185 4.2.1 A Lei de Terras de 1850..................................................189 4.3 A fase republicana .................................................................193 4.3.1 O Cdigo Civil de 1916 ...................................................194 4.3.2 Meandros legislativos: 150 anos de posse......................197 4.3.3 Da Revoluo de 1930 Constituio de 1946 ..............203 4.3.4 O Estatuto da Terra de 1964...........................................205 4.3.5 Crise social e abertura poltica ........................................208 4.4 A Constituio de 1988..........................................................210 4.4.1 A funo social da propriedade.......................................212 4.5 O Estatuto da Cidade e a usucapio coletiva ........................214 4.6 O Cdigo Civil de 2002..........................................................216 4.7 Em direo funcionalizao da posse ................................220 5. Da Funo Social da Posse uma anlise pragmtica ..............223 5.1 O discurso judicial possessrio..............................................227 5.2 "Tpica material" e "Tpica formal" .......................................228 5.3 Argumentao "dogmtica" e argumentao "zettica".........231 5.4 Soluo "tima" e soluo "satisfatria" ................................234 5.5 Um modelo retrico ...............................................................236 5.5.1 O decurso do questionamento "dogmtico" ....................236 5.5.2 O decurso do questionamento "zettico" ........................240 Concluso .......................................................................................246 Bibliografia ......................................................................................248 Outras referncias bibliogrficas:....................................................262

Referncias bibliogrficas obtidas via Internet: ...............................263 Outras referncias jurisprudenciais.................................................263

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IntroduoEntre os muitos institutos jurdicos que o direito abarca, a posse marcada pela heterogeneidade, resistindo a concluses pacficas e definitivas sobre sua extenso, natureza, alm da relao intrincada com a propriedade, apenas para citar alguns aspectos da sua abordagem dogmtica. Por milnios a fio, o mundo viveu uma situao, em boa parte, indefinida, no que diz respeito posse, em virtude das caractersticas especficas de sociedades das mais variadas espcies, que tinham que suportar guerras constantes, enfrentar a lei do mais forte, sem que houvesse instituies suficientemente estruturadas que garantissem uma

estabilidade jurdica perene. O imprio romano, neste particular, proporcionou ao seu mundo a pax romana, que lhe permitiu estabelecer um direito duradouro, que lanou as bases da civilizao ocidental, sobretudo com a posterior influncia do cristianismo. Assim, podemos delimitar, inicialmente, o mbito do nosso trabalho dentro das influncias do direito romano nos ordenamentos de pases que foram seus tributrios e seguem a tradio jurdica latina. Ainda que nos refiramos pontualmente, nas pginas que se seguem, a outros ordenamentos, de outra ndole, este trabalho privilegia o legado romnico, mas a ele no se limita. O direito romano merece destaque, sobretudo, porque, desde os seus primrdios, procurou estabelecer alguma espcie de controle normativo (ou problemtico, como veremos adiante) das questes ligadas posse. Entretanto, o direito, tal como o conhecemos hoje atravs da Constituio, dos Cdigos e das leis esparsas, um fenmeno relativamente recente na histria da humanidade. Pouco mais de dois sculos nos separam da era iluminista e das revolues do final do sculo XVIII, a que se seguiu a promulgao do Cdigo Civil francs de 1804, a primeira codificao moderna, que

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teve como uma de suas principais caractersticas a elevao da propriedade categoria de direito inalienvel do ser humano, ainda que discutamos, no decorrer deste trabalho, o grau de absolutismo desta definio. A partir de ento, com o fenmeno da positivao do direito nos pases europeus e no Brasil, em especial, as questes que envolviam a posse e a propriedade passaram a ter um enfoque nitidamente dogmtico, no sentido de que o direito j estava posto, e cabia queles a quem ele se endereava apenas cumprir o que estava escrito. No direito, portanto, as relaes possessrias e proprietrias (ao lado das familiares) representam, de certo modo, um elo de continuidade entre o ancestral e o moderno, no que diz respeito a um esforo - bem sucedido ou no - de organizao jurdica da vida em sociedade, das questes problemticas primitivas ao positivismo moderno. Ainda que, no passado mais remoto, houvesse apenas uma idia incipiente do que pudesse significar "direito" (basicamente fundado na fora fsica), e nem se cogitasse dos rituais formalsticos que viriam a configurar, mais tarde, o instituto jurdico da propriedade, os homens j tinham uma noo do que significava a "posse", fosse ela da caverna, da terra, ou dos utenslios domsticos e de caa. Rousseau j dizia que o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrouse de dizer: Isto meu, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil 1. Muitos sculos se passaram, e a posse continua sendo um instituto jurdico polmico, e boa parte das controvrsias que a envolvem se deve ao seu

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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Origem da Desigualdade. Rio de Janeiro: Athena Editora. Trad. de Maria Lacerda de Moura, s/d, p. 124, grifado no original, apud TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A Propriedade e a Posse. Um Confronto em torno da Funo Social. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2007. p. 130. Prossegue Rousseau: Quantos crimes, guerras, assassnios, misrias e horrores no teria poupado ao gnero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos so de todos, e a terra de ningum.

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carter de interface, digamos, porosa entre o mundo das relaes jurdicas e ajurdicas, em que se imbricam (e, muitas vezes, se chocam) saberes autnomos, como o direito, a antropologia, e a sociologia, tendo por substrato a realidade nua e crua2de um contingente social necessitado e excludo do acesso terra e moradia. Desta forma, diante das muitas incidncias do termo posse no mundo jurdico, restringimos um pouco mais o mbito da nossa investigao, no sentido de que centralizaremos nossa anlise em questes que envolvem posse de bens imveis, de maneira, contudo, que caiba, eventualmente, a sua extenso a outras hipteses em que o tema posse seja aplicado. necessrio especificar, tambm, que, muito embora as questes possessrias agrrias e urbanas tenham ampla relevncia em outros pases, sobretudo os do chamado Terceiro Mundo e, neste particular, a Amrica Latina -, buscamos referir-nos realidade social brasileira, e ao ordenamento jurdico que regula a posse neste pas, no s por uma questo de proximidade com o substrato ftico-jurdico, mas com o fito principal de investigar como o direito brasileiro3 pode contribuir para a soluo pacfica e ordenada dos conflitos possessrios que envolvem significativa parcela da populao. Se a questo da posse, em si, j reserva um amplo trabalho de investigao ao jurista, sua tarefa dificultada um pouco mais quando a ela se agrega uma funo social, que modernamente se atribui aos institutos de direito

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Adiantando a questo da linguagem que ser aprofundada a seguir, e admitindo, desde j, a ressalva feita por Habermas: "A realidade com a qual confrontamos nossas proposies no uma realidade 'nua', mas j, ela prpria, impregnada pela linguagem. A experincia pela qual controlamos nossas suposies lingisticamente estruturada e se encontra engastada nos contextos de ao. To logo refletimos sobre uma perda de nossas certezas ingnuas, no mais encontramos nenhuma classe de enunciados de base que se legitimam 'por si mesmos', ou seja, 'primrdios' inequvocos para alm da linguagem, experincias auto-evidentes aqum das razes. O conceito semntico-dedutivo de fundamentao tem alcance muito curto; as cadeias de fundamentao tem alcance muito curto; as cadeias de fundamentao refluem para os contextos dos quais elas provm." (HABERMAS, Jrgen. Verdade e Justificao: Ensaios Filosficos. So Paulo: Loyola, 2004. p. 45) 3 Quando nos referimos ao "direito brasileiro", no nos limitamos apenas lei, mas tambm doutrina e jurisprudncia a cincia do direito como um todo -, como veremos adiante.

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privado - como o contrato e a propriedade -, este conceito at certo ponto vago e ambguo4, que vem sendo recebido e positivado no ordenamento jurdico brasileiro, como a Constituio de 1988, o Cdigo Civil de 2002, alm de legislaes esparsas como o Estatuto da Cidade de 2001. H quem diga que ver na posse uma funo social mera decorrncia daquela atribuda propriedade, caminho que respeitamos, mas no pretendemos percorrer. Investigar se h uma funo social na posse, na nossa viso, requer do jurista o recurso a ferramentas variadas que no apenas aquelas fornecidas pela dogmtica. Diante da multiplicidade de enfoques possveis, optamos por estreitar o foco no tema posse a partir de algumas ncoras metodolgicas que nos permitam embasar este trabalho com a mxima segurana cientfica. Paradoxalmente, esse estreitamento implica no recurso consciente e seletivo de distintos meios para alcanar o objetivo traado, conforme veremos a seguir.

A. Da zettica jurdicaDentro deste propsito, nos valemos, inicialmente, do instrumental proporcionado pela zettica. Segundo a terminologia de Theodor Viehweg5, os enfoques tericos podem ser zetticos ou dogmticos. Etimologicamente, zettica vem do grego zetein, que significa perquirir, perguntar. J dogmtica vem do grego dokein, que significa ensinar, doutrinar. As investigaes cientficas esto sempre4

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Ainda que, no decorrer do trabalho, nos referiremos mais substancialmente ao discurso e a linguagem, por ora adiantamos que "cdigos fortes permitem um sentido unvoco de orientao. A forma de viol-los , em princpio, neg-los. Assim, a prescrio da igualdade proporcional violada medida que se estabelea uma desproporo (ou h igualdade ou h desigualdade). Cdigos fracos, ao contrrio, permitem sentidos ambguos e vagos de orientao, entendendose por ambigidade a impreciso conotativa (impreciso do conceito) e por vagueza a impreciso denotativa (quais os objetos alcanados pelo conceito)." (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. So Paulo: Atlas, 2003. 2. ed. p. 237) [grifamos] VIEHWEG, Theodor. Ideologie und Recht. Frankfurt: Vittorio Kostermann, 1969. Ideologie und rechtdogmatik, apud FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo Do Direito. Tcnica, Deciso, Dominao. So Paulo: Atlas. 2003. 4 ed., p 40

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lidando com perguntas e respostas, com problemas que requerem solues, e solues j obtidas que se aplicam resoluo de problemas. As questes zetticas priorizam o aspecto pergunta, em que os conceitos bsicos, as premissas e os princpios so expostos dvida e, portanto, se encontram abertos crtica. J as investigaes dogmticas privilegiam o aspecto resposta, em que determinadas matrias so tidas como absolutas e colocadas fora de questionamento, mantidas, ainda que temporariamente, como solues inatacveis e insubstituveis, como tem sido a abordagem tpica da propriedade e da posse no direito brasileiro, embora ambas permitam questionamentos zetticos. Enquanto a dogmtica releva o ato de opinar, ressalvando, entretanto, algumas opinies para combinar a funo informativa com a diretiva (que passa a predominar), a zettica, dado seu "descompromisso com a soluo de conflitos"6, desintegra as opinies, pondo-as em dvida mediante uma funo especulativa explcita e infinita, privilegiando a funo informativa da linguagem, ao contrrio das questes dogmticas, que tm uma funo diretiva explcita e so finitas, regendo-se pelo que Ferraz Junior chama de princpio da proibio da negao (referindo-se ao princpio da inegabilidade dos pontos de partida de Nicolas Luhmann), ou seja, o jurista est adstrito aos marcos da ordem legal vigente, espao ao que deve restringir qualquer investigao dogmtica. Como dissemos anteriormente, embora o fenmeno jurdico seja muito mais visto como dogmtico, ele tambm admite o enfoque zettico em sua investigao. Ambos os enfoques no so mutuamente excludentes, e ambos sero considerados neste trabalho. O que os diferencia, na abordagem jurdica, basicamente o fato de que o enfoque dogmtico

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FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo Do Direito. Tcnica, Deciso, Dominao. So Paulo: Atlas. 2003. 4 ed., p 44:

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tem um compromisso com a soluo de conflitos - non liquet - o que no ocorre com o zettico. Este ltimo proporciona um espectro muito mais amplo de investigao para o jurista, atuando em campos os mais variados, da metafsica s pesquisas empricas, podendo produzir resultados que venham a servir como base para uma eventual aplicao tcnica realidade. Como os recursos zetticos tendem ao infinito, no presente trabalho valemo-nos da classificao proposta por Ferraz Junior7, pelo que, inicialmente, privilegiamos o enfoque zettico analtico, pelo qual podemos investigar (a melhor palavra especular) a questo da posse com o fim de conhecer melhor o objeto, e o tratamento jurdico e filosfico que vem recebendo. Ainda acompanhando a viso do jurista, em muitos momentos o nosso enfoque , tambm, zettico emprico puro8, no sentido de que buscamos na histria do direito e na sociologia instrumentos que permitam compreender melhor as bases da organizao social, cultural, fundiria e jurdica brasileira, com o fim de percorrer novos ngulos de observao que possibilitem uma anlise diferenciada de solues para os conflitos jurdicos e sociais em que muitas questes possessrias esto imersas no Brasil.9 Do ponto de vista dogmtico, o tratamento dado posse e propriedade no Brasil, como veremos no decorrer deste trabalho, teve,

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FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo Do Direito. Tcnica, Deciso, Dominao. So Paulo: Atlas. 2003. 4 ed., pp. 44-47. O jurista classifica a zettica analtica em: 1) pura - a que privilegia investigaes nas reas de filosofia do direito, lgica formal das normas e metodologia jurdica; e 2) aplicada - em que o foco est na teoria geral do direito e na lgica do raciocnio jurdico. 8 Ainda na classificao do jurista (acima), a zettica jurdica pode ser analtica (v. nota anterior) ou emprica. Esta ltima pode ser: 1) pura em que privilegia o aspecto jurdico da sociologia, antropologia, etnologia, psicologia e/ou politologia, alm da histria do direito e/ou da economia poltica; e 2) aplicada em que o enfoque est na psicologia forense, criminologia, penalogia, medicina legal ou poltica legislativa. 9 Fernandes de Souza chama ateno para o fato de que "o condicionamento histrico do nosso conhecimento, mxime no que diz respeito s cincias humanas, s pode ser entendido vista dessa evoluo descontnua, numa reviso constante dos pontos de partida." (SOUZA, Luiz Sergio Fernandes de. O Papel da Ideologia no Preenchimento das Lacunas de Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 2. ed. p. 40)

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historicamente, um vis monoltico no sentido de manter inalterada a situao proprietria e subestimada a possessria, em nome de uma segurana jurdica patrocinada pelo Estado brasileiro, seja atravs dos instrumentos legislativos, das foras de represso e sua violncia nem sempre unicamente simblica, e das decises do poder judicirio, mantendo, por assim dizer, um monlogo normativo 10 que procura manter afastados os no-proprietrios dos proprietrios (e de suas terras desocupadas e/ou improdutivas)11. Muitos culpam o direito positivo por este estado de coisas, referindo-se a um positivismo formalista que imperou por longo tempo, sobretudo no sculo XIX, quando, na verdade, a positivao do direito um fenmeno que, ainda que no tenha sido imediatamente percebido como tal, trouxe consigo, tambm, a possibilidade de mutao do direito, rompendo com a estabilidade do jusnaturalismo12, fazendo com que o comportamento esperado da sociedade fosse objeto de um processo de filtros decisrios, como expe Ferraz Junior:

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Aprofundaremos o conceito de "monlogo normativo" no decorrer do trabalho. Por ora, no aplicamos expresso nenhum significado tecnicamente elaborado, mas nos limitamos a indicar uma tendncia rotineira - no direito brasileiro de (fazer) cumprir textualmente a lei, sem questionla. 11 Darcy Ribeiro registra, por exemplo, o processo de excluso dos caipiras do sistema de parceria que, em muitas regies do Centro-Sul-Sudeste brasileiro, perdurou at o sculo XX: "Assim, o domnio oligrquico que remonopolizava a terra e promovia o desenraizamento do posseiro caipira, com a ajuda do aparelho legal administrativo e poltico do governo, ganha fora e congruncia, passando a exigir tambm as lealdades do caipira. [...] Todo um aparato jurdico citadino se coloca a servio dessa concentrao de propriedade. Propriedades pulverizadas por efeito de heranas sucessivas de famlias extensas se reconstituem por compra das parcelas de explorao invivel. Entram em ao os demarcadores de glebas a se fazerem pagar em terras pelos que no tm dinheiro. Multiplicam-se os grileiros, subornando juzes e recrutando as foras policiais das vilas para desalojar famlias caipiras, declaradas invasoras de terras em que sempre viveram. Postas fora da lei e submetidas perseguio policial, elas so, finalmente, escorraadas das terras medida que sua explorao comercial se torna vivel." (RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. A Formao e o Sentido do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 384) 12 "Em todos os tempos, o direito sempre fora percebido como algo estvel face s mudanas do mundo, fosse o fundamento desta estabilidade a tradio, como para os romanos, a revelao divina, na Idade Mdia, ou a razo na Era Moderna. Para a conscincia social do sculo XIX, a mutabilidade do direito passa a ser usual: a idia de que, em princpio, todo direito muda torna-se a regra, e que algum direito no muda, a exceo. Essa verdadeira institucionalizao da mutabilidade do direito na cultura de ento corresponder ao chamado fenmeno da positivao do direito (Luhmann, 1972)" (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo Do Direito. Tcnica, Deciso, Dominao. So Paulo: Atlas. 2003. 4 ed., pp. 74)

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H um sentido filosfico e um sentido sociolgico de positivao. No primeiro, positivao designa o ato de positivar, isto , de estabelecer um direito por fora de um ato de vontade. Segue da a tese segundo a qual todo e qualquer direito fruto de atos dessa natureza, ou seja, o direito um conjunto de normas que valem por fora de serem postas pela autoridade constituda e s por fora de outra posio podem ser revogadas. Ora, medida que tais atos de vontade so atos decisrios, positivao passa a ser termo correlato de deciso. Em conseqncia, implicando toda deciso a existncia de motivos decisrios, positivao passa a ser um fenmeno em que todas as valoraes, regras e expectativas de comportamento na sociedade tm de ser filtradas atravs de processos decisrios antes de adquirir validade jurdica (cf. Luhmann 1972:141). Em outras palavras, direito positivo no s aquele que posto por deciso, mas, alm disso, aquele cujas premissas da deciso que o pem tambm so postas por deciso. A tese de que s existe um direito, o positivo nos termos expostos, o fundamento do chamado positivismo jurdico, corrente dominante, em vrios matizes, no sculo XIX.13

Desta maneira, delimitamos um pouco mais o mbito de nosso trabalho, no sentido de que buscamos trabalhar com o direito posto, positivado (com o perdo da redundncia), que, a nosso ver, fornece os elementos para uma apreciao crtica das questes que pretendemos investigar, com o instrumental propiciado pela cincia do direito, naquilo que Geraldo Ataliba chama de

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FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo Do Direito. Tcnica, Deciso, Dominao. So Paulo: Atlas. 2003. 4 ed., pp. 74 [grifos do autor]

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"experincia integral do direito"14, sem desprezar outros saberes que contribuam para a elucidao das questes aqui levantadas, mas nem por isso reduzindo-os uns aos outros. Ainda que no seja possvel um enquadramento preciso da presente anlise dentro de molduras bem definidas de corrente jurdico-filosfica, sobretudo pelo que hoje se entende, pragmaticamente, por discurso da cincia do direito15, devemos partir, portanto, da tica que hoje costuma ser chamada de ps-positivista, ressalvando que o conceito de ps-positivismo ainda bastante difuso, embora apresente duas linhas bsicas: a que enfatiza o compromisso do direito com a moral, a tica e a justia; e a que valoriza o pragmatismo, priorizando as condies de concretizao (e decidibilidade) da norma jurdica. E nesta segunda via que concentraremos boa parte da nossa ateno, j que o direito tambm um

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"A experincia jurdica integral levar em conta todos os aspectos constituintes do dado: o lgico nos enunciados, o emprico nos dados-de-fato, valorativamente selecionados da realidade fsica e social (que, por isso, se qualifica juridicamente, ou se torna juridicamente relevante). [...] O estudo comprova que o sistema do Direito Positivo no pode equiparar-se a um sistema cientfico em suas propriedades formais: 1. h conflitos contraditrios de enunciados normativos; 2. apesar de contraditrios, os enunciados so vlidos no sistema (produzem efeitos na ordem do comportamento humano) enquanto o sistema no indica os meios de eliminar as antinomias; 3. a funo especfica do sistema jurdico orientar o processo social do comportamento no sentido da ordenao justa, e no a de descrever ou conhecer (em juzos-de-realidade) como de fato ocorre o comportamento inter-humano; 4. a interpretao, que ato de conhecer o Direito Positivo, como conjunto de expresses de significado normativo no se exaure em atos lgicos; 5. as vias lgicas que toma a interpretao so recursos comprometidos com valoraes (e ideologias) e no puras formas do argumento formalmente vlidas; 6. assim, na analogia, valora-se o semelhante em funo do valor justia tratar igualmente o anlogo; no argumento a contrario sensu, deixa-se de lado a insuficincia da estrutura implicacional em que repousa e apela-se para a idia de que o legislador, ao regular certa classe de casos, quis regular diversamente o no includo na classe explicitamente indicada; na tese da completude do sistema jurdico, menos que propriedade de um sistema formal, existe a vontade de racionalmente dominar (qualificar) a realidade por meio de normas; h, enfim, um condicionamento sociolgico nas teses filosficas que esto na base das teses lgicas. Tais consideraes apontam os justos limites em que se colocam as investigaes sociolgicas, filosficas e lgicas do Direito Positivo, demarcando, em conseqncia, a rbita metodologicamente definida da Cincia dogmtica do Direito. So investigaes complementares sobre o Direito. Enfatizar uma delas, custa das demais, ou reduzir uma outra, importa desconhecer a distino metodolgica, que no significar separao no dado. O reducionismo, da norma ao fato (sociologismo), da norma positiva norma ideal (jusnaturalismo), dos valores e normas s estruturas lgicas (logicismo) sempre um desconhecimento da experincia integral do Direito." (ATALIBA, Geraldo. Prefcio da 1edio de VILANOVA, Lourival. Estruturas Lgicas e o Sistema de Direito Positivo. So Paulo: Noeses, 2005. 3. ed. pp. 23-24) 15 conferir itens "D" da Introduo e 1.6 do Captulo 1, infra.

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fenmeno lingstico, sem que a ele tenha que reduzir-se16. Quando um movimento social se auto-intitula "sem-terra" ou "sem-teto", por exemplo, no est se referindo nica e exclusivamente a um aspecto sociolgico da realidade brasileira, mas est emitindo uma mensagem sociedade como um todo (com repercusses internacionais, inclusive), de que h algum tipo de limitao jurdica ao acesso terra e moradia no pas. Quando esses mesmos movimentos sociais se dispem a invadir terras e prdios abandonados, desafiando as leis e as autoridades, h, evidentemente, uma quebra na comunicao, no somente daquela socialmente esperada, mas especialmente da comunicao normativa, o que demanda uma interveno do poder estatal, em geral do judicirio, para decidir os conflitos.

B. Da linguagemEssa pequena coleo introdutria de dados nos remete a outra questo - talvez to ancestral como os atos humanos ligados posse -, que a da linguagem. No a linguagem propriamente dita, pois este no um trabalho de lingstica ou filologia (ainda que, por vezes, recorramos a esses saberes, sem pretender esgot-los), mas procuramos enfocar a prtica discursiva dos juristas, no que toca posse e o seu, digamos, inevitvel paralelismo com a propriedade. Neste sentido, Roland Barthes associa o surgimento da retrica com o ento nascente processo de propriedade na antiguidade grega:

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"Todo direito 'tem por condio de existncia a de ser formulvel numa linguagem imposta pelo postulado da alteridade'. Dizemos, entretanto, limitadamente, porque recusamos a reduo total do direito linguagem, mesmo tomando-se esta num sentido amplo de comunicao. Nestes termos, preferimos dizer que o direito no s um fenmeno lingstico, nem mesmo um fenmeno basicamente lingstico. Se ao nvel normativo o direito como sistema de proposies normativas -, o aspecto lingstico pode ser encarado como fundamental, no se pode esquecer que ele corresponde tambm a uma srie de fatos, empricos, que no so linguagem, como relaes de fora, conflitos de interesse, instituies administrativas, etc., os quais, portanto, se no deixam de ter uma dimenso lingstica, nem por isso so basicamente fenmenos lingsticos." (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Teoria da Norma Jurdica. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 4. ed. pp. 6-7)

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A Retrica (enquanto metalinguagem) nasceu do processo de propriedade. Por volta de 485 a.C., dois tiranos sicilianos, Gron e Hiron, operam deportaes, transferncias de populao e expropriaes, para povoar Siracusa e distribuir lotes aos mercenrios; quando foram derrubados por um levante democrtico e se quis voltar ao ante qua, houve inumerveis processos, pois os direitos de propriedade estavam obscurecidos. Esses processos eram de um tipo novo: mobilizavam grandes jris populares, diante dos quais, para convencer, era preciso ser eloqente. Essa eloqncia, participando ao mesmo tempo da democracia e da demagogia, do judicial e do poltico (o que se chamou depois de deliberativo), constituiu-se rapidamente em objeto de ensino.17

Dentro do propsito de nossa investigao, necessrio delimitar um pouco mais o nosso campo de anlise, j que os conhecimentos aportados pelas reflexes sobre as linguagens tm grande amplitude e variedade terica. Primeiramente, assumimos a posio de Saussure para definir linguagem como um "sistema de mltiplos signos articulados, onde a significao depende no apenas de uma relao interna do prprio signo, mas tambm da relao de um signo com os outros"; e por signo entendemos a unidade mnima de anlise da linguagem, composta por dois elementos bsicos: "o indcio material ou significante (som, sinal, grafia, gesto, comportamento, objeto, imagem), situado no plano da expresso; e o contedo significado, situado no plano da interao (fenmeno, fato)"18. O signo

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BARTHES, Roland. A Aventura Semiolgica. So Paulo : Martins Fontes, 2001, trad. port. de Mario Laranjeira, p. 9 [grifamos] 18 WARAT, Luiz Alberto. O Direito e sua Linguagem. 2 verso. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995. 2. ed. p. 25. Ferdinand de Saussure o grande expoente da Semiologia, enquanto Charles

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pode ser estudado por trs ngulos ou vinculaes: a sintaxe, a semntica e a pragmtica. Tomando a liberdade de "transportarmos" essa classificao para o modelo jurdico, a sintaxe seria o enunciado acerca de uma ao contido numa norma, deonticamente considerado19. A semntica, tem como problema central, segundo Warat, o da verdade. Assim, "um enunciado no ser semanticamente significativo se no for empiricamente verificvel" alertando que "os critrios de significao que a dogmtica constri esto mais vinculados eficcia e legitimidade do sistema jurdico que s condies. de validade e de verdade"20. Por fim, temos a pragmtica, que, segundo Carnap, " a parte da semitica que estuda a relao dos signos com os usurios"21, tese hoje, em parte, superada, e qual dedicaremos um maior aprofundamento no decorrer deste trabalho. Por ora, impese verificar que a dogmtica jurdica brasileira, tradicionalmente, tem-se atido muito mais s questes sintticas e semnticas na interpretao das normas, mediante oSanders Peirce o seu equivalente na Semitica. Ambos, quase que simultaneamente, sugeriram a construo de uma teoria geral dos sistemas sgnicos dando a ela, cada um, respectivamente, o nome acima declinado. Segundo Warat, a Semiologia, "uma prtica complexa que, no interior de cada discurso, deve mostrar-nos, em um processo contra-discursivo, as funes sociais dos diferentes mbitos e modos de significar" (p. 13) e a Semitica " o nvel de axiomatizao dos sistemas significantes, postos como modelos matemticos das diversas linguagens da cincia; sua ambio mxima a de criar um modelo matemtico universal como padro epistemolgico para todas as cincias. Um modelo matematicamente garantido contra todas as perverses da histria e das ideologias" (p. 14). 19 "Do ponto de vista jurdico, podemos afirmar que uma expresso est sintaticamente bem formada quando o enunciado acerca de uma ao encontra-se deonticamente modalizado." (WARAT, Luiz Alberto. O Direito e sua Linguagem. 2 verso. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995. 2. ed. p. 40) 20 WARAT, Luiz Alberto. op. cit. pp. 40-41 e 44. Mais adiante (p. 45), afirma: "no campo da cincia jurdica, o critrio de determinao das normas descansaria numa teoria anloga verdade: a teoria da validade. A validade seria tambm uma relao e no uma propriedade das normas.". Lourival Vilanova, por sua vez, afirma: "Mas, a diferena entre verdade/falsidade, e validade/novalidade, reside no lado semntico: o modo-de-referncia da proposio aos objetos que difere. Num caso, a proposio descreve como o objeto; no outro, ela prescreve uma alterao no objeto, preceituando como ele deve-ser. Alm das diferenas sinttica e semntica, h tambm diferena quanto ao uso que os sujeitos da comunidade social fazem. Usa-se a p-normativa como um dos outils humains (P. Amselek, Mthode Phnomnologique et Thorie du Droit, pg. 269), como um dos instrumentos para canalizar o processo social da conduta humana dentro de vias sociologicamente funcionais, ou axiologicamente valiosas. Esse o aspecto pragmtico da pnormativa." (VILANOVA, Lourival. Estruturas Lgicas e o Sistema de Direito Positivo. So Paulo: Noeses, 2005. 3. ed. p. 78) 21 Cfe. referenciado por WARAT, Luiz Alberto, op. cit. p. 45, que prossegue: "sua problemtica central gira em torno da anlise dos modos de significar, usos ou funes da linguagem".

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rotineiro recurso "inteno do legislador" ou "vontade da lei". O jusfilsofo Tercio Sampaio Ferraz Junior comenta sobre essa, digamos, desimportncia da dimenso pragmtica do discurso (at tempos recentes), apontando, em seguida, o giro nessa avaliao: costume, no modo de tratar o discurso, considerar os momentos da semitica ou teoria dos signos a sintaxe, enquanto conexo dos signos entre si; a semntica, enquanto conexo dos signos com os seus objetos (cuja designao afirmada); e a pragmtica, enquanto conexo situacional na qual os signos so usados de tal modo que a sintaxe venha em primeiro plano, muitas vezes at como regio isolada de pesquisa, da partindo-se para a semntica, aparecendo, por ltimo, a pragmtica, com sentido subsidirio. Esta, enquanto campo da retrica, ao qual pertence basicamente a teoria da argumentao jurdica e das suas formas discursivas, caracterizada, no tratamento habitual, por uma certa ausncia de rigor, se comparada com a sintaxe e a semntica, tomando, por isso, em relao a elas, uma posio de inferioridade. Ora, o desenvolvimento experimentado pela

moderna teoria da argumentao, tendo em vista a redescoberta da retrica no seu relacionamento com a teoria da informao, da comunicao, da organizao e da deciso, tal como encontramos, por exemplo, em Theodor Viehweg, no campo jurdico, em Cham Perelman, na lgica, tem tentado inverter a ordem habitual da investigao semitica, acentuando a importncia do momento da "discutibilidade" (dialegesthai), tomando-o como ponto de partida para a anlise do discurso. Sendo este, ento, concebido como ato inter homines, como "ao lingstica", isto , como ao dirigida a

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outros homens, diferena do mero agir, a posio da pragmtica, dentro da semitica, se modifica, aparecendo em primeiro lugar, constituindo-se a sintaxe e a semntica a partir dela.22

, portanto, na dimenso pragmtica da teoria do discurso que buscamos concentrar nossa investigao, cientes das dificuldades metodolgicas apresentadas pelas diferentes abordagens da semitica23, que, como lembra Lcia Santaella, "um territrio do saber e do conhecimento ainda no sedimentado", com "indagaes e investigaes em progresso"24. Diante desta multiplicidade de enfoques, para melhor ancorar metodologicamente nossa linha de pesquisa, nos guiamos pelos ensinamentos do jusfilsofo Ferraz Junior, que, em vrias obras, abordou este tema, apontando caminhos que nos parecem apropriados para analisar pragmaticamente a questo da posse. Relatando que "a prpria noo de pragmtica deveras imprecisa"25, o mestre aponta trs tipos bsicos de anlise pragmtica: a teoria do uso de sinais, da qual Carnap um dos expoentes, e que, como dissemos anteriormente, definia a pragmtica como "a parte da semitica que estuda a relao dos signos com os usurios", posio hoje parcialmente superada porque, alm de ignorar o seu aspecto dialgico, via na pragmtica apenas uma espcie de "adendo" sintaxe e semntica. O segundo tipo, na nomenclatura de Ferraz Junior, v a pragmtica como lingstica do dilogo, construda a partir das

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FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito, Retrica e Comunicao. Subsdios para uma pragmtica do discurso jurdico. So Paulo: Saraiva, 1997. 2 ed. p. IX 23 O mesmo pode ser dito da semiologia e da filosofia da linguagem. Quanto a esta ltima, Sylvain Auroux aponta 8 designaes diferentes, listando, entre outros, Plato, Aristteles, Hegel, Heidegger, Apel, Husserl, Frege, Russel, Wittgenstein, Strawson, Saussure, Katz e Chomsky (AUROUX, Sylvain. A Filosofia da Linguagem. Trad. Jos Horta Nunes. Campinas: UNICAMP, 1998, cfe. referido por SERBENA, Csar Antonio. Da Filosofia da Linguagem Linguagem do Direito: Possibilidades de Investigao Atuais. In FONSECA, Ricardo Marcelo (org.). Direito e Discurso: Discursos do Direito. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2006. pp. 67-78 24 SANTAELLA, Lcia. O que Semitica. So Paulo: Brasiliense, 2004. p. 8 25 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Teoria da Norma Jurdica. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 4. ed. p. 1

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idias de Saussure e com o contributo transcendental que Habermas acrescentoulhe. O ltimo tipo, o da teoria da ao locucionria, entende o falar como uma forma de ao social, afastando-se da lingstica sistemtica. Ferraz Junior prope um caminho que privilegia o sentido operacional do discurso normativo, atravs do princpio da interao entre emissor e receptor, mediado por signos lingsticos26, e tambm aponta o problema metodolgico:A propositura de um modelo lingstico-pragmtico para a anlise da norma jurdica releva uma questo preliminar de natureza metodolgica. Reconhecemos, sem pr em discusso, a pluridimensionalidade do objeto que chamamos direito, o que permite diversos ngulos de abordagem, ora separados, ora ligados por nexos meramente lgicos ou didticos, ora integrados em formas sintticas. [...] No nossa inteno definir o direito e seu mtodo de investigao, mas, apenas, a de propor um modelo capaz de examin-lo num dos seus aspectos de manifestao. Nossa proposta a de tratar o direito do seu ngulo normativo (sem afirmar que o direito se reduz a norma) e encarar a norma do ponto de vista lingustico-pragmtico (sem afirmar que a norma jurdica tenha apenas essa dimenso). 27

C. Dos modelos dogmticosComo dissemos anteriormente, investigaremos o fenmeno

multifacetado da posse dos pontos de vista zettico e dogmtico, mas tambm e

26 27

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. op. cit. pp. 2-4 idem, p. 5

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principalmente - permeados pela anlise pragmtica28, e orientados pelo critrio de decidibilidade, que, por sua vez, est intimamente relacionada discutibilidade. Enquanto a ltima vista como ponto de partida para a anlise do discurso29, a primeira tambm um critrio de ordenao30 que leva Ferraz Junior a apontar a articulao da dogmtica jurdica em trs modelos tericos abrangentes que, a seu ver, "qualificam os traos comuns de um tipo de investigao, de metodologia, de modo de encarar a questo da decidibilidade"31, o que nos anima a valer-nos desse instrumental variado para abordar essas questes com a devida segurana metodolgica. Ainda que "desenhados" inicialmente para pesquisas dogmticas, parece-nos que se adequam pontualmente ao propsito deste trabalho dado o carter heterogneo da posse, j que nos permitem entender, em especial, a evoluo histrica dos institutos jurdicos aqui examinados.

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"Essa concepo do discurso enquanto produo de pensamento e no enquanto instrumento lingstico de expresso de coisas pensadas exige uma anlise da sua estrutura, sem, claro, o desmembramento isolado dos momentos semiticos, pois os atravessa, e de certo modo, os constitui." (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito, Retrica e Comunicao. Subsdios para uma pragmtica do discurso jurdico. So Paulo: Saraiva, 1997. 2 ed., pp. IX-X) 29 "Ora, o desenvolvimento experimentado pela moderna teoria da argumentao, tendo em vista a redescoberta da retrica no seu relacionamento com a teoria da informao, da comunicao, da organizao e da deciso, tal como encontramos, por exemplo, em Theodor Viehweg, no campo jurdico, em Cham Perelman, na lgica, tem tentado inverter a ordem habitual da investigao semitica, acentuando a importncia do momento da "discutibilidade" (dialegesthai), tomando-o como ponto de partida para a anlise do discurso. Sendo este, ento concebido como ato inter homines, como "ao lingstica", isto , como ao dirigida a outros homens, diferena do mero agir, a posio da pragmtica, dentro da semitica, se modifica, aparecendo em primeiro lugar, constituindo-se a sintaxe e a semntica a partir dela." (FERRAZ JUNIOR, op. cit. p. IX) 30 "Porm, como a decidibilidade um problema e no uma soluo, uma questo aberta e no um critrio fechado, dominada que est por aporias como a da justia, da utilidade, da certeza, da legitimidade, da eficincia, da legalidade, etc., a arquitetnica jurdica depende do modo como colocamos as questes. Como os problemas se caracterizam por serem ausncia de uma soluo, abertura para diversas alternativas possveis, a Dogmtica Jurdica se nos parece como um espectro de teorias, s vezes at mesmo incompatveis, mas que guardam sua unidade no ponto problemtico de sua partida. Como essas teorias tm uma dimenso social funcional e uma natureza tecnolgica, elas no constituem meras explicaes dos fenmenos, mas, na prtica, se tornam doutrina, isto , elas ensinam e dizem o que e como deve ser feito. O agrupamento de doutrinas em corpos mais ou menos homogneos, que constitui a Dogmtica Jurdica." (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Funo Social da Dogmtica Jurdica. So Paulo: Max Limonad, 1998. pp. 123-124) 31 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. op. cit. p. 120. Os modelos a que nos referiremos, resumidamente, a partir deste momento, esto descritos e comentados no captulo III da referida obra, intitulado "Os Instrumentos Dogmticos e sua Funo" (pp. 119-171)

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C.1 O modelo analticoO primeiro modelo o analtico, que lida basicamente com "uma relao hipottica entre hipteses de conflito e hipteses de deciso", ou seja, tem uma preocupao mais sinttica quanto s questes tericas do direito, procurando sistematiz-lo, classific-lo, descobrir-lhes a natureza jurdica, buscando o encadeamento de normas e institutos num sistema coerente que facilite a deciso32. O modelo analtico se vale de procedimentos lgicos, como a deduo e a induo, e especialmente no direito, da analogia. Genericamente, trabalha com duas formas bsicas, isolveis apenas por abstrao, que so a ligao e a diferenciao, de grande importncia quando se investiga dois institutos to prximos e s vezes to distantes -, como a posse e a propriedade. Explica Ferraz Junior que a ligao um recurso analtico que "consiste eles uma na aproximao de elementos distintos, ou

estabelecendo

entre

solidariedade,

valorizando-os

positiva

negativamente um pelo outro", enquanto diferenciao se refere "ao sentido de decomposio da anlise, consistindo numa ruptura cuja finalidade desvincular elementos que se manifestam como formando um todo ou, pelo menos, um conjunto solidrio"33. Com essas ferramentas, no mbito do nosso trabalho, bem adaptado s

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"O esquema se adapta ao esprito das classificaes dicotmicas e hierrquicas, permitindo responder a questes postas na forma de dualidades houve apropriao ou no? H propriedade ou h apenas posse? A aquisio viciosa ou no? Houve furto ou no? Tais questes, em nome de um princpio suficientemente abstrato, podem ser tratadas de um modo universalista, ou seja, conforme critrios internos do sistema, sem prender-se primariamente a situaes concretas. Esta orientao universalista foi e de extraordinria importncia para o desenvolvimento de sociedades complexas, a fim de que estas como so, por exemplo, as sociedades industriais fossem e sejam capazes de absorver e suportar enormes incertezas e diferenas sociais, no sentido de que ela neutraliza a presso imediata exercida pelo problema da distribuio social do poder e dos recursos, transportando-a para dentro do sistema jurdico onde ela , ento, mediatizada e tornada abstrata." (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Funo Social da Dogmtica Jurdica. So Paulo: Max Limonad, 1998. pp. 127-128) 33 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. op. cit. p. 134

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tpicas classificaes dicotmicas do direito34, podemos indagar se posse de terras, por exemplo, em que o seu proprietrio no cumpre a sua funo social, tem o condo de provocar uma ruptura no modelo proprietrio. Posse e propriedade so conceitos jurdicos imutveis? Existe um sistema jurdico de propriedade imune a adaptaes realidade social? So questes que o modelo analtico ajuda a responder, embora por si s no baste para apresentar critrios definitivos de decidibilidade. Ainda na viso do jurista, "a analtica jurdica se v, assim, forada a remover-se no seu pndulo entre ligaes e diferenciaes, superando-se continuamente e caracterizando-se, em suma, como uma sistematizao aberta"35.

C.2 O modelo hermenuticoO segundo modelo o hermenutico, que, como o prprio nome diz, prioriza as tcnicas interpretativas, tendo por substrato o comportamento humano regulado por normas, conferindo, entretanto, "ao intrprete uma disponibilidade que o autoriza a ampliar as incertezas sociais de um modo suportvel e controlado"36. Neste aspecto, as questes que envolvem a posse - como veremos mais de perto ao traar um perfil histrico-evolutivo do instituto -, caracterizam-se por uma intensa discusso hermenutica desde os tempos do direito romano, passando pelas

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"O esquema se adapta ao esprito das classificaes dicotmicas e hierrquicas, permitindo responder a questes postas na forma de dualidades houve apropriao ou no? H propriedade ou h apenas posse? A aquisio viciosa ou no? Houve furto ou no? Tais questes, em nome de um princpio suficientemente abstrato, podem ser tratadas de modo universalista, ou seja, conforme critrios internos do sistema, sem prender-se primariamente a situaes concretas. Esta orientao universalista foi e de extraordinria importncia para o desenvolvimento de sociedades complexas, a fim de que estas como so, por exemplo, as sociedades industriais fossem e sejam capazes de absorver e suportar enormes incertezas e diferenas sociais, no sentido de que ela neutraliza a presso imediata exercida pelo problema da distribuio social do poder e dos recursos, transportando-a para dentro do sistema jurdico onde ela , ento mediatizada e tornada abstrata." (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Funo Social da Dogmtica Jurdica. So Paulo: Max Limonad, 1998. p. 134) [grifamos] 35 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. op cit. p. 137 36 idem, p. 138

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disputationes dos glosadores da Idade Mdia, at chegar s grandes teorias sobre a posse do sculo XIX: a subjetiva de Savigny e a objetiva de Ihering. o prprio Savigny, por sinal, que elabora, em 1814, as primeiras quatro tcnicas interpretativas: a gramatical, a lgica, a sistemtica e a histrica. Obviamente, o modelo hermenutico no se esgotou a, mas continuou apresentando desafios cada vez mais complexos para o intrprete da lei, como o caso da moderna viso da funo social quanto aos institutos de direito privado.No basta, portanto, que o jurista investigue a configurao sistemtica da posse (sem desprezar sua correlao ligao e diferenciao - com a propriedade) num determinado ordenamento jurdico, mas cabe-lhe, sobretudo, determinar o seu sentido, como lembra Ferraz Junior, ao contrastar o modelo hermenutico com o analtico:A Dogmtica Jurdica de estilo hermenutico tem, pois, uma posio diferente daquela de estilo analtico perante o problema da decidibilidade. Enquanto esta ltima o enfrenta partindo do sistema em direo ao mundo circundante, acentuando unilateralmente a viso interna, no se incomodando

preponderantemente com suas conseqncias para o meioambiente, a primeira volta-se para as expectativas sociais em conflito, buscando nas conseqncias os critrios de distino entre o jurdico e o antijurdico. Isto desenvolve um modo de argumentao dogmtico em que as conseqncias so to ou mais importantes que as premissas da deciso. Esta distino entre dois estilos no meramente acadmica, mas pode ser vista, por exemplo, na

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polmica entre os adeptos da mens legis (objetivistas) e da mens legislatoris (subjetivistas) na captao do sentido da lei.37

O foco do modelo analtico, portanto, est nas premissas, enquanto o do modelo hermenutico, nas conseqncias. Por muito tempo, os juristas, de modo geral e aqui no fazemos distino entre o estudioso e o intrprete -, trataram a questo da posse apenas do ponto de vista das premissas normativas, sem se preocupar com as conseqncias. Predominava, portanto, o modelo analtico. Hoje, entretanto, j se d mais importncia ao modelo hermenutico, como veremos no decorrer deste trabalho, pois a prpria lei se encarrega de apontar, ainda que subliminarmente, por assim dizer, as conseqncias das situaes possessrias. O Cdigo Civil de 2002, por exemplo, instituiu, no artigo 1.228 que define a propriedade -, em seu 4, a seguinte disposio: "o proprietrio tambm pode ser privado da coisa se o imvel reivindicado consistir em extensa rea, na posse ininterrupta e de boa-f, por mais de cinco anos, de considervel nmero de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e servios considerados pelo juiz de interesse social e econmico relevante". Ainda que nos detenhamos um pouco mais sobre essa situao no decorrer do trabalho, j podemos observar que encontramos nesta norma a clssica contraposio entre posse e propriedade, mediada por um "interesse social e econmico relevante" de um "considervel nmero de pessoas", expresses (e critrios) que devem passar pelo crivo do intrprete. Essas so clusulas gerais, dotadas de um certo grau de vagueza e ambigidade, que, vistas apenas pelo lado das conseqncias, podem gerar incertezas, como lembra Ferraz Junior,

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FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Funo Social da Dogmtica Jurdica. So Paulo: Max Limonad, 1998. p. 142

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A Dogmtica de estilo hermenutico se orienta, pois, para as conseqncias das aes. Seu grande problema, como se v a partir desta polmica, est em se saber at que ponto ela pode guiar-se pelas conseqncias sem perder o controle dos conflitos. Tal orientao para as conseqncias da ao, que significa uma orientao para o futuro ainda incerto, reflete um carter dominante das sociedades contemporneas. Se isto de um lado, traz incerteza, de outro faz da certeza, especialmente da certeza jurdica, um problema a ser resolvido, e um valor a ser garantido. Os membros das sociedades, nas formas da atualidade, so remetidos s previses do sistema jurdico que garantem suas decises, tendo em vista as incertezas dos conflitos. Ora estas decises no podem basear-se nas previses de suas prprias conseqncias, pois isto obrigaria os membros da sociedade a tentar prever as prprias previses. Assim, de um lado, a Dogmtica de estilo hermenutico tem de desenvolver frmulas cognitivas, operacionais e

organizatrias capazes de dar ao sistema jurdico condies para, de um lado, ampliar as incertezas de uma sociedade acossada pelas transformaes rpidas, pelo crescimento das possibilidades de ao etc.; de outro, impedir que todas as conseqncias venham a ser legitimadas, orientando-se o sistema jurdico por elas sem perder, porm, o seu controle.38

Essas so, portanto, tcnicas teleolgicas que enxergam as normas a partir das situaes, e tendem a pautar-se por critrios subjetivos de justia e equidade, culminando num procedimento que propicia a atividade do intrprete na

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FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Funo Social da Dogmtica Jurdica. So Paulo: Max Limonad, 1998. pp. 144-145

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prpria criao do direito, mas sempre a partir do prprio direito39. No mbito deste trabalho, por exemplo, se admitirmos que a funo social da posse no est positivada no ordenamento jurdico brasileiro, ou seja, temos aqui uma lacuna da lei, e se deva proceder por analogia funo social da propriedade, estamos diante de um recurso hermenutico, uma "inveno dogmtica que permite uma orientao da decidibilidade para o mundo circundante, mas de modo controlado", que "tem sempre de ser argumentada a partir do prprio Direito vigente"40. Assim, como lembra Ferraz Junior, a funo da dogmtica de estilo hermenutico a "construo das condies do juridicamente possvel"41, pois, "quaisquer que sejam as aparncias de fixidez do pensamento dogmtico, ele sempre tem um movimento para ir mais longe"42.

C.3 O modelo empricoO terceiro modelo proposto por Ferraz Junior o emprico, em que se d maior importncia ao aspecto da decidibilidade dos conflitos. O ato decisrio visto como um componente de uma situao de comunicao, de interao entre as partes atravs de normas. Assim, o sistema jurdico no visto apenas como um conjunto de normas que regulam a conduta humana, mas tambm e39

"Mesmo as Dogmticas sociologizantes, como aquelas propostas pelo realismo americano ou pelo escandinavo, onde a orientao pelas conseqncias mais evidente, no fazem das conseqncias reais, mas apenas das jurdicas, um verdadeiro critrio ou, mais claramente, elas no se guiam, por exemplo, pelo fato de que, dada uma deciso, algum ficar pobre e outro rico, ou uma famlia ficar desagregada, mas pelas avaliaes generalizantes que suas construes permitem." (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Funo Social da Dogmtica Jurdica. So Paulo: Max Limonad, 1998. p. 155) [grifos do autor] 40 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. op. cit. 152. Mais adiante (p. 153): "Conseqentemente, o conceito de lacuna e os que lhe so aparentados (como interpretao extensiva, conceitos valorativos, normas abertas, etc.) conferem ao jurista a possibilidade de se valer daqueles fatores extrapositivos como se fossem positivos ou, ao menos, positivveis. Com isto, tambm se regula o prprio uso da analogia, da induo amplificadora, do tirocnio eqitativo do juiz, de frmulas valorativas como o bem-comum e o sentido social da lei, da chamada interpretao econmica dos fenmenos jurdicos, etc." 41 idem, p. 155 42 ibidem, p. 156

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principalmente de seres humanos que se comunicam mediante normas, independentemente de assim o quererem ou no. Na viso do jurista:Deciso termo correlato de conflito, o qual deve ser entendido como o conjunto de alternativas que surge da diversidade de interesses, da diversidade no enfoque de interesses ou da diversidade das condies de avaliao, e que no prevem em princpio, parmetros qualificados de soluo. Por isso mesmo que exige deciso. Esta deciso no , necessariamente, o estabelecimento de uma repartio eqitativa entre as alternativas de melhores chances, pois isso pressupe a situao ideal de um sujeito que delibera apenas depois de ter todos os dados relevantes, podendo enumerar e avaliar as alternativas de antemo. A deciso, neste sentido, no um mero ato de escolha, possvel em situaes simples, mas no constituindo a regra nas situaes complexas, onde as avaliaes no so ntidas nem as alternativas so to claras. Sua finalidade imediata a absoro de insegurana, no sentido de que, a partir da deciso sobre alternativas incompatveis que, pela sua prpria complexidade constituem, cada uma de per si, novas alternativas por exemplo: pagar ou sujeitar-se a um processo; sendo pagar entendvel como pagar vista, a prazo, em promissrias, com ou sem garantias, etc., obtemos outras premissas para uma deciso subseqente sem ter que retornar continuamente s incompatibilidades primrias.43

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FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Funo Social da Dogmtica Jurdica. So Paulo: Max Limonad, 1998. p. 161. Prossegue o jurista: "Decidir, assim, um ato de uma srie cuja finalidade transformar incompatibilidades indecidveis em alternativas decidveis, mas que, num momento seguinte, pode gerar novas situaes at mais complexas que as anteriores. Na verdade, o moderno conceito de deciso a liberta do tradicional conceito de harmonia e

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Desta maneira, no que diz respeito aos conflitos possessrios, para restringir-nos ao escopo de nosso trabalho, o momento da deciso, por um juiz (o terceiro comunicador, como veremos mais adiante), tem que reduzir um intrincado jogo de interesses a alternativas viveis, com o objetivo inicial de absorver a insegurana provocada por uma invaso de terras, por exemplo, para estabelecer critrios que lhe permitam determinar, gradualmente, se aquelas terras so pblicas ou privadas; se pblicas, so devolutas ou no; se h propriedade devidamente titulada; se esta cumpre sua funo social; a que ttulo se deu a invaso; enfim, uma srie de questes que so levantadas mediante a interao das partes que lhes trazem os argumentos que permitem decidir o conflito. Comparativamente com os modelos analtico e hermenutico - em que a diferena central entre eles reside no fato de que o primeiro parte das premissas e o segundo, das conseqncias -, o modelo emprico posiciona-se num meio-termo, "visualizando a questo a partir da prpria deciso, como um procedimento intermedirio entre as premissas e as conseqncias da decidibilidade", segundo o entendimento de Ferraz Junior, que complementa:No fundo, trata-se de uma terceira forma de resolver o mesmo problema anteriormente exposto, qual seja, constituir um veculo capaz de proporcionar uma congruncia estvel entre os mecanismos jurdicos de controle social, limitando-os s

possibilidades de variao na relao de aplicao cujos plos so, ambos, contingentes. Mas, ao ensaiar uma espcie de teoria da deciso, a Dogmtica de estilo emprico deixa introduzir, de modo mais evidente, um fator de ordem poltica na sua conceptualidade.

consenso, como se em toda deciso estivesse em jogo a possibilidade mesma de livrar-se de vez de uma relao de conflito. Ao contrrio, se conflito condio de possibilidade da deciso na medida em que a exige, a partir dela ele no eliminado, mas apenas transformado." [grifamos]

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Isto porque, em toda deciso de autoridade, est implcito um elemento de controle da parte do decididor sobre o endereado da deciso.44

O modelo emprico permitir, portanto, uma anlise pragmtica da posse, e de sua funo social, dentro daquilo que denominaremos "modelo pragmtico", detalhado a seguir.

D. Do modelo pragmticoJ dissemos, anteriormente, que questes zetticas e dogmticas privilegiam, respectivamente, os aspectos pergunta e resposta de uma situao comunicativa, de um discurso visto como discusso. Quanto ao discurso da cincia do direito e este trabalho assim se pretende -, as dificuldades comeam pelo estabelecimento do direito como cincia, seja porque o termo cincia no unvoco, seja porque caracterizado por prticas metdicas que lhe so prprias, ou, ainda, se o direito uma cincia autnoma ou simples tcnica ou arte, ou uma espcie de sub-rea de outra cincia dentre as ditas humanas, como a sociologia45. O estatuto epistemolgico do direito , portanto, controvertido46, mas trs caractersticas, que sero desenvolvidas no decorrer deste trabalho, nos parecem marcantes: a norma, a interpretao e a finalidade prtica:

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FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Funo Social da Dogmtica Jurdica. So Paulo: Max Limonad, 1998. p. 165 45 Para uma discusso mais detalhada dessas questes, remetemos a FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito, Retrica e Comunicao: Subsdios para uma pragmtica do discurso jurdico. So Paulo: Saraiva, 1997. 2 ed., pp. 147-152, 46 "No h, como se percebe, para usar uma expresso de Granger, um 'equilbrio epistemolgico' na abordagem cientfica do Direito. Isto torna a nossa prpria investigao bastante difcil, na medida em que toda e qualquer soluo do problema envolve uma deciso metacientfica, cujas razes filosficas no se escondem." (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. op. cit. p. 152)

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A captao da norma na sua situao concreta faz da Cincia Jurdica uma cincia interpretativa. A Cincia do Direito tem, nesse sentido, por tarefa interpretar textos e situaes a eles referidas, tendo em vista uma finalidade prtica. A finalidade prtica domina a a tarefa interpretativa. Esta se distingue de atividades semelhantes das demais cincias humanas, na medida em que a inteno bsica do jurista no simplesmente compreender um texto, como faz, por exemplo, um historiador, isto , estabelecer-lhe o sentido e o movimento no seu contexto, mas tambm determinar-lhe a fora e o alcance pondo-o em presena dos dados atuais de um problema.47

Com base nas consideraes de Paul Lorenzen, Wilhelm Kamlah, Kuno Lorenz, e Karl Popper, e sem a inteno de ser definitivo, Ferraz Junior sugere um modelo que privilegia o ponto de vista da pragmtica do discurso, chamando o discurso cientfico de discusso-com (embora haja elementos da discusso-contra)48 jurdica, que "tem por objeto a decidibilidade no sentido de que ela encara o conflito como hiptese de conflito, e a deciso como hiptese de deciso"49 e opera em trs nveis de exigncia: a inteno de verdade, a referncia realidade e o contedo

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FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito, Retrica e Comunicao: Subsdios para uma pragmtica do discurso jurdico. So Paulo: Saraiva, 1997. 2 ed., p. 150 [grifo do autor] 48 Os conceitos de "discusso-com" e "discusso-contra" sero aprofundados no decurso do trabalho. Por ora, basta-nos a definio de Ferraz Junior: "Podemos ento dizer que o discurso jurdico, ao exigir uma forma de discusso-com, desenvolve uma fundamentao cuja funo no configurar um conflito e, imediatamente, preparar uma deciso, mas sim procurar a possibilidade de 'verificao interpessoal' de uma questo hipottica. Aqui tambm a estrutura do discurso dialgica, o que qualifica o seu objeto como um dubium. A, aquilo que no momento monolgico da dogmaticidade posto como certum, questionado tambm em relao a outros dogmas (questionamento 'dogmtico'), ou de modo a transcender aqueles dogmas (questionamento 'zettico'). Pe-se prova a sustentabilidade de aes lingsticas, mas tendo em vista assinalar sugestes, apontar possibilidades, desvendar caminhos para uma eventual discusso-contra." (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. op. cit. p. 160) [grifo nosso] 49 FERRAZ JUNIOR, op. cit. p. 162

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informativo50. Trs, tambm, so os caminhos propostos pelo jurista para delimitar (sem restringir) o campo de ao modelo pragmtico de investigao. O primeiro (a) se constitui de um jogo de necessidades e interesses, muitas vezes incompatveis, mas sem limitar a decidibilidade ao formalismo jurdico; de onde decorre (b), que se examina a decidibilidade de acordo com as condies de possibilidade da deciso possvel, atravs da relao entre a hiptese de deciso com a de conflito, mediada pela reflexo sobre as normas de convivncia o ser humano visto como um ser dotado de funes -, sem limitar o exame ao sociologismo e psicologismo jurdicos, por exemplo; e, por fim, (c) a decidibilidade encarada a partir de sua relevncia possvel, do relacionamento da hiptese de deciso possvel com o seu sentido51. Conclui o jurista:Assim, a possibilidade aventada na letra a, onde se joga com os conceitos de necessidade-interesse que apontam para questes conflitivas, para as quais estabelecemos regras, mostra a predominncia de elementos da discusso-contra. O discurso tecnolgico pende, nesse momento, para o decisrio. A letra b, de

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"A discusso-com aspira verdade, como vimos, na medida em que oferece condies homlogas de verificao intersubjetiva. No nvel de referncia realidade, um discurso qualquer pode ser meramente descritivo, isto , descrever, apenas, uma situao dada; normativo, isto , impor um comportamento numa situao dada; descritivo-normativo, quando combina as formas anteriores; resolutivo, quando supera um impasse de solues numa situao dada etc. A discusso-com basicamente descritiva, embora no exclua aspectos resolutivos quando optamos por tcnicas de investigao, por exemplo. Finalmente, quanto ao contedo informativo, a discusso-com pretende transmitir uma informao qualquer, ou seja, algo sobre a realidade a que se refere significativamente." (FERRAZ JUNIOR, FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. op. cit. Direito, Retrica e Comunicao: Subsdios para uma pragmtica do discurso jurdico. So Paulo: Saraiva, 1997. 2 ed. p. 165) 51 "Para entender isso, preciso esclarecer um pouco a noo de sentido. Conforme o uso que estamos fazendo dela, a expresso tem relao com a orientao do homem no mundo. importante no confundir, porm, sentido com objetivo ou finalidade. Esta ltima tem relao com a funo das coisas, aquilo para que elas servem. Contudo, como nota H. Arendt (1981:167), o sentido das coisas no se reduz quilo para que elas servem ou, por exemplo, o sentido do trabalho de um carpinteiro no se reduz aos utenslios, nem mesmo finalidade dos utenslios que ele produz.Por isso, possvel que, muito embora a carpintaria continue a ter uma finalidade, o trabalho do carpinteiro venha a perder sentido. Sentido, assim, tem relao com a valia das coisas, com sua dignidade intrnseca." (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo Do Direito. Tcnica, Deciso, Dominao. So Paulo: Atlas. 2003. 4 ed., pp. 358) [grifos do autor]

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seu lado, j nos mostra a predominncia de elementos zetticos; a correlao norma-funo acentua um discurso tecnolgico

preocupado com a pesquisa e com uma certa dissoluo do sentido dogmtico das normas jurdicas, na medida em que o conhecimento da base emprica relativiza a certeza e a segurana das premissas da deciso, muito embora esteja ampliando o campo do

questionvel. A letra c significa uma ampliao global e ltima desse campo, a busca do sentido dando investigao uma reflexividade aportica. Esse trplice movimento no quer dizer que o objeto do discurso da Cincia do Direito esteja delimitado, mas que a sua reflexividade aponta sempre para essa encruzilhada de caminhos, ora secantes, ora paralelos, ora mutuamente excludentes, o que a manifestao mesma de sua racionalidade aportica.52

E. Do plano de trabalhoFeitas essas consideraes, esmiuamos o nosso plano de trabalho a seguir. No primeiro captulo, nos concentramos na prtica discursiva jurdica, mostrando como a posse (alm de propriedade e funo) percebida na linguagem comum dos no-juristas, e como se d a transformao dessa linguagem em discursos tpicos do direito. Para tanto, nos valemos primordialmente da anlise pragmtica e da investigao "zettica". No segundo captulo, valendo-nos das ferramentas "zetticas", mas, sobretudo, dos modelos dogmticos analtico e hermenutico, vamos buscar, em retrospectiva, os discursos histricos da posse,

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FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito, Retrica e Comunicao. Subsdios para uma pragmtica do discurso jurdico. So Paulo: Saraiva, 1997. 2 ed., pp. 171-173

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primeiramente problemticos, posteriormente dogmticos, procurando observar como se deu a evoluo do tratamento do tema ao longo dos sculos, neste instituto jurdico to infenso a concluses definitivas53. Seguindo na mesma linha, no terceiro captulo, fazemos um breve comparativo com a propriedade, dentro da viso funcionalista dos institutos de direito privado54. Nos captulos 2 e 3 buscamos concentrar-nos na tradio jurdica continental europia, e na sua transio para o direito brasileiro. No quarto captulo, ainda com nfase nos modelos metodolgicos dos dois captulos anteriores, focalizamos a questo da posse no Brasil, analisando aspectos sociolgicos e jurdicos ligados aos conflitos agrrios e urbanos recorrentes no pas. No quinto captulo, com foco especfico no discurso judicial, aprofundamos a anlise pragmtica do direito brasileiro, com o objetivo de verificar se possvel reconhecer na posse uma funo social, ainda com forte nfase nas ferramentas "zetticas".53

"Mas porqu discusses histrico-problematizantes? Tambm a filosofia e a filosofia do direito, se no quiserem estagnar no domnio do especulativo, dependem da experincia e do experimentar. O experimentar da filosofia a sua apario na histria (esta como que a 'queda' da filosofia), e este experimentar tem a grande vantagem de no ser meramente fictcio (por oposio a algumas outras teorias processuais da justia, que partem de experincias fictcias: o modelo contratual da concepo imaginada de um 'estado original', no qual o que pertence a cada um estabelecido por consenso entre todos; o modelo discursivo da concepo imaginada de uma 'situao de dilogo ideal', qual atribuda uma fora geradora de consenso e verdade). As nossas argumentaes histrico-problematizantes tambm se baseiam num discurso, mas num discurso real, um discurso que aconteceu realmente e que acontece constantemente: a velha idia de uma philosophia perennis. Os princpios da justia suum cuique, regra de ouro, imperativo categrico, princpio da lealdade/fairness, mandamento de tolerncia entre outros -, pensados para alm de toda a experincia histrica, so, na realidade, 'frmulas vazias' para as quais no existem regras de preferncia. Elas s tm um sentido e uma ordem hierrquica no modo como foram preenchidas com contedo, nas diferentes circunstncias histricas. Temos de perceber e resolver as nossas tarefas actuais a partir da histria." (KAUFMANN, Arthur. A Problemtica da Filosofia do Direito ao longo da Histria. In KAUFMANN, Arthur e HASSEMER, Winfried (org.). Introduo Filosofia do Direito e Teoria do Direito Contemporneas. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002. pp. 58-59. Trad. port. de Marcos Keel) 54 "A anlise histrica conduz verificao de que a cada modo de produo pertence um direito prprio e especfico (Wieacker 1983/76 e ss. e Barcellona 1977/3-32). Cada direito, em cada modo de produo puro, expresso de um direito pressuposto e um nvel particular no tipo de articulao e de relaes entre as instncias da estrutura social que caracterizam esse mesmo modo de produo puro (Poulantzas 1967/152). Por isso que a definio de certas estruturas e prticas como jurdicas depende do lugar e da funo que elas ocupam e cumprem em um todo complexo teoricamente definido, que constitui um determinado modo de produo (Poulantzas 1967/153)." (GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. So Paulo: Malheiros, 2005. 6. ed. p. 65)

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1. Linguagem e Discurso do DireitoPoucos temas foram to debatidos ao longo da histria da cincia do direito como a questo da posse, que continua representando uma tarefa das mais amplas e instigantes a que um jurista possa se dedicar, sobretudo no Brasil, onde os problemas sociais se avolumam h sculos e multiplicam os conflitos possessrios. So inmeros os trabalhos e discursos - a respeito, desde as mais antigas eras, abrangendo as mais diversas reas do conhecimento, da Antropologia Economia, da Sociologia Publicidade, mas o Direito se reserva sua peculiaridade. Comenta Tercio Sampaio Ferraz Junior que as teorias cientficas, em geral, vo evoluindo e se ultrapassando com o decorrer da histria, conforme surgem novas explicaes para os fenmenos observados, mas tal no ocorre com o direito, dando como exemplo a posse, em que as teorias jurdicas que procuram defini-la vo se ultrapassando num sentido apenas figurado, evoluindo e transformando-se medida em que atuam, positiva ou negativamente sobre a prpria posse, no convvio social55. Citando Tulio Ascarelli, Ferraz Junior lembra que a cincia do direito evolui de modo diferente das demais cincias, pois no h uma histria da cincia jurdica separada da histria do prprio direito, no que concorda Castanheira Neves, ao afirmar que o direito essencialmente histrico. E isto porque ele mesmo historicidade e faz histria. Ele histrico, no porque seu tempo o passado, mas porque o seu tempo o futuro a precipitar-se e a moldar o presente56

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FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo Do Direito. Tcnica, Deciso, Dominao. So Paulo: Atlas. 2003. 4 ed., p. 39 56 NEVES, Antonio Castanheira. Questo de Fato Questo de Direito ou o problema metodolgico da juridicidade (Ensaio de uma reposio crtica). Coimbra: Almedina, 1967, vol. I, p. 906, apud

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1.1 Da equivocidade da linguagemProssegue Ferraz Junior dizendo que tanto o fsico quanto o jurista tm suas definies guiadas por critrios de utilidade terica e de convenincia para a comunicao 57. Entretanto, para o fsico essa comunicao assume um carter estritamente informativo, que, munido do seu instrumental cientfico e da necessria reviso por outros colegas, relata ao mundo a sua descoberta como mera informao, o que no basta para o jurista, que a ela associa um sentido diretivo, sentido este que obtido essencialmente atravs de uma prtica interpretativa que, at certo ponto, pode ser considerada isolada, j que, embora se inspire no trabalho de alguns predecessores ou submeta a sua opinio ao crivo de outros colegas, no deixa de ser uma opinio que lhe peculiar. Assim, ao definir o movimento de um determinado objeto, o fsico se vale, sobretudo, da funo informativa, e os aspectos relevantes da sua observao vo se sucedendo e se sobrepondo, levando-o descrio e formulao de novas definies tericas. J quando o jurista define a posse" lembra Ferraz Junior "mesclam-se as duas funes. Ele no informa apenas sobre como se entende a posse, mas tambm como ela deve ser entendida58, ou seja, a nfase recai no aspecto prescritivo do instituto jurdico. Lourival Vilanova vai mais alm, ao afirmar que "o direito positivo usa linguagem que nem sempre coincide em seus contedos de significao, com o sentido da linguagem da cincia dogmtica do Direito o

FACHIN, Luiz Edson. A Funo Social da Posse e a Propriedade Contempornea. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 9 57 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo Do Direito. Tcnica, Deciso, Dominao. So Paulo: Atlas. 2003. 4 ed., p. 39 (grifamos) 58 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio, op. cit., p. 39

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conceito legal de posse nem sempre o mesmo conceito cientfico de posse"59. Luiz Sergio Fernandes de Souza comenta que se deve reconhecer, entretanto, que o carter prescritivo das proposies jurdicas impe ao cientista do direito um ethos de natureza sabidamente ideolgica, porquanto pressupe um modelo ideal de sociedade, inspirado em padres liberais democrticos60. Aquilo, portanto, que possa significar prescrio ou interpretao estar sempre sujeito a crticas e revises de toda ordem, de maneira que o texto legal poder sempre ser redimensionado, como conclui Fernandes de Souza:Mas as reflexes sobre a ambigidade, a vagueza e a contingncia da linguagem, no caso do direito, no se prestam somente elucidao das questes epistemolgicas. O prprio ordenamento jurdico, a despeito da linguagem pretensamente unvoca da qual se vale, forjada sob um suposto rigor cientfico, acaba por enredar-se nas malhas das vicissitudes da linguagem. Mesmo os conceitos mais apurados no admitem interpretao literal, pelo que sempre ser possvel estabelecer vrias leituras do mesmo texto normativo.61

No mbito das cincias ditas humanas, Karl Engisch62 destaca o fato do direito ser uma cincia eminentemente prtica, que atua pari passu com a

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VILANOVA, Lourival. Estruturas Lgicas e o Sistema de Direito Positivo. So Paulo: Noeses, 2005. 3. ed. p. 184 [grifo nosso]. Mais adiante abordaremos os aspectos especficos dos discursos da norma e da cincia. 60 SOUZA, Luiz Sergio Fernandes de. O Papel da Ideologia no Preenchimento das Lacunas de Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 2. ed. p. 77 61 SOUZA, Luiz Sergio Fernandes de. op. cit. p. 45. Prossegue o autor: "V-se, desta forma, que a interpretao do ordenamento, qual se dedica o jurista, no unvoca. Ainda que o intrprete se valha de construes bastante precisas, sempre ser possvel o redimensionamento do texto legal". 62 ENGISCH, Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian. 2004. Trad. port. J. Baptista Machado, 9. ed. p. 13: constitui privilgio quase exclusivo da cincia jurdica, entre as outras cincias da cultura, o facto de ela no abrir caminho ao lado ou atrs do Direito, mas, antes, poder aperfeioar o Direito mesmo e a vida que nele e sob a sua gide decorre. Havendo uma cincia jurdica, esta h de ser uma cincia prtica.

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fenomenologia jurdica, buscando sempre aperfeio-la, apontando novos caminhos, enquanto as demais cincias da cultura, como a teoria da arte, tendem a seguir os rumos j tomados por aqueles a quem observa. Mais adiante63, Engisch comenta a perplexidade de um estudante de medicina ao se deparar com a regra ento vigente no direito alemo ( 1589 al. 2 do BGB), de que um filho ilegtimo e o seu pai no so parentes, numa negao clara das leis da natureza64. Nunca demais relembrar que as relaes de parentesco, a famlia, a posse e a propriedade so das instituies mais ancestrais do direito, as que primeiro se formaram em torno do cl ou da tribo, e elas permanecem, de certa maneira, misteriosas para o no jurista. Logo, de que convenincia de comunicao estamos falando? Causa estranheza ao leigo, portanto, saber que h tanta controvrsia no Direito como ocorre com a questo da posse, o que lhe , de certa maneira, surpreendente, j que poucos institutos jurdicos so to facilmente identificveis na vida em sociedade como o da posse, que resulta to-somente do mero fato de um observador qualquer notar que algum detm uma determinada coisa e exterioriza o comportamento de que aquilo seu. Para o jurista, este um raciocnio ingnuo, desprovido daquilo que ele chama de interpretao, mas para o leigo esta idia de posse clara, de simples apreenso por qualquer pessoa, a ponto de no se conseguir imaginar que possa existir algum que no tenha posse de alguma coisa, no mais amplo sentido da palavra. Frases simples do cotidiano nos revelam a percepo generalizada do vocbulo posse, quando se diz que algum tem muitas posses, ou o poltico

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ENGISCH, Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian. 2004. Trad. port. J. Baptista Machado, 9. ed. p. 16 64 Cumpre lembrar que a proibio de qualquer distino entre filhos havidos na constncia ou no do casamento, bem como dos adotados, s foi positivada no Brasil pela Constituio de 1988 (art. 227, 6).

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promete defender os despossudos, ou ainda o torcedor vibra com o fato do seu time ter mais posse de bola65. Entretanto, na transposio desse conceito, digamos, popular, para o mundo da cincia do Direito (e da sua linguagem especfica), a posse reveste-se de um mistrio que parece, muitas vezes, inalcanvel. Como que por um passe de mgica, aquilo que parecia bvio e corriqueiro torna-se, mediante o discurso jurdico, impenetrvel. Conceitu-la juridicamente torna-se tarefa das mais rduas, questo sobre a qual se debruaram os mais ilustres juristas ao longo dos sculos. Ao comentar sobre esse carter, digamos, transcendental do conceito de posse, o jurista portugus Antnio Menezes Cordeiro66 assinala que justamente esta simplicidade leiga e cotidiana que dificulta a elaborao de um discurso jurdico complexo que delineie com clareza o conceito de posse, com a conseqente elaborao de metadiscursos que, por assim dizer, sublimam o aspecto informativo do direito em favor de um discurso diretivo que, no caso especfico da posse, se desdobra, muitas vezes, em subdiscursos conflitantes de carter ideolgico, o que, nos dizeres de Ferraz Junior, conformam o fenmeno estudado e fazem parte dele:

Fenmeno semntico que se repete mesmo no mundo do direito, j que muitas vezes o legislador liga a uma e mesma palavra, na mesma lei e em leis diversas, um sentido diferente. Tal o caso, por exemplo, com as palavras funcionrio, posse, propriedade, punibilidade, negligncia, etc. (ENGISCH, Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian. 2004. Trad. port. J. Baptista Machado, 9. ed. p. 139) 66 CORDEIRO, Antnio Menezes. A Posse: Perspectivas Dogmticas Actuais. Coimbra: Almedina. 2005. 3. ed. p. 10: As realidades muito simples, pela dificuldade de conceptualizao que implicam, prestam-se pouco a discursos directos, no sentido de desenvolvimentos que, sem intermediaes lingusticas, as visem. Elas potenciam, assim, metadiscursos, isto , seqncias que assentam no na realidade, mas nas figuraes lingsticas, por esta originadas. Quando se diz, por exemplo: a posse complexa no se tem em vista a realidade posse, mas o conceito verbalizado posse. A fluncia dum metadiscurso torna-se maior muito maior quando este incida sobre conceitos que sofram processos de ampliao e de refraco. Resta acrescentar que a posse constitui um exemplo de escola, no tocante ampliao e refraco conceptuais e ao desenvolvimento, sobre elas, de todo um metadiscurso.

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a posse no apenas o que socialmente, mas tambm como interpretada pela doutrina jurdica67. Seria, ento, o discurso jurdico sobre a posse mera dissimulao? Seguindo a viso marxista, Marilena Chau diz que esse ocultamento da realidade social chama-se ideologia68 . Ao destacar-se do mundo real e informativo para priorizar um discurso diretivo, o direito corre o risco de alienar-se da realidade social (e de seus conflitos) que pretende regular69. Desta forma, no de se estranhar que, para o trabalhador rural que queira um pedao de terra para plantar, ou para a me de cinco filhos ameaada de perder seu barraco na favela, sem ter para onde ir, as idias jurdicas sobre a posse resultem incompreensveis, ou, no mnimo, contraditrias, para no dizer cruis. Retomando a idia de Roland Barthes quanto retrica ter surgido do processo de propriedade no mundo helnico70, esse fenmeno de associao de termos, digamos, possessrios, s nascentes idias de lei e de justia, no passa desapercebido por Ferraz Junior que observa que a palavra dik, que nomeava a deusa grega da Justia, derivava de um vocbulo significando limites s terras de

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FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo Do Direito. Tcnica, Deciso, Dominao. So Paulo: Atlas. 2003. 4 ed., p. 40. 68 CHAUI, Marilena. O que Ideologia. So Paulo: Brasiliense, 2004 (Coleo primeiros passos; vol. 13).2 ed. p. 23 69 Ao que Vilanova contrape: "Se considerarmos o ordenamento como se estivesse em repouso, enquanto a realidade social flui, em incessante alterao, criando novas relaes inter-humanas, se tomarmos do ordenamento s as normas gerais, em contraste com a individualidade do real, que confere realidade social sua multiplicidade qualitativa e quantitativa a concreo dos fatos inesgotvel e sua ocorrncia no tem trmino na sucesso do tempo ento o sistema de normas frustrada tentativa de corresponder ao sistema social. Todavia, essa viso esttica no d na efetiva estrutura do ordenamento. (VILANOVA, Lourival. Estruturas Lgicas e o Sistema de Direito Positivo. So Paulo: Noeses, 2005. 3. ed. p. 217) 70 ver nota 17, supra. Barthes complementa: saboroso verificar que a arte da palavra est originalmente ligada a uma reivindicao de propriedade, como se a linguagem, enquanto objeto de uma transformao, condio de uma prtica, se tivesse determinado no a partir de uma sutil mediao ideolgica (como pde acontecer com tantas formas de arte), mas a partir da socialidade mais nua e crua, afirmada na brutalidade fundamental, a da posse da terra: comeou-se a refletir sobre a linguagem para defender os seus prprios bens. (BARTHES, Roland. A Aventura Semiolgica. So Paulo : Martins Fontes, 2001, trad. port. de Mario Laranjeira, p. 10)

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um homem. Da uma outra conotao da expresso, ligada ao prprio, propriedade, ao que de cada um71. H, portanto, uma profuso de termos que, de alguma maneira, associam a posse e a propriedade s idias nascentes de direito e justia, dentro de um discurso que comea a ser mais elaborado dentro da cosmoviso grega. Barthes, no trecho em destaque, fala do ensino da retrica a partir dos processos proprietrios72, ao qual associamos a idia do jurista portugus Menezes Cordeiro, que v no estudo da posse a condio de verdadeira escola no tocante dificuldade de conceitu-la, em contundente contraste com a viso simples e ingnua que uma criana, por exemplo, tem do fato social que ela encerra, afirmando ver nessa discusso o fenmeno que ele chama de refrao conceitual, j que as dificuldades em conceptualizar o simples levam a acentuar, apenas, alguma ou algumas das suas vertentes. A frmula obtida de modo nem sempre