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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTORIA SOCIAL

    HENRIQUE ATAIDE DA SILVA

    Mandioca, a rainha do Brasil?

    Ascenso e queda da Manihot esculenta em So Paulo.

    SO PAULO2008

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTORIA SOCIAL

    Mandioca, a rainha do Brasil?

    Ascenso e queda da Manihot esculenta em So Paulo.

    Henrique Ataide da Silva

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Histria Social do

    Departamento de Histria da Faculdade

    de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    da Universidade de So Paulo para

    obteno do titulo de Mestre em Histria.

    Orientador: Prof. Dr. Henrique Soares Carneiro.

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    SO PAULO

    2008

  • FOLHA DE APROVAO

    HENRIQUE ATAIDE DA SILVAMandioca, a rainha do Brasil? Ascenso e queda da Manihot esculenta em So Paulo.

    Dissertao apresentada a Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do titulo de Mestre em Historia. Orientador: Prof. Doutor Henrique Soares Carneiro

    Aprovado em: _________/ _______________________________/ 2008.

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. Henrique Soares CarneiroInstituio:FFLCH-USP. Assinatura____________________________________.

    Prof. Dr. Cristina AdamsInstituio: EACH-USP. Assinatura____________________________________.

    Prof. Dr. Eduardo NevesInstituio: MAE-USP . Assinatura____________________________________.

  • minha me, Leontina, meu pai, Eliseu,

    meu irmo Alexandre, minha sobrinha

    Letcia e minha mulher Neiva.

    Arlete (inmemoriam)

  • AGRADECIMENTOS

    Aos professores Rui Murrieta e Henrique Carneiro, que mais do que orientar, me ensinaram

    a andar com as prprias pernas.

    Aos professores Cristina Adams e Eduardo Neves por dedicarem parte de seu tempo para

    participar da minha banca examinadora.

    A professora Marina Mello, que com suas valiosas observaes acabou por fazer parte

    deste trabalho.

    Ao professor Renato Queiroz por toda ateno que me dispensou.

    Aos meus colegas do Laboratrio de Estudos Evolutivos humanos (IB-USP), em especial

    ao pessoal da sala 243.

    Aos meus colegas professores e alunos da Escola Estadual Oswaldo Walder por

    compreenderem minhas ausncias e sempre permanecerem do meu lado.

    A Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo pelo financiamento do projeto

    de pesquisa Antropologia ecolgica da agricultura de corte-e-queima de populaes

    quilombolas do vale do Ribeira-SP, que deu origem a este trabalho.

    Aos meus grandes amigos Roberto Barcellos (Betinho), Marcelo Pisseta, Carlos Lima

    (Montanha) , Dirlandi, Cleber Antonelli (Alemo), Alexandre Palandi.

    Aos amigos de Itapira (minha terra).

    Aos amigos de Assis, Carla e Ronaldo, Shirlei, e Cidinha, Aparecida Zacarias (tia Cida) e

    famlia.

  • famlia Zacarias Portes: Nivaldo, urea e Anselmo, pelo apoio incondicional.

    toda a minha famlia..

  • A Historia pode ser encarada de dois lados e dividida em

    Histria da Natureza e Histria dos Homens. Mas os dois

    lados no podem ser separados do tempo; enquanto houver

    homens, a Histria da Natureza e a Histria dos Homens se

    condicionaro reciprocamente. ( Karl Marx)

  • RESUMO

    Silva, Henrique Ataide da. Mandioca, a rainha do Brasil? Ascenso e queda da Manihot

    esculenta em So Paulo. Dissertao (mestrado). Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias

    Humana, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.

    O cultivo da mandioca possui uma estreita relao com o campesinato brasileiro, estando

    presente entre seus cultivos desde sua gnese e ainda hoje parte obrigatria da

    alimentao de vrios segmentos da populao brasileira das reas rurais. Atualmente a

    maior parte da produo do tubrculo provm de reas econmica e ecologicamente

    marginais sendo cultivado por meio de prticas agrcolas tradicionais, denominadas de

    agricultura de corte-e-queima. Porm, nos ltimos anos a produo de mandioca tem

    apresentado uma contnua queda, principalmente no Estado de So Paulo, onde as

    transformaes agrcolas foram mais intensas. Assim, mediante a importncia histrica do

    cultivo da mandioca entre os camponeses e a atual situao deste cultivo que colocamos

    nosso problema da seguinte forma: O declnio do cultivo da mandioca apresentado hoje no

    um fenmeno recente, mas sim histrico se iniciando em outras pocas. Assim nosso

    objetivo principal localizar as bases histricas do declnio do cultivo deste tubrculo entre

    os camponeses do Estado de So Paulo. Para atingir nosso objetivo adotamos o referencial

    terico-metodolgico da Historia Ambiental, que nos fornece elementos para fazer esta

    anlise na perspectiva das relaes entre as sociedades humanas e o mundo natural, usando

    para isso dados de diversas reas como a Economia, a Antropologia, a Arqueologia, a

    Ecologia, alm da Histria Social e Econmica.

    Palavras-chave: camponeses; alimentao; mandioca; Histria Ambiental; coivara.

  • ABSTRACT

    Silva, Henrique Ataide da. Cassava, the queen of Brazil? Ascension and fall of the Manihor

    esculenta in So Paulo. Dissertation (Masters degree). College of Philosophy Letters and

    Human Sciences, University of So Paulo, So Paulo, 2008.

    The culture of the cassava has a narrow relationship with the Brazilian small rural culture,

    being present among its cultures since its genesis and until today it is a mandatory part of

    the feeding in some segments of the Brazilian population in the agricultural areas. Currently

    most of the tubercle production comes from economic and ecologically outskirt areas being

    cultivated through traditional agriculturists methods, called slash and burn agriculture.

    However, during the last years the cassava production has presented a continuous fall,

    mainly in the So Paulo state, where the agricultural transformations had been more

    intense. Thus, due the historical importance of the cassava culture between the peasants and

    the current situation of this culture, we place our problem on the following form: The

    current decline of the cassava culture is not a recent phenomenon, but historical and

    initiating at other times. Thus our main objective is to locate the historical bases of the

    decline of this tubercle culture among the peasants of the Sao Paulo state. To reach our

    objective we adopt the theoretician-methodological referential of the Environmental

    History, that supplies us elements to make this analysis in the perspective of the relations

    between the human societies and the natural world, using for this data from several areas as

    the Economy, the Anthropology, Archaeology, the Ecology, and also Social and Economic

    History.

    Keywords: peasants; feeding; cassava; Environmental History; coivara.

  • LISTA DE FIGURAS

    FIGURA 1. Situao da Mata Atlntica - So Paulo - (1854-1886).....................................76

    FIGURA 2. Situao da Mata Atlntica - So Paulo - (primitivo-1973). ..........................103

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Lista de produtos da lavoura na capitania de So Paulo em 1814......................84

    Tabela 2 Quantidade produzida em valor dos principais produtos agrcolas da provncia

    de So Paulo em 1836...........................................................................................................88

    Tabela 3 - Valor da produo e importncia relativa dos produtos agrcolas na provncia de

    So Paulo em 1836................................................................................................................89

    Tabela 4 - Quantidade, valor e comercializao da produo agrcola em Cunha, 1804-1835

    ...............................................................................................................................................90

    Tabela 5 Principais produtos do distrito de Santo Amaro 1936 .................................... 93

    Tabela 6 Exportao da capitania de So Paulo para a Europa. 1801-1807......................94

    Tabela 7 Produo per-capta de farinha de mandioca em Ubatuba. 1801-1830 ...............95

    Tabela 8 - Principais produes em So Paulo- 1836 .........................................................95

    Tabela 9- Produo Estadual de mandioca e aipim (t)- 1940-1980 ...................................109

    Tabela 10 - Produo total de mandioca e aipim- SP- 1949-1959 ...................................110

    Tabela 11 - Produo Particular de mandioca e aipim ( t ) ..............................................110

    Tabela 12- Produo particular de mandioca e aipim-SP. 1949-1959..............................111

    Tabela 13 - Produo de farinha de mandioca. So Paulo 1931-35-1980.........................112

  • SUMRIO

    Introduo............................................................................................................................12

    1 Reflexes tericas e metodolgicas..............................................................................19

    1.1 - Histria, natureza e sociedade: a gnese de uma disciplina..............................19

    1.2 - As relaes Homens e Natureza........................................................................23

    1.3 - A agricultura e a Histria Ambiental................................................................26

    1.4 Caracterizao de camponeses.........................................................................28

    1.5 - Camponeses no Brasil.......................................................................................31

    1.5.1 - A influncia indgena.....................................................................................33

    1.5.2 - Agricultura tradicional camponesa no Brasil.................................................34

    2 - O cultivo da mandioca no Brasil do sculo XIX: rainha do Brasil...........................37

    2.1- A construo de um reinado: a histria da mandioca antes do sculo XIX.......37

    2.2 - A disseminao geogrfica do cultivo da mandioca no sculo XIX nos relatos

    dos viajantes..........................................................................................................................41

    3 - Cultivo da mandioca em So Paulo. A rainha do Brasil?..........................................58

    3.1. Na So Paulo quinhentista: a rainha do Brasil................................................58

    3.2. Os sculos transformadores: o cultivo da mandioca nos sculos XVII e

    XVIII.....................................................................................................................................62

    4 - O cultivo da mandioca em So Paulo no sculo XIX..................................................73

    4.1. As transformaes do mundo rural paulista.......................................................74

    4.2. Os camponeses nos relatos dos viajantes...........................................................79

    4. 3 - O cultivo da mandioca nos relatos dos viajantes.............................................83

    4.4. A bibliografia e a presena da mandioca durante o sculo XIX........................88

    4.5 - A decadncia do cultivo da mandioca no sculo XIX......................................93

    5 - O cultivo da mandioca no Estado de So Paulo no sculo XX..................................97

    5.1. Transformaes no modo de vida campons.....................................................98

  • 5.2. O cultivo da mandioca no estado de So Paulo na primeira metade do sculo

    XX.......................................................................................................................... 106

    6 - Discusses e concluso................................................................................................114

    6.1 - A Histria Ambiental da mandioca no Brasil do sculo XIX.........................115

    6.2 -A Histria Ambiental da Mandioca em So Paulo entre os sculos XVI-

    XIX.........................................................................................................................121

    6.3 - O declnio da mandioca em So Paulo nos sculos XIX e XX......................124

    Bibliografia........................................................................................................................132

  • 12

    Introduo.

    Na Amrica existem evidncias diretas e indiretas do cultivo da mandioca que datam de at 2.500 a.C.1, e provvel que sua domesticao tenha ocorrido no nordeste da Amrica do Sul (Sauer, 1993). Portanto, a mandioca, quando da chegada do europeu era cultivada na regio tropical do Novo Mundo h pelo menos quatro ou cinco mil anos (Adams et al, 2006; Dean, 1996; Sauer, 1993). No Brasil, o papel deste cultivar tem sido particularmente importante, ocupando um lugar de destaque na formao socioeconmica e cultural do pas. Ainda hoje, parte obrigatria da alimentao de vrios segmentos da populao brasileira, especialmente nas reas rurais (Cascudo 2004; Adams et al, 2006; Barghini, 2004; Roosevelt, 1980; Pinto e Silva, 2005).

    A maior parte da produo de mandioca tem origem nas pequenas propriedades agrcolas, situada em reas econmica e ecologicamente marginais e cultivada por meio de prticas agrcolas rudimentares (Adams at al, 2006). Estes agricultores, denominados como camponeses, possuem algumas caractersticas que muitas vezes se traduz na definio de um segmento social que no foi totalmente incorporado lgica do mercado e conseqentemente mantendo boa parte de sua organizao produtiva em torno da subsistncia. Porm, nas ltimas dcadas a produo latina americana deste tubrculo tem sofrido uma contnua queda, principalmente quando comparado com outras culturas alimentares. Esta tambm parece ser a tendncia observada no Brasil de um modo geral, e principalmente no Estado de So Paulo, justamente o estado no qual o capitalismo penetrou de forma mais intensa no mundo rural e onde, conseqentemente, as transformaes do campesinato foram mais significativas (Adams et al., 2006 Carvalho, 1978; FAO, 1977, s/d; IBGE, 2004).

    A observao da coincidncia desses dados nos colocou uma dvida: existe uma conexo entre a transformao dos grupos camponeses e o declnio da produo de mandioca? Porm, a busca de uma resposta esta questo nos colocou uma outra: qual a verdadeira dimenso da importncia do tubrculo na histria do Brasil e entre o campesinato? Dessa forma, fomos levados a fazer um pequeno inventario que nos pudesse fornecer esta dimenso.

    Diversos estudos, principalmente de carter antropolgico e histrico, tm mostrado uma grande proximidade do campesinato e o cultivo e consumo do tubrculo, tanto no presente como no passado. Diegues e Arruda (2001: 29-48) ao falar da influncia indgena na

    1 Existem evidencias de um possvel cultivo de mandioca na base do Orinoco de cerca de 2000 a.C., estas evidencias esto baseadas em

    pedaos de cermicas e de pedra usados para preparar a mandioca. Comeando por volta do ano 1000 a.C. e ultrapassando o perodo Inca e

    da conquista espanhola.

  • 13

    formao do campesinato tradicional no Brasil, chama a ateno para presena dos produtos indgenas na constituio da dieta, sendo a mandioca a presena mais constante entre os mais deferentes grupos localizados em regies diferentes e com trajetrias histricas diferentes, como por exemplo os aorianos, no litoral sul do Brasil, os Babaueiros, ocupantes da regio entre o Cear e o litoral sul da Bahia.

    Sanches (2004, 111-112) em seu estudo sobre os caiaras no litoral sul de So Paulo, identifica a mandioca como um dos principais cultivos, possuindo um papel chave dentro do calendrio agrcola que garante a subsistncia do grupo. Adams (2000:105), tambm estudando os caiaras de So Paulo, define seu gnero de vida baseado na combinao da agricultura de subsistncia, principalmente o cultivo da mandioca, com a pesca. Pesquisas recentes sobre as populaes das vrzeas do Amazonas mostram que a mandioca, combinada com o peixe ou camaro tem garantido a sua permanncia e centralidade na viabilizao do sistema de subsistncia caboclo (Adams et al, 2006).

    Esses estudos mencionados acima nos do uma noo da presena do cultivo da mandioca no campesinato tradicional contemporneo. Restava-nos ento tentar dimensionar a sua importncia histrica.

    Se adotarmos como origem do campesinato brasileiro a populao indgena, podemos verificar que os primeiros colonizadores entraram em contato com os povos plantadores de mandioca, como os Tupis, consumidores do tubrculo de longa data (Del Priore Venncio, 2006:16). Os primeiros cronistas e viajantes nos oferecem testemunhos da importncia desta raiz na subsistncia destes grupos. Os Jesutas que estiveram no Brasil no sculo XVI deixaram importantes relatos sobre a presena da mandioca entre os nativos e o seu consumo. Assuno (2000:201-202) afirma que o interesse destes religiosos na planta demonstrava a necessidade de garantir a sobrevivncia por meio do domnio da flora braslica. Assim entre os jesutas a mandioca se constituiu muito mais do que uma curiosidade botnica (...) era o alimento vital para a sobrevivncia da cristandade. Os jesutas necessitavam viver para combater e converter, e a mandioca se apresentava como a garantia da sobrevivncia. Assuno ainda cita a afirmao de Anchieta, de que a mandioca era o principal alimento da terra, substituindo o trigo. Foi denominada por esse jesuta de po comum da terra de Santa Cruz (2000:202). Da raiz de mandioca os indgenas obtinham o cauim, que os jesutas consideram perigoso, causando a perdio de alguns membros do rebanho, cuja funo dos jesutas era catequizar (Assuno, 2002: 204).

    Mas, a importncia da mandioca ia alm da alimentao. Cascudo (2004) e Aguiar (1982) nos mostram tambm a importncia mtica da mandioca entre as populaes nativas do

  • 14

    Brasil. A raiz povoava o imaginrio desses povos fazendo parte de inmeras lendas, tendo em comum a idia de que sua origem se tratava de uma ddiva divina tal a sua importncia para a sobrevivncia dessas populaes. Estes dois autores tambm concordam que os primeiros relatos portugueses sobre a alimentao indgena tratam claramente da mandioca, classificada erroneamente como inhame. Pero Vaz de Caminha, em observao alimentao indgena nota que essa se compunha basicamente de inhames, enquanto o piloto annimo reconhece uma raiz chamada inhame, que o po de que ali usam. Aqueles dois autores defendem que a mandioca foi confundida e denominada como um inhame pela semelhana entre os dois tubrculos (Cascudo, 2004:77-78; Aguiar, 1982:26).

    Del Priore & Venncio (2006:21) afirmam que a mandioca no incio da colonizao foi adotada por necessidade, em substituio ao trigo. Mas, logo ela caiu no gosto portugus. Ainda no primeiro sculo da colonizao, as populaes que passam a ocupar o territrio, como ndios e mestios, bem como os descendentes livres de europeus que ocupavam as camadas inferiores na hierarquia social no Brasil colnia tambm passam a consumir o alimento da terra. Trata-se do pequeno agricultor, que trabalha a terra visando a subsistncia da famlia, mas tambm integrado em um pequeno comrcio com as vilas e fazendas atravs da produo e venda da farinha de mandioca ( Del Priore e Venncio, 2006:51).

    A partir da metade do sculo XVII o Brasil recebe uma nova leva de imigrao portuguesa que ocupa as reas localizadas no interior do territrio, como no caso de So Paulo. Os habitantes desta capitania desenvolveram um modo de vida onde as prticas alimentares indgenas se tornaram um aspecto de sua prpria identidade. Neste estgio, os alimentos mais facilmente aceitos pelo colonizador foram a mandioca e macaxeira. No sculo XVII, a agricultura de subsistncia no planalto, praticada pelos roceiros, baseava-se no cultivo de mandioca, milho e batata doce (Pinto e Silva, 2005; Holanda 1994).

    Considerando os escravos como um protocampesinato tambm encontramos diversas referncias ao cultivo da mandioca. Tollenare descreve a ocorrncia de roas clandestinas dos negros, proibidos de cultivar na Zona da Mata em Pernambuco: (...) Percorrendo a mata encontrei s vezes pequenas clareiras onde negros tinham vindo furtivamente plantar um pouco de mandioca (Tollenare, 1974:78, apud Del Priore e Venncio, 2006:55). Cardoso (2004:97-99), diz que os escravos recebiam uma parcela de terra para o cultivo de subsistncia, embora, algum excedente pudesse ser comercializado. Nestas parcelas de terra era cultivada principalmente a mandioca, junto de outros vegetais.

    Alencastro (2000:91-95) vai mais longe ao dizer que a relao dos africanos com a mandioca j estava estabelecida antes mesmo de serem embarcados para o Brasil na condio

  • 15

    de escravos. Na bacia do Congo e tambm em Luanda, os escravos que esperavam pelo embarque eram utilizados como trabalhadores nas roas de mandioca, at que a embarcao, os tumbeiros, chegassem. A introduo da mandioca na frica segue trs etapas: Primeiro ele exportada para a frica, principalmente do litoral de So Vicente e do Rio. Em um segundo momento, a mandioca passa a ser cultivada e transformada em farinha, imitando o mtodo utilizado no Brasil, e finalmente ele se espalha por todo o interior do continente africano. No sculo XVIII j possvel observar nas veredas angolanas uma quantidade significativa de roas de mandioca (Alencastro, 2000:254-255).

    Portanto, a mandioca fazia parte da dieta dos africanos, sendo ele livre na frica ou na condio cativa no Brasil, e durante a prpria viagem entre os dois continentes, e sua funo ultrapassava o aspecto alimentar. O predomnio da mandioca na alimentao dos escravos barateava o frete entre Brasil e frica, assentando um vigoroso comrcio entre os dois lados do Atlntico, alm de facilitar a adaptao do africano ao regime escravista brasileiro. Essa presena marcante e significativa da mandioca nas relaes entre o Brasil e o continente africano, faz Alencastro (2000:251-248,252) denominar o perodo de 1590-1630, como o ciclo da mandioca.

    Barickman (2003:94; 108-115) em um estudo sobre o Recncavo baiano, entre o final do sculo XVIII e metade do XIX, mostra a importncia da mandioca no regime alimentar dos escravos. O tubrculo podia entrar na dieta desse grupo por meio de trs estratgias diferentes: primeiro os senhores podiam mandar que seus escravos a cultivassem; podiam compr-la no mercado local; ou ainda conceder parcelas de terras onde o escravo podia cultivar suas roas de subsistncia. Neste ltimo caso, mesmo tendo certa autonomia na escolha do que plantar, a opo recaa sobre a mandioca, alimento a que ele j estava acostumado e que ainda tinha a vantagem de fornecer um eventual excedente que poderia ser comercializado no mercado local (Cascudo, 2004:374; Barickman, 2003).

    Sobre a mandioca na regio nordeste, Gorender (1978:241) afirma que seria invivel a economia de plantagem, baseado na monocultura e trabalho escravo, suprir a alimentao de sua populao trabalhadora unicamente com alimentos importados. Assim , que no interior desse tipo de economia tambm se desenvolveu o que Gorender chama de economia natural, cuja produo era voltada para a auto-subsistncia da unidade produtora. Dentro dessa economia a farinha de mandioca tinha um importante papel, servindo se suporte para o desenvolvimento do prprio sistema mercantil monocultor. Mas, a mandioca tambm aparece

  • 16

    entre os homens livres agregados2, tanto para a subsistncia, como tambm a possvel comercializao (Gorender, 1978:294).

    Aps a anlise dessa literatura podemos afirmar que o cultivo da mandioca tem se mostrado de grande importncia para o campesinato, estando presente desde sua formao e ainda hoje continua ocupando um importante papel entre aqueles grupos que preservam algumas caractersticas dos sistemas de subsistncia ancestrais, principalmente no que diz respeito s prticas agrcolas.

    Assim, mediante essa importncia histrica do cultivo da mandioca entre os camponeses no Brasil e sua atual situao de declnio no Estado de So Paulo que colocamos nossa hiptese: o declnio do cultivo da mandioca apresentado hoje neste Estado no um fenmeno recente, mas faz parte de um processo histrico que se intensificou principalmente a partir do sculo XIX e est relacionado com a trajetria histrica de seus principais cultivadores, os camponeses. A partir desta hiptese o nosso principal objetivo se coloca da seguinte forma: localizar as bases histricas do declnio do cultivo deste tubrculo entre os camponeses do Estado de So Paulo.

    Porm, para cumprir esse objetivo, outras tarefas se colocaram: primeiro, dimensionar de forma mais profunda a verdadeira importncia do cultivo da mandioca no sculo XIX, tanto no Brasil, como no Estado de So Paulo. A partir da localizar as transformaes sobre o universo rural paulista e conecta-los com o declnio do cultivo da mandioca.

    Para atingir nossos objetivos adotamos o instrumental terico e metodolgico da Histria Ambiental, que se baseia em uma perspectiva das relaes entre as sociedades humanas e o mundo natural onde ambas as partes interagem, se influenciando de forma mtua. Esta concepo prope como mtodo a integrao de diversas disciplinas como da Sociologia, Antropologia, Arqueologia, Geografia, Ecologia, que possam assim fornecer uma viso holstica do nosso problema.

    A periodizao delimitada se concentra entre os sculos XIX e XX. O sculo XIX foi escolhido como baliza temporal por representar um perodo de grandes transformaes no apenas para o Estado de So Paulo, mas tambm para toda a sociedade brasileira. Entre as transformaes que afetaram de forma mais significativa o mundo rural paulista esto a abolio da escravido, o processo de imigrao, o deslocamento do eixo econmico para o sudeste com expanso da monocultura do caf e da cana-de-acar (Prado Junior, 1965). Para este perodo a principal documentao usada seriam os relatos dos viajantes europeus que

    2 Por agregados o autor entende como sendo indivduos que se estabelecem em terras de outros (1978:292)

  • 17

    estiveram no Brasil. Esta literatura foi escolhida como fonte inicial pelo fato de ser abundante em informaes sobre os modos de vida da populao rural, uma preocupao relacionada com o contexto de produo destes relatos: o predomnio das cincias naturais no campo de investigao no sculo XIX. Neste contexto, o Brasil representava na perspectiva dos europeus que atravessava o oceano para aportar aqui, um local de flora opulenta, uma fauna extremamente variada e ainda a existncia de naes selvagens habitando um meio fsico muito peculiar. O Brasil se apresentava a estes homens como um grande mistrio a desvendar-se (Sampaio & Teschauer, 1955:16). Estes visitantes estrangeiros, em suas andanas pelo pas, atentavam para fatos que os autores nacionais, talvez por considerarem to corriqueiros, no se preocupavam em documentar ou analisar, como por exemplo, o cultivo e uso da mandioca, que chamavam a ateno do olhar estrangeiro, mais pela excentricidade.

    Para a construo do quadro geral do cultivo da mandioca no territrio brasileiro no sculo XIX esses relatos se mostraram muito teis. Porm, no caso especfico de So Paulo eles colocaram uma limitao para nossos objetivos, uma vez que as referncias ao cultivo da mandioca nessa documentao so escassas, tanto quantitativamente como qualitativamente. Este fato nos levou a adotar tambm, para esse perodo, a bibliografia disponvel em diversas reas, mas que tratassem da agricultura paulista no sculo XIX. Usamos para isto estudos histricos, antropolgicos, sociolgicos e arqueolgicos, assim como alguns dados estatsticos da poca. Estas fontes, associadas aos relatos dos viajantes, nos permitiram reconstruir um quadro do sculo XIX na provncia de So Paulo onde pudemos dimensionar o verdadeiro papel do cultivo da mandioca no sculo, assim como tambm identificar algumas transformaes que j comeavam a ocorrer.

    No outro extremo de nosso marco temporal, o sculo XX, principalmente a sua primeira metade, foi escolhido tambm por apresentar tambm grandes transformaes no mundo rural paulista, como por exemplo a passagem duma economia auto-suficiente para o mbito de economia capitalista (Candido, 2001:203) e um crescimento significativo do setor agro-industrial (Carvalho, 1978). Neste perodo, nossa documentao se baseou em dados da literatura, tambm de reas diversas, e tambm em dados estatsticos e peridicos da poca em questo.

    Assim, para atingir nosso objetivo principal, identificar as bases histricas do declnio do cultivo da mandioca no Estado de So Paulo durante os sculos XIX e XX, o presente trabalho foi organizado da seguinte forma: o primeiro captulo descreve o campo da historia ambiental e procura aprofundar algumas de suas orientao tericas e metodolgicas, assim

  • 18

    como tambm definir alguns conceitos que usaremos no decorrer do trabalho. O captulo dois se prope a dar um aspecto geral da disseminao geogrfica do cultivo da mandioca em todo o territrio brasileiro, no sculo XIX. No captulo seguinte, traamos a trajetria histrica do cultivo e uso da mandioca no Estado de So Paulo, desde o incio da colonizao. Assim, contextualizamos a presena da mandioca no sculo XIX, objeto do captulo quatro. Neste captulo, dimensionamos a presena da mandioca entre o campesinato paulista, como tambm procuramos identificar as transformaes que acabaram levando ao declnio do cultivo do tubrculo. J no captulo cinco, nosso objetivo apontar as grandes transformaes do universo rural paulista e demonstrar a situao de declnio do cultivo durante o decorrer da primeira metade do sculo XX. No ltimo captulo nos propormos as relacionar as transformaes e os dados obtidos nos captulos anteriores sobre a agricultura camponesa paulista e relacion-los, sob a perspectiva da Histria Ambiental, de forma que possamos explicar o processo histrico do declnio do cultivo da mandioca.

  • 19

    1 Reflexes tericas e metodolgicas. 1.1 - Histria, natureza e sociedade: a gnese de uma disciplina.

    Ponting (1995:30), em sua obra Uma Histria Verde do Mundo inicia sua discusso sobre as relaes entre os seres humanos e o meio ambiente chamando a ateno para o fato de que a histria humana no pode ser compreendida em um vcuo. Para este autor a vida na terra depende de como os seres humanos se relacionam com o seu ambiente, pois a existncia destes depende de um complexo sistema de inter-relaes entre processos fsicos, qumicos e biolgicos.

    Assim, o que Pointng (1995) prope a ruptura com o modelo de cincia que se fundamentou na oposio entre os seres humanos e o mundo natural. A formao e consolidao da cincia moderna parece ter naturalizado algumas vises de mundo que so definidas pela oposio de categorias como homem e natureza; sujeito e objeto; esprito e matria, subjetividade e objetividade. A diviso entre cincias naturais e cincias humanas, onde a comunicao entre elas , quase sempre, rara, caminha na direo de reforar a idia de separao entre Humanos, ou Cultura e Natureza.

    Para alguns autores (Oliveira, 2002; Gonalves, 1998; Thomas, 1988) a dicotomia homem e natureza, que permeia a cincia contempornea e todos os seus campos, tm suas origens no pensamento de Plato e Aristteles, onde j existia um interesse maior pelos homens e as idias em detrimento da chamada natureza fsica. Aristteles procurava insistentemente alguma coisa de diferenciasse a humanidade de outras espcies, encontrando-a em sua alma racional (Gonalves, 1998; Thomas, 1988:42).

    Nos sculo XVI e XVII o Homem deixa definitivamente o universo do mundo natural pelas mos, principalmente, de pensadores como Francis Bacon e Ren Descartes, que concebiam o mundo natural como algo exterior sociedade humana e passvel de controle, lanando as bases da cincia moderna (Gonalves, 1998, Oliveira, 2002; Silva & Schramm, 1997).

    As idias de oposio e domnio sobre o mundo natural vo ser intensificadas nos sculos XVIII e XIX, relacionados principalmente com a industrializao e urbanizao da sociedade europia e a segunda revoluo agrcola (Lipietz, 2003:18; Silva, 1997). Esta ltima talvez reflita de maneira mais clara a concepo de domnio da natureza, pois a descoberta de adubos qumicos dava a impresso de que os problemas de fertilidade do solo, fruto do uso cada vez mais intenso, tinham sido resolvidos, acabando por levar ao abandono de prticas tradicionais como a rotao de culturas ou de pousio do solo.

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    Porm, seria injusto imputar todo o crdito da dicotomia Homem-Natureza apenas cincia moderna. Keith Thomas (1988:22-23-28) mostra que os telogos do incio da idade moderna encontravam o princpio do domnio do Homem sobre a Natureza no livro do Gnese do Antigo Testamento. Essa preponderncia do Homem era tal, que para alguns clrigos, o Juzo Final significaria o fim do mundo fsico, pois esse no teria mais utilidade nenhuma. A tradio religiosa crist no mantinha um vnculo com o mundo natural, a no ser aquela de domnio, que evocasse uma idia de unidade ou de venerao. A prpria religio dominante j se encarregava do desencantamento do mundo3. Portanto, a religio fornecia nascente cincia a idia da especificidade humana (Thomas, 1988:42). Estas idias vo permear todos os campos do conhecimento e terminam por coroar a clssica diviso estabelecida entre as cincias humanas e as cincias da natureza. A natureza, cada vez mais um objeto a ser possudo e dominado, subdividida em fsica, qumica, biolgica. O homem em economia, sociologia, antropologia, histria, psicologia, etc (Gonalves 1998:34).

    Assim, as Cincias Humanas, como a prprio nome diz, deve se ater apenas s coisas humanas rejeitando a interferncia de fatores ambientais no desenrolar de sua histria, o que Drummond (1991) chama de paradigma da imunidade humana, isto , a recusa, explcita ou implcita, de levar em conta que fatores naturais e biofsicos se constituem em variveis legtimas nas anlises das sociedades, e que fatos sociais s podem ser explicados por outros fatos sociais. Assim, pelo menos at a dcada de 40/50, este foi o pensamento dominante entre as Cincias Humanas (Drummond, 1991; Lenzi,2003).

    No caso especfico da Histria a adoo desse paradigma tambm repousa na prpria definio do campo de atuao da disciplina: o estudo da trajetria humana e da formao e transformaes das civilizaes atravs do tempo. Assim, a Histria, na elaborao de seus modelos explicativos, atravs dos sculos, acabou tambm assumindo a separao entre humanos e mundo natural. O cenrio da Histria era apenas o tempo, se estendendo no Maximo inveno da escrita. Conseqentemente, o perodo em que supostamente estivemos mais subordinados Natureza torna-se parte da Pr-Histria, objeto de estudo da Arqueologia (Ribeiro, 2005:15; Martins, 2007).

    Contudo, os problemas ambientais, a emergncia dos movimentos ecolgicos e a percepo da amplitude das aes humanas no ambiente, levaram as cincias humanas, a partir da segunda metade do sculo XX, a uma mudana de postura no que diz respeito s

    3 O prprio Keith Thomas, porm, adverte sobre a superestimao do pensamento religioso judaico-cristo no efeito ambientais. O autor

    mostra que os problemas ecolgicos no so exclusivos do ocidente e que lugares onde a tradio judaico-cristo no teve qualquer influencia tambm degradaram seu ambiente e extinguiram espcies. Mas isso no significa que sua influencia deva ser desprezada.

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    relaes entre o seu objeto, os humanos, e o ambiente natural. No rastro destas tendncias, as cincias humanas iniciam vrias frentes de aproximao com as cincias naturais. Como por exemplo, o aparecimento a partir da dcada de trinta, da Ecologia Cultural, tendo frente Julian Steward e da Ecologia Humana da Escola de Chicago, que ao colocarem o ambiente como sujeito em anlises sociais, tratavam de questionar aquela premissa de que fatos sociais so gerados por outros fatos sociais.

    nesse contexto que a Histria Ambiental comea a se desenvolver. Mas nos anos 80 e 90, que o campo ganha status cientfico e institucional, com a criao de cursos de ps-graduao, de peridicos (Environmental History) e de uma sociedade, a American Society for Environmental History, principalmente nos Estados Unidos (Stewart, 1998). Na Europa, em 1999, fundada a European Society for Environmental History e a revista Environmental and History. Estes eventos nos mostram o esforo por parte dos historiadores em estabelecer este novo campo de estudo, ou uma outra perspectiva da Histria, procurando institucionalizar as discusses tericas e metodolgicas da nova abordagem.

    Os precursores dessa nova Histria so encontrados entre os autores da chamada Histria das Civilizaes, onde se destacam Arthur Toynbee ( Mankind and Mother Earth: A Narrative History of the World) e Gordon Childe (Man Makes Himself). Estes autores analisaram como sociedades tiveram sua existncia vinculada ao uso dos recursos naturais (Drummond, 1991). Na Europa, Marc Bloch e Lucian Fevbre criaram a revista Annales dhistorie conomique et sociale e do impulso a Nova Histria, que propunha a construo de uma historia com tudo que estivesse relacionado ao homem, incluindo a natureza. Assim, em seus estudos Bloch e Febvre, do ateno especial ao meio-ambiente (Freire, 2004).

    Mas, foi Braudel quem mais contribuiu para a formao desse novo campo, principalmente pela sua concepo de tempo e da relao dos homens com o ambiente fsico. Assim, por sua concepo o tempo dos homens encontra o atrito do espao e a resistncia do meio geogrfico, mostrando que de certa forma os humanos esto localizados, limitados e condicionados por circunstncias objetivas, que embora no cheguem a bloquear todos os impulsos humanos, lhes oferece resistncia.

    Na sua obra O Mediterrneo e o mundo mediterrnico na poca de Felipe II (1984), Braudel associa elementos do meio geogrfico fsico e biolgico economia e sociedade, sob a perspectiva de uma histria do homem em relao ao seu meio, ou como o prprio Braudel chamava, uma geo-histria (Dosse, 1992:133-143).

    Nesta nova histria proposta por Braudel o tempo deve ultrapassar a existncia do homens integrando-o a um tempo mais lento, quase imvel. As relaes dos homens com o

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    ambiente, segundo este historiador, so feitas de transformaes lentas que passam despercebidas quando medidas apenas no breve tempo dos homens (Dosse, 1992; Aguirre Rojas, 2000, Burke 1997, Drummond, 1991, Worster, 1991).

    No Brasil, a Histria Ambiental tem como precursora uma tradio de anlises histricas em autores que incluem variveis ambientais em seus estudos, apesar da perspectiva no ser exatamente na histria do ambiente. Podemos citar, entre outros, Captulos de Histria Colonial de Capistrano de Abreu, as obras de Gilberto Freyre, Nordeste e Casa Grande & Senzala, Srgio Buarque de Holanda com Mones, Caminhos e Fronteiras e Viso do Paraso alm do clssico de Caio Prado Jnior Formao do Brasil Contemporneo.

    A partir da dcada de 1990 o campo da Histria Ambiental no Brasil comea a ganhar fora com a contribuio de vrios historiadores como Jos Augusto Drummond (1997), Maria Alice Prestes (2000) e Jos Augusto de Pdua (2002) e a figura essencial de Warren Dean (1996). Neste contexto, foi sem nenhuma duvida, a obra monumental de Dean, A Ferro e Fogo: a Histria e a Devastao da Mata Atlntica Brasileira, que marcou o incio de uma preocupao concreta da historiografia brasileira com o ambiente.

    Na questo de definir como a Historia Ambiental deve proceder em suas anlises vrios autores (Stewart, 1998; Worster, 1991; Drummond, 1991; 1997) concordam em afirmar que a Histria Ambiental tem sido feita, de modo geral, em trs categorias de anlises: reconstruo de ambientes naturais do passado; estudo dos modos humanos de produo e seu impacto sobre o ambiente; e a anlise da histria das idias, das percepes e dos valores sobre o mundo natural. Esses nveis podem aparecer integrados, como no estudo sobre a mata Atlntica de Warren Dean (1996) ou de forma separadas, como no estudo das idias conservacionistas de Pdua (2002) em Um sopro de destruio.

    Outra caracterstica marcante do campo da Historia Ambiental a necessidade de dilogo com outras disciplinas como a geologia, biologia, geografia, antropologia e, principalmente, a ecologia. Worster (1991:06) qualifica esse dilogo da seguinte maneira:

    No seu conjunto as cincias naturais so instrumentos indispensveis para o historiador ambiental, que precisa sempre comear com a reconstruo de paisagens do passado, verificando como eram e como funcionavam antes que as sociedades humanas as penetrassem e as modificassem.

    Em suma, o que essa nova histria prope uma perspectiva dos estudos histricos que rejeita a premissa de que a experincia humana se desenvolveu sem restries naturais,

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    de que as conseqncias ecolgicas de seus feitos passados podem ser ignoradas e tem como objetivo entender como os seres humanos foram afetados pelo ambiente natural e inversamente como eles afetaram esse ambiente e com que resultados (Worster, 1991:01).Trata-se de colocar a natureza na Histria (Cronom, 1983), ou ir mais alm, colocar a histria humana no contexto da natureza no-humana (Soffiati, s/d).

    1.2 - As relaes Homens e Natureza. A partir dessa perspectiva das relaes entre a Histria Humana e a Histria Natural

    oferecida pelo campo da Historia Ambiental, podemos traar nossas reflexes para a construo de um direcionamento terico-metodolgico para a anlise do cultivo da mandioca entre os grupos camponeses.

    Boa parte dos estudos das relaes dos seres humanos com a natureza tem tomado duas direes. Uma primeira que se interessa pelas bases materiais de sustentao das sociedades, chamada de forma genrica de pensamento materialista e em outra direo, uma vertente mais interessada no estudo da mente humana denominada de pensamento mentalista. Para os materialistas, as bases materiais das sociedades humanas influenciam, condicionam, ou at mesmo determinam as outras dimenses do sistema sociocultural, enquanto os mentalistas defendem que as bases materiais no possuem essa primazia e que as organizaes sociais e expresses simblicas tm vida prpria (Neves, 2002:13-15).

    Worster (1991) sugere um caminho materialista quando diz que a anlise dos modos humanos de produo deve ser um dos nveis de ao da Histria Ambiental. Segundo o autor, isso significa compreender a cultura material de uma sociedade, as suas implicaes para a organizao social e a sua interao com o ambiente natural. Por exemplo, nas regies polares, as populaes elaboraram uma forma de subsistir que desenvolveu uma tecnologia para explorar o seu ambiente. Este ambiente tambm trata de limitar suas possibilidades. Nas palavras de Worster (1991): os esquims das regies polares do norte no podem ter a esperana de virar fazendeiros.

    Jean-Marie Harriby (2007) tambm prope uma abordagem materialista das relaes entre os grupos humanos e o mundo natural. Segundo este autor, existem condies naturais de produo que se apresentam ex ante s atividades humanas, e que acabam por influenciar estas ltimas. Porm, ambos os autores citados acima concordam que essas relaes devem ser observadas como dialticas, onde ambas as partes transformam e so transformadas, como tem demonstrado as convergncias dos problemas ambientais e problemas sociais no sculo atual.

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    Nesse caminho materialista que a Historia Ambiental tem seguido as novas leituras de Karl Marx tem se mostrado muito til para evitar algumas armadilhas, como o determinismo. Foster (2005) afirma que a viso de mundo de Marx era sistematicamente ecolgica, derivada do seu materialismo dialtico: ao mesmo tempo em que o homem transforma a natureza ele tambm transformado.

    A concepo de integrao e no de oposio entre os dois domnios fica claro na idia de metabolismo proposta por Foster (2005). Marx (1984) concebe essa idia como um processo entre os seres homem e a natureza pelo qual o homem, atravs de suas prprias aes medeia, regula e controla o metabolismo entre ele mesmo e a natureza. Para Foster (2005: 221-223), o conceito de metabolismo assume, na obra de Marx, um significado ecolgico. A prpria palavra alem para metabolismo, stoffwechsel, implica uma idia de troca material entre o homem e a natureza e est subjacente noo dos processos estruturados de crescimento e decadncia biolgicos.

    Para Moscovici, (1974:121) a relao dos seres humanos com a natureza, possui dois princpios bsicos: o homem produz o meio que o cerca e ao mesmo tempo seu produto. A sociedade pertence natureza, conseqentemente produto do mundo natural. Assim, a natureza sempre histrica e a histria sempre natural (Moscovici, 1974:121 apud Diegues, 2000:49).

    Assim, nos baseamos em uma concepo das relaes entre humanos e mundo natural que prope a superao da viso dicotmica destes dois em favor de uma noo de unidade, que coloca a atividade social dos seres humanos no interior de um ambiente material natural, tornando dessa forma as relaes entre eles tambm um problema histrico (Bale, 1998).

    Nessa construo terico-metodolgica dos estudos ambientais, ou seja, como estudar as relaes dos seres humanos e o mundo natural, a perspectiva histrica vai ganhando terreno. Nos anos 70 e 80, as pesquisas antropolgicas que se interessavam pelo estudo destas relaes incluam entre suas discusses a importncia da investigao do contexto histrico das relaes entre as sociedades e o ambiente em que ela est inserida (Lees & Bates, 1990:251.; Crumley, 1993:06; Wilmsen e Denbow, 1990), como por exemplo, a analise da agricultura entre os Massai, na Tanznia, tradicionalmente conhecidos como povos criadores de gado e a influncia dessa mudana sobre o seu ambiente. Para o McCabe (2003) essa mudana tem relaes com a trajetria histrica que grupo passa ater um papel fundamental nos estudos de suas relaes com seu ambiente natural. Peroni (2004) mostra, entre os caiaras, no litoral de So Paulo, que entendimento da transio deste grupos de agricultores-pescadores para pescadores-agricultores deve incluir os fatos do passado. Adams

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    et al (2006) mostra que entre os caboclos contemporneos no Baixo Amazonas a agricultura tradicional deve ser vista tambm como resultado de fatores histricos e poltico-econmicos, e no como completamente refm dos fatores naturais. Warren Dean (1996) em seu estudo sobre os relacionamentos da sociedade brasileira com o ecossistema Mata Atlntica mostra que estas relaes vm sendo transformadas atravs do tempo e que novas formas de organizao social influenciaram na constante re-configuraes destas relaes.

    Segundo Ribeiro (2005:91), a relao dos grupos humanos com o bioma Cerrado possui uma histria, cujas caractersticas se alteram com o decorrer do tempo. Assim o autor mostra que as relaes com o Cerrado variaram no decorrer do tempo, e que essas relaes alteraram o ambiente ao mesmo tempo em que este alterava as estratgias de subsistncia destes grupos.Assim, para este autor (2005:173), no sculo XVIII, a formao da sociedade sertaneja foi um marco inaugural das novas relaes entre os grupos humanos e o Cerrado. um momento de nova ocupao deste ecossistema e se caracteriza por apresentar uma presena humana e uma diversidade cultural bem maior que anteriormente, trazendo consigo novos usos, manejos, conhecimentos e representaes simblicas sobre o Cerrado. Alm da intensificao da agricultura, devido, sobretudo, a uma maior conexo com o mercado. Ribeiro (2005) tambm assinala a introduo da minerao e da pecuria, smbolos do poder econmico e poltico daquele sculo como responsveis por uma transformao no ambiente. Assim, as relaes entre os homens e o mundo natural so relaes histricas, onde cada poca estabelece um tipo de relao com o ambiente natural (Bale, 1998:15-19; Crumley, 1996:06).

    Os trabalhos de Warren Dean (1996) e de Ribeiro (2005) tambm tm grande importncia na construo metodolgica do campo da Histria Ambiental brasileira por apresentar um de seus fundamentos bsico: a interdisciplinaridade. As relaes das sociedades humanas com a floresta vistas por Dean ou com o Cerrado, observadas por Ribeiro, tm sido intermediadas por vrios fatores que vo alm daqueles estritamente dependentes do mundo natural como clima e solo. Fatores econmicos, sociais, tecnolgicos, entre outros, assumem um importante papel na formao do tipo de relao que os seres humanos tiveram com o ambiente natural. A histria do Brasil se confunde com a historia destes dois biomas. Herrera (2003:85), sugere que na busca por um modelo metodolgico que pudesse contribuir aos estudos ambientais em perspectiva histrica, adota a relao destes com fatores sociais, econmicos, polticos e culturais (Crumley, 1996:04). A combinao destes fatores o que Lennihan (1984 apud Lees & Bates, 1990:261) chama de conjuntura critica.

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    Assim, adotamos como procedimento metodolgico, alm da incluso de variveis ambientais, a integrao de diversas disciplinas na anlise de nosso objeto de modo que esta integrao nos permita abarcar os componentes humanos e no humanos do sistema e tambm ler os resultado das atividades humanas (Bale, 1989, 1998a, 1998b; Silva, 1997:212-215; Crumley, 1996:04).

    1.3 - A agricultura e a Historia Ambiental. A antropologia, no que diz respeito ao estudo das relaes entre os seres humanos e o

    mundo natural, se apresenta como um campo mais maduro, da qual, a nosso ver, a Histria Ambiental pode se valer de alguns de seus procedimentos tericos e metodolgicos. Para Adams (2000:30), historicamente, a antropologia ocupa-se dos povos que de uma forma ou de outra se acham bastantes prximos da natureza, dando origem a vrias linhas tericas, ou vrias ecologias humanas, para tratar das relaes entre seres humanos e mundo natural, como Julian Steward e Marvin Harris, dois autores de grande interesse para a Historia Ambiental.

    Julian Steward, em seu livro Theory of Culture Change procura demonstrar que o meio ambiente pode funcionar como fator gerador no processo de mudana cultural (Diegues, 2000:75; Kormondy & Brown, 200:47-48; Neves, 2002:32). Marvin Harris, influenciado pelo materialismo histrico de Marx, tambm identificou a aplicao da tecnologia ao ambiente, denominado tecno-ambiente, como o ncleo de qualquer cultura, a influncia mais importante sobre a maneira como as pessoas convivem umas com as outras e pensam o mundo (Worster, 1991). Apesar das crticas, esses dois autores assumem importncia para nosso objetivo na medida em que afirmam ser as formas como as sociedades humanas providenciam sua subsistncia essenciais para entendermos as relaes entre estes grupos e seu ambiente natural, principalmente por integrar outros aspectos da vida.

    Assim as estratgias de subsistncia dos grupos humanos devem ser entendidas no apenas pela necessidade fisiolgica de conseguir alimentos, mas tambm como uma atividade organizada e conectada com variveis que podem incluir elementos econmicos, polticos, culturais e ambientais. Assim, uma estratgia de subsistncia adotada por uma determinada sociedade organizada de acordo com as possibilidades do ambiente em que ela est inserida, mas tambm se relaciona com o tipo de organizao social e com a condio econmica e cultural desta mesma sociedade (Candido, 2001; Ellen, 1991). As atividades humanas se tornam a condio universal da interao metablica entre o homem e a natureza, a perptua condio da existncia humana imposta pela natureza (Foster, 2005:219-220).

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    Dessa forma a agricultura ganha papel de destaque nos estudos das interaes dos grupos humanos e o mundo natural na medida em que se constitui em uma estratgia para obter alimentos, o recurso mais bsico e revelador das conexes dos homens com o mundo natural (Worster, 2003). A relao das sociedades humanas e os cultivares alimentcios tm se mostrado de grande importncia ao longo de toda a histria humana, principalmente aps o advento da agricultura e sua subseqente intensificao. Cook (2005, 43-47) afirma que estas interaes tm sido uma rua de mo dupla, onde ambas as partes envolvidas, os seres humanos e as plantas, procuram tirar proveito da situao. O milho o exemplo de uma planta selecionada pelo homem e que no conseguiria sobreviver sem sua interveno, uma vez que suas sementes quando lanadas ao campo brotam ao mesmo tempo, se tornando um emaranhado de plantas que no conseguem se desenvolver. Em contrapartida, o milho possibilitou a sustentao de altas densidades populacionais e permitiu o deslocamento de um imenso contingente de mo-de-obra das atividades agrcolas para as construes de grandes obras, principalmente na Mesoamrica, tornando-se a planta de civilizao americana (Barghini; 2004:16; 24; Carneiro, 2003:59).

    A relao que se estabelece entre os seres humanos e as plantas domesticadas constituem seu substrato material, e tem sua forma mais acabada nas plantas de civilizao (Panegassi, 2005; Braudel; 1995:92). Braudel (1995) usa esta definio para se referir quelas plantas que organizaram a vida material e por vezes a vida psquica dos homens com grande profundidade, a ponto de se tornarem estruturas quase irreversveis. Assim, retemos desta informao a sugesto de que o alimento base de um grupo tem importncia estruturadora em seu modo de vida. Barghini (2004) analisa as relaes que alguns grupos humanos desenvolveram com o milho. A introduo deste cereal na dieta alimentar, segundo esse autor, esta relacionada suas caractersticas agronmicas, como o fato de ser uma planta vigorosa, de crescimento rpido, de grande estatura e produo, que pode ser praticada em uma agricultura que dispensa o arado, a agricultura de corte-e-queima. Sua espiga pode ser debulhada a mo e consumido mesmo quando verde. Porm, outro fator importante de difuso do milho foi o envolvimento dessa planta com os europeus, que se encarregaram de espalh-lo por vrias partes do mundo. Sua fcil adaptao ao clima europeu tambm foi um fator de grande relevncia. Porm, uma diferena na composio do milho foi determinante no seu papel no interior dessa dieta: a ausncia de glten. Por no possuir esta substncia o milho recebeu um modo de preparo diferenciado de outros gros, como o trigo. O milho foi usado na produo de pes de preparo mais simples, considerados inferiores aos feitos de trigo, e uma quantia de papas e mingaus. Carneiro (2003:56-57), assinala que pelo menos at o final

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    do sculo XVIII, esses pes de pobres e papas se constituam na alimentao bsica dos pobres. Na Europa, no incio do sculo XVII, a partir do imprio espanhol, o milho tornou-se parte essencial da dieta (Carneiro, 2003:59), na Itlia, no sculo XIX a polenta era na maioria das vezes, em nica fonte de alimento das famlias menos abastadas. Assim, o cereal dominou grandes reas desse territrio (Barghini, 2004:33-35).

    Dessa forma, o estudo da agricultura se mostra para a Histria Ambiental um campo extremamente frtil, uma vez que sua anlise pode integrar todos nossos pressupostos at agora. Primeiramente, um espao privilegiado das relaes entre as sociedades humanas e o mundo natural, onde o metabolismo entre estes dois se realiza de forma mais notvel, uma vez que esta atividade se encontra conectada a vrios outros aspectos destas sociedades, como o ambiente em que ela se realiza e, ao mesmo tempo, conectada a vrios outros aspectos que incluem dados econmicos, culturais e sociais, que devem ser integrados sob uma perspectiva histrica.

    Uma vez estabelecido nossa orientao terica-metodolgica, necessitamos definir dois conceitos que permearo o restante de nosso trabalho: camponeses e agricultura camponesa.

    1.4 Caracterizao de camponeses. Queiroz (1973) nos mostra duas orientaes na tentativa de definio de campesinato,

    uma orientao histrica e outra scio-antropolgica.

    A vertente histrica, tendo a frente Marc Bloch, localiza no tempo uma Frana camponesa, onde cada famlia cultiva sua parcela de terra, tendo como objetivo principal a subsistncia do grupo, e posteriormente, venda ou troca de excedente, possuindo uma relao submissa com a instituio senhorial (Queiroz, 1973:15-16). Mesmos com as mudanas advindas da expanso do capitalismo o campons ainda mantm algumas caractersticas, como a produo voltada principalmente para a satisfao das necessidades do grupo familiar e sua posio de subordinao scio-econmica e poltica, agora a uma sociedade urbana, onde se localiza o centro de poder (Queiroz, 1973:18- 21).

    Na tentativa de definio scio-antropolgica, Redfield estabelece trs tipos de sociedade: com ausncia total de cidade; onde a cidade e o meio rural coexistem; e onde as cidades ofuscam o meio rural. Esse autor localiza os camponeses no segundo tipo, centrando sua definio no binmio cidade-campo, ou seja, no tipo de relaes que o campesinato estabelece com as cidades. esta relao de complementao econmica e dominao poltica que funda o campesinato. Para Redfield, sem cidade no h campons.

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    Apesar das diferentes tempos de nascimento do campesinato entre Bloch e Redfield, ambos possuem um ponto em comum: a produo voltada primordialmente para a subsistncia e as relaes polticas e econmicas que estes grupos estabelecem com centro externo.

    Wolf (2003:121) tambm enfatiza em sua definio de campons nas relaes que estes estabelecem com um todo maior, afirmando que estes grupos no podem ser entendidos como um contedo cultural especfico, mas sim como cultura parcial relacionada com a sociedade envolvente:

    Certas relaes entre as caractersticas da cultura camponesa esto amarradas a corpos de relaes externas a ela, mas, de toda forma, determinam seu carter e sua continuidade. Quando mais alto o nvel de integrao dessas culturas parciais, maior o peso desses determinantes externo.

    O destino da produo camponesa tambm assume importante papel na conceituao sugerida por Wolf (2003:120-121). Esta tem por objetivo a subsistncia do grupo, que pode ser entendida como sendo suas necessidades materiais. As necessidades mnimas so definidas pela cultura, que aciona a estrutura produtiva a fim de satisfaz-las. A produo ou no de excedentes para a venda ou troca vai depender da capacidade camponesa de dar conta de suas demandas.

    Outros autores que buscaram uma definio de camponeses tambm adotaram essa nfase na produo. Marclio (2006:35-36), define camponeses afirmando que o ncleo familiar a unidade de produo, onde todo o trabalho agrcola realizado e que esta responde, ao mesmo tempo, lgica do autoconsumo do grupo familiar e relao com a economia global. Este relacionamento com uma economia envolvente se traduz na venda ou troca de excedentes por produtos e servios que no podem produzir, ou ainda na forma de impostos. Carvalho, (1978), Molina Filho (1974 apud Carvalho, 1978) e Muller (1951) tambm mantm o foco da conceituao de campons no destino de sua produo.

    Porm, a produo camponesa depende do grau de relacionamento dos camponeses com a sociedade envolvente. Estes foram atingidos pelos efeitos da Revoluo Industrial e do crescente mercado mundial, mudando suas caractersticas culturais e tambm o carter de suas relaes com outros segmentos. Os diferentes tipos de indstrias e mercados que atingiram partes do mundo de forma diferente, tornando diferente o grau de envolvimento do campesinato com as indstrias e o mercado (Wolf, 2003: 119-120). Para Mendras (1978:15)

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    as transformaes ocorridas no campesinato desde o seu nascimento derivam do grau de subordinao dos camponeses sociedade global. Uma degradao na sua autonomia perante essa sociedade provoca tambm a desagregao do seu modo de vida.

    A transformao das relaes entre os camponeses e a sociedade envolvente expe esta cada vez mais a controles externos, ou seja, retiram a autonomia do campons influenciando sua produo (Wolf, 2003: 119-120). Sahlins (1970) e Polanyi (1980) tambm destacam que novas formas de dominao impostas ao campesinato transformam a sua produo.

    Wanderlei (1996:02) tambm trabalha com a idia de autonomia como uma das caractersticas do campesinato. Para este autor a autonomia camponesa em manter a subsistncia do grupo e garantir sua reproduo orienta sua produo primordialmente para a subsistncia do grupo familiar. Segundo este autor, as transformaes no grau de relacionamento com a sociedade envolvente provocaram uma mutao do campons, alterando sua produo o transformando no agricultor familiar moderno.

    Baseado nessa literatura optamos por trabalhar com um conceito de campesinato que nos permite perceber a historicidade deste conceito como um grupo com suas especificidades identificveis no tempo e no espao, percebendo as adaptaes dos camponeses a novos contextos (Mendras, 1978).

    Assim, nos apoiamos em dois pontos principais: o destino da produo e as transformaes no grau de envolvimento com a sociedade envolvente. No que diz respeito produo, esta se destina, principalmente, para a subsistncia do grupo familiar, suas necessidades materiais. Na produo voltada primordialmente para a subsistncia, a famlia tem um papel essencial, uma vez que a lgica usada na produo o autoconsumo do grupo. Portanto, o envolvimento da famlia nas atividades produtivas garantia da subsistncia. Porm, mesmo sendo o grupo familiar o principal destino da produo camponesa ela no exclu a produo de um eventual excedente destinado a trocas por produtos que eles no produzem, e pagamentos de impostos. Assim a produo camponesa responde lgica do autoconsumo da famlia e relao com a economia global. Esta produo voltada para o sustento do grupo familiar se transforma de acordo com o envolvimento dos camponeses com outros grupos externos. As relaes entre camponeses e sociedade global so, normalmente, de subordinao scio-econmica e poltica. Alteraes na formar e intensidade destas relaes acabam por transformar sua estrutura produtiva.

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    1.5 - Camponeses no Brasil. No Brasil, durante muito tempo foi negada a existncia de um campesinato.

    Acreditava-se que com a abolio da escravido, todo o trabalho agrcola passou a se assalariado e que antes deste evento a sociedade brasileira estava dividida em senhores e escravos. Segundo Queiroz (1973), um dos primeiros autores a se preocupar com o tema foi Sylvio Romero. Porm, este autor imputava ao mundo rural brasileiro um carter de atraso, de costumes arcaicos, povoado de mestios, e por isso inaptos a uma evoluo socioeconmica. Mais tarde, Oliveira Viana tambm negava a existncia de uma camada camponesa, intermediria entre os fazendeiros e os trabalhadores das fazendas, escravos ou no. Tambm classificava o tipo rural como uma populao preguiosa, porque mestia e que s produz sob autoridade. Gilberto Freyre (1975), sob uma abordagem racialista, mas de carter scio-cultural, tambm no consegue enxergar entre a casa grande e a senzala uma camada da populao que no era nem senhor, nem escravo (Queiroz, 1973).

    Esses estudos concentravam-se na economia de exportao e na escravido, por isso negligenciaram o desenvolvimento interno da colnia e das relaes de produo nos setores no-escravos da economia. Sob essa perspectiva a agricultura de subsistncia e a agricultura exportadora so vistas como dicotomias se transformando em metforas de escravido e liberdade e de dependncia e autonomia. Schwartz (2001:123-125), afirma que a agricultura de subsistncia e a de exportao tinham estreita ligao, eram as duas faces da mesma moeda. A populao rural livre de pequenos agricultores era uma classe rural reconstituda, resultando da economia colonial e da escravido.

    Jacques Lambert (1959) chama a ateno para a existncia de uma camada que vivia entre os fazendeiros e os trabalhadores sem terras, praticantes de roas de policultura, contribuindo para o abastecimento da populao desde os tempos de colnia. Esta tambm a opinio de Queiroz (1973:10-29), que acredita que o campesinato sempre coexistiu com as fazendas monocultoras ou de criao de gado, garantindo a subsistncia da prpria empresa monocultora e dos povoados. A relao deste grupo com a terra podia tomar variadas formas: proprietrios, posseiros, parceiros, arrendatrios, moradores ou agregados. Porm, todos mantendo uma relao de dependncia a outro grupo social e sempre desfavorecido do ponto de vista de prestgio e poder.

    Caio Prado Jnior (2000) procurando localizar historicamente a origem da populao rural brasileira a encontra na populao indgena, que vivendo nos arredores das colnias adota hbitos e costumes europeus, mesclando-as com suas prprias tradies e produzindo

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    uma populao de ndios destribalizados e mestios, opinio dividida por Del Priore e Venncio (2006:48-49).

    Cardoso (2004) inclui entre os camponeses brasileiros, os escravos. Para ele, existem exemplos histricos de que as mesmas pessoas podem participar de diferentes relaes de produo, por exemplo, os camponeses europeus modernos podem se tornar operrios durante o inverno. Segundo uma definio de campons que valoriza entre outras caractersticas, certo grau de autonomia e uma economia fundamentalmente de subsistncia e familiar, os escravos podiam ter, em determinados momentos, um setor de atividades camponesas. o que o autor chama de brecha camponesa. Os escravos recebiam parcelas de terras e tempo para cultiv-las, tendo a autonomia de vender o excedente produzido aos donos da fazenda ou fora delas4. Assim, o fato de ser escravo no era fator de excluso destes do grupo campons, mesmo que parcialmente.

    Queiroz (1968:45) em seu estudo sobre campesinato brasileiro define camponeses como aqueles que: so em larga escala auto-suficientes e independentes em relao economia urbana; seus estabelecimentos so do tipo familiar, cabendo ao chefe da famlia a direo dos trabalhos; possui um equilbrio de complementaridade, pelo qual quase independente em relao cidade. Ainda segundo esta autora em outro trabalho (1973:29-30), a caracterstica mais marcante do campesinato brasileiro, assim como em uma teoria mais geral do campesinato, o destino dado a sua produo, que visa primordialmente ao autosustento, e uma eventual venda do excedente. Para ela, esta caracterstica camponesa que vai exercer papel determinante em outros elementos como no uso de pequenas pores de terras, e um sistema que no exigia muitos gastos, tanto econmicos como energticos. O

    resultado disso um sistema de cultivo e instrumentos rudimentares. Carvalho (1978:51), apoiado em extensa bibliografia sobre o campesinato brasileiro

    chega seguinte definio: todo pequeno produtor rural, proprietrio ou no; que trabalha direta e pessoalmente a terra, com a ajuda remunerada ou no de membros da famlia e que, ocasionalmente, pode utilizar uns poucos elementos estranhos famlia, remunerando-os de maneira variada; geralmente praticam uma policultura, cuja pequena produo, obtida em uma pequena rea trabalhada com tcnicas rudimentares, destina-se parte para o consumo e parte para o mercado.

    4 Para Schwartz, o costume dos escravos de produzir seus prprios alimentos, que existia pelo menos desde o sculo XVII, intensificando-se

    no final do sculo XVIII e durante o sculo XIX, no suficiente para caracteriz-los como camponeses. Segundo esse autor (2001:154): mesmo quando produziam os prprios alimentos, os escravos no eram roceiros devido ao nvel de coao e as limitaes s suas decises que eram geralmente muito maiores que as condies nas quais os roceiros operavam

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    A anlise dessa literatura que tem como objeto a formao e caracterizao do campesinato brasileiro nos permite adotar uma definio para esse grupo nos termos daquela apresentada na seo anterior: um modo domstico de produo voltado, principalmente, para a subsistncia do grupo familiar, porm mantendo relaes com o exterior, por meio da venda de um eventual excedente. Assim, a questo das relaes com a sociedade global tambm adquire importncia, onde apesar da subordinao a um centro de poder externo, ainda mantm relativa autonomia. Sobre as relaes com a sociedade envolvente, Wanderlei (1996:08-09) afirma que possvel identificar processos de campesinizao, descampesinizao e recampesinizao.

    Uma vez estabelecido nosso entendimento sobre a identificao dos grupos camponeses brasileiros, nos interessa agora buscar alguns elementos que possam marcar a sua especificidade: a influncia indgena e seu mtodo de cultivo.

    1.5.1 - A influncia indgena. A partir do sculo XVI, formou-se entre a populao rural no-indgena e mestia,

    intermediaria entre os fazendeiros e escravos, no perodo colonial, e mais tarde, no perodo ps-colonial situada entre os fazendeiros e os trabalhadores sem terra, um modelo sciocultural marcado, principalmente, pela forte influncia indgena associada aos avanos irregulares da sociedade nacional sobre o interior do pas, e que ainda hoje marcam as comunidades camponesas tradicionais no Brasil. Neste processo foram incorporadas tcnicas agrcolas, j adaptadas ao ambiente, como a agricultura de coivara, e a dieta alimentar do nativo5, cultivando milho, mandioca, abboras, batata doce, car, entre outros. A caa e o extrativismo de produtos florestais complementavam esta dieta (Diegues e Arruda, 2001:29-30; Queiroz, 1973:31).

    O recurso s tcnicas nativas resultou do grau de contato que o colonizador europeu manteve com os indgenas. A intensidade desses contatos variava entre as regies, mas para Holanda (1994:155-157), o contato mais intenso foi quase a regra na Amrica Portuguesa, como o exemplo das terras paulistas. Por exemplo, este autor defende que o vocabulrio que se refere a vida rural de ascendncia indgena. A populao rural conserva no apenas o vocabulrio, como tambm os objetos que esses termos designam.

    Mesmo a introduo das tcnicas europias, que transformaram as prticas agrcolas indgenas, no chegou a transform-la de forma radical. Os instrumentos de ferro, como o

    5 Sobre o cardpio indgena herdado pelo colonizador europeu ver Cascudo ( 2004)

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    machado e a enxada substituram instrumentos de pedra, mas a agricultura de coivara continuou a ser praticada sem grandes alteraes. Ainda segundo Holanda (1994:168) o sistema de lavoura dos ndios foi adotado pelo colonizador por parecer uma forma mais segura de se obter a subsistncia nessas terras. A adoo do modo de vida indgena foi tal que aps a primeira gerao na colnia, pareciam, no raro, ignorantes dos hbitos de seus ancestrais.

    Pinto e Silva (2005) cita como reas exemplares da influncia indgena a regio da Amaznia e da rea da vila de So Paulo. As condies destas colnias, segundo a autora, fizeram com que elas se voltassem para uma economia de subsistncia onde os hbitos e costumes alimentares do europeu no puderam se impor. Nessas reas prevalece quase que predominantemente a influncia indgena.

    Antonio Candido (2001), estudando as populaes rurais no interior de So Paulo observa a existncia de um mnimo alimentar que garantia a sobrevivncia do agricultor paulista que era composto por feijo, milho e mandioca, espcies cultivadas pelos nativos. Para Pinto e Silva, esta caracterstica do mnimo alimentar remete s caractersticas de uma sociedade agrria, voltada produo de subsistncia, marcado pelo consumo de alimentos autctones e de fcil cultivo (2005:141).

    1.5.2 - Agricultura tradicional camponesa no Brasil. A prtica da agricultura tradicional, herana cultural indgena, recebe vrios nomes,

    como coivara, corte-e-queima, pousio, agricultura itinerante, roa de toco, agricultura de subsistncia, ou simplesmente agricultura tradicional. Para nossos propsitos, essas denominaes sero consideradas sinnimos (Adams, 2000: 90; Peroni & Hanazaki, 2002:171-172; Kleinman et al, 1995:235) e se constituem em uma das caractersticas que do especificidade ao campesinato brasileiro.

    Essa prtica agrcola pode ser resumida da seguinte maneira: a mata derrubada, e deixada para secar, depois queimada. O processo de queima libera os nutrientes contidos nas plantas, que sero disponibilizados ao solo na forma de cinzas (Adams, 2000; Vasey, 1992; Dean, 1996). Esse tipo de atividade envolve alguns poucos anos de cultivo alternados por vrios anos de pousio (Adams, 2000).

    Para MacGrath (1987), mais importante que enfatizar as tcnicas, so os motivos que levam ao uso dessa prtica. O autor a define como uma estratgia de manejo que visa explorar o capital energtico e nutritivo do complexo natural, solo e vegetao da floresta, atravs da rotao dos campos. Este capital constitui muitas vezes a nica fonte de nutrientes para o

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    cultivo, alm de reduzir a quantidade de trabalho necessrio ao seu manejo, como a limpeza do solo. Assim, a agricultura de coivara pode ser vista como uma forma de adaptao, tanto ecolgica, como tecnolgica, aos solos relativamente pobres das florestas tropicais (Ellen, 1991; Moran, 1994; Vasey, 1992).

    Porm, nem todo praticante da agricultura de corte-e-queima pode ser considerado como representante do campesinato tradicional. Segundo Kleinman et al (1995:235-236), podemos dividir os praticantes do corte-e-queima em agricultores itinerantes tradicionais e agricultores itinerantes, sem o adjetivo. Este segundo grupo seria praticante do sistema itinerante mais recente, e por isso, desprovido de um conhecimento ecolgico do local onde praticada, enquanto os considerados tradicionais fariam um tipo de agricultura de corte-e-queima mais complexa, adaptada ao ambiente. Peroni (2004:62) tambm acha importante distinguir entre o uso local (tradicional) do sistema agrcola daqueles que mantm uma prtica mais simples de uso e abandono de reas cultivadas. Os agricultores tradicionais ocupam reas limitadas e com uma baixa freqncia de uso do solo, com ciclos de uso e pousio e que no demandam insumos.

    As diferenas entre os dois tipos de agricultura de corte-e-queima pode ser percebidos por seu impacto no ambiente (Warner, 1991; Kleinman et al, 1995). Peroni (2004), Peroni e Martins (2000), Peroni e Hanazaki (2002), apontam para a questo da diversidade de cultivares neste sistema como parmetros para distinguir uma forma da outra. O sistema de cultivo praticado pelos agricultores tradicionais parece apresentar uma maior diversidade de espcies cultivadas, se constituindo em uma das caractersticas do tipo de manejo. J Olmos (2001) afirma que a agricultura de coivara no gera biodiversidade. Para este autor, ela agiria ao contrrio, uma vez que esse tipo de atividade exclui as espcies cuja sobrevivncia depende da floresta madura, favorecendo as espcies mais resistentes que ocupariam o lugar dessa. Dessa forma esta prtica pode levar extino de algumas espcies (Duarte, 2005). Brady (1996) tambm cuidadoso ao tratar da agricultura itinerante argumentando que apesar de sua prtica secular e das experincias aparentemente sustentveis, as mudanas que vem sendo impostas s populaes praticantes desse tipo de atividade, levariam a alteraes negativas no ambiente.

    Apesar desses debates sobre os impactos da agricultura camponesa no ambiente o fato que esta pratica no pode ser entendida dentro dela mesmo, mas sim como uma atividade humana que se adapta as caractersticas ecolgicas do local onde praticada, mas tambm possui relaes socioculturais fora da rea de cultivo (Kleinman et al, 1995; Warner, 1991).

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    Portanto, podemos agora definir de forma mais resumida nossa concepo de campesinato brasileiro adotada durante o decorrer do trabalho. Estes so grupos que entre as suas estratgias de subsistncia a agricultura possui um papel de destaque. Esta atividade possui forte influncia indgena, principalmente no mtodo de cultivo, o de corte-e-queima, e nas espcies cultivadas. Sua produo agrcola est voltada primordialmente para o consumo do grupo familiar, porm esse carter no exclui a venda de um possvel excedente. Portanto, no so grupos isolados, mas possuem certa relao com a sociedade envolvente.

    Sntese do captulo: A Historia Ambiental como campo de estudos comea a se forma, principalmente, a partir da dcada de 1990, embora possua razes mais profundas, em historiadores como Marc Bloch e, principalmente, Braudel. Este campo de estudo se baseia em uma viso de reciprocidade com a natureza, colocando esta na histria humana. A orientao terica e metodolgica deste campo encontra fundamentos em uma concepo materialista das sociedades, isto , coloca a nfase das anlises nas bases materiais de sustentao das sociedades. Para evitar uma viso determinista das relaes dos humanos com a natureza a Histria Ambiental tambm trabalha com a noo de metabolismo, pela qual a natureza e os humanos se influenciam mutuamente. A agricultura tem se mostrado um campo muito frtil para a Histria Ambiental, sendo por isto objeto deste trabalho. Nele analisamos o cultivo da mandioca entre os camponeses brasileiros no perodo entre os sculos XIX e XX.

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    2 - O cultivo da mandioca no Brasil do sculo XIX: rainha do Brasil. O cultivo da mandioca possui inmeras evidncias de sua ancestralidade, tanto no

    Brasil como em outros locais da Amrica do Sul. No caso brasileiro o tubrculo possui uma estreita relao com a nossa formao socioeconmica estando presente em vrios momentos de nossa histria, se constituindo em uma herana indgena em todo o territrio brasileiro. Junto com o tubrculo foram adotadas as tcnicas de cultivo indgenas, a agricultura de coivara6. Assim, a associao destes dois elementos representou uma forma segura de se obter a subsistncia, principalmente em reas que abrangiam a floresta tropical.

    Neste captulo nosso objetivo ser localizar o cultivo da mandioca e do mtodo agrcola at o sculo XVIII, e a partir da, por meio dos relatos dos viajantes que estiveram perambulando pelo pas, construir um quadro geral da distribuio geogrfica do cultivo da raiz no territrio brasileiro durante o sculo XIX.

    2.1 - A construo de um reinado: a histria da mandioca antes do sculo XIX. Na Amrica do Sul existem evidncias diretas e indiretas de que o cultivo da mandioca

    era praticado pelo menos desde 2.500 a.C, em quase todas as regies tropicais do Novo Mundo, sendo, ainda hoje a forma tradicional de dieta alimentar de alguns povos, como os ribeirinhos na Amaznia ou os caiaras no litoral paulista. (Adams et al, 2006; Dean, 1996; Dufour, 1988; Sauer, 1993).

    A mandioca pode ser dividida em dois grandes grupos, genericamente chamados de Amarga ou Doce, dependendo da quantidade de cido ciandrico contido nestas razes. As razes amargas contm altas taxas desta substncia, sendo necessrio passar por um complexo processamento antes de ser consumida, envolvendo, entre outras etapas, ralar e espremer para tirar o caldo, no qual se concentra a maior quantidade da toxina. Notadamente, estas espcies deste grupo so as preferidas na fabricao de farinha, principalmente nas regies da floresta tropical. J as variedades doces, tambm chamadas de aipim ou macaxeira, possuem baixa taxa desta substncia, sendo consumveis apenas com cozimento (Sauer, 1993; Dufour, 1988; Brochado, 1987 apud Barghini, 2004).

    Barghini (2004:124-126) argumenta que a populao pr-colonial das terras baixas da Amrica do sul preferia a mandioca porque seu cultivo menos exigente em termos agronmicos e sua produo certa; sua conservao no clima tropical mais fcil j que ela pode ser colhida aps o primeiro ano de crescimento em qualquer estao; e tambm uma

    6 Conforme descrita no primeiro captulo.

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    fonte confivel de carboidratos, desempenhando importante papel nutricional. Para este mesmo autor, no Brasil, durante o perodo colonial, a mandioca estava perfeitamente adaptada ao padro itinerante de ocupao do territrio. Portanto, neste contexto de seminomadismo que marcou o incio da colonizao, a mandioca oferecia um alimento de fcil obteno, bastando arranc-las e process-las. Isso garantiu ao tubrculo um papel de grande importncia na alimentao, sendo, pelo menos durante trs sculos e meio, principalmente em reas onde a presena indgena foi mais acentuada, a alimentao do Brasileiro. (Aguiar, 1982; Adams, et al 2006).

    Cascudo (2004) aponta para os primeiros indcios da presena da mandioca na carta de Pero Vaz de Caminha e na Relao do Piloto Annimo, quando estes mencionam um tipo de inhame muito consumido pela populao nativa. Para este autor, tratava-se da mandioca, pois os portugueses j conheciam alguns tipos de inhames de suas viagens frica. Ainda no sculo XVI, Pero de Magalhes Gandavo (1964) e Gabriel Soares de Souza (1971), Hans Staden (1955), entre outros deixaram em seus escritos importantes relatos sobre a presena da mandioca na alimentao, principalmente na forma de farinha.

    Em 1712, Raphael Bluteau publica em Portugal o seu Vocabulrio Portugus e Latino. Nessa obra encontra-se o seguinte verbete: Roa no Brasil a horta ou a quinta em que se semeia mandioca; chamam-se assim as quintas no Brasil porque so em terras, em que se roa o mato, queimando, cortando e arrancando as rvores (Bluteau, 1712 apud Del Priore e Venncio, 2006:47).

    As crnicas produzidas pelos viajantes que exploraram o territrio brasileiro durante os sculos XVII e XVIII acabam por confirmar o verbete de Bluteau, que por sua vez nunca botou os ps no Brasil. O holands Gaspar de Barleu (1974:23), em sua Histria dos Feitos recentes Praticados Durante Oito Anos no Brasil, em que relata o perodo de domnio batavo no Brasil, se refere aos ndios como aqueles que alimentam-se com uma raiz sativa qual reduzida farinha, chamam mandioca, ou ainda o alimento dos naturais a farinha, frutos vrios e hortalias (...). Preparam aquela com as razes da mandioca (Barleu, 1974:137). Segundo esse autor, a mandioca no se restringia aos nativos, mas era alimento da populao em geral, principalmente em momentos de crise de abastecimento. Quanto a isso Barlu tambm afirma que havendo mngua de mantimento, foram obrigados (...) a plantarem anualmente mandioca, na quadra costumada, isto , em janeiro e agosto (1974:23). Ele tambm relata a preocupao do governo holands com o cultivo da mandioca: Ativamente cuidou (...) Maurcio do abastecimento de farinha de mandioca, que no pas o sustento mais comum (Barlu, 1974:161). Aguiar (1982: 34-35), tambm concorda com Barlu quanto

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    importncia da mandioca durante o domnio holands, demonstrando um decreto de Mauricio de Nassau, baixado em 15 de Abril de 1640. Por este documento o Supremo Conselho determina que, atendendo ao bem comum:

    (...) mandamos publicar por nossos editais, que foram fixados em todas as partes publicas das ditas capitanias, que todos os senhores de engenho e lavradores de canas de qualquer qualidade e nao que fossem, plantassem no ms de agosto e setembro por cada negro e negra de trabalho, 250 covas de mandioca e outras tantas no ms de janeiro seguinte, e outros moradores de qualquer nao que fossem plantassem por cada negro e negra de trabalho que tivessem 500 covas de mandioca em cada um dos ditos tempos... (Walbeeck, 1887 apud Aguiar, 1982: 34-37).

    Apesar dessa generalizao da mandioca registrada por Barlu (1974:72), o autor deixa entrever que a raiz era o alimento comum preferencialmente da populao mais pobre, como demonstra nessa passagem: Das razes desta fabricam uma farinha, que lhes serve de trigo e po. Os menos abastados alimentam-se com esta farinha, assim os mais ricos se alimentam de trigo

    que costuma importar-se de Portugal e de outras partes.

    O padre Claude DAbbeville7, em sua estadia no Maranho, tambm se refere a mandioca como a base da alimentao indgena: A mandioca, raiz de que fazem o po, cresce muito grossa e pode ser colhida cada trs ou quatro meses e at em menos tempo (DAbbeville, 1975:161). O clrigo tambm comenta sobre a prtica da agricultura itinerante pelos indgenas afirmando que estes no costumam ficar (...) no mesmo lugar (...) alegam que a mandioca e a batata com que se alimentam se comprazem em terras novas e produzem mais (DAbbeville, 1975:222).

    Johann Nieuhof (1942:282), a servio da Companhia da ndias Ocidentais, ao descrever os produtos do Brasil, comea: (...) pela Mandiiba e sua raiz, denominada mandioca, na qual os brasileiros tm o seu principal gnero alimentcio (...) cuja raiz, depois de seca e assada, como fazemos ao nosso po, constitui o alimento comum aos habitantes da Amrica.

    Esse mesmo cronista (1942:285) tambm descreve que uma das fases do processo de fabricao de farinha:

    7 Capuchinho francs que em 1612 participou da invaso francesa ao Maranho. Ficou no Brasil apenas quatro meses, mas nesse curto

    espao de tempo levantou com argcia uma grande quantidade de dados que serviram para compor a sua obra

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    (...) consiste em fazer a massa passar por uma peneira a que os brasileiros do o nome de urupema [...]. Depois de chio o saco, o mesmo colocado em uma prensa onde a mandioca j ralada perde todo o sumo (dotado de propriedades txicas)(. ..) (Nieuhof, 1942:282)

    No sculo XVIII, os viajantes continuram a explorar o Brasil, e tambm a registrar a presena da mandioca na dieta alimentar brasileira, embora o tubrculo j no tenha mais o mesmo destaque que nos sculos anteriores. Para Aguiar (1982:60), esse pouco interesse que a mandioca desperta no sculo XVIII se deve ao fato de que a raiz j se tornara coisa normal, sendo, quando no ignorada, citada de maneira muito breve, como fez Frei Antnio de Santa Maria Jaboato (1859:20 apud Aguiar, 1982:59:60), que menciona a mandioca apenas quando trata das diferenas entre as populaes nativas.

    O gals Dellon (apud Azevedo, 1949:233), um dos poucos a observar os modos de vida da populao, em Salvador afirmava que (...) ls bresiliens tirent leur substance la plus ordinaire de la racine de mandioc, dont on fait ce que ls Franais appellent la Cassave et les Portugais, Farina de pau, comme qui dirait de la farine de bois.

    No que se refere ao modo como a mandioca era cultivada, mais uma vez a descrio contida no verbete do dicionrio de Bluteau se confirma. Junto aos relatos da presena da mandioca, as fontes e a literatura deixam claro que a prtica agrcola usada durante todo o perodo colonial era a da coivara, ou de corte-e-queima. Linhares e Teixeira (1981:138) destacam que os europeus que se instalaram aqui adotaram essas tcnicas sem qualquer alterao, favorecidas principalmente pela abundncia de terras, tornando-a a principal caracterstica do sistema de cultivo do roceiro.

    Ainda no sculo XVIII, o Padre Joo Daniel (1975:339), escrevendo sobre o Par, se espanta em verificar que ali: (...) no usam (...) beneficiar a terra com arado, enxada e mais instrumentos da agricultura (...). Todo o benefcio e trabalho consiste em cortar o arvoredo, lanar-lhe fogo, quando seco, e plantar a maniba na terra fumegante.

    Segundo Linhares e Teixeira (1981:140), a mandioca o principal produto cultivado nessa tcnica:

    Aps a queima do terreno, procede-se coivara, ou seja, rene-se o que sobrou da mata e se fazem montes espaados que so novamente queimados. Nestes montculos, plantam-se a varas de manibas em buracos feitos com um chuo. Da o ditado popular: planta-me no p e no tenhas de mim d.

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    Portanto, esses estudos e crnicas dos viajantes nos levam a afirmar que a tcnica agrcola baseada no corte-e-queima e no cultivo da mandioca, pelo menos at o sculo XVIII, parecem estar bem estabelecidas entre a populao rural. Resta-nos agora compreender esta relao no sculo XIX.

    2.2 - A disseminao geogrfica do cultivo da mandioca no sculo XIX nos relatos dos viajantes.

    A relao que se estabeleceu entre os brasileiros e o cultivo da mandioca pode ser percebida na prpria histria do pas, onde esta ltima exerceu um papel especial, tornando-se presena constante, mesmo em reas que estavam fora de seu reinado agrcola, como na vida poltica e monetria, como mostra Aguiar (1983), para quem a universalidade da mandioca se reflete no fato de sua farinha j ter sido sugerida at mesmo como estalo monetrio, ou ainda por estar presente no projeto de constituio de 1823, onde a posse de determinada quantia de farinha de mandioca determinaria quem poderia votar e ser votado. Esta relao extrapolava as fronteiras brasileiras e chegava a Portugal, como demonstra Hiplito da Costa (apud Aguiar 1983:81-83), para quem a mandioca havia atravessado o oceano e penetrado nos costumes alimentares da populao de Lisboa, e j se encontra em algumas mesas, que no so as grosseiras (...). Ou ainda um ofcio de 20 de Junho de 1795, enviado ao governador geral da Bahia, D. Fernando Jos de Portugal, determinando que se aumentasse o pl