hibridação, performance e utopia nas canções de rap
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOASFACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS E LINGUSTICA
CURSO DE DOUTORADO EM ESTUDOS LITERRIOS
Marcia Felix da Silva Cortez
Hibridao, performance e utopia nas canes de rap
Macei2010
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MARCIA FELIX DA SILVA CORTEZ
Hibridao, performance e utopia nas canes de rap
Tese apresentada como
requisito parcial de obteno do grau
de Doutora em Estudos Literrios do
Programa de Ps-Graduao em
Letras e Lingustica, da Universidade
Federal de Alagoas.
Orientadora: Prof Dr
Ildney de Ftima Souza Cavalcanti.
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Dedicatria
queles/as que estiveram mais prximos de mim durante a realizao deste
trabalho e presenciaram os meus anseios, as minhas expectativas e as alegrias: Michel, Luarna,
Aim e Elena.
quele e aquela que de uma maneira muito especial encorajaram-me, atravs dosseus exemplos de vida: meu pai e minha me (in memoriam).
Ao meu irmo Jos Lus, companheiro nas horas de aflio e de esperana.
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Agradecimentos
A realizao deste trabalho no seria possvel sem o apoio e a participao de
algumas pessoas e, por isso, sou eternamente grata
A Profa. Dra. Ildney Cavalcante, orientadora e principal incentivadora deste
trabalho.s professoras Dra. Vera Romariz e Dra. Roseanne Tavares por suas valiosas
contribuies nesta banca.
Ao Prof. Dr. Amarino Queiroz, o primeiro a me inspirar tal discusso no espao
acadmico.
A Profa. Dra. Beliza urea, uma das primeiras pessoas a me fazerem acreditar
que este sonho era possvel.
Aos/s inesquecveis amigos/as que sempre me socorreram nos momentos mais
difceis.
Ao Movimento Hip HopNordestino, especialmente queles/as que permitiram a
utilizao das suas obras e das informaes necessrias para que esta tese se tornasse vivel.
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Resumo
O presente trabalho tem por objeto de investigao a compreenso das canes derap como expresses voco-musicais hbridas que, no nordeste, trazem o dilogo entre as fontes
orais afro-americanas e a cantoria nordestina. O resultado deste encontro construdo pelas
anlises das dezoito canes, oriundas de grupos nordestinos, e compreendidas a partir da
concepo de poeta da voz zumthoriana. O mapeamento identitrio do/a MC e do/a ouvinte de
rap tornou possvel aprofundar olhares que foram conduzidos pelas consideraes sobre
hibridao, performance e utopia e, por sua vez, subsidiaram uma abordagem ampla sobre a
complexidade textual das canes de rap.
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Sumrio
Introduo .......................................................................................................................... 09
1 - Primeiro Captulo:Expresses de hip hop e a cultura nordestina .................... 131.1 - Configuraes sociais, culturais e artsticas do movimento hip hop ... 16
1.2- Breve histria do movimento hip hop................................................... 191.3- A hibridao nas canes de rap............................................................ 31
1.3.1 - Canes de rap: expresses culturais hbridas.............................. 22
1.3.2 - O encontro entre antropofagia e rap.............................................. 52
1.3.2.1- Colagem e citao na antropofagia e no rap ................... 44
1.3.2.2 - A pardia no rap .............................................................. 69
2 - Segundo Captulo: A poesia vocal nas canes de rap..................................... ........... 78
3.1 - Uma tradio oral afro-nordestina ........................................................ 80
3.2 - Questes circunstanciais: espao, tempo e a palavra do rap ............... 90
3.3 - O intrprete e o ouvinte: as vozes que ressoam norap ....................... 95
3.4 - A obra vocal das canes de rap ..........................................................110
3.5 - A performance dos/asMCs ..................................................................116
3 - Terceiro Captulo: A utopia nas canes de rap ........................................................121
4 - Concluso ....................................................................................................................133
5 - Referncias ................................................................................................................. 136
6Anexos .......................................................................................................................140
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6.1 - Anexo A : Letras das canes nordestinas de rap ................................ 141
6.2 - Anexo B: Quadros, cronogramas, fotos e imagens ............................... 186
6.3 - Anexo C: CD com udios das canes ...................................................191
7Apndice
7.1 - Apndice A: DVD Canes de rap e a cultura nordestina .......... 192
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Introduo
Esta tese surgiu do questionamento a respeito da existncia, atualmente, de
desdobramentos artsticos que se valem do princpio da devorao do legado da cultura
universal, proposto pelos antropfagos de 1928/9, como um dos princpios de criao artstica
em obras que apresentam os recursos intertextuais da pardia, colagem e citao.
Primeiramente, observei que a cantoria de viola e o rap so expresses que
absorvem no elemento estrangeiro a matria prima para se chegar ao produto da cultura
brasileira. Assim, com a considerao dos aspectos da hibridao, da performance e da utopia
pude tornar perceptvel o encontro entre a cultura oral nordestina, a afro-americana e afro-
estadunidense.
Foram, ento, selecionadas dezoito canes de rap,pertencentes a grupos das
cidades de Joo Pessoa (6), Macei (4), Recife (5), Salvador (2) e Natal (1), que foram
ouvidas, transcritas, analisadas e constam no CD que acompanha esta tese1. Nalgumas delas
os textos apresentam dilogos com a cantoria de viola, o repente, o cordel e a embolada
atravs das estruturas textuais que so aproximadas, bem como tematicamente pode ocorrer a
valorizao constante dos aspectos culturais nordestinos e afro-brasileiros.
Esse corpusfoi coletado durante a minha participao em alguns eventos sobre
hip hop no nordeste, sobretudo nos anos de 2004 a 2008, momento imprescindvel para o
contato com os grupos, para troca de materiais, entrevistas etc. Assim, a seleo dos textos
seguiu o critrio orientado pelas categorias abordadas (hibridao, performance e utopia), as
evidenciando nas canes analisadas.
Desta experincia na ocasio da pesquisa de campo, surgiu parte do registro
audiovisual da pesquisa, e ele deu origem ao DVD Canes de rap e a cultura oral
nordestina, que se encontra no apndice desta tese e apresenta imagens importantes paracompreenso do movimento hip hope para apreenso dos efeitos da perfomance.
Seguindo o meu objetivo, defini as canes de rap como poesias voco-musicais
hbridas que se encontram, neste trabalho, com a cantoria nordestina. Para tanto, dividi as
minhas argumentaes em torno de trs captulos que se interrelacionam entre as suas partes e
com os materiais (CD e DVD) desta pesquisa, buscando elucidar as minhas consideraes
sobre canes de rap que hibridizam fontes textuais afro-nordestinas.
1Cf. Apndice p. 192.
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O primeiro captulo traz observaes sobre aspectos sociais, culturais e
artsticos do movimento hip hop e seus principais elementos:MC, DJ, graffiti, dana de rua e
social ou conscincia, configurando-se num panorama geral sobre a cultura hip hopper. As
obras sobre o hip hop foram fundamentais para tal finalidade, a exemplo de revistas como
Caros Amigos (1998; 2005)eNational Geographic (2007); a obraHip hop - A periferia grita
(2005) e a dissertao de mestrado de Amarino Queiroz (2002) Ritmo e poesia no nordeste
brasileiro: confluncias da embolada e do rap. As entrevistas e a participao em eventos
tambm trouxeram informaes importantes.
Em seguida, abordo a hibridao, termo extrado da obra Culturas Hbridas
Estratgias para entrar e sair da modernidade, de Nstor Canclini (2006), nas canes de
rap, evidenciando nelas tal caracterstica de maneira geral, especificando-a nas canes derap que dialogam com a cultura oral nordestina e com a antropofagia oswaldiana.
Assim, conceitos como mercados autnomos, desterritorializao,
descolecionar e gneros impuros tornam-se importantes para compreender as canes de rap a
partir de tal perspectiva, possibilitando aproximar as textualidades do rap e da embolada
atravs da anlise da embolada-rap, ilustrada na cano Perito em Rima, do grupo Faces do
Subrbio (PE).
Prossigo, ento, no entendimento do princpio oswaldiano de devoraocultural e do uso dos recursos da citao, colagem e pardia, sendo estes ltimos, sobretudo,
fundamentais na configurao da Revista de Antropofagia e das canes de rap analisadas
neste trabalho, com destaque para a obra musical de Vtor Pirralho (AL), ilustrada nas
canesPrlogo Interessantssimo, com letra de Tainan Costa (AL),Made in Nordeste eNa
moda, alm das canes Brasil-Haiti sem fronteiras e Bumbum Music, do grupo Simples
Raportagem (BA).
As obrasA vanguarda antropofgica, de Maria Eugnia Boaventura (1985), Otrabalho da citao, de Antoine Compagnon (1996), e Uma teoria da pardia, de Linda
Hutcheon (1985), subsidiaram as consideraes analticas sobre os recursos intertextuais da
citao, colagem e pardia, permitindo, desta forma, evidenciar os encontros textuais entre as
fontes abordadas nesta primeira parte.
No segundo captulo trato da poesia vocal no rap, delimitando as minhas
observaes para alguns pontos: o encontro entre as culturas orais afro-americanas, afro-
estadunidenses e nordestinas, visvel nas canes selecionadas neste trabalho, atravs da
investigao do espao, tempo, palavra, interprete e ouvinte, referindo, assim, a uma poesia
do acontecimento e performance dos/asMCs.
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Neste sentido, as minhas investigaes pautam-se na anlise das canes Vice-
versa, de Kalyne Lima e Oliveira de Panelas (PB),eNordestinao, do grupo Confluncia e
Ivanildo VilaNova (PE), ao tratar das especificidades textuais que aproximam rap e a cantoria
de viola e o repente nordestinos. A anlise da cano Seca do Serto, do grupo paraibano
Realidade Crua soma-se ao painel para traar a configurao identitria do/a MC. J as
anlises das canes Lembranas, do grupo Agregados (RN), Ciclo Sagrado, tambm do
grupo Realidade Crua e Um bom lder, de GenerallFrank (PE-PB) so enofacadas por
tratarem de algumas temticas referentes s concepes de mundo dos/as hip hoppers.
Como fundamentao terica desta parte da tese so imprenscindveis as obras
de Paul Zumthor em torno da oralidade e da performance, entre as quais A letra e a voz
(1993), Introduo poesia oral (1997), Escritura e nomadismo (2005) e Performance,recepo, leitura (2007), que permitiram acompanhar o percurso da voz e as situaes
performticas que subjazem s canes de rap e as suas apresentaes ao vivo ou
mediatizadas peloDVD e CD.
O terceiro captulo aborda as projees utpicas inerentes s configuraes das
canes de rap que se relacionam, tambm, ao elemento social do hip hop. Os estudos da
utopia so fundamentais para averiguao desse aspecto no rap e, de modo geral, no
movimento hip hop. A representao, nas canes, do mundo distpico, o mau lugar, quedeve ser substitudo pelo mundo eutpico, o bom lugar, frequente.
Assim, este ltimo captulo conclui o panorama das peculiaridades identitrias
sobre o/a MC ao apresentar este aspecto que fermenta as aes polticas e as configuraes
textuais do rap atravs da idealizao de utopias negativas, de ordem eterna, entre outras,
analisadas nas canes Revolucionrias, do grupo Sndrome do Sistema (PB), Mais srio do
que voc imagina, do grupo Faces do Subrbio (PE), Paraso Interno, de Anjo Feat Denys e
Lo Tomas (PB).Antes de finalizar este percurso introdutrio, importante atentar para dois
pontos: o primeiro concerne unio entre a pesquisa bibliogrfica e de campo, ambas
cooperando para evidenciar a hiptese principal deste trabalho sobre canes de rap que
hibridizam, em suas propostas artsticas, as fontes orais afro-americanas, afro-estadunidense e
nordestinas, observadas neste material escrito e no audiovisual que integra o corpus desta
tese.
O segundo ponto referente ao uso das terminologias oriundas do universo
cultural hip hopper, sobretudo no que tange s nomenclaturas de alguns elementos visuais e
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coreogrficos, respeitada a integridade estrutural e fsica dos textos das canes,
preservando os possveis desvios da norma culta.
Finalmente, saliento o prazer que foi empreender esta pesquisa e lanar um
olhar sobre o rapnas perspectivas das canes hbridas, originrias, em sua maioria, de jovens
que se representam pela postura artistca, social e cultural afro-nordestina; da comunicao
performtica que media a relao intrprete-ouvinte e, por fim, a realizao das iniciativas
sociais e artsticas que buscam a transformao scio-cultural.
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1 Primeiro Captulo - Expresses de hip hop e a cultura nordestina
Irmos da rua, da vidaMorte ao capitalismo genocidaViva Deus que nos guiaQuanto mais de ns matamMais a nossa raa procriaE todo esse mal a gente assimilaTransforma em poesiadia-a-dia da periferia
Dia-a-dia da periferia, GOG (DF)
Somando quase quatro dcadas de histria e tendo como marco cronolgico
inicial a data de 12\11\1974, ocasio na qual Afrika Bambaata iniciou a difuso da ideia de
unio entre a msica e a dana como expresses que transformavam as violentas richas em
batalhas artsticas, o hip hop2 originrio de diversas localidades norte-americanas como o
Bronx e o Fresno. Passa pelo eixo So Paulo - Braslia - Rio de Janeiro e chegou ao nordeste
com uma fora imperiosa, convertendo-se numa rica fonte de expresso artstico-cultural que,
assimilada pelos/as jovens nordestinos/as, nos oferece as mais variadas e criativas produes
artsticas.Este trabalho traz, entre outros olhares, uma compreenso sobre o rap enquanto
cano. Esta concepo elaborada a partir dos elementos que compem o texto potico, no
que concerne aos seus aspectos estilsticos, a exemplo dos da rima e das onomatopias, bem
como pela importncia do texto musical, isto com relao msica instrumental com
destaque para a msica digital-tecnolgica.
Assim, o texto que media a comunicao entre artista e ouvinte constri-se por
meio de uma performance peculiar na qual podemos destacar alguns aspectos: a interaoentre o corpo e a voz do\a poeta e do\a ouvinte; as textualidades so marcadas pela unio entre
as tradies orais afro-brasileiras e nordestinas e trazem, nos seus discursos, a representao
das projees de lugares melhores, em face dos piores, socialmente falando, de onde muitas
vezes se originam os/as seus/suas intrpretes.
2Hip hop Os termos de origem inglesa hip (quadris, ancas) e to hop (saltar) combinados do origem expresso saltar os quadris, que est longe de representar a complexidad e da origem e formao deste
movimento. Assim, neste trabalho entendo que hip hop um movimento artstico, social e cultural que seexpressa, no Brasil e no mundo, atravs de at cinco principais elementos ou frentes de ao, de forma individualou conjunta, sendo eles:MC, DJ, graffiti, dana de rua e a ao social ou conscincia.
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Neste captulo, apresento um panorama sobre as origens do hip hop em nosso
pas, especialmente a respeito da sua insero no nordeste, passo importante para uma
compreenso abrangente sobre os seus contornos histrico-sociais. E, em seguida, trato dos
dilogos culturais realizados nas intervenes artsticas do hip hop, centralizando aateno
nas canes de rap e no seu encontro com a antropofagia oswaldiana e com a cultura oral
nordestina, enfoque com base nas teorizaes sobre hibridao de Nstor Canclini.
ODVDCanes de rap e a cultura nordestina3, que acompanha esta tese, traz
em sua primeira parte Hip Hop um movimento artstico, cultural e social tambm no
nordesteos contornos identitrios expressos na sua definio de hip hop com base nos seus
principais elementos. As imagens deMCs, da discotecagem, da dana de rua, degraffiti e das
aes sociais ilustram a complexidade desse movimento e complementam a sua etimologiasaltar os quadris ao apontar para o dilogo entre as linguagens e estilos, alm do aspecto
social que subjaz nos elementos.
A conscincia de que preciso criar uma rede de intercmbios scio-culturais
entre os estados nordestinos, respeitando as especificidades locais, um pensamento que se
reverte em atitude entre os/as jovens hip hoppers. A fala de Pedro, um dos representantes da
Associao Metropolitana de Hip Hop do Recife e um dos coordenadores do I Encontro
Nordestino deHip Hop, torna significativa a defesa das aproximaes polticas e culturais dohip hop4no nordeste quando destaca a necessidade desses intercmbios entre os estados:
O Encontro Nordestino de hip hop no Recife tem o objetivo de fortalecer e talvezat consolidar a unidade poltica do movimento hip hop no nordeste, alm de
promover intercmbios culturais, sociais e polticos, aproximar mais a rapaziadadaqui no nordeste, uma vez que a gente t entendendo que se for pra o hip hopconseguir conquistas na nossa sociedade do ponto de vista da transformao social,no d mais pra cada um estar no seu estado trabalhando independente5.
Relacionando-se a esse aspecto scio-cultural de unio entre as fontes regionais
nordestinas e as hip hoppers, a perspectiva artstica apontada por Amarino Queiroz (2002),
que nos oferece um quadro comparativo das confluncias entre rap e alguns gneros da
cantoria popular nordestina, torna-se oportuna para a presente discusso ao abordar a
hibridao textual entre os dois gneros orais, uma perspectiva que fortalece as minhas
convices em torno das observaes das canes de rap a partir de suas tradies voco-
musicais.
3Ver Apndice, p. 192.4Nas pginas seguintes, utilizo as iniciais h. h.para a expresso hip hop.5Discurso proferido na mesa de abertura, dia 06/09/2006, no Teatro do Parque, em RecifePE.
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Interessantes, tambm, so os dilogos entre os elementos da cultura hip
hopper e a oralidade nordestina presentes, por exemplo, na assimilao dos recursos tcnicos
e estilsticos da xilogravura, texto visual dos folhetos de cordis, para a criao artstica dos/as
grafiteiros/as, sobretudo em Recife, produes tambm mencionadas por Queiroz (2002).
O desafio do repente, que caracterizado pelo improviso na rima, corresponde
ao desafio de rima oufree style. Esta ltima expresso tambm est relacionada ao estilo livre
e improvisado dos/asDJs e dos/as grafiteiros/as e refere-se disputa potica dos/as MCsque
est ilustrada, tambm, noDVD Canes de rap e a cultura nordestina6, na qual observamos
a capacidade criativa na disputa entabulada pelos MCs Maggo e Penetra que se utilizam de
um raciocnio rpido e mordaz. J os recursos musicais usados na discotecagem, a exemplo
das bases7 e pick-ups8, so vinculados aos efeitos dos pandeiros e de outros instrumentospercussivos.
Amarino Queiroz apresenta uma ampla contextualizao acerca do encontro
entre h. h. e as demais expresses culturais ao apontar os inmeros trabalhos, em nosso pas,
que se validam dessas formas de intersees, pois
a aproximao do rap com a tradio dos trovadores gachos em Porto Alegre,passando pelo flerte do breakcom a capoeira e o tambor de crioula maranhanse, do
grafite com o Cordel de Recife, at a assimilao dos improvisos poticos do partidoalto do Rio de Janeiro, so exemplos de experincias que reforam esse carter defuso intercultural porque vem passando o hip hop praticado no Brasil. (2002, p.36).
Assim, torna-se comum s concepes artsticas dos elementos do h. h. uma
atitude de absoro de inmeras fontes culturais, sejam elas nordestinas ou no, compondo
um hbrido que nos lembra a postura dos antropfagos de 1928-9 que deglutiram as
vanguardas histricas na criao de suas obras brasileiras.
Para uma melhor compreenso de como esses dilogos culturais se deram aolongo de quase vinte e cinco anos de atividades do h. h. em nosso pas, seus aspectos sociais,
culturais e artsticos sero contextualizados na discusso a seguir.
6Ver Apndice, p.192.7 Base - Acompanhamento meldico-musical recortado e colado ao texto, servindo como acompanhamentomusical para a execuo do discurso rapper.8Pick-up- Aparelho que permite o uso combinado de dois toca-discos ao mesmo tempo.
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1.1 Configuraes sociais, culturais e artsticas do movimento hip hop
Definir a expresso h. h. torna-se uma tarefa instigante quando so
relacionados seus aspectos artsticos, culturais e sociais. Muitos/as o definem como um
movimento social, destacando-lhe as causas sociais e a interveno poltica assumidas
pelos/as milistas nas suas comunidades. Outros/as como uma cultura de rua9quando ressaltam
as conotaes identitrias que fazem com que os/as hip hoppers apresentem comportamentos
que apontam para sua adeso, a exemplo de expresses e terminologias para os elementos
artsticos, vesturio, linguagem verbal e/ou corporal etc.
Tambm difcil homogeneizar uma compreenso sobre o h. h., tamanha a
variedade de atuao que lhe comum, pois em cada local onde ocorre, seu desenvolvimento
depender de aspectos circunstanciais e contextuais. Assim, aos elementos ou frentes de
ao10mais conhecidos podem ser incorporadas novas linguagens e expresses culturais, a
exemplo do beat box11 e do basquete de rua, que no eixo Pernambuco-Paraba e em So
Paulo, respectivamente, so associados ao movimento h. h. como um de seus elementos.
Desta forma, podem ocorrer inmeras interpretaes sobre o h. h. a partir de
diversas perspectivas tericas: social, antropolgica, artstica, entre outras. Diante desses
aspectos, me situo a partir da compreenso de h. h. como um movimento cultural, social e
artstico, com suas fissuras internas e suas peculiaridades, cujos elementos aderem a diversos
aspectos identitrios e ressignificam caractersticas scio-culturais dos espaos nos quais so
executados, bem como, neste trabalho, o rapser evidenciado a partir da ideia de ser ele uma
cano apoiada pela poesia da voz.
O rap criado pelo elemento MC, rapper ou rimador, se configura a partir de
duas expresses artsticas, pois concerne msica instrumental e, sobretudo, msica digital-
tecnolgica, e por ser uma poesia, conforme perceptvel na sua definio em rhythm andpoetry, ritmo e poesia. A discotecagem, por sua vez, apresenta procedimentos que
conduzem ao recorte e colagem de textos sonoros, bem como ao aproveitamento de rudos e
9A compreenso de h. h. enquanto cultura de rua encontra-se na obraRap e educao, rap educao, de ElianeAndrade (1999). EmHip hopA periferia grita, Patrcia Casseano, Mirella Domenich e Janana Rocha (2001)abordam o h. h.como cultura de rua, cultura urbana e movimento cultural. Amarino Queiroz (2002), por sua vez,refere-se ao h. h. como cultura urbana. Nas revistas Caros Amigos, nos nmerosMovimento hip hopa periferiamostra seu magnfico rosto (1998) e O hip hop hojeo grande salto do movimento que fala pela maioria urbana(2005), enfatiza-se o seu aspecto scio-cultural.10Os elementos ou as frentes de ao (MC, DJ, graffiti, dana de rua e a ao social ou conscincia) recebem taisdenominaes por se configurarem nos produtos e produtores culturais usados para se atingir um fim, seja esteartstico ou social.11Beat boxPrimeira bateria eletrnica do h. h.;batida improvisada feita com a boca peloDJ ouMC.
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diversos sons, promovendo interao com a poesia e, muitas vezes, complementando o campo
semntico das canes.
As artes visuais so contempladas nos mais variados estilos de graffiti, nas
instalaes artsticas, na criao de objetos estticos, a exemplo das latas de spraysque so
grafitadas aps a utilizao de seus contedos e ilustram a capacidade de reaproveitamento de
diversos materiais na arte graffiti. A dana de rua se materializa numa dana-luta corporal
atravs dos principais estilospoping, que apresenta movimentos robticos e do a ideia de que
o/a danarino/a est levando choques quando dana;loking que,por sua vez, traz movimentos
mais soltos e danantes associados aos saltos; e breaking, que se configura por passos de
capoeira e de frevo, caboclinho, samba, golpes de karat e giros de cabea, por exemplo.
A ao social ou conscincia pode aparecer como componente temtico nasconstrues das produes artsticas, configurando mensagens sobre os mais variados temas,
bem como a sua realizao prtica, que ocorre em posses12, associaes, fruns e outras
formas de articulaes coletivas so experincias que buscam, nestas situaes, mudar um
contexto desagradvel, refletir problemas e, quem sabe, alcanar solues.
A abrangncia das manifestaes culturais relacionadas ao h. h. nos conduz
aos mais variados materiais e meios utilizados pelos/as milistas. No rap usado o corpo, a
voz do/a poeta, que pode ser potencializada pelo microfone, e o pblico que interage com asperformances do/a MC; o graffiti pode ser executado nos mais variados lugares e requer
certos recursos:sprays, pincis, tinta lavvel e pigmentos, compressor; a dana de rua utiliza
os movimentos do corpo, um piso adequado s manobras e implica, tambm, numa
comunicao com o pblico; a discotecagem a mais dispendiosa expresso do h. h., pois
depende de equipamentos muito caros, a exemplo de pick-ups, sampler13 e programas de
udio instalados em computadores; j o elemento relacionado ao trabalho social ou
conscincia requer a voz e o corpo investidos por uma postura crtica em relao s suasespecificidades culturais e sociais, o espao para intervenes sociais, a articulao coletiva e
o fomento s aes que permite que elas aconteam.
Quando menciono a insero do h. h.no mundo, refiro-me ao fato dos seus
elementos artsticos ocorrerem em diversos pases, a exemplo da China, ndia etc, bem como
12 Posses - Associaes locais de grupos de jovens integrantes do h. h. que tm como objetivo principalreelaborar a realidade conflituosa das ruas nos termos da cultura e do lazer. So espaos onde ocorrem oficinas,
palestras, campanhas, cursos, entre outros, promovendo interveno social.13Sampler - Instrumento eletrnico dotado de memria para armazenar os sons selecionados. Normalmente acoplado a um mixer e pode conjugar ao mesmo tempo vrias estruturas meldico-musicais, pois capaz dearmazenar at dez seqncias musicais a serem utilizadas na perfomance dos DJs. Configura-se como um dosmais fecundos recursos da discotecagem, auxiliando a construo do rap atravs das colagens.
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as suas fontes originrias serem as afro-americanas, o que ser apresentado adiante. No
Brasil, o h. h. apresenta-se de forma organizada e articulada, destacando-se politicamente de
outros pases onde ocorrem seus elementos, o que confirmado pela existncia de algumas
articulaes coletivas, a exemplo dos inmeros eventos que ocorrem atualmente e das
associaes como a Associao Cultural Negroatividade, Aliana Negra e o MH2O - SP
(MovimentoHip HopOrganizado), que comearam suas atividades a partir do final da dcada
de 1980, em So Paulo.
O Movimento Black Rio tambm tem a sua parcela de importncia para as
bases culturais e sociais do h. h. Sua divulgao atravs da realizao de diversos bailes nos
subrbios do Rio de Janeiro ao balano da fuso entre a soul music e o samba, apresentava
nomes como Z Rodrix, Gerson King Combo, Tim Maia, Toni Tornado, Erlon Chaves entreoutros artistas divulgados na coluna Black Rio, do Jornal do Brasil, bem como casas de
shows, a exemplo da Chic Show, em So Paulo, onde as festas oportunizaram as primeiras
apresentaes de h. h.
No nordeste, a constituio do h. h. como movimento social e cultural vem se
consolidando nos ltimos anos atravs da atuao de alguns grupos como o veterano MH2O -
CE; a Associao Metropolitana de H. H. do Recife - PE; o MHHOB (Movimento h. h.
Organizado do Brasil), em Teresina PI; a Posse Lelo Melodia de Natal - RN; o ProjetoRelidade CruaCultura de Rua, frum Jampa de H. H., a CUFA (Central nica das Favelas
PB) e a Associao Coletiva deH. H.Pessoense,em Joo Pessoa - PB; os fruns estaduais j
constitudos em Pernambuco, Cear e Rio Grande do Norte. Alm dos grupos estabelecidos,
ressalte-se tambm outras maneiras de articulaes coletivas14.
Apontados alguns aspectos sobre as configuraes artsticas, sociais e culturais
dos elementos do movimento h. h., apresento a seguir uma breve histria do h. h. traando a
atuao dos seus principais elementos, suas fontes originrias afro-americanas, sua deglutiopelos/as brasileiros/as e nordestinos/as e alguns contornos desse movimento nos dias atuais.
14As realizaes do I Encontro Nordestino de H. H. em Recife-PE, nos dias 06 a 09/09/2006, e do II EncontroNordestino deH. H. em Joo Pessoa PB, nos dias 06 a 09/09/2007, exemplificam a articulao scio-polticado h. h. no nordeste.
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1.2Breve histria do movimento hip hop
Os primeiros a usarem a expresso h. h.foram Africa Bambaata, que promovia
bailes e cooperou para a sistematizao do h. h. como movimento cultural, os DJs15 Kool
Herc, criador do scratch16e da pick-up,e GrandMaster Flash, que aprimorou as tcnicas de
discotecagem e criou o beat box,por volta do final da dcada de 1960. Nessas festas, a luta
corporal era substituda pela luta na dana e na rima, aspecto muito evidente nas batalhas de
dana de rua e de rima, o que j sinalizava a aglutinao dos elementos do h. h.
South Bronx, San Diego, Miami, Detroit, Los Angeles e Fresno so alguns
espaos onde o h. h. passou a ocorrer frequentemente, primeiro como uma diverso, depois
como uma forma de protesto contra as condies de vida naquelas comunidades urbanas
perifricas do momento histrico da dcada de 1960 em diante, que viviam em crise social e
testemunhavam o descaso por parte dos governantes.
Neste contexto, faz-se necessrio esclarecer dois pontos: o primeiro deles
refere-se ao fato da violncia, em suas mais variadas verses, ser constante nessas
comunidades, resultado da privao de necessidades essenciais e da represso promovida,
quase sempre, pela polcia aos/s envolvidos/as com o narcotrfico, acarretando um processo
de violncia generalizada dentro das comunidades pobres.
Em segundo lugar, as condies urbanas ps-industriais fizeram emergir
realidades dspares: o acelerado processo de revoluo tecnolgica e a situao de
marginalidade e pobreza a que eram submetidas diversas famlias afro-americanas, gerando
uma diviso tnica e econmica das cidades. Tais condies antagnicas foram abordadas por
Micael Herschmann nos seguintes termos: Importantes mudanas ps-industriais na
economia, como acesso moradia, a demografia e as redes de comunicao, foram cruciais
para a formao das condies que alimentaram a cultura hbrida e o teor scio-poltico dascanes de hip hop(1997, p. 195).
As inmeras dificuldades de sobrevivncia nos espaos das periferias urbanas
no atingiam s os moradores negros e/ou pobres nos Estados Unidos, onde surgiu o rap,mas
tambm jamaicanos, porto-riquenhos e comunidades de outras partes do Caribe. Parte desses
segregados e marginalizados reagiram, de forma alegre e questionadora, atravs dos
15DJou Disc-jqueiQuem manipula os vinis, auxiliado/a porpick-ups,samplere mixer, conseguindo efeitossonoros e constituindo os procedimentos gerais da discotecagem (scratches e bases). Exerce papel importante
para os recursos da colagem-citao na construo do rap.16Scratch - Efeito sonoro produzido pelo atrito dos dedos entre a agulha do disco e o prprio disco.
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elementos do h. h., s situaes de ausncia do poder pblico na garantia de direitos
essenciais populao urbana, como segurana, sade, educao, alimentao, moradia,
saneamento, entre outros.
O Brasil tambm passou por reformas em prol da urbanizao que muitas
vezes resultaram na formao de favelas em algumas capitais. O livro de Jos Manuel
Valenzuela Arce, Vida de Barro Duro cultura popular e graffiti, importante por destacar
considerveis expresses juvenis urbanas contemporneas, entre elas o graffiti, o funk e o
punk, discute a favelizao brasileira no captulo Rota do Asfalto:
A favelizao do Brasil foi um fenmeno originado em fins do sculo XIX. [...] Asfavelas desenvolveram-se com a primeira dcada e a urbanizao foi incorporando
de maneira crescente afro-brasileiros que haviam acabado de obter sua libertaocom a abolio da escravatura, no final do sculo XIX. [...] A favelizao brasileiradesenvolveu-se de maneira impactante durante a dcada de 40. [...] Na dcada de50, marcada pelo aparecimento da televiso, os espaos urbanos sofreram fortestransformaes. [...] A industrializao participava da tendncia concentrao decapitais e de pessoas em algumas das grandes cidades, e com isso foramdinamizados os processos de urbanizao populacional. (1999, p. 27-28)
Nos dias atuais, as favelas cresceram desordenadamente em todas as capitais
brasileiras, fato confirmado nos nmeros apontados pela revista virtual Cidades do Brasil, na
qual os dados da Pesquisa de Informaes Bsicas do Intituto Brasileiro de Geografia e
Estatstica IBGE, apontam para o aumento de cerca de 156% do nmero de favelas no
Brasil, nos ltimos anos:
Temos 16.433 favelas cadastradas no pas. De 1999 a 2001, o nmero de domicliosem favelas cresceu de 900 mil para mais de 2,3 milhes. Desses domiclios, mais de1,6 milho (70%) esto localizados nos 32 maiores municpios brasileiros, aquelescom mais de 500 mil habitantes. [...] So Paulo, Rio de Janeiro e Recife so ascidades que tm mais moradias em favelas. (2006)17
As periferias, originadas desse processo de urbanizao acelerado e
desordenado, se tornaram o ambiente propcio ao surgimento e atuao dos elementos de h.
h. que, em diversos lugares, inclusive no Brasil, foram introduzidos pela dana de rua
generalizada pela mdia nas expresses breaking, breakdance e breakdancing, a partir de
1981. Atualmente, o grande cenrio da dana de rua se completa com os estilos locking e
popping, j mencionados acima, e sua configurao evidencia a mistura de passos de
capoeira, sapateado, cossacos russos, danas latinas, kung fu, karat, black music,entre outras
linguagens artsticas e culturais.
17Disponvel em .Acesso em: 07 nov. 2006.
http://www.cidadesdobrasil.com.br/http://www.cidadesdobrasil.com.br/ -
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O estudo de Eliane Andrade menciona o fato da dana de rua ter uma ligao
direta, em suas primeiras realizaes nos Estados Unidos, com a atuao dos black panthers18,
no contexto da interpretao dos movimentos robotizados como uma expresso performtica
que apresenta o protesto contra a guerra do Vietn:
a dana de rua uma dana caracterizada por movimentos em que o danarino tentareproduzir o corpo debilitado dos soldados que voltavam da Guerra do Vietn ealguns movimentos copiavam as hlices dos helicpteros utilizados na guerra. Oobjetivo desta dana era justamente mostrar o descontentamento dos jovens comrelao guerraum instrumento de protesto simblico, mas de grande significado
para juventude daquela e desta poca. (1999, p. 86-7)
Esta tese de que os primeiros passos de dana de rua j sinalizavam uma
postura de contestao poltica e social vem sendo rebatida, pelo menos em sua verso
brasileira, por alguns integrantes da dana de rua, a exemplo do danarino de rua e arte-
educador Vant (PB) e do diretor do Ncleo Bartolomeu de Depoimentos, b. boyeDJ Eugnio
Lima, em entrevista a revista Caros Amigos: No Brasil tentam associar o movimento hip hop
a um movimento de esquerda, ou uma luta poltica que s aconteceu com o passar do tempo,
porque no comeo, era uma festa, block party (2005, p. 23).
No Brasil, a dana de rua foi introduzida pelo b. boy19 Nelson Triunfo,
pernambucano da cidade de Triunfo que, no incio da dcada de 1980, tendo se instalado em
So Paulo, foi integrante e criador do primeiro grupo de dana de rua brasileiro, o Funk &
Cia. Naquela poca, em frente ao Teatro Municipal, na praa Ramos, em So Paulo, o grupo
aglutinava b. boysdanantes ao som de box20, beat box epick-ups,at o momento em que a
polcia comeou a proibir o uso dos equipamentos, motivo que os levou a substitu-los por
latinhas batidas no piso.
A represso policial dana de rua foi constante e teve por motivao a
suposio de que, com a aglomerao das pessoas para assistir s performances, havia a
facilitao de roubos que eram atribudos aos danarinos. No entanto, muitos dessesdanarinos eram trabalhadores, geralmente office-boys, que no horrio de almoo se reuniam
na praa para danar. Pela represso, suas intervenes foram transferidas para a rua 24 de
Maio, em So Paulo.
18Black panther Movimento criado em 1966 com programa poltico baseado nas ideias de Mao Ts-Tung.Seus integrantes defendiam oBlack Power,poder para os negros decidirem os rumos de suas comunidades sem ainterferncia dos brancos. Este movimento sempre citado nas canes, a exemplo do CDEm... Black
Power!(poder Preto), de Al da Guerra (PB), de 2008, que apresenta a histria e as concepes ideolgicas dos
black panthersna criao da sua obra musical.19B. boy e b. gir lRespectivamente, danarino e danarina de dana de rua oustreet dance.20Box - Radiogravador porttil de grande porte muito utilizado pelos rappers e danarino/as de rua, levado aqualquer espao de realizao das performances, de praas a clubes.
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Em meados dos anos oitenta, mais uma vez a represso policial expulsou os b.
boyse eles passaram a realizar suas apresentaes na estao de metr So Bento. Naquele
momento se originaram vrios grupos: Jabaquara Dana de Rua, Back Spin Crew, Nao
Zulu, Street Warriors, Crazy Crew. Assim, a dana de rua se expandiu e chegou at Braslia
com os grupos Electric Bugallo e Eletro Rock. Da em diante, essa expresso de h. h. foi
ganhando espao em outras partes do pas (ROCHA; DOMENICH; CASEANO, 2001).
A realizao da dana de rua nos bailes s aconteceu aps a vitria dos/as hip
hoppersnuma disputa com os integrantes do funkque, inicialmente, proibiam a participao
dos danarinos de rua. Surgiu, ento, Gerson King Combo precursor da valorizao da dana
de rua nos bailesblackbrasileiros dos anos setenta. Alm de difundir osoule o funk, Combo
proporcionava diverso e a melhora da auto-estima afrodescendente, convertendo os bailes noprimeiro meio de divulgao do h. h.
Nos dias atuais, os espaos pblicos como praas e caladas ainda so cenrios
de atuao para os/as danarinos/as de rua. No nordeste, o prprio Chico Science se
denominaria um mangue boy, numa demonstrao clara de que as manifestaes de dana de
rua ocorriam anteriromente aos anos de 1990. Outra forma de divulgao so as batalhas de
dana de rua e os encontros promovidos intensamente pelos integrantes do h. h., o que
aconteceu em Joo Pessoa onde, entre 2006 e 2007, foram organizados oito encontros dedana de rua pela Prefeitura Municipal, coordenados por Vant (PB), com a participao de
crews21 oriundas de outras capitais nordestinas, como Natal, Recife e Fortaleza, alm de
grupos do interior do estado, o que confirma que, lentamente, as fronteiras entre cidade e
interior esto sendo suprimidas em se tratando da presena de alguns elementos do h. h.
O rap, que indissocivel da dana de rua, tem ligaes com a vasta tradio
oral afro-americana22. o que se pode perceber na observao detalhada do quadroDa frica
ao Bronx uma cronologia da msica negra23
. Nele so mostradas as famlias do blues, aexemplo dos spirituals eblues rural; as do jazz,como o ragtime, jazz de Nova Orleans, big
band, suingue, bebop, entre outros estilos; o soul, que tambm se ramificou em alguns
segmentos como funk, stax, motown, philadelphia internacional; o rhythm & blues, que
acrescenta a esta tradio oral os estilos gospel, blues urbano e as canes libertrias por
21CrewGrupo de danarinos/as de dana de rua ou degrafiteiros/as.22Esse assunto ser mais bem contextualizado no terceiro captulo referente s questes de oralidade e da jmencionada ideia de poeta da voz (ZUMTHOR, 1993; 1997; 2006; 2007). O encontro do rapcom a tradio
oral ibrica, da qual os/as cantadores/as nordestinos/as, emboladores/as e cordelistas se alimentam, tambm sertratado naquele captulo.23 Ver quadro 1, Anexo B, p. 186 da autoria de MAcBride, James. Planeta hip hop. Revista NationalGeographic.So Paulo, abril, 2007.
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Direitos Civis, e, at o rock & roll, tem sua parcela de contribuio atravs dos gnerosgo-go
e disco. Tais fontes orais so re-elaboradas, incessantemente, nas produes musicais de
muitos/as artistas, dotando as canes de grande riqueza musical e vocal.
Apresento, a seguir, algumas consideraes sobre a insero do rapno cenrio
musical nacional e regional nordestino, para observarmos que a sua realizao est ocorrendo
em diversas partes do Brasil, inclusive em cidades de pequeno e grande porte.
A cada dia as canes de rap vm ganhando a preferncia de inmeros/as
jovens, fato inquestionvel que pode ser confirmado nos nmeros percentuais apontados pela
pesquisa Perfil da Juventude Brasileira na qual, a partir da resposta pergunta sobre gneros
ou tipos de msica de que mais gosta, o rap aparece com 12% da preferncia juvenil. Este
nmero aumenta para 18% quando se acrescentam mais 6% referentes indicao de msicade h. h.24(org. ABRAMO; BRANCO, p. 87, 2005).
A primeira coletnea de canes de rap a obter repercusso nacional foi o
discoHip Hop Cultura de Rua, em 1988. Com tiragem de 25 mil cpias, ele traz canes de
uma das primeiras duplas do rap nacional: Thade e DJ Hum. Anteriormente, o disco A
Ousadia do Rap, de 1987, pelo selo Kaskatas, no obtivera tanta divulgao. Em 1993 foi
lanado o primeiro disco contendo apenas canes de rap, oConscincia Black II,produzido
por Lady Rap, pioneira na gravao e divulgao do rapfeminino brasileiro. Mas a projeodo rap, em nvel nacional e, consequentemente, do h. h., ocorreu, sobretudo, aps o
lanamento do CD independente Sobrevivendo no Inferno, em 1997, do grupo paulista
RacionaisMCs, atravs do selo Cosa Nostra, que vendeu cerca de um milho de cpias.
visvel que muitos/asMCs so hoje conhecidos/as e veiculados/as em cadeia
nacional, a exemplo de MV Bill, Mano Brown, Marcelo D2, Negra Li, Gabriel - O Pensador,
Happin Hood, e que alguns deles/as j tenham se apresentado em programas globais como TV
Xuxa, Criana Esperana, Altas Horas e Domingo do Fausto, alm do programa deentrevistaRoda Viva, da TV Brasil. Mas o grande espao de divulgao do rap construdo
por parte das atitudes independentes, alternativas e, sobretudo, atravs do mercado informal e
pela pirataria.
No caso do h. h. ocorre a veiculao das imagens e canes realizada pelos
produtores musicais do rap atravs de algumas ferramentas de comunicao miditica, a
exemplo de myspaces e youtubes, ou a produo caseira de CDs e DVDs que so
comercializados em eventos ou atravs dos vendedores ambulantes deste material audiovisual.
24Ver quadro 2, Anexo B, p. 187, que apresenta o resultado da referida pesquisa.
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Assim, diante do fato da veiculao do produto audiovisual encontrar entraves
nos meios de comunicao nacional privado ou pblico, resta ao MC e/ouDJusar os meios
que o momento atual apresenta, at que um dia ele/a consiga se inserir no mercado
fonogrfico nacional, assinando contratos com gravadoras que nem sempre esto dispostas a
aceitar a sua proposta artstica e ideolgica.
Outra sada a produo alternativa e independente atravs da criao de
produtoras e selos que garantam a veiculao e liberdade de criao, to caras ao/ MC, mas
para que elas aconteam preciso capital e organizao, tino empresarial, qualificao
tcnica, entre outros fatores que no so muito comuns ao universo hip hopper, devido falta
de infra-estrutura e de recursos.
Alguns grupos de rap vm ganhando notoriedade tambm atravs deiniciativas alternativas e eventos locais promovidos principalmente em parceria com os
poderes pblicos, atravs de casos que ilustram a expano do rap nacional e, tambm, no
contexto cultural nordestino.
O Prmio Hutuz, organizado por Celso Athayde e MV Bill, evento artstico
que coopera muito para o intercmbio de grupos de rap e a divulgao de suas obras musicais,
em nvel nacional, realizado anualmente com entrega das premiaes no ms de novembro, no
Rio de Janeiro, revela nomes de todo pas, inclusive do rap nordestino, a exemplo do rapperparaibano Sacal e do grupo cearense Costa a Costa, que ganhou o prmio revelao em 2006,
e do grupo de rap AfroNordestinas (PB), que ganhou o prmio melhor demo rap feminino em
2007.
Em todo caso, no nordeste o rap teve incio a partir da dcada de oitenta, no
diferindo muito da sua insero em outras partes do Brasil e tendo sua difuso facilitada
atravs dos bailes e da dana de rua que lhes garantiram um espao de divulgao. Na dcada
de 1990, grupos de rap ou seus principais integrantes comearam a despontar em mbitolocal, regional e nacional 25, refletindo amadurecimento artstico.
O rap tambm interage com a discotecagem, sendo esta ltima uma arte de
suma importncia nas produes musicais. Sua ausncia, muitas vezes, dificulta a existncia
dos grupos, pois so indispensveis alguns dos recursos mais utilizados pelos/as DJs na
25 Nos anos 1990, os grupos Simples Raportagem (BA), Vrus, GenerallFrank e Faces do Subrbio (PE),Realidade Crua, Cdigo Vermelho, Esquadro 38 e Reao da Periferia (PB), Comunidade da Rima (CE) e Cl
Nordestino (MA) j demonstravam o quanto o rap nordestino poderia crescer. Atualmente, estes e outros grupos
so exemplos da profuso do rap nordestino, com destaque para os Imperial Rap, Preta Piu e Vtor Pirralho -Unidade Mvel (AL), Sndrome do Sistema - SDS, Novo Horizonte NH3, Treta de Favela e Afro-nordestinas(PB), Agregados e Nordestenatos (RN), Costa a Costa e Rapadura (CE), PretaIai e WG (PI), entre outrosgrupos.
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criao das canes, como os scratches e os samplersque viabilizam os procedimentos de
montagem e colagem de partes meldicas e/ou verbais, formando as bases e/ou os
instrumentais, e reforando a concepo de ritmo e poesia.
Os pioneiros dessa msica de base tecnolgica foram Kool Herc e
Grandmaster Flash, no contexto hip hopper norte-americano. No Brasil, um dos precursores
oDJ Hum (SP), e a partir de 1980 j se consolidaram no nordeste alguns nomes, como os dos
DJs Dal e Mauro (PB), Big e Spider (PE). Atualmente, os DJsGuirraiz (PB), Sulista (AL),
Alf, Joh, Luciano e Adriano (PB), entre outros, que se destacam por, tambm, permitirem um
trabalho de intercmbios entre as fontes musicais nordestinas e a cultura hip hopper.
A influncia da msica eletrnica na construo musical das canes de rap
resulta dos estilos house e tecno e dos estilos europeus com razes africanas (trance,breakbeat, jungle, dowtempo).A sofisticao tecnolgica dos/as DJsno se restringe apenas
ao uso de pick-ups e mixers. Inclui, tambm, habilidades no uso de programas de
computadores especficos que demandam um conhecimento elevado de msica digital-
tecnolgica.
Ograffiti outro elemento indispensvel na concepo geral do movimento h.
h., e, artisticamente, apresenta-se como um texto hbrido ao conjugar imagens com trechos de
poemas ou canes. Assim, as imagens e as palavras so aproximadas, uma linguagemreforando o sentido da outra, unindo as funes estticas e sociais.
Ograffiti surgiu, como elemento do h. h.,tambmpor volta do final dos anos
de 1960, nos Estados Unidos, e as suas origens esto relacionadas arte pictrica e arte
muralista mexicana do incio do sculo XX. Esta ltima teve influncia considervel na
configurao das tags26 que, com o passar do tempo, se converteram em imagens mais
elaboradas, como argumenta Amarino Queiroz:
[o]grafite se desenvolveu a partir da demarcao de territrios por parte dosjovens de periferia, na forma de assinaturas pintadas sobre paredes, ou seja,as tags. Constitudas por um tipo de cdigo que caracteriza a identidade dosgrafiteiros, essas tags so utilizadas tambm como um recurso para marcar
plasticamente a presena desses artistas na paisagem urbana. Diferentementeda pichao, imprime um carter visual sofisticado mensagem social eartstica pretendida pelo grafiteiro, associando-se s imagens que compem aobra. Em seu desenvolvimento, as tags foram evoluindo da sigla inicial paradesenhos mais complexos at a forma de grandes painis coloridos. Muitosdesses painis grafitados denotam, por sinal, ntida influncia das artesvisuais de tradio hispano-americana, uma vez que grande nmero dessescriadores, entre eles Ramn Herrera, Lee Quiones, Sandra Fabara ou Miguel
26Tag - Assinatura ou inscrio que indica nograffiti a autoria e territrio do/a grafiteiro/a.
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Ramrez, proveniente ou originrio de pases de lngua espanhola comoPorto Rico, Colmbia e Bolvia, dentre outros. (2002, p. 28)
O primeiro a levar o graffitipara as ruas de Nova Iorque e para as galerias dearte, ainda sem o reconhecimento artstico mais amplo, foi o grafiteiro Phase2 que, no incio
dos anos setenta, criou painis coloridos com mensagens positivas. Em 1981, as telas
grafitadas de Jean Michel Basquiat, tambm poeta e msico, fizeram parte da mostra Nova
York/Nova Onda. E assim o graffitipassou a integrar, tambm, o circuito fechado das artes
plsticas nova-iorquinas (CASSEANO; MIRELLA; ROCHA, 2001).
No Brasil, especificamente em So Paulo, o primeiro nome de destaque foi
Alex Vallauri, que criou e divulgou a arte do spraycanart27 em exposies no Museu da
Imagem e do Som, em 1999 (CASSEANO; MIRELLA; ROCHA, 2001). Os irmos gmeos,
Gustavo e Otvio, so atualmente nomes importantes do graffiti brasileiro, tendo percorrido
vrias capitais realizando intervenes, a exemplo da ocasio em que estiveram em Joo
Pessoa e Recife para grafitar os metrs, numa parceria com a CBTU (Companhia Brasileira
de Transportes Urbanos), em 2007.
No nordeste, desde meados da dcada de 1990, o graffiti vem se fortalecendo
atravs de trabalhos que contam com a participao dos grafiteiros Shikko, Gigabrow e
Mmia (PB), Galo (PE), Edcelmo (RN), entre outros. Alguns fatos que cooperaram para a
divulgao e profissionalizao dos/as grafiteiros/as foram as criaes de convnios e
parcerias com os poderes pblicos para realizaes de oficinas e mini-cursos e os contratos
para decorao de espaos pblicos. Outro aspecto interessante a insero, cada vez mais
frequente, de mulheres grafiteiras, a exemplo dasMCs Kalyne Lima (PB) e Yanaya Juste (PE
e PB), do coletivo pernambucano Rosas Urbanas, e tambm de crews compostas apenas por
mulheres em Joo Pessoa e Natal.
Diversos prdios, fachadas de casas, bares, associaes comunitrias e
estabelecimentos comerciais so cenrios para o graffiti em seus estilos spraycanart,
stencilart28 e free style29. Os tipos de letras utilizados nesta expresso do h. h. tambm
revelam estilo e linguagem especficos, pois as formas arredondadas, denominadas bombou
throw-upso legveis. J o wild styletem o seu entendimento dificultado pela distoro das
27SpraycanartTipo degraffitifeito mo livre com spray, podendo ser usado o aergrifo- motor acoplado auma caneta. A possibilidade de criaes livres e improvisadas freqente neste estilo que no prega regras decomposio.
28Stencilart- Estilo degraffitifeito com moldes prontos, muito utilizados em oficinas e com aqueles que estoem fase de aprendizagem da tcnica.29 Free style Modalidade de graffiti que no prega regras, tcnicas e lugares, na qual a espontaneidade eimprovisao so totais.
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letras e, tambm por isso, vincula-se s mensagens polticas radicais ou ao interesse do/a
grafiteiro/a em no querer ser explcito em suas mensagens (CASSEANO; MIRELLA;
ROCHA, 2001).
O quinto elemento atribudo ao h. h. o trabalho social, que deu origem
diviso entre as denominadas olde newschoolda cultura hip hopper, pois aquela tendncia
inicial ainda no tinha percebido o alcance da funo social deste movimento.A configurao
da new school deu-se, sobretudo, aps a atuao do MH2O-SP, criado por Milton Sales, ex-
scio da empresa RacionaisMCse principal responsvel pela formao das posses.
Uma funo social desempenhada por essas organizaes a busca da
valorizao da auto-estima dos/as jovens quanto cultura afro-brasileira, s questes de
classe, de gnero e a outros assuntos de interesse coletivo. Essa atuao ecoava nas iniciativasdo movimentoBlack Rio,em 1970,quedifundia as palavras de James Brown, como o lema:
Diga alto: Sou negro e tenho orgulho disto. A cano Mandamentos Black, de Gerson King
Combo, tambm nos apresenta essa tendncia:
Viver, sempre na onda black / Ter, orgulho de ser black / Curtir, o amor de outroblack / Saber, saber que a cor branca, brother, a cor da bandeira da paz, da purezae esses so os pontos de partida para todas as coisas boas, brother! / Divina razo
pela qual eu amo voc tambm, brother! (Perfil, 2002)
O poder pblico pode se converter num forte aliado do movimento h. h. em
mbito nacional. Uma das primeiras iniciativas neste sentido ocorreu durante a gesto da
Prefeita Luiza Erundina que, entre 1989 e 1992, promoveu intervenes degraffiti e dana de
rua em So Paulo (CASSEANO; MIRELLA; ROCHA, 2001 p. 100). Nos dias atuais, o
Ministrio da Cultura e a Secretaria Nacional da Juventude tm dialogado com instituies e
integrantes de h. h., mas preciso entender que nem sempre os/as milistas esto amadurecidos
ou qualificados tecnicamente para estabelecer uma parceria em longo prazo, o que requer umtrabalho de formao e de base que raramente acontece.
A relao entre poder pblico e o h. h. vem se tornando mais frequente,
atualmente, e alguns acontecimentos o demonstram, a exemplo do fato de uma das cadeiras
do Conselho Nacional de Juventude ser ocupada pelo MHHOB - Movimento Hip Hop
Organizado do Brasil; da realizao de parcerias e convnios entre os governos federais,
estaduais e municipais; da atuao da Central nica das Favelas CUFA, que faz a insero
de jovens atravs do basquete de rua, trabalha com os elementos do h. h., especialmente o
graffiti e o rap,e dialoga com os poderes pblicos; e, finalmente, do Programa de Acelerao
da Aprendizagem do Ensino Fundamental e de Capacitao Profissional - PROJOVEM,
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criado pela Secretaria Nacional de Juventude, que inclui na sua grade curricular aulas sobre a
histria e os elementos do h. h.
No nordeste, algumas capitais j vivem essa realidade, a exemplo de Fortaleza,
Joo Pessoa, Natal e Recife. Parcerias entre o poder pblico e os coletivos ligados ao h. h. tm
promovido oficinas, mini-cursos, palestras, entre outras atividades de formao. Alguns
eventos tambm resultam desses intercmbios, como as Mostras Nordestinas de H. H.;os I e
II Encontros Nordestinos de H. H., apoiados pelos governos municipais e estaduais de
Pernambuco e Paraba; o I Encontro Nacional de Rappers e Repentistas, realizado pela Sub-
Secretaria Estadual de Cultura da Paraba e o Ministrio da Cultura, alm de outras
iniciativas.
importante destacar que essas realizaes so poucas se as compararmos scarncias sociais e culturais daqueles/as que integram o h. h. Muitas vezes, a prpria
articulao fragmentada pelas brigas internas, vaidades e despreparo emocional impedem
realizaes de programas efetivos apoiados pelos poderes pblicos, cujos gestores no
acreditam no potencial dos/as envolvidos/as.
As atividades tambm ocorrem em alguns casos de forma isolada e segregada,
impedindo a coeso poltica e ideolgica do movimento h. h.Em outras ocasies, superam-se
os conflitos e os/as milistas se unem na produo de alguma atividade importante a exemplode congressos ou encontros e, ao final, voltam a separar-se, atuando em seu espao territorial.
Fao, finalmente, algumas observaes sobre a veiculao das produes
relacionadas ao h. h.Estes espaos comearam a ocorrer com a criao da imprensa negra,
surgida nos anos setenta, em plena ditadura militar, num momento histrico em que j se
divulgava a atuao do Black Rio nos jornais Simba (Rio de Janeiro -1977), Tio (Porto
Alegre - 1978) e Nego (Bahia 1980), os mais importantes dessa poca (ARAUJO, 2000)-
176).A partir de meados da dcada de 1980, os peridicos sobre o h. h. tornaram-se
mais numerosos. Apareceram as revistas Raa, Rap Brasil, Som na caixa, Revista SB ePode
cr, que circulou entre 1991 e 1994 e foi criada pelo projeto Rappers Geleds, emSo Paulo,
tornando-se o principal meio de divulgao do Movimento h. h., e os jornais Notcias
Popularese da Hora.
Na atualidade, o jornalEstao Hip Hop, empenhado em situar o h. h. regional e
nacional; revistas impressas, como aRaz;revistas virtuais, a exemplo da Hip Hop na Veia, do
rapper Tio Duda, e tambm sites, como o RealHipHop, so dedicados circulao das
produes de grupos de maior expressividade na mdia. Esses veculos se convertem em meios
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de divulgao de canes, eventos e propostas de organizao de polticas que fortaleam o
intercmbio entre os estados e as suas regies.
Outro meio de divulgao importante o das rdios comunitrias que promovem
espao para o h. h.A principal delas a Rdio Favela 104 FM, localizada na favela Nossa
Senhora de Ftima, em Belo HorizonteMG. Ela conta 20 anos de existncia, alguns marcados
pela violncia e censura que sofreu na poca da ditadura militar, quando suas atividades foram
reprimidas intensamente. Hoje ela no mais clandestina e tornou-se um exemplo de stio
cultural, mantendo o programa Uai Rap Soul, dirigido por Misael Avelino dos Santos, que leva
ao ar muitos trabalhos musicais de rap(ROCHA; DOMENICH; CASSEANO, 2001).
Aps essa contextualizao panormica sobre a histria do h. h., sua insero no
cenrio cultural brasileiro e a apresentao de algumas peculiaridades artsticas e sociais dosseus elementos principais, abordarei adiante as canes de rap a partir dos processos de
hibridao (descolecionar, desterritorializar e os gneros impuros), visveis em algumas
produes que manipulam as fontes orais nordestinas e hip hoppersna criao artstica. Tais
canes podem ser consideradas a partir do princpio da devorao cultural oswaldiano devido
capacidade de absoro cultural inerente concepo arttica de alguns/masMCs.
1.3 A hibridao nas canes de rap
Aps apresentar alguns aspectos contextuais sobre o movimento h. h. e de
mencionar o seu marco afro-eestadunidense, passando pela sua assimilao no sudeste-sul do
nosso pas e destacando o seu encontro com a cultura nordestina, argumentei que os seus
elementos (MC, DJ, graffiti, dana de rua e social) so criados, como manifestaes artsticas e
sociais, a partir de inmeros processos de dilogos culturais. Prosseguindo nesta mesma
perspectiva, a proposta desta seo abordar os produtos hbridos originrios dos dilogos
entre a cantoria nordestina e as canes de rap.
Primeiramente, torna-se oportuno focalizar a ateno em alguns contornos
identitrios do/a MC e do seu pblico, contextualizando-os a partir de duas perspectivas: a da
situao de extrema pobreza, refletida nas condies de escassez de bens sociais e culturais, e a
do sentimento de diferena e subalternidade. Ao se conscientizarem da sua situao margem
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da sociedade, esses/as jovens vocalizam tal situao e buscam escapar dos mecanismos de
excluso atravs da arte30.
Assim, os/as milistas criam um espao parte para execuo de suas prticas
artsticas, sociais e culturais, sobretudo, em situaes conflituosas do ponto de vista ideolgico
ou por fatores circunstanciais, a exemplo da falta de recursos e de infra-estrutura que dificulta a
realizao de aes e eventos.
A utilizao dos meios miditicos para articulao e criao artstica confere, por
sua vez, uma peculiaridade especial s canes de rap, permitindo que se extrapole
conceituaes binrias, como culto versuspopular e antigo versusmoderno. Tais fenmenos
urbanos so teorizados por Canclini (2006) atravs da anlise dos processos de hibridao
intercultural.O princpio da devorao do legado da cultura universal, to proclamado pela
antropofagia oswaldiana, permitiu algumas consideraes sobre o processo criativo das canes
de rap, sobretudopelo uso dos recursos intertextuais da pardia, da citao e da colagem,
procedimentos presentes na poesia atravs do trabalho dos/as MCse na msica por meio das
execues dos/asDJs.
Assim, entendo, tambm, que as canes de rap so formas especficas de
poesias vocais, bem como as inmeras modalidades da cantoria nordestina, o que nos leva importncia da voz e do corpo para a constituio textual e performtica do rap. Por outro lado,
tais observaes nos conduzem s culturas desprovidas de recursos, situao que no
desconhecida aos\sMCs,para as quais a voz assume um papel primordial, enfim, so aspectos
que se relacionam ao que Zumthor destaca sobre:
[a] importncia central que convm atribuir voz em toda reflexo sobre a poesia. Ofenmeno ultrapassa amplamente o quadro estreito do Ocidente. Estende-se frica,
o que quer dizer pouco. Muitos livros foram consagrados s sobrevivnciasameaadas das tradies africanas antigas; mas o que se deixa, em geral, deconsiderar que nos principais pases da frica central e ocidental (s para citaraqueles que eu conheo) a modernizao (isto , a concentrao populacional nasgrandes cidades, os tmidos ensaios locais de criao de uma indstria, e, mais tmidaainda, a formao de movimentos sociais) est de fato ligada a uma florescnciavivida de formas novas de arte vocal. (2007, p. 58)
Compartilhando dessa ideia de que a voz e o corpo so fundamentais na
configurao performtica dos/asMCs,passo a utilizar expresses como vocalizar, poesia vocal
entre outros termos que indicam o uso da voz, relacionando estes a uma representao potica e30 A apresentao de algumas configuraes identitrias dos/as MCs e do seu pblico ser desenvolvida no
prximo captulo.
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cultural, o que refora a necessidade de um olhar mais detido sobre alguns aspectos scio-
culturais vivenciados pelos/as MCs em face do insondvel nmero de processos de trocas
culturais, ressaltados a seguir.
1.3.1 Canes de rap: expresses culturais hbridas
A apreciao dos recorrentes dilogos culturais entre as prticas artsticas e as
sociais no nordeste e do h. h., nos dias atuais, me encaminhou ao princpio de devorao do
legado cultural, proclamado por Oswald de Andrade, porque a partir dele que nos tornamos
mais conscientes da concepo dos encontros culturais nas nossas expresses artsticas.
Assim, pude relacionar algumas consideraes antropofgicas para compreender certas
peculiaridades das canes de rap, usando, para isso, as abordagens tericas sobre hibridao,
de Nstor Canclini.
Torna-se importante reconhecer a complexidade do movimento h. h. que se
configura, de maneira geral, nas expresses artsticas poticas, musicais, visuais e
coreogrficas, o que nos permite afirmar que ocorre um intenso hibridismo artstico em seus
elementos.
Se considerarmos, ainda, que cada elemento pode dialogar com outras
linguagens artsticas e miditicas, a exemplo do rap que une poesia e msica (instrumental e
tecnolgica), podemos somar ao que foi mencionado o fato de que no h. h.existe, tambm,
um dilogo frtil com as especificidades culturais e sociais dos espaos nos quais so
desenvolvidos seus elementos.
Tal contexto social que se apresenta aglutinado pelos fatores da violncia
associada ao narcotrfico e explorao sexual, da urbanizao desenfreada e mal pensada
que gera as periferias urbanas com seus problemas sociais e o da insero dos meios
miditicos de comunicao na construo artstica, requer uma compreenso mais abrangente
que neste trabalho fomentada pelo pensamento de Nestor Canclini sobre a modernidade:
As reestruturaes culturais que analisamos revelam que a modernidade no sum espao ou um estado no qual se entre ou do qual se emigre. uma condio quenos envolve, nas cidades e no campo, nas metrpoles e nos pasessubdesenvolvidos. Com todas as contradies que existem entre modernismo emodernizao, e precisamente por elas, uma situao de trnsito interminvel naqual nunca se encerra a incerteza do que significa ser moderno (2006, p.356).
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Constatando que vivemos num pas onde o processo colonizador foi violento,
repressivo e possibilitou intensos choques culturais, bem como de todas as tentativas de
modernizao, desde a independncia at mais ou menos 1940, sobressaem-se alguns aspectos
relevantes como um lento programa de alfabetizao; a vinda de intelectuais europeizados e
europeizao de muitos dos nossos intelectuais; a ascenso de setores mdios e liberais; a
difuso da escola; a imprensa; o rdio.
No desconsiderando o fato da industrializao e do crescimento urbano, que
cooperou, em contrapartida ideia de progresso, para a criao de favelas e periferias que
vivem de maneira catica, serem vital para entendimento dos espaos sociais dos/asMCs, me
detenho nos aspectos sobre o nvel de escolaridade dos/as jovens brasileiros que rimam,danam, pintam, mas muitas vezes, no sabem escrever ou no frequentam a escola.
Este fato se confirma na anlise de alguns dados da pesquisa Perfil da
Juventude Brasileira (ABRAMO; BRANCO, 2005, p. 371) a respeito do grau de
escolaridade dos/as jovens, por macroregio. Nele, o nordeste apresenta o seguinte
diagnstico: 42% dos/as jovens fizeram o ensino fundamental; 52% desses/as jovens tem o
ensino mdio (in)completo e apenas 3% incursionou no ensino superior, mas no o concluiu.
Levando em considerao que grande parte dos/as hip hoppersest entre aqueles/as que noconcluram o ensino fundamental e mdio, pode-se inferir que a capacidade crtica e reflexiva
sobre as suas problemticas sociais, revelada nos textos visuais e verbais e nas atitudes,
advm da experincia de vida nas comunidades.
Um motivo para isto a convivncia constante com mundos sociais
antagnicos, pois basta aos/s jovens passarem nos bairros nobres das suas cidades para
constatarem a existncia de condies de vida bem melhores que as suas, at porque os
poderes pblicos, em sua maioria, no estendem benfeitorias aos bairros mais necessitados, aexemplo das periferias, onde a falta de saneamento bsico, a ocorrncia de prdios pblicos
com construes abandonadas h anos, dentre outras demonstraes de descaso, so prticas
constantes.
O texto de Canclini toca numa questo contextualizadora dos caminhos a
serem trilhados pelas artes na Amrica Latina que gravita em torno do modo como as elites
se encarregam da interseco de diferentes temporalidades histricas e tratam de elaborar com
elas um projeto global(2006, p.73). Assim, o autor nos impulsiona a questionar quais so
essas temporalidades:
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Os pases latino-americanos so atualmente resultado da sedimentao,justaposio e entrecruzamento de tradies indgenas (sobretudo nas reasmesoamericana e andina), do hispanismo colonial catlico e das aes polticaseducativas e comunicacionais modernas. Apesar das tentativas de dar cultura deelite um perfil moderno, encarcerando o indgena e o colonial em setores populares,
uma mestiagem interclassista gerou formaes hbridas em todos os estratossociais. (2006, p. 74).
Diante desse contexto, tais contradies condicionam as obras e a funo
scio-cultural dos/as artistas que se veem diante da dependncia de modelos estrangeiros e do
projeto de transformao e autonomia. Em relao ao/ MC, o conflito artstico surge
mediante os interesses econmicos e ideolgicos, porque nem sempre se consegue uma total
liberdade para equilibr-los, pois o sistema mercadolgico exige demandas comerciais,
dificilmente ideolgicas sociais ou artsticas.
No uma novidade a assimilao de um estilo musical norte-americano no
Brasil, pois o samba que uma msica urbana de pas subdesenvolvido (TINHORO,
1997, p. 47-9), teria recebido uma influncia direta da msica norte-americana na criao dos
seus principais estilos, a exemplo da gafieira, sambas abolerados, samba de meio de ano ou
samba cano e da bossa nova, todos eles devedores das orquestras de jazz,disseminadas no
Rio de Janeiro a partir da dcada de 1920. Enquanto isso, o samba de carnaval, o chorinho e a
marcha ficavam mais libertos de tal influncia mantendo-se base de instrumentos de
percusso e dirigidos ao carnaval.
A assimilao da msica norte-americana nas canes de rap, neste trabalho,
tratada de duas formas. Primeiramente menciono, apenas, a atitude, por parte de alguns
grupos, de imitao do gnero de rap muito comum na costa leste dos Estados Unidos,
identificado comogangsta31hedonista, que apresenta apologia ao consumismo, s drogas e ao
sexo e domina o que h de mais moderno no contexto audiovisual, pois so realizadas exmias
produes deDVDs eCDs.A outra forma de absoro remete ideia de tradio vocal comum aos afro-
brasileiros, sendo absorvidas pelos contornos culturais dos seus espaos, neste trabalho com a
tradio oral nordestina. Por isso, observo uma convivncia harmoniosa que preserva a
especificidade textual e artstica dos gneros da cantoria nordestina e os das canes de rap,
unio marcada pela habilidade de vocalizar a poesia do acontecimento, esta ltima
compreendida como uma poesia que se sustenta, textual e tematicamente, dos fatos
cotidianos.31Existe tambm o gnero gangsta de contexto, ou underground,que evidencia, nas canes, a convivncia dacomunidade com inmeras formas de violncia.
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Outras peculiaridades importantes so o uso da tecnologia musical, dos meios
miditicos para criao e veiculao de som e imagem para divulgao dos trabalhos; as
reivindicaes por melhores condies scio-culturais e o registro dos contextos antagnicos,
representados nas canes que indicam a funo social atrelada ao poder da voz.
Ainda para Canclini, o conceito de moderno deve ter como objetivo conhecer e
definir um povo, maneira do que ocorreu no Brasil com o nativismo de Tarsila do Amaral,
Di Cavalcanti, Lger, entre outros que se valeram da cor local como fator de
representatividade brasileira, imprimindo esttica construtiva uma cor e uma atmosfera
representativas do Brasil(2006, p.79), apreendendo, assim, as configuraes do nosso povo
sob o enfoque da hibridao32, jnaquela poca.
Neste trabalho, um exemplo de como possvel encontramos numa mesmaexpresso artstica fragmentos de diversas textualidades que so manipuladas de modo a
ressignificar tradies em face de novos contextos a cano Perito em Rima33, do grupo
Faces do Subrbio (PE), porque ela expressa bem a utilizao das fontes orais afro-
eestadunidense e a exaltao das tradies culturais nordestinas, com nfase na embolada, no
coco e no cordel, atravs do uso de alguns procedimentos intertextuais como a citao e a
colagem.
O dilogo entre rap e embolada dinamizado pelo trabalho do DJ que utilizacitaes de aluses ao cancioneiro popular, sampleando trechos dos emboladores Caju e
Castanha e introduzindo a base atravs da colagem-citao da toada, uma melodia de viola
muito usada pelo/a violeiro/a nordestino/a, que funciona como primeira base para a rima que
seguir, alm da adio de outras bases de rap.
Os recortes e colagens de trechos das canes da dupla de irmos e
emboladores constroem uma intertextualidade oral e musical, aproximando a cano das
configuraes presentes na postura artstica dos/as poetas da voz, pois esses dois gneros decanes populares, rap e embolada, se baseiam na capacidade de rimar, se possvel
improvisando com lgica e inteligncia.
O ttulo da cano, Perito em Rima, anuncia o clima de contenda entre os/as
poetas da voz, muito comum por instigar, tanto no desafio de repente ou de rima como nofree
style, o embate potico. Nesta disputa, o processo e o esforo de construo artstica no
devem ser escondidos e sim revelados e declarados, pois, quando a rima difcil e bem
32Em nota de rodap, Canclini explica que prefere o termo hibridao palavra sincretismo porque aqueleabrange mesclas interculturais no apenas raciais enquanto que sincretismo refere-se s fuses religiosas oude movimentos simblicos tradicionais (2006, p. 19).33A letra da canoPerito em Rima est no Anexo A, p.141e o udio est no CD, Anexo C, faixa 01.
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construda, indica a habilidade do\a poeta e provoca o\a rival a participar do combate, para
assim super-lo\a.
O refro A rima pra quem sabe rimar / Quem quer ser mais do que Deus,
fica pior do que t intensifica o clima de desafio. Esse consiste na competncia potica para
rimar que no conferida a todos/as, especialmente quando se trata dos vaidosos e pouco
talentosos. E a citao, que remete ao imaginrio popular, refora que a crena na humildade
perante Deus uma lei a seguir.
Mesmo apresentando especificidades textuais diferenciadas, podemos apontar
alguns aspectos que aproximam a embolada e o rap, especialmente, devido possibilidade de
improviso e apreenso do acontecimento fortuito na construo potica, caso da proposta
artstica deste grupo pernambucano que se fundamenta em tal tcnica de improvisao livre.J a cantoria de viola, com suas modalidades que seguem esquemas estruturais mais fixos e
rgidos, a exemplo do galope beira mar, martelo agalopado, mouro voltado34 etc,
absorvida pelo trabalho de alguns/mas MCs que vivenciaram, de alguma maneira, o
conhecimento de tais gneros poticos vocais.
Para Antoine Compagnon (1996), h uma encenao no uso da voz e o orador
representa e desempenha os papis do discurso e do pensamento, concebendo-a como
passagem ao ato, destacadamente, pela j mencionada capacidade de improvisao (1996)que, em sua maioria, flagra o acontecimento. Tais consideraes sobre o uso da voz dialogam
com as questes sobre oralidade e poesia vocal (ZUMTHOR, 1993, 1997, 2006, 2007), que
sero discutidas no prximo captulo, e relacionam-se s performances dos/as poetas da voz,
sendo identificveis na vocalizao dos seguintes versos da cano:
Iniciei mostrando a minha prpria rima / sem participar de nenhuma oficina / comauto-estima, sempre acima da disciplina que ensina / rap, embolada, rap. Minhaobra prima / Perito em rima, improviso poesia ensina / representando, com muitoorgulho, a nao nordestina / Parto pra cima cortando que nem esgrima / Ouvidizer: - oxente. Quando Z Brown se aproxima / Bato de frente com qualquer um eno de quina / Fao parte de Helipolis, do Santa Marta, do Pina. (Perito em rima,2004).
34 O galope beira mar apresenta uma estrutura textual com estrofes de 10 versos (dcimas) de 11 slabaspoticas (eneasslabos), acentuao tnica na 2, 5, 8 e 11 slabas, com esquema rmico em ABBAACCDDC, e finalizada com a expresso beira-do-mar. O martelo agalopado formado por uma dcima de 10 slabas
(decaslabo), com rima em espinla ABBAACCDDA e acentuao tnica nas slabas 3, 6 e 10. J o mourovoltado um gnero dialogado com dcimas de sete slabas (redondilha maior), no qual o\a cantador\a diz umverso e o\a outro\a o repete voltando as palavras e, no final da estrofe, os\as cantadores\as entoam juntos osseguintes versos: Assim mouro voltado / Assim voltar mouro.
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O orgulho de ser nordestino est associado representao cultural regional
sinalizada nas citaes por aluses aos bairros de Recife (Pina), Rio de Janeiro (Santa Marta)
e So Paulo (Helipolis) que so assumidos, metonimicamente, como parte de si pela voz
potica, cuja arte de rimar confere destaque ao artista. Para dominar tal arte, preciso muita
disciplina, concentrao e estudo, adquiridos nos contatos com as formas das culturas
populares, a exemplo da embolada e do rap, atravs de uma performance desafiadora,
elaborada pelo/a poeta que incorpora elementos sociais, culturais, polticos e artsticos ao
texto e mostra a preocupao com a construo do verso, pontuando uma caracterstica
metalingustica.
Outra passagem que ilustra os dilogos entre as fontes orais nordestinas e hip
hoppers ocorre na sequncia de versos que remete aos procedimentos estticos presentes naobra dos emboladores Caju e Castanha, numa tcnica de vocalizao na qual a dico rpida e
ritmicamente marcada das aliteraes, num estilo revelador dos procedimentos orais do coco
de embolada, identificada no trabalho do grupo Faces do Subrbio como embolada-rap, e na
cano analisada, desenvolve-se em redondilhas maiores que so introduzidas pelo verso
a1exandrino: um daqui outro de l, bota o carrero:
Falta a boca para o dente. / Falta o dente para a boca / Falta um moco para a moca. /Falta um cabelo pro pente / A planta pra semente, / pra noite, pra madrugada, /Falta a tripa pra buchada / Um galo, no puleiro / Falta um boi e um vaqueiro / nomeio da embolada. (Perito em rima, 2004).
Os referenciais culturais nordestinos em: Nacionalidade brasileiro. Nordestino
bem alimentado / Eu sou da terra da batata doce, / do caralho, feijo preparado entrecruzam-
se com os referenciais afro-brasileiros revelados nos versos: Emprego considerado, / herdado
pela escravido, indicando-nos as hibridaes culturais na configurao identitria da voz
potica, a qual sugerida pela possibilidade de um gnero de rap afro-nordestino, uma
proposta artstica entre tantas outras encontrveis nesta expresso potica-musical.
Novamente, o dilogo entre o rap e as fontes orais nordestinas se evidencia na
concepo de criao presente na cano atravs dos versos Desenvolvendo o ritmo no coco,
na embolada / Melodia conceituada dentro do assunto; no compromisso assumido com o
papel artstico e social, a exemplo dos versos Chego junto / No sou mquina de fazer
defunto, e numa atitude de solidariedade com os/as outros/as na busca por mudana social,
enfatizada pelos versos: Sou adjunto ao meu povo, nordestino guerreiro.
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Ponto interessante, tambm, o revisionismo histrico contido nos versos que
dessacralizam a histria oficial, sobretudo em Cultural como os ndios. / Ao contrrio do
fuleiro D. Pedro I, em que o tom de stira se confirma no uso da expresso nordestina
fuleiro. Mais uma vez o verso Segura o coco vi de roda, bota o carrero introduz a
citao aos recursos da embolada feita pela voz do poeta, que se declara o melhor, o que
visvel nos versos E tome exemplo nessa obra / Que cobra engolindo cobra / E o cobra
daqui sou eu, que trazem a comparao-intimidao muito comum entre os cantadores
populares.
A referncia sabedoria dos mestres do cancioneiro popular nordestino,
emboladores e repentistas, cujos princpios de conhecimento e arte no devem ser julgados de
maneira inferior em comparao a nenhuma outra profisso, est presente nos seguintesversos:
Sou o crnio do nordeste / Fazendo minha toada. / Sou o rei da embolada, dorepente. / Do verso dentro do meu universo, / Presidente no tem valor / diante deum improvisador da rima ligeira que nasce / Tira logo esse disfarce, que a tua hora
j chegou. (Perito em rima, 2004).
Ao final da cano, mais uma vez torna-se explcito o trnsito entre as fontes
selecionadas, especialmente na passagem em que so recitados versos que se relacionam aocco de embolada, comum na produo de Caju e Castanha, cadenciados pelo solo de
pandeiro, instrumento usado pelos/as emboladores/as para acompanhamento musical,
ressaltando o estilo absorvido, sugerido nos seguintes versos:
Ah! Caju, castanha e caj / Cajueiro, cajarana / Tem canavi e cana. / Tem cana ecanavi / Vou tirar, vou tirar / E lima doce na limeira / Tem galho, tem flor, temfruta. / Quem vai na limeira luta pra poder lima tirar / Meu amor v me esperar lno p do cajueiro / Se voc chegar primeiro. Me espere que eu chego j / Oh! Mul,
v balana. E mul balana a criana / cada vez que tu balana ela deixa de chorar /Mardioada. (Perito em rima, 2004).
Dessa forma, unindo rape os procedimentos do coco de embolada e do cordel,
o grupo Faces do Subrbio (PE) conseguiu extrair uma rica simbiose valorizando as fontes
regionais e a expresso artstica hip hopper, no desmerecendo nem alterando a estrutura
textual e potica de cada um dos estilos envolvidos, ao contrrio, ressignificando essas
prticas como uma das formas artsticas-culturais presentes no cenrio artstico da atualidade.
Ao tratar da ampliao do mercado cultural que favorece a especializao, ocultivo experimental de linguagens artsticas e uma sincronia com as vanguardas
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internacionais, Canclini (2006, p. 86) aponta fissuras decorrentes do encontro entre artes
cultas e buscas formais. Essas, por sua vez, indicam a separao entre os gostos das elites
e o das classes populares e mdias controlados pela indstria cultural.
Tal dinmica, ainda segundo Canclini, origina uma nova forma de
enfrentamento das problemticas sociais, pois os movimentos culturais polticos e de
esquerda geram aes opostas destinadas a socializar a arte, a comunicar as inovaes do
pensamento a pblicos majoritrios e a faz-los participar de algum modo da cultura
hegemnica (2006, p. 86).
Alguns aspectos revelados por Canclini, a exemplo da questo da socializao
das artes, ecoa nas configuraes dos elementos do h. h. que so articulados em constante
interao com os/as moradores/as das comunidades que aprovam, muitas vezes, asintervenes artsticas e culturais. Quanto difuso do pensamento sobre problemticas
sociais, os/as milistas promovem inmeras atividades, a exemplo dos j citados fruns e
encontros sobre diversas temticas transversais e artsticas para ampliar e aprofundar
reflexes, fortalecendo assim, os contornos identitrios hip hoppers.
Tendo em vista que aumentaram, nos dias atuais, as discusses sobre polticas
pblicas para a juventude, o movimento h. h. revela-se como um forte aliado no combate
violncia e criminalidade juvenil devido ao seu poder persuasivo entre os/as jovens,passando a ser encarado pelos meios hegemnicos de maneira positiva.
Outro aspecto interessante o da insero dos elementos do h. h. na indstria
cultural, que os explora massivamente nos meios de comunicao audiovisuais, especialmente
no que se refere veiculao das imagens da dana de rua e de rap. Se por um lado o uso
dessas imagens no perpassa, em muitos casos, pela necessidade de esclarecimentos e
reflexes importantes para o universo hip hopper, por outro, divulga aos diversos pblicos
algumas configuraes artsticas desses elementos.Buscando compreender o movimento h. h., percebi que alguns paradigmas
deveriam ser quebrados ou vistos sob uma outra tica, especialmente no que concerne aos
eixos conceituais mencionados anteriromente, cujas classificaes estanques no contemplam
as complexas especificidades textuais e culturais de expresses artsticas como as canes de
rap.
A postura metodolgica fundamentada por Canclini com relao hibridao
intercultural , que relaciona-se com a possibilidade de pesquisar materiais no enquadrveis
nos programas com que as cincias sociais classificam o real (2006, p. 284), fundamental
para as investigaes das canes de rap tratadas nesse trabalho, porque no podemos
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desvincul-las da sua configurao popular, por ser uma das expresses da cultura de rua,
nem da utilizao que os/as hip hoppers fazem das linguagens miditicas (DVD e CD)e dos
meios miditicos de divulgao cultural (internet, rdio e TV), o que permite destacar a
modernizao deste segmento artstico.
Assim, o uso de recursos tecnolgicos e digitais revela contradio e muita
criatividade, pois os/as artistas, mesmo tendo condies financeiras precrias, conseguem,
com es