historia da igreja vol.1 das origens até o cisma no oriente - carlos verdete

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CARLOS VERDETEHISTÓRIA DA IGREJA CATÓLICA

Volume IDas origens até ao Cisma do Oriente

(1054)Apontamentos

para a formação básica de cristãos leigosDirecção de colecção e apresentação

Padre Senra Coelho

Imagem da capa:

Bom Pastor, mausoléu de Galla Placidia, Ravena, Itália,século v

Pré-impressão e capa:

PAULUS Editora

Impressão e acabamento:Manuel Peres, Júnior & Filhos,S.A.

Depósito legal n.º

ISBN: 978-972-30-1410-5

© PAULUS Editora,

2009Rua Dom Pedro de Cristo,

101749-092 LISBOA

Tel. 218 437 620 – Fax 218 437 629

[email protected]

Departamento de Difusão

Estrada de São Paulo

2680-294 APELAÇÃOTel. 219 488 870 - Fax 219 [email protected]

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Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta pub-licação pode ser reproduzida ou transmitida de qualquerforma ou por quaisquer meios, electrónicos ou mecânicos,incluindo fotocópias, gravações ou qualquer sistema de

armazenamento e recuperação de informação sem autoriza-ção prévia, por escrito, do editor.

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Apresentação dacolecção

Uma exposição resumida da História daIgreja deve procurar uma certa homogen-eidade nos critérios utilizados para a ap-resentação dos acontecimentos. Quando nosreferimos à apresentação sucinta da Históriada Igreja, pensando especialmente na form-ação de adultos, temos de distinguir criteri-osamente os acontecimentos mais import-antes dos menos importantes, acentuandoalguns aspectos dos factos históricos e apon-tando apenas outros. Impõe-se-nos a arte deseleccionar com acerto e censo histórico,fazendo com critério a selecção das matériasmais importantes para a formação de umleigo adulto.

A obra que coordenamos e agora ap-resentamos está dividida em três volumes: oprimeiro volume refere-se ao primeiromilénio cristão, das origens do Cristianismoaté ao Cisma do Oriente em 1054; o segundovolume refere-se ao segundo milénio daHistória Cristã, até final do Pontificado deLeão XIII (1903). Reservamos o terceirovolume para a História recente, ou seja, o sé-culo xx e o início do século xxi. Pareceu-nosbem incluir no terceiro volume um conjuntode “temas úteis” como os Papas da IgrejaCatólica, uma lista dos Papas, o Estado Pon-tifício, o Colégio Cardinalício, o Primado Ro-mano, a doutrina dos dois poderes e asíntese histórica de cada um dos concíliosecuménicos.

É evidente que a selecção que fizemossobre as matérias parte de juízos subjectivosde acordo com a nossa compreensão daHistória e da Igreja. Podemos estar certos deque a falta de homogeneidade é não só

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inevitável, como por vezes necessária, pois ahistória é o passado que chega vivo aopresente, pelo historiador que lhe dá vida,segundo o olhar do seu juízo. Para algo serhistórico não depende apenas da sua existên-cia histórica, mas também das suas reper-cussões históricas. Expor em síntese dois milanos de História da Igreja é um projecto se-dutor. Porém, a necessidade de seleccionaros acontecimentos face aos objectivos daobra coloca muitas vezes o autor em angústiae dúvida. A enorme quantidade de factos e avasta riqueza das fontes bibliográficas exigegrande ponderação e “humildade científica”.O autor desta útil publicação, Carlos Verdete,soube-o fazer sempre com a colaboração docoordenador desta colecção.

O futuro do Cristianismo parece-nos de-pender mais do que nunca da sua unidade,da capacidade de superarmos os problemasintelectuais e espirituais que a pluralidadedas nossas experiências de adultos cristãos

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colocam. A História da Igreja deixa-nos acerteza de que ao longo de vinte séculos estainstituição, apesar de demonstrar grandesprogressos e enormes debilidades, per-manece fiel à sua essência e infalível aonúcleo da Fé, resistindo às “ditaduras dosdiferentes relativismos”. É com a luz da Féque captamos a finura dos sinais de Deus naHistória da sua Igreja, onde fala através dosentido das coisas e dos acontecimentos. AFé com que lemos a História da Igreja nãosurge separada da crítica histórica. É nestaconvergência de olhares e saberes que aHistória da Igreja se converte também emTeologia.

A História da Igreja ajuda os cristãos aformarem um conceito justo da Igreja, im-pedindo um falso espiritualismo ou volatiza-ção da Igreja real. A História mostra que aIgreja tem um corpo que é visível e que apartir da sua experiência vivida ao longo dosséculos, deve ser superada a falsa distinção

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entre Igre-ja “ideal” e Igreja “real” e apro-fundado o entendimento da única Igreja –Igreja Una – que é ao mesmo tempo institu-ição divina e humana (fruto do crescimentohistórico) e invisível, que só se pode captarpela Fé, e visível, que se pode comprovarpela História.

O conhecimento da História da Igreja dá-nos ainda a sabedoria da verdadeira san-tidade da Igreja, evitando falsos entendimen-tos dessa santidade. A Santidade da Igrejaaparece objectiva e não exclui a pecamin-osidade dos seus membros, incluindo dosseus pastores. De facto, a Santidade da Igrejavem-lhes da divindade do seu fundador e es-ta não diminui pelos pecados dos seusmembros.

A História da Igreja é um dos melhores in-strumentos para nos fazer com-preender averdadeira dimensão da Fé Católica: a suariqueza e a sua verdade. Fé que respondeu àsexigências mais profundas e sérias de tantas

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personalidades espalhadas por todas as épo-cas e lugares e que impulsionou insuperáveisrealizações aos mais elevados níveis do serhumano.

A cultura do actual Ocidente continua aapresentar-se com muita frequência hostil eestranha à Igreja. Porém, em grande parteesta cultura baseia-se nos valores cristãos efoi criada pela Igreja. Não é sério e honestoignorar historicamente as raízes cristãs daEuropa ou pretender compô-las a qualqueruma das outras presenças espirituais e reli-giosas de passagem pelo Ocidente. Comomembros da Igreja, os leigos católicos sen-tem a necessidade natural, e até o dever, deconhecerem a História da Igreja a que per-tencem, como família sobrenatural.

O estudo da História da Igreja rege-sepelos mesmos critérios da crítica históricaque rege toda a ciência histórica autêntica.Assim, a História da Igreja não pode ser de-duzida dos ideais, nem sequer da revelação,

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mas deve ser descoberta com fidelidade nosacontecimentos que decorreram sem a inter-venção do historiador, procurando lê-loscom objectividade e racionalidade,diferenciando-se da ciência puramente nat-ural, pelo facto de a História da Igreja per-manecer aberta à possibilidade da inter-venção de Deus na História, verificando quemuitas vezes “Deus escreve direito por linhastortas”. De facto, pretender eliminar daHistória da Igreja as suas diversas debilid-ades, deficiências e tensões seria equivalentea dispensar a misericórdia de Deus sobre ela,prescindindo da sua obra de salvação. OCristianismo reduzir-se-ia a um humanismoapenas e a salvação operada por Nosso Sen-hor Jesus Cristo seria dispensável.

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Apresentação dovolume I

No volume i apresentamos a História daIgreja vivida no primeiro milénio cristão. Aprimeira parte do volume diz mormente re-speito à Antiguidade Cristã vivida no con-texto do Império Romano. Esta épocacaracteriza-se sobretudo pelo facto de o Cris-tianismo se ter encontrado perante umacivilização amadurecida, evoluída e consolid-ada; uma civilização que tinha crescido semo Cristianismo e antes dele. No seu conjunto,o paganismo do Império Romano era es-tranho ao Cristianismo e permaneceusempre estranho e até antagónico, sem pos-sibilidades de qualquer integração.

Uma das consequências imediatas e maisimportantes desta constatação foi que na sua

Antiguidade o Cristianismo viveu para den-tro de si mesmo; na primeira metade desteperíodo, sobretudo até à paz de Constantino(311-313) o Cristianismo apresentava umariquíssima “vida interna”, com predomínioquase exclusivo das actividades religiosas.Nesta primeira parte da sua Antiguidade, aIgreja cria as formas fundamentais da suavida interna: piedade, liturgia e dogmática,seguindo sempre com grande fidelidade asbases que Jesus Cristo e os seus Apóstoloslhes indicaram, sobretudo nos livros canóni-cos chamados Novo Testamento. Nesta épo-ca, a Igreja enfrentou ainda várias lutas teo-lógicas: contra os exageros do Cristianismojudaico, contra infiltrações gnósticas no Cris-tianismo, contra a literatura anticristã, con-tra as heresias trinitárias e cristológicas.Desta necessidade de aparição e definição daFé surgiram grandes contributos em que sehaveriam de alicerçar os vários saberes teo-lógicos: recompilação dos escritos do Novo

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Testamento, fixação do símbolo da Fé, apro-fundamento da revelação cristã, com apregação, os testemunhos de vida e a defin-ição dos dogmas.

Até 313, os cristãos eram uma minoria so-ciológica, que defendia o seu direito de ex-istência através de uma posição predomin-antemente defensiva face às perseguiçõessangrentas, que tinham de ser sustidas at-ravés do supremo testemunho dos mártires.Neste período, a Igreja apresenta os seusprimeiros ensaios de diálogo com a culturahelénica já assimilada pelo Império.

A partir de 313 é garantida a liberdade aoCristianismo, que paulatinamente se foitransformando em religião do Estado. A vidada Igreja vira-se mais para fora de si,tornando-se mais activa ao assumir maioresiniciativas já com dimensões sociais. A Igrejacomeça a estreitar laços com o Estado e coma cultura, tornando-se fonte importante do

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Império. É neste contexto que as “massas”populacionais começam a aderir à Igreja.

Dentro da Igreja continua a sentir-se a ne-cessidade da clarificação doutrinária, sobre-tudo nas questões trinitárias e cristológicas.Esta é a época dos grandes concílios que vãodefinindo e aprofundando as grandesquestões da Fé: sintetizamos com J. Lortz:

A antiguidade cristã é a época do nascimento daIgreja, da sua primeira actividade missionária e daconsolidação da sua existência frente ao Estado e àheresia, assim como da fixação da sua auto-inter-pretação dogmática básica.1

A segunda parte deste volume assume aépoca histórica denominada por Alta IdadeMédia, até ao Cisma do Oriente em 1054.Nesta época, a Igreja passa a estar numasituação predominante face à cultura superi-or. É a própria Igreja que cria uma novacultura eclesiástico-cristã e que a eleva àplena autonomia. O Ocidente cristão

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medieval vai crescendo e solidificando-se at-ravés da fusão de três componentes cul-turais: o direito romano, a vitalidade ger-mânica e a ética cristã. O Estado de direitoque a romanidade nos deixou serviu de baseà estruturação social que a germanidadefecundou com a sua concepção de pro-priedade privada e de consanguinidade e queo Cristianismo espiritualizou através da suaética eminentemente humanista. Podemosconcluir que a Europa é, na sua génese,árvores com três raízes, sendo uma delas,desde o primeiro momento, a raiz cristã, apar da romanidade e do contributogermânico.

Nesta época a vida interna da Igrejatornou-se muito florescente na liturgia, naarte, na teologia, no direito e na religiosidadepopular. É também nesta época que passampara primeiro plano os problemas de políticaeclesiástica, sobretudo as dificuldades surgi-das à volta do próprio ordenamento

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canónico da Igreja e das suas relações com oEstado.

O Cristianismo desenvolveu sempre, ecomo referência, a figura do herói cristão,apresentado pela sua santidade como mode-lo de vida. Até 313, o “he-rói cristão” é, semdúvida, o Mártir, que Santo Inácio de An-tioquia tão bem interpreta, sobretudo na suacarta aos cristãos de Roma. Depois da “Pazde Constantino” é sobretudo o monge afigura heróica do Cristianismo tardo-anti-go.A Alta Idade Média começa a sentir a ne-cessidade de aliar aos monges a defesa dacristandade que aos bárbaros e ao Islão, nas-cendo a figura heróica do monge-cavaleiroque acompanhará toda a Idade Média at-ravés das célebres ordens militares.

Recordo aos leitores que Carlos Verdetefará no volume iii a síntese histórica dos con-cílios ecuménicos, mesmo dos referentes aoprimeiro milénio, e por essa razão os grandes

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concílios da Antiguidade cristã não serão ap-resentados neste volume.

Padre Senra Coelho1 Lortz, 1982: 36.

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PrólogoNa sequência de obras anteriores –

Doutrina Social da Igreja e Mestre, ondemoras? – pareceu-nos que num programa de“formação cristã de base de adultos” era ne-cessário um estudo da História da IgrejaCatólica.

Na consolidação da identidade cristã, tãoquestionada actualmente nas suas vertenteseclesial, moral e cultural, é importante aformação cristã dos adultos, pondo um cuid-ado especial no alicerce da vida cristã,requerendo-se uma «iniciação cristã integralaberta a todas as componentes da vidacristã», requisito indispensável para se at-ingir a maturidade cristã dirigida a uma par-ticipação activa na vida e missão da Igreja.

A História de vinte séculos de vida daIgreja coloca-nos algumas questões, fruto

das diferentes épocas por que a Igreja pas-sou. Uma História da Igreja, desde o seu nas-cimento até aos dias de hoje, reflecte os con-tributos sucessivos das várias épocas até seter chegado à nossa existência cristã actual.

A transmissão da missão evangélica pelasgerações que se sucederam em dois miléniosfez-se através de acontecimentos e de pess-oas, acontecimentos políticos, sociais, econ-ómicos, pessoas de várias raças e dispersasgeograficamente pelo mundo inteiro. Atransmissão da mensagem evangélica fez-seno quadro da História geral da humanidade,pelo que a História da Igreja não se podeseparar dessa História geral. A História daIgreja desenrola-se numa geografia que bal-iza as várias etapas da expansão cristã.Desde a mais remota província do ImpérioRomano – a Palestina – essa expansão fez-sepelos países do Mediterrâneo e, daí, para to-do o mundo.

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Assim, a mensagem de Jesus ouviu-se, aolongo da expansão cristã, nas mais variadaslínguas, exprimiu-se dentro das culturas emque penetrou, sofrendo necessariamente in-fluência das mesmas, sem deixar, no ent-anto, de se manter fiel à sua pureza inicial.

A expansão cristã adaptou-se, nosprimeiros tempos, às estruturas e modos devida próprios da sociedade em que se deu: oImpério Romano, com a sua vida urbana,municípios e colónias. Neste contextohistórico nasceu o Cristianismo, sendo, destemodo, as cidades a sede das primeirascomunidades cristãs, vivendo num ambientepagão hostil que serviu para favorecer acoesão e a solidariedade interna destas Igre-jas locais, que comunicavam entre si e sesentiam integradas numa mesma IgrejaUniversal, a única Igreja fundada por Cristo.

As comunidades cristãs organizavam-seem instituições de acolhimento e de celeb-ração do culto, de modo que, naturalmente,

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se sentiam, por vezes, tentadas a organizar-se tomando como modelo as sociedades en-volventes, como instituições político-sociais,com a sua hierarquia de poderes e, com otempo, perturbações na linha doutrinal, oque determinou que se fizesse uma formu-lação serena, impossível nos tempos con-turbados em que a Igreja vivia nos primeirosséculos da sua existência. A formulação dog-mática da fé cristã, que constitui um capítulofundamental de qualquer História da Igreja,fez-se lentamente.

Quando crucificaram Jesus, os soldados repartiramas suas vestes em quatro partes, uma parte paracada soldado. Deixaram de lado a túnica. Era umatúnica sem costura, feita de uma peça única, de altoa baixo. Então eles combinaram: «Não vamos re-partir a túnica. Vamos deitar sortes, para ver comquem fica.» Isto era para se cumprir a Escrituraque diz: «Repartiram as minhas vestes e sortearama minha túnica.» E foi assim que os soldados fizer-am. ( Jo 19,23-24)

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A divisão da roupa dos condenados pelosexecutores da sentença de morte – aqui, ossoldados romanos – era um direito recon-hecido aos carrascos.Na execução de Cristo ofacto é referido como um cumprimento dasEscrituras (Sl 22,9) e é citado explicitamenteapenas por São João. Haverá aqui, também,uma possível alusão ao sacerdócio de Cristona cruz: é que a túnica do sumo-sacerdote,na Liturgia hebraica, devia ser sem costura.

A preocupação que tiveram os soldadosromanos em não rasgar a túnica que recobriaJesus não a tiveram, mais tarde, muitoscristãos, que não hesitaram em rasgá-la emmúltiplas heresias, apostasias e cismas.

A cada passo, na História da Igreja, de-paramos com heresias e apostasias, levando,muitas vezes, a cismas. O seu conhecimentoé muito importante na compreensão decomo a mensagem de Jesus pôde ser tantasvezes distorcida, ou mesmo repudiada, con-duzindo frequentemente a cismas, numa

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recusa de sujeição ao Sumo Pontífice ou decomunhão com os membros da Igreja quelhe estão sujeitos.1

Fundamental numa História da Igreja seráum capítulo que se debruce sobre os primeir-os escritos cristãos – os livros inspirados quecontêm a Revelação divina, compreendendo,na tradicional classificação das EscriturasSagradas, livros históricos (os quatro evan-gelhos e os Actos dos Apóstolos), os livrosdidácticos (as catorze cartas de São Paulo eas sete epístolas católicas de São Pedro, SãoJoão, São Tiago e São Judas) e um livroprofético – o Apocalipse de São João.

A esses escritos inspirados acrescenta-se aliteratura cristã dos séculos i e ii, de es-critores de língua grega – os chamadosPadres Apostólicos – escritos de índole pas-toral que têm como destinatários os fiéiscristãos dos primeiros tempos.

A época das perseguições deu origem auma literatura martirológica, constituída

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pelas actas dos interrogatórios a que eramsubmetidos os mártires.

Ainda dentro da primitiva literatura cristãpodemos contar com os escritos anti-heréti-cos, bem como com uma literatura apologét-ica em defesa da verdade cristã e tendo comodestinatários os pagãos hostis aoCristianismo.

Por último, citemos os escritos destinadosà catequese dos novos conversos, consistindonuma exposição do conjunto da doutrina dafé, ponto de partida de uma nova ciênciateológica.

Compreende-se, assim, ser indispensável ainclusão de um capítulo sobre a primeira lit-eratura cristã numa História da Igreja.

A História da Igreja Católica é feita deluzes e sombras, sucedendo-se e alternando-se, ou existindo simultaneamente. Assim, aolado dos Padres da Igreja e dos começos davida monástica, de uma vida consagrada coma sua espiritualidade própria de abandono de

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tudo pelo Reino, assiste-se a inúmeras dis-putas na lenta formulação do credo católico.Heresias, cismas, as lutas e choques entre ahierarquia católica e o poder temporal sãooutras tantas sombras que não conseguemesconder as crises por que ia passando aIgreja.

Ser cristão hoje – hic et nunc (isto é, aquie agora) –, depois das vicissitudes por quepassou a Igreja ao longo da sua História,constitui o fruto do ser-se cristão nosprimeiros séculos, na Idade Média, no séculoxix e nos anos mais próximos de nós. Daí aimportância que representa na bagagem doleigo cristão o conhecimento da herança dopassado.

Na relação dos fastos (e dos nefastos) daHistória da Igreja adoptámos uma sistemat-ização com uma única finalidade: a de arru-mar os acontecimentos numa sucessão tem-poral, compreendendo vários capítulos, unspropriamente históricos, outros didácticos,

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consequência dos primeiros e ajudando à suamelhor compreensão.

No plano geral da obra dividimo-la emquatro partes.

Na primeira parte, que designamos comoPré-História da Igreja, percorremos aHistória desde Abraão até ao Messiasesperado.

Na segunda parte, que designamos deProto-História da Igreja, vamos desde o nas-cimento de Jesus Cristo até à sua Ascensão.

Na terceira parte registamos a História doprimeiro milénio, desde o Pentecostes até àprimeira cisão séria da Igreja: o Cisma doOriente.

A quarta parte regista a História da IgrejaCatólica no segundo milénio da sua existên-cia, desde o Cisma do Oriente até aos nossosdias, com Bento XVI.

Num programa de formação cristã deadultos leigos torna-se indispensável umestudo do passado da Igreja, de modo a

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poder compreender melhor o tempopresente: só assim se poderá entender comoe porquê a Igreja se tornou aquilo que é actu-almente: una, santa, católica e apostólica.Para essa compreensão contribui, dentro dacronologia dos acontecimentos, o conheci-mento da imbricação das épocas sucessivas,bem como dos problemas que se forampondo aos protagonistas das mudanças quese iam fazendo em torno de um eixo essen-cial cristão, consistindo no acolhimento daBoa Nova proclamada por Jesus Cristo edeixando-se transformar por ela.

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I Parte

PRÉ-HISTÓRIA DA IGREJA

O PAI – ELEIÇÃO

Pré-História da Igreja

Após a transgressão do primeiro casal hu-mano – Adão e Eva –, apesar de “desapon-tado”, Deus não os amaldiçoa (como fez coma serpente tentadora), mas não deixou de ospunir pela sua desobediência: à mulher comos sofrimentos da gravidez e as dores doparto e ao homem com a obrigação desustentar a família com o suor do seu rosto,

arrancando o alimento da terra à custa depenoso trabalho todos os dias da sua vida.

E a História do homem prosseguiu fora dojardim do Éden, trazendo sucessivos desa-pontamentos a Deus – Caim, a corrupçãogeral da Humanidade estendida a toda aTerra – a ponto de Se arrepender amarga-mente de ter criado o homem (Gn 6,6-7), to-mando a resolução de eliminar completa-mente a humanidade com um dilúvio.

No entanto, havia ainda um homem justoe perfeito entre os outros homens e que an-dava sempre com Deus – Noé – e com ele re-solveu o Senhor refazer o Seu plano criador,começando uma nova Humanidade. E dodilúvio são excluídos Noé e os seus três filhosSem, Cam e Jafé, as suas três noras e a suamulher.

Após a multiplicação da nova Humanid-ade noética que havia substituído a adâmica,todos os povos que se espalharam sobre a

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Terra depois do dilúvio descendiam dos trêsfilhos de Noé.

A Humanidade noética caminhou para oOcidente, acabando por encontrar umaplanície (terra de Sinear) onde se fixou,começando a organizar uma civilização urb-ana, com a sua divisão do trabalho – operári-os de olaria e forjadores de metais, os mer-cadores e os serviços especializados (es-crivãos para o registo dos negócios, dos cen-sos, das leis, etc.), a necessidade de um gov-erno, de uma administração. E, assim, naMesopotâmia, ou seja, nas terras férteisentre os rios Tigre e Eufrates (território domoderno Iraque), terra sem pedras mas ar-gilosa, facilitando o fabrico dos tijolos paraas construções, nasciam as primeirascidades-estado há cerca de cinco mil anos,constituindo a mais antiga cultura con-hecida: a cultura suméria.

Ao lado do desenvolvimento material, ohomem sempre manifestou uma

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religiosidade, expressão de uma busca deDeus, sentimento inscrito no seu coração,criado como tinha sido à imagem de Deus,sentindo-se chamado a conhecê-l’O e a amá-l’O. E essa religiosidade foi-se traduzindo emmagníficos templos (zigurates ou pirâmidesem degraus, que abundavam na Meso-potâmia), ritos, imagens e cânticos, com umacaracterística que, certamente, desagradavamuitíssimo ao Senhor: o politeísmo, ou seja,a admissão de um panteão de deuses, maisou menos numeroso.

Numa dessas cidades-estado, protótipo detodas as outras, o orgulho dos homens pre-tendeu desafiar os céus, levando-os a con-struírem uma torre para se tornaremfamosos, – um zigurate... Conta-nos aSagrada Escritura:

Disseram uns aos outros: «Vamos fazer tijolos ecozê-los no fogo!» Utilizaram tijolos em vez depedras, e betume em vez de argamassa. Disseram:«Vamos construir uma cidade e uma torre que

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chegue até ao céu, para ficarmos famosos e não nosdispersarmos pela superfície da Terra.» (Gn 11,3-4)

Profundamente desagradado e amarga-mente desapontado, mais uma vez, o Senhorresolveu dispersá-los por toda a superfície daTerra, para o que Se serviu de um artifíciomuito simples: a confusão da linguagem detodos os habitantes da Terra, que, ao nãoconseguirem comunicar entre si, se dispers-aram, ficando por acabar a construção dacidade com a sua altiva torre. Essa cidade eraBabel.

E uma Humanidade babélica veio sub-stituir a anterior, em que todos os homenstinham apenas uma língua e empregavam asmesmas palavras.

Mas o Senhor não desistiu do homem –Ele nunca desiste – e resolveu purificar omovimento humano de procura da verdade.Para executar o Seu projecto – o desígnio be-nevolente da Revelação – Ele estabeleceu umplano, pois não quis deixar nada ao acaso. A

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execução desse plano compreendia váriasfases de um programa, que se ia desenrolan-do gradualmente numa longa preparação,nunca à margem da evolução humana e dassituações históricas. O caminho que ohomem era livre de tomar estava perfeita-mente assinalado e balizado nesse programa.

Tal desígnio benevolente da Revelaçãocomporta uma particular “pedagogia divina”:Deus comunica-Se gradualmente ao homeme prepara-o por etapas, para receber aRevelação sobrenatural que faz de Si e quevai culminar na pessoa e missão do VerboEncarnado, Jesus Cristo.

Após uma Pré-História em que se evoluiude uma Humanidade adâmica para uma Hu-manidade noética e depois para uma Hu-manidade babélica, começa a História daSalvação, que constitui o plano maravilhosode Deus a favor do homem.

Essa História começa no século xviii a. C.(1700 a. C.), com a vocação de Abrão, filho

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de Taré, por sua vez descendente de Sem, umdos filhos de Noé.

Originários de Ur, na Caldeia, Abrão e asua família migraram em determinada alturapara a Mesopotâmia superior, começandopor se fixarem em Haran, onde, entretanto,Taré morreu.

Tem início, então, a história de Abrão,com a sua vocação:

O Senhor Deus disse a Abrão: «Sai da tua terra, domeio dos teus parentes e da casa de teu pai, e vaipara a terra que Eu te mostrar. Eu farei de ti umgrande povo, e abençoar-te-ei; tornarei famoso oteu nome, de modo que se torne uma bênção.Abençoa-rei os que te abençoarem e amaldiçoareios que te amaldiçoarem. Em ti, todas as famílias daTerra serão abençoadas.» (Gn 12,1-3)

E assim, aos 75 anos, Abrão é convidadopor Deus a deixar o mundo que conhecia e apôr-se a caminho do desconhecido.

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Era preocupação de Deus – estava no seuplano – constituir, por intermédio de Abrão,um grande povo.

Abrão, tomando consigo sua mulher Sarai,o seu sobrinho Lot, órfão de pai (irmão deAbrão), e todos os bens e escravos quepossuía, pôs-se com todos a caminho doOcidente, para a terra que se estendia do rioJordão até ao Mediterrâneo: a terra deCanaã. Abrão patenteou, assim, uma grandefé e obediência ao deixar a sua terra comtudo o que lhe era mais caro: a terra, afamília e a casa do pai, indo assentar arraiaisem país desconhecido e distante, confiadoapenas na palavra e protecção divinas.

Com este chamamento de Abrão, da Meso-potâmia para a Palestina, Deus deu início àformação daquele povo que será conhecidomais tarde como Povo de Deus ou PovoEscolhido.

A promessa que Deus lhe faz – «Em ti to-das as famílias da Terra serão abençoadas»

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(Gn 12,3) – é o primeiro passo para ocumprimento de uma outra promessa maisgeral, esta feita a Adão e Eva:

Eu porei inimizade entre ti e a mulher [Deus diziaisto à serpente após a queda dos pais da humanid-ade, seduzidos pela serpente], entre a tua des-cendência e os descendentes dela. Estes esmagar-te-ão a cabeça e tu ferirás o calcanhar deles. (Gn3,15)

Esta promessa de Deus constitui aprimeira “boa nova” sobre o Messias. Trata-se de um proto-evangelho em que a lutaentre a descendência da serpente e a des-cendência de Eva terminará com a vitóriadesta, pois que a verdadeira descendência damulher-Eva é Cristo, que, com a Sua morte eressurreição, esmagou a cabeça da serpente,a própria morte.

Estreitamente associada a Ele encontra-seSua Mãe, Maria, a nova Eva.

A Abraão (repare-se! já não simplesmenteAbrão, com apenas um a) seguem-se os

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outros Patriarcas: seu filho Isaac (nome queem hebraico significa “aquele que traz aalegria”), seu neto Jacob (palavra que signi-fica “calcanhar”, por ele ter nascido a agarraro calcanhar de seu irmão gémeo Esaú, comoque a tentar impedir que este nascesseprimeiro do que ele, o que, de facto, aconte-ceu...), que viu o seu nome alterado pelo anjodo Senhor com quem havia lutado, con-seguindo resistir, para Israel, significando “oque luta com Deus”.

Deus havia prometido a Abraão numa se-gunda vez em que lhe apareceu: «Darei estaterra à tua descendência.» (Gn 12,7)

Mas a descendência de Abraão acabou porficar escrava no Egipto e a Terra Prometidapor Deus parecia cada vez mais distante einacessível.

É aqui que começa a grande história reli-giosa de Israel, com as intervenções suces-sivas de Deus: de uma multidão de escravosEle formou o seu Povo – o Povo de Deus – e

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encaminhou-o para a terra que tinha sidoprometida ao seu antepassado Abraão.

Essa caminhada desde o Egipto até à terrade Canaã – a Terra Prometida –, conduzidospor Moisés, constitui a epopeia do Êxodo,libertação do povo hebreu da sua condiçãode escravo, libertação que foi a primeira sal-vação operada por Deus a favor do seu Povo,autêntico símbolo de todas as salvaçõesfuturas.

Esta primeira fase da História do Povo deDeus decorre entre os anos 1800 e 1200 a. C.Nessa fase, Deus ditou aos filhos de Israel,através de Moisés, os Dez Mandamentos – aLei – começando por propor uma Aliança.

Seguiu-se o período do estabelecimento doPovo de Deus em Canaã, o que se verificouentre os anos 1200 e 1000 a. C.

Moisés havia conduzido o Povo de Deusaté à vista dessa Terra Prometida.

Canaã é uma estreita faixa de terramontanhosa que fica entre a costa do

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Mediterrâneo e os confins do deserto, desdeGaza, ao sul, até Hermat, ao norte. Canaãquer dizer “o país da púrpura”, devendo estenome ao produto extraído de um caracolmarinho que havia nas suas praias. Esseproduto era o corante mais célebre domundo antigo, a púrpura, muito difícil deobter, muito raro, e portanto muito caro, detal modo que só os muito ricos o podiamcomprar para tingirem as suas vestes.

Um outro nome dessa terra – Palestina –foi-lhe dado pelos romanos, muito maistarde, a partir do nome dos mais ferozes in-imigos de Israel, os filisteus, designados de“Filishtin”, donde surgiu o nome dePalestina.

Palestina ou Canaã: a Terra Prometidaonde o Povo de Deus foi introduzido pelo su-cessor de Moisés, Josué.

Foi uma terra conquistada após muitaslutas entre o Povo de Deus e os habitantesdessas terras. Começou por cair a cidade

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cananeia de Jericó, a primeira praça-forte daTerra Prometida, cidade-chave para a con-quista de Canaã.

Depois de Jericó, e de cidade em cidade,os hebreus acabaram por se apossar de todoo Canaã.

A fidelidade dos filhos de Israel à Lei con-stitui a condição para obterem a terra queDeus lhes prometera, mas com um severoaviso:

Prestai atenção vós mesmos, para que o vosso cor-ação não se deixe seduzir nem vos desvieis paraservir a outros deuses [...] desapareceríeis rapida-mente da Terra boa que o Senhor vai dar-vos. (Dt11,16-17)

As tribos nómadas hebraicas vão-se fixan-do na terra à medida que vão conquistandoas várias cidades-estado. Vão-sedispersando, fixando-se a tribo de Judá aosul de Jerusalém e as outras todas ao nortedesta cidade. Jerusalém, entretanto,

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mantinha-se ainda por conquistar, en-cravada entre os dois grupos de tribos.

Israel conquista a terra de Canaã, mas semque se altere a sua fidelidade à revelação quelhe havia feito o Senhor, o Deus único, nodeserto. Facto notável! Realmente, quandoum povo nómada, um povo de pastores(como era o caso do povo hebreu) se fixa àterra, se sedentariza, dedicando-se à agricul-tura e à criação de gado, normalmente mudade religião, adoptando, habitualmente, umasérie de divindades locais da agricultura e dafecundidade. Era o que acontecia com ospovos nómadas dessas regiões, como odemonstra a ciência comparativa dasreligiões.

Ora, isso não aconteceu com Israel, em-bora muitas vezes tentado – fortementetentado até – a adoptar os Baal e as Astartes,deuses locais, respectivamente da agriculturae da fecundidade. O povo hebreu nuncacedeu, como um todo, a essas tentações,

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concedendo-lhe o Senhor a força, a unidadee a paz.

À fase do estabelecimento em Canaãseguiu-se a fase da monarquia por quase 500anos.

Por volta do ano 1000 a. C., Israel, conver-tido em nação pela forte pressão do mundoque o rodeia e ameaça a sua existência comotal, correndo o risco de cair sob o jugo dosfilisteus, adopta um governo que a época im-punha como forma de poder agir com de-cisão e de melhor cimentar os débeis laçosque mantinham unidas as várias tribos: amonarquia.

O seu rei mais célebre, David, chefe militarvaloroso, alargou as fronteiras de Israel econquistou Jerusalém, fazendo dela acapital.

David era um homem genial, tão diver-samente dotado que nem sabemos qual dosseus dotes é mais digno de admiração: alémde chefe militar valoroso e verdadeiro

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criador do estado hebreu, era um poeta,compositor e músico de grande mérito.

Mas o reino acabou por entrar em de-gradação após a autêntica idade de ouro queviveu com o filho sucessor de David: o rei Sa-lomão. A monarquia degenerou no correntedespotismo antigo-oriental, observável nosEstados vizinhos. E à medida que o despot-ismo se ia instalando e crescendo, nasciatambém e tornava-se cada vez maior a in-fluência dos profetas.

Os profetas constituíam, no meio do povo,um núcleo de adoradores fiéis do Senhor, ochamado “resto”. Estado e religião não coin-cidem, caso único na História, em contra-posição, por exemplo, ao deus de Babel,Marduk, mera “projecção” do Estado, deusfantasmagórico, criação do Estado, paradizer e fazer o que o Estado quisesse, escravodo Estado, enfim.

Pelo contrário, o Senhor é um “DeusVivo”, criador e não criado do Estado de

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Israel. Pelos seus profetas, que exercem a suaactividade em todo o tempo da realeza, Deusvai continuamente purificando a suaRevelação.

Em 935 a. C., o reino dividia-se em doispequenos Estados: o reino do Norte, ou Is-rael, com a capital em Samaria, e o reino doSul, ou Judá, com a capital em Jerusalém.

O povo não foi fiel aos compromissos como Senhor, mesmo perante os avisos dos vári-os profetas que tentaram, em vão, trazer Is-rael à fidelidade.

Em 721 a. C., o reino do Norte é invadidopelos assírios e muitos dos seus habitantessão deportados para a Assíria, nomeada-mente para a sua capital Nínive (junto deMossul, no actual Iraque).

Por outro lado, instalaram-se colonos as-sírios no lugar dos homens de Israel. Essescolonos adoptaram, mesmo, a religião juda-ica, acabando por formar uma comunidaderival de Jerusalém, a ponto de erguerem um

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templo no monte Garizim. Esses samarit-anos, que se consideram os verdadeiros des-cendentes dos israelitas do reino do Norte,conservam ainda hoje uma notável coesão.Actualmente contam-se ainda cerca de 500samaritanos, vivendo em Nablus e Holon, re-spectivamente na Cisjordânia e Israel. Elescelebram todos os anos a Páscoa no monteGarizim.

Os judeus, do reino do Sul, consideravam-nos bastardos, reinando a inimizade entreeles, inimizade que persistia ainda no tempode Jesus.

Mais pequeno do que Israel, o reino deJudá resistiu durante mais tempo aos invas-ores. Mas chegou a sua vez entre os anos de578 e 581 a. C.: os babilónios, sob o comandode Nabucodonosor II, destroem e devastam asua capital, Jerusalém, arrasam o Templo eem três deportações levam a maior parte dosseus habitantes para Babilónia.

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O povo do Norte, absorvido pela popu-lação estrangeira no país onde estava cativo– a Assíria –, nunca mais voltou a aparecerna História. Todas as investigações feitaspara averiguar o paradeiro das dez tribos queali tinham a sua pátria foram inúteis.

Quanto ao povo do Sul, esta fase do exílio,em que o povo de Judá foi deportado para aBabilónia, acabou por se tornar umaautêntica escola para os judeus que de cam-poneses e criadores de gado na sua terra setornaram comerciantes e banqueiros. Tra-balharam e multiplicaram-se, seguindo oconselho do profeta Jeremias contido nacarta que lhes enviou de Jerusalém:

Construí casas para morardes, plantai pomares ecomei os seus frutos, casai-vos, gerai filhos e filhas,arranjai esposas para os vossos filhos e maridospara as vossas filhas e que eles também gerem fil-hos e filhas. Multiplicai-vos em vez de diminuir.Lutai pelo progresso da cidade para onde vos exilei

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e rezai a Deus por ela, pois o progresso desse lugarserá também o vosso progresso. (Jr 29,5-7)

O reino do Sul – Judá – com a capital emJerusalém, desaparecera como Estado, talcomo os profetas tinham predito desde hámuito. Mas, embora a nação tenha desapare-cido, o Senhor permaneceu como o Deusúnico no meio de outros povos com os seusdeuses, dando unidade e força aos cativosque esperavam a libertação do cativeiroanunciada pelos profetas.

Sobe a um monte alto, mensageira de Sião; levantabem alto a tua voz, mensageira de Jerusalém.Levanta-a, não tenhas medo. Diz às cidades deJudá: «Aqui está o vosso Deus!» Olhai: o SenhorDeus chega com poder, e com o seu braço detém ogoverno. Ele traz consigo o prémio, e os seus tro-féus O precedem. Como um pastor, Ele cuida dorebanho, e com seu braço o reúne; leva os cordeir-inhos ao colo e guia mansamente as ovelhas queamamentam. (Is 40,9-11)

É assim que o termo boa nova (Evangelhoem grego) é dirigido pela primeira vez aos

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cativos de Babilónia, quando se começa adesenhar a sua libertação iminente.

No mesmo capítulo de Isaías é anunciadoaos cativos de Babilónia um novo êxodo, maseste, agora, através do deserto da Síria, acaminho de Jerusalém.

Uma voz grita: «Abri no deserto um caminho parao Senhor; na região da terra seca, aplanai uma es-trada para o nosso Deus. Que todo o vale seja ater-rado, e todo o monte e colina sejam nivelados; queo terreno acidentado se transforme em planície, eas elevações em lugar plano.» (Is 40,3-4)

De facto, a libertação anunciada sucedeuem 539 a. C., quando a Babilónia foi con-quistada pelos persas e os cativos forammandados de volta à Terra Santa pelo seurei, Ciro.

Esta triste experiência do exílio leva opovo a tomar consciência de quanto tinhapecado: até no deserto, junto ao monte Sinai,de onde lhe falava o próprio Deus,esquecendo-se constantemente do Senhor,

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ao ponto de preferir «as cebolas» da es-cravidão no Egipto.

E convence-se de que a salvação só podevir de Deus e a esperança renasce com o re-gresso do exílio.

Após a fase do cativeiro em Babilónia,entre 587 e 539 a. C. – cerca de cinquentaanos –, seguiu-se a fase do post-exílio ou dojudaísmo. São principalmente os exilados doreino do Sul, ou de Judá, os que regressamdo cativeiro, chamando-se, por esse motivo,aos cinco séculos que se seguiram a esse re-gresso, o período do “judaísmo”.

A distância que separa a Babilónia dalongínqua Jerusalém é de quase 1300 quiló-metros. Os hebreus põem-se a caminho echegam a Harã, junto das margens do rioBalic, no ponto em que este desagua no Eu-frates. A partir dali seguem um caminhoidêntico ao que, 1400 anos antes, tinhaseguido Abraão ao dirigir-se para Canaã,passando por Damasco.

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Pouco depois da sua chegada a Jerusalémdeitaram mãos à obra de reconstrução doTemplo, com grande entusiasmo. No ent-anto, essa reconstrução foi-se fazendo comgrande lentidão, dada a necessidade quehavia de granjear o pão de cada dia e de re-construir, também, as casas em ruínas.

Do domínio dos persas o povo hebreu pas-sou, em 330 a. C., ao domínio greco-macedónio, após a vitória de AlexandreMagno sobre Dario III.

Embora a tolerância de Alexandre Magnopermitisse que tudo quanto respeitava aoculto permanecesse incólume, já com um dossucessores de um dos generais de Alexandre,Antíoco IV, Israel experimentou tudo quantoum povo pode sofrer na sua história de maishorrível e humilhante. Nunca, nem com osassírios, nem com os babilónios, havia rece-bido um tão grande golpe como o que lhedesferiu o rei Antíoco IV, o qual, além desaquear e profanar o Templo de Jerusalém,

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no ano 168 a. C., mandou colectores de im-postos que se apoderavam dos gados elevavam cativas as mulheres e as crianças.Ele queria, mesmo, acabar com a fé dosjudeus, proibindo-lhes o culto no Templo,assim como a circuncisão das crianças judi-as, e mandando, até, construir altares paraos ídolos. As Escrituras Sagradas foramdestruídas e estabelecida a pena de mortepara quem não cumprisse as suas proibições.Esta foi, verdadeiramente a primeiraperseguição religiosa da História!

Seguiu-se a ocupação romana: as legiõesromanas cercaram Jerusalém, que ocuparamno ano 63 a. C., fazendo de Judá e daSamaria (o antigo reino do Norte ou Israel)uma província romana. Com este aconteci-mento terminou até aos nossos dias a inde-pendência política de Israel.

Mas – coisa notável! – mais uma vez severifica que a força do povo judeu não residena sua autonomia política. Jerusalém é o

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centro de um povo “disperso” por todo omundo antigo, mas subsistindo como povo.

Ao conjunto dos judeus que vivem fora daPalestina chamou-se “diáspora” e nesse povosempre houve homens simples, profunda-mente religiosos, que reconheciam a própriainsuficiência, pondo toda a sua confiança noSenhor e esperando intensamente a Suavinda salvadora: são os pobres do Senhor e éno meio deles que estará o berço de Jesus,para a salvação de todos os homens.

Anuncio-vos a Boa Notícia, que será uma grandealegria para todo o povo: hoje, na cidade de David,nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, o Sen-hor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis umrecém-nascido, envolto em faixas e deitado numamanjedoura. (Lc 2,10-12)

Esta foi a alegre notícia que no ano 1 danossa era (ou era cristã) o Anjo do Senhordeu aos pastores que guardavam durante anoite aos seus rebanhos, nos campos deBelém.

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Havia nascido o Salvador esperado, oEmanuel, o “Deus Connosco” – Jesus Cristo.

A Boa Notícia consistia nisto: Deus visitouo Seu Povo e cumpriu as promessas feitas aAbraão e à sua descendência.

E fê-lo para além de toda a expectativa:enviou o seu Filho muito amado – Jesus deNazaré, nascido hebreu, em Belém, de umafilha de Israel, no tempo do rei Herodes e dogrande imperador César Augusto, carpin-teiro de profissão – ele é o Filho eterno deDeus feito homem: «o Verbo fez-Se carne ehabitou entre nós». ( Jo 1,4)

Estamos no limiar da História da Igreja.

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II Parte

PROTO-HISTÓRIA DAIGREJA

O FILHO – VOCAÇÃO

Jesus Cristo começou por formar umpovo, tal como o Pai havia feito no AntigoTestamento ao formar o povo de Israel.

A princípio um pequeno grupo, umpequenino rebanho, como lhe chama Jesus.

«Não tenhas medo, pequeno rebanho,porque o vosso Pai tem prazer em dar-vos oReino.» (Lc 12,32)

Este reino é o Reino de Deus e a sua vindaé insistentemente anunciada por Jesus deuma forma peremptória: «Convertei-vos

porque o Reino de Deus está próximo.» (Mt3,2)

Tendo como pano de fundo a esperança deIsrael no Reino de Deus, já anunciado pelosprofetas, Jesus proclama que o tempo jáhavia atingido o seu termo, que o Reino jáestava aí, presente no meio dos Seus ou-vintes. Porém, não um reino político, não umreino com um rei que trouxesse a restaur-ação política de Israel.

«Nem se poderá dizer: “Está aqui” ou“Está ali”, porque o Reino de Deus está nomeio de vós.» (Lc 17,21)

E Jesus traz a alegre notícia – a Boa Nova.Deus tinha vindo oferecer-lhes o Reino echamava-os a cooperarem com Ele. Mas, aomesmo tempo, Jesus pede--lhes que mudemde vida, isto é, pede-lhes a conversão, numadecisão sem quaisquer reservas por Deus eem Deus, pelos outros.

Neste decidir-se, em Deus, pelos outrosestá o mandamento do amor a Deus e ao

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próximo. Há um vínculo íntimo e indis-solúvel que une o amor a Deus e o amor aopróximo, que, caso não se verifique, é agrande mentira de que falava João Evan-gelista. (1Jo 2,3-5)

No âmago de um sermão que Jesus pregounuma das montanhas da Galileia, e que con-stitui como que um discurso inaugural danova Lei do Reino, Ele aponta aquilo quepara Si contava acima de tudo. Esse sermão éo Sermão da Montanha e preenche trêscapítulos do Evangelho de São Mateus: o 5, o6 e o 7.

Em primeiro lugar buscai o Reino de Deus e a suajustiça, e Deus vos dará, em acréscimo, todas essascoisas. Portanto, não vos preocupeis com o dia deamanhã, pois o dia de amanhã terá as suas preocu-pações. Basta a cada dia a própria dificuldade. (Mt6,33-34)

A medida da nossa decisão “por Deus” é-nos indicada por Jesus: tornar--nos próxi-mos dos outros, completamente disponíveis

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e com total renúncia, carregando sobre nósos problemas do homem concreto, daquelecom quem estamos em contacto.

O amor ao próximo deve vencer todas asbarreiras erguidas pelos homens: a raça, acor da pele, a classe a que pertence. E, ven-cendo todos esses obstáculos, começa umnovo tipo de relação.

Mas trata-se de um amor que se faz “próx-imo de todos”, sem excluir ninguém:

«Amai os vossos inimigos e rezai poraqueles que vos perseguem» (Mt 5,44), poiso Senhor faz com que a chuva caia sobre osjustos e os pecadores.

Viver para os outros é viver já em Deus, noQual está a nascente de um amor semlimites.

E a nossa reconciliação com os outros con-stitui uma condição para esta vida.

Portanto, se fores até ao altar para levares a tuaoferta, e aí te lembrares de que o teu irmão tem al-guma coisa contra ti, deixa a oferta aí diante do

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altar e vai primeiro fazer as pazes com o teu irmão;depois, volta para apresentar a oferta. (Mt 5,23-24)

Jesus, ao anunciar o Reino, põe-nos per-ante uma escolha, por vezes muito difícil:

Se alguém quer seguir-Me, renuncie a si mesmo,tome cada dia a sua cruz e siga-Me. Pois, quemquiser salvar a vida, vai perdê-la; mas, quem perdea vida por minha causa, salvá-la-á. (Lc 9,23-24)

Tal escolha consiste no compromisso pelapalavra e pela proposta de Jesus – vivercomo Ele, não pondo qualquer reserva naobediência à vontade de Deus.

Tal escolha consiste em assumir todo opeso, por vezes insuportável, das situaçõesda sua vida de todos os dias; não procurarpretextos para alijar sobre os outros a cargada própria responsabilidade; não subordinaro bem comum à sua utilidade pessoal; nãopreferir a vingança ao perdão, não preferir asdesavenças à reconciliação.

Em suma, tal escolha consiste em tomar asua cruz aceitando as provações e os

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sofrimentos, enfrentando tais provas com acoragem de fé em Deus: uma cruz feita emsérie e não uma cruz por medida, que seriaocasião de vaidade e vanglória. Isto é, umacruz como a de Jesus, que não inventou nemescolheu a sua, tomando aquela que todos oshomens Lhe puseram sobre os ombros.2

“Fazer-se próximo” e “tomar a cruz” são ossinais essenciais de uma decisão que leva àcomunhão de vida: uma comunhão entre oshomens que faz deles iguais e tambémirmãos, filhos daquele Deus que, em Cristo,se fez seu Pai.

E mais ainda: eles descobrem, agora, queo Reino já está ali, que amar os outros comoa si mesmos já não basta. É necessário umamor mais radical e generoso, pronto a daraté a vida pelos outros, tal como Jesus, quenos dá um mandamento novo: “que nosamemos uns aos outros como Ele nos amou”.E é precisamente por esse amor uns aos

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outros que todos saberão que somos discípu-los de Jesus.

São numerosos os sinais que nos indicamque Jesus tinha em mente a formação de umpovo. O sinal mais claro de que Jesuspensava numa comunidade, num povo, estána sua preocupação em formar discípulos.

E Jesus é particularmente exigente com osseus discípulos. Por exemplo:

Enquanto iam a caminho [na subida para Jerus-além], alguém disse a Jesus: «Seguir--Te-ei paraonde quer que fores.» Mas Jesus respondeu-lhe:«As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos;mas o Filho do Homem não tem onde repousar acabeça.» (Lc 9,51-58)

Jesus disse a outro: «Segue-Me.» Ele respondeu:«Deixa-me primeiro ir sepultar meu pai.» Jesus re-spondeu: «Deixa que os mortos sepultem os seuspróprios mortos; mas tu, vai anunciar o Reino deDeus.» (Lc 9,59-60)

Outro ainda disse-Lhe: «Seguir-Te-ei, Senhor, masdeixa que primeiro vá despedir-me da gente da

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minha casa.» Mas Jesus respondeu-lhe: «Quempõe a mão no arado e olha para trás, não serve parao Reino de Deus.» (Lc 9,61-62)

Jesus fundou, assim, uma Igreja – o novoPovo de Deus – que foi consti-tuída sob aforma de uma comunidade visível de sal-vação, à qual os homens se incorporam peloBaptismo.

O pequeno rebanho inicial foi sendo in-struído nos segredos do Reino de Deus. Je-sus chamou os primeiros discípulos aquandodo início do seu ministério na Galileia, emCafarnaúm, cidade situada à beira-mar, ondecomeçou a pregar: «Convertei-vos, porque oReino do Céu está próximo.» (Mt 4,17)

Ao caminhar ao longo do mar da GalileiaJesus depara com os dois irmãos pescadores,Simão e André, encontrando-os na altura delançarem as redes ao mar.

Dos numerosos discípulos que O seguiam,Jesus escolheu “doze” para os enviar (envia-dos, ou seja, apóstolos) como arautos de um

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grande acontecimento: a vinda do Reino deDeus e da vontade do Senhor.

A esses doze – os Doze Apóstolos – dá in-struções especiais: ensina-os a baptizar, dá-lhes o poder de expulsar espíritos impuros ede curar todas as doenças e males.

A escolha dos Doze Apóstolos é feita comuma finalidade simbólica: tal como o Povode Deus era constituído por doze tribos, des-cendendo dos doze filhos de Jacob (Israel),Ele forma o novo Povo de Deus com dozehomens.

Além de Simão e de André, seu irmão,chamou Tiago e João, filhos de Zebedeu –estes quatro pescadores –, mas tambémFilipe, Bartolomeu, Mateus, o publicano,Tomé, Tiago, filho de Alfeu, Tadeu, Simão, ozelote, e Judas Iscariotes, que haveria de Otrair.

Enquanto os outros discípulos O seguiamepisodicamente ou permaneciam em suas ca-sas, continuando as suas ocupações

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habituais, os Doze deixaram casa, família,ocupações e ficaram com Jesus durante todoo tempo da sua vida.

Entre esses Apóstolos há um cuja posiçãoé a de maior relevo. Trata-se de Simão, opescador, filho de João (Barjona), ocupandosempre o primeiro lugar em todas as listas deApóstolos assinalados, tanto nos Evangelhos,como nos Actos dos Apóstolos.

Jesus dá-lhe um segundo nome: Pedro.Tal nome significa, simbolicamente, rocha,rochedo. E confia-lhe uma missão especial:será ele a dirigir “o pequenino rebanho”, istoé, a Igreja, depois da morte de Jesus.

Jesus chegou à região de Cesareia de Filipe e per-guntou aos seus discípulos: «Quem dizem os ho-mens que é o Filho do Homem?» Eles respon-deram: «Alguns dizem que é João Baptista; outros,que é Elias; outros ainda, que é Jeremias ou algumdos profetas.» Então Jesus perguntou-lhes: «E vós,quem dizeis que Eu sou?» Simão respondeu: «Tués o Messias, o Filho do Deus vivo.» Jesus disse:«És feliz Simão, filho de Jonas, porque não foi um

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ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai queestá no Céu. Por isso Eu te digo: tu és Pedro, esobre esta pedra construirei a minha Igreja, e opoder da morte nunca poderá vencê-la. Dar-te-eias chaves do Reino do Céu, e o que ligares na Terraserá ligado no Céu, e o que desligares na Terra serádesligado no Céu.» (Mt 16,13-19)

Esta eleição de Pedro é confirmada por Je-sus mais tarde, após a Sua morte e ressur-reição, nas margens do lago de Tiberíades,depois de ter suscitado uma pesca mil-agrosamente abundante a um grupo dos seusdiscípulos (Simão Pedro, Tomé Natanael, Ti-ago e João, filhos de Zebedeu, e mais outrosdois) que passaram a noite a pescar mas semconseguirem apanhar nada. Era a terceiravez que Jesus aparecia aos seus discípulosdepois de ter ressuscitado.

Depois de comerem, Jesus perguntou a SimãoPedro: «Simão, filho de João, amas--Me mais doque estes?» Pedro respondeu: «Sim, Senhor, Tusabes que Te amo.» Jesus disse: «Cuida dos meuscordeiros.» Jesus perguntou de novo a Pedro:

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«Simão, filho de João, tu amas-Me?» Pedro re-spondeu: «Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo.» Je-sus disse: «Toma conta das minhas ovelhas.» Pelaterceira vez Jesus perguntou a Pedro: «Simão, filhode João, tu amas-Me?» Então Pedro ficou triste,porque Jesus perguntou três vezes se ele O amava.Disse a Jesus: «Senhor, Tu conheces tudo e sabesque Te amo.» Jesus disse: «Cuida das minhas ovel-has.» (Jo 21, 15-17)

A tradição católica viu neste encargo depastorear todo o rebanho de Cristo (cordeir-os e ovelhas) o cumprimento da promessa doprimado.

Muito antes, já no final da Última Ceia, Je-sus previne Pedro da dura prova a que seriasubmetido.

«Simão, Simão! Olha que Satanás pediu autoriza-ção para vos joeirar como trigo. Eu, porém, rezeipor ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, quandotiveres voltado para Mim, fortalece os teusirmãos.» Mas Simão disse: «Senhor, contigo estoupronto a ir até mesmo para a prisão e para amorte!» Jesus, porém, respondeu: «Pedro, Eu te

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digo que hoje, antes que o galo cante, três vezesseguidas negarás conhecer-Me.» (Lc 22,31-34)

E viu-se, de facto, como Pedro, no pátio dacasa do sumo-sacerdote, após a prisão de Je-sus, O negou três vezes até o galo cantar.Quando ouviu o galo cantar, voltou-se e en-carou com o Senhor, cujo olhar lhe fez re-cordar as suas palavras na Última Ceia.«Então Pedro saiu para fora e chorou amar-gamente.» (Lc 22,62) Pedro chorou simples-mente, como uma criança envergonhada.3Verificava-se uma autêntica conversão dePedro, predita pelo Senhor, pondo mais umavez em destaque a pessoa do Apóstolo, cujafé foi decisiva na formação da comunidadeprimitiva: «E tu, quando tiveres voltado paraMim, fortalece os teus irmãos.» (Lc 22,32)

A vida de Jesus entre os homens culminoucom a sua Paixão e Morte, no ano 30 da eracristã.

Ele mesmo Se apresentou como o Cristo,isto é, o Messias já anunciado pelos profetas

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e que o Povo de Israel esperava ansio-samente como enviado de Deus para realizara salvação.

Mas o Povo escolhido repudia o Salvador,pois o esperava um chefe terreno que o liber-tasse do jugo dos opressores romanos que naépoca ocupavam a Palestina. Pensavam naconcepção então dominante, político-admin-istrativa, que a salvação trazida pelo Messiasconsistiria na restauração do Reino de Israelem todo o seu esplendor.

Ora, Jesus Cristo não foi reconhecidocomo tal e, repudiado e preso, levado àpresença de Pôncio Pilatos, Ele mesmo de-clarou ao governador romano: «O meu reinonão é deste mundo. Se o meu reino fossedeste mundo, os meus guardas lutariam paraque Eu não fosse entregue às autoridadesdos judeus.» (Jo 18,36)

Após o atabalhoado julgamento a que Osujeitaram, foi condenado a morrer na cruz.A prova decisiva da verdade da doutrina que

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pregou durante os três anos da sua vidapública está no facto de ter ressuscitado aoterceiro dia, como já havia anunciado antesdos acontecimentos que conduziram à suamorte.

Eis que estamos a subir para Jerusalém, e o Filhodo Homem vai ser entregue aos sumos-sacerdotese aos doutores da Lei. Eles condená-l’O-ão à morte,e entregá-l’O--ão aos pagãos para zombarem d’Ele,flagelá-l’O e crucificá-l’O. E no terceiro dia Ele res-suscitará. (Mt 20,18-19)

A Ressurreição de Cristo é o dogma cent-ral do Cristianismo apresentando-se osApóstolos, a partir de então, como testemun-has de Cristo Ressuscitado.

Estavam reunidos todos os elementos paracomeçar uma nova história: a História daIgreja.

Essa História começou a desenrolar-senum vasto Império unificado em torno detoda a bacia do Mediterrâneo, em que se dis-frutava de uma paz que permitia a livre

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circulação de pessoas, mercadorias e doutri-nas: o Império Romano.

Graças à Pax Romana, pessoas e mer-cadorias circulavam livremente de um ex-tremo ao outro do Império, por terra ou pelomar. Os caminhos das pessoas e das mer-cadorias eram também os caminhos dasdoutrinas e do Evangelho.

O Império Romano foi uma autêntica“preparação evangélica”, permitindo a rápidadifusão do Evangelho através da Via Ápia,que levava de Roma para o sul, até Brindisi;da Via Aurélia, que seguia de Roma para onorte, até Génova; da Via Domícia, levandode Itália a Espanha; e pela Via Inácia, queconduzia até Bizâncio. Mas também a viamarítima foi utilizada, navegando-se deItália para o Egipto, de Cades até ao porto deÓstia (Roma), da Gália até Roma.

Estavam lançados os dados, a história iacomeçar...

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Vós sois testemunhas disso. Agora vou enviar-vosAquele que meu Pai prometeu. Por isso, esperai nacidade, até que sejais revestidos da força do alto.(Lc 24,48-49)

Jesus Cristo não fundou apenas uma reli-gião – o Cristianismo. Ele fundou, também,uma Igreja, o novo Povo de Deus, constituídasob a forma de uma comunidade visível desalvação, na qual os homens se incorporampelo Baptismo.

Na sua última aparição aos Onze, após terressuscitado, Jesus deu-lhes esta ordem:«Ide pelo mundo inteiro e anunciai a BoaNotícia a toda a Humanidade. Quem acredit-ar e for baptizado, será salvo. Quem nãoacreditar, será condenado.» (Mc 16,15-16)

São Mateus, no seu Evangelho, escrevepraticamente o mesmo, embora de outromodo:

Toda a autoridade Me foi dada no Céu e sobre aTerra. Portanto, ide e fazei com que todos os povosse tornem meus discípulos, baptizando-os em

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nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, eensinando-os a observar tudo o que vos ordenei.Eis que Eu estarei convosco todos os dias, até aofim do mundo. (Mt 28,18-20)

Já na Última Ceia, no discurso de despe-dida (Jo 13,14-15), por cinco vezes anunciaaos Onze (entretanto Judas Iscariotes saírapara cumprir a sua traição) a vinda doEspírito Santo, o Espírito da verdade, quelhes ensinaria tudo o que ouviram a Jesus, oParáclito (Consolador), que dará ao mundoprovas irrefutáveis de uma culpa, pois nãohaviam acreditado em Jesus, de uma inocên-cia, pois Ele iria para o Pai e já não O veriam,e de um julgamento, pois o príncipe destemundo ficara condenado.

Pode dizer-se que a Igreja, após umagestação de três anos, nasceu no dia dePentecostes, começando, desde então, pro-priamente a sua História.

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III Parte

A História da Igreja

O ESPÍRITO SANTO –

A MISSÃOPrimeiro Milénio

Do Pentecostes ao Cisma do

Oriente

O Nascimento daIgreja

Fundada pelo próprio Senhor, a Igreja,novo Povo de Deus, edificada sobre a rochaque era Simão Pedro, foi constituída sob aforma de uma comunidade visível de sal-vação à volta de doze homens – os Apóstolos– instruídos de uma forma especial ao longode três anos, ensinados a baptizar e tendo-lhes sido conferido o poder de expulsar es-píritos impuros e de curar todas as doenças emales. Essa Igreja, na última aparição doSenhor Ressuscitado, recebe a ordem de irpelo mundo inteiro proclamando o Evan-gelho a toda a criatura, fazendo discípulosem todos os povos, incorporando-os no seuseio pelo Baptismo em nome do Pai, do Filhoe do Espírito Santo, com a promessa da suapresença até ao fim dos tempos.

Com tais ordens e promessa, a Igreja nas-ceu para a missão no ano 30 da nossa era,em Jerusalém, no dia em que se celebrava,cinquenta dias depois da Páscoa, a festa doPentecostes. Nessa festa os hebreus

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celebravam a aliança entre Deus e o seu Povono Sinai.

Após a Ascensão de Jesus, no monte dasOliveiras, situado frente a Jerusalém, osApóstolos dirigiram-se para a casa onde ha-bitualmente se encontravam. Aí, juntamentecom Maria, mãe de Jesus, e com os irmãosde Jesus, entregaram--se assiduamente àoração.

Ao fim de alguns dias, numa ocasião emque estavam reunidos cerca de cento e vintediscípulos, Pedro fez uma proposta: que deentre os discípulos de Jesus, que O haviamacompanhado desde o dia do Baptismo doSenhor até ao da sua Ascensão, se escolhesseum deles para se tornar, com os Onze,testemunha da Ressurreição.

E assim, para ocupar o lugar deixado vagopor Judas Iscariotes, foi escolhido Matias.

No dia de Pentecostes, Jesus cumpriu asua promessa de enviar o Espírito Santo.

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Quando chegou o dia de Pentecostes, todos eles es-tavam reunidos no mesmo lugar. De repente, veiodo céu um barulho como o sopro de um forte ven-daval, e encheu a casa onde eles se encontravam.Apareceram então uma espécie de línguas de fogo,que se espalharam e foram poisar sobre cada umdeles. Todos ficaram repletos do Espírito Santo, ecomeçaram a falar em outras línguas, conforme oEspírito lhes concedia que falassem. Acontece queem Jerusalém moravam judeus devotos de todas asnações do mundo. Quando ouviram o barulho, to-dos se reuniram e ficaram confusos, pois cada umouvia os discípulos a falar na sua própria língua.(Act 2,1-6)

O milagre das línguas constitui um dosfrutos do Espírito Santo derramado sobre osApóstolos de Jesus no dia de Pentecostes.Nesse dia inverteu-se aquilo que aconteceuna Torre de Babel: a confusão das línguas,simbolizando a situação de alienação e inim-izade recíprocas. Em Babel a comunidadedos homens tentava criar um poder semDeus, mas onde não há Deus o homem sóproduz divisão. Assim, com o Pentecostes, o

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Espírito de Deus reconstruiu a unidadequebrada em Babel.

Então, no meio da estupefacção geral poraquilo a que assistiam, Pedro, no meio dosdoze Apóstolos, levantou-se e dirigiu um dis-curso breve e simples, mas eloquente e arre-batador e cheio de autoridade de alguém queestá seguro daquilo que diz.

Falou-lhes do Jesus que eles, judeus,haviam crucificado e morto, mas que haviaressuscitado. Pedro terminou o seu discursode uma forma incisiva: «Que todo o povo deIsrael fique a saber com certeza que Deustornou Senhor e Cristo aquele Jesus que vóscrucificastes.» (Act 2,36)

«Irmãos, que devemos fazer?» (Act 2,37)perguntavam os ouvintes, emocionados atéao fundo do coração com tudo aquilo quetinham ouvido, acreditado pelos fenómenosque antecederam o discurso de Pedro, o factode escutarem os Apóstolos no seu próprioidioma – e eram dezasseis os idiomas dos

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presentes – e a autoridade que Pedro puseranas suas palavras.

«Arrependei-vos, e cada um de vós sejabaptizado [...]» (Act 2,38)– respondeu-lhesPedro. Receberam o Baptismo e o dom doEspírito cerca de três mil pessoas nesse dia.

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Gesta de Pedro

Simão Pedro Barjona, o Apóstolo que ocu-pa o primeiro lugar em todas as listas deApóstolos assinaladas tanto nos evangelhoscomo nos Actos dos Apóstolos...

Simão, a quem Jesus dera um segundonome – Pedro –, nome que significa simbol-icamente pedra, rocha, rochedo...

Simão Pedro, a quem é confiada directa-mente por Jesus uma missão especial de dir-ecção do “pequeno rebanho”, isto é, a Igreja,após a Sua morte: «Tu és Pedro e sobre estapedra edificarei a minha Igreja...» (Mt 16,18)

Simão Pedro, cuja eleição de chefe daIgreja foi confirmada, mais tarde, por Jesus,após a Sua morte e ressurreição, nas mar-gens do lago de Tiberíades: «Cuida dos meuscordeiros [...], toma conta das minhas ovel-has [...]» (Jo 21,15-16)

Simão Pedro, o chefe incontestado, quetomou a iniciativa, numa assembleia decento e vinte irmãos, de propor a eleição deuma “testemunha da Ressurreição de Jesus”entre os homens que acompanharam osApóstolos durante todo o tempo em que oSenhor viveu entre eles, desde o SeuBaptismo até à Sua Ascensão. Após terem or-ado para essa finalidade, de entre os designa-dos para esse efeito – José Barsabas, o Justo,e Matias – foi escolhido Matias depois de tir-arem à sorte... (Act 1,15-26)

Simão Pedro, o porta voz dos DozeApóstolos depois da descida do EspíritoSanto sobre eles na casa onde O esperavam,no dia do Pentecostes, dirigindo-se aos“judeus piedosos provenientes de todas asnações que há debaixo do céu...” e que se en-contravam em Jerusalém por altura das fest-as da Páscoa e Pentecostes, num discurso – oseu primeiro discurso como chefe da Igrejanascente – que levou às primeiras

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conversões: cerca de três mil pessoas... (Act2,37-41)

Simão Pedro, que certamente dirigia, àcabeça dos Apóstolos, a Igreja de Jerusalém,uma comunidade modelo em que os irmãos«eram perseverantes em ouvir o ensina-mento dos Apóstolos, na comunhão fraterna,no partir do pão e nas orações». (Act 2,42)

Simão Pedro – simplesmente Pedro, desdeentão – iniciou, após o Pentecostes, umagesta de que se ocupam praticamente met-ade dos capítulos dos Actos dos Apóstolos (aoutra metade constitui a gesta de Paulo).

Essa gesta retoma o seu curso alguns diasdepois dos acontecimentos do Pentecostes,em que Pedro e João subiram ao Templo,tendo aí Pedro realizado o seu primeiro mil-agre ao curar o coxo da Porta Formosa, coxode nascença que ali era colocado todos os di-as a pedir esmola.

O povo, que conhecia o coxo desdesempre, assombrado quando o viu caminhar,

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louvou a Deus e foi-se juntando em torno dePedro e João. Então, Pedro tomou a palavra:«Israelitas, porque vos admirais com o queaconteceu?» (Act 3,12) E continuou falandodo julgamento iníquo a que haviam sub-metido Jesus, tendo-O eles negado quando jáPilatos estava resolvido a libertá-l’O,exigindo-lhe a libertação de um assassino noseu lugar. «Meus irmãos, sei que agistes porignorância» (Act 3,17), de maneira que«arrependei-vos e convertei--vos para que osvossos pecados sejam perdoados». (Act 3,19)

E muitos dos que ouviam a Palavra ab-raçaram a fé e mais dois mil convertidos sejuntaram aos crentes. (Act 3,1-26; 4,4)

Estava ainda Pedro a falar ao povo sob opórtico de Salomão, no Templo, quando sur-giram os sacerdotes, o comandante do Tem-plo e os saduceus, que, irritados por veremos Apóstolos a ensinar o povo a testemunhara Ressurreição de Jesus, os prenderam,fazendo-os comparecer, no dia seguinte,

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perante uma assembleia presidida pelosumo-sacerdote Anás e ainda Caifás.

Interrogaram-nos, querendo saber comque poder ou em nome de quem haviam feitoo anúncio da Ressurreição de Jesus, coisaque os saduceus não admitiam por nãoacreditarem na ressurreição dos mortos.

Então, cheio do Espírito Santo, Pedroadianta-se e volta a tomar a palavra, de-fendendo com desassombro a sua causa per-ante o sumo-sacerdote e o Sinédrio:

É pelo Nome de Jesus Cristo, de Nazaré – Aqueleque crucificastes e que Deus ressuscitou dos mor-tos –, é pelo seu Nome, e por nenhum outro, queeste homem [o aleijado da Porta Formosa] estácurado diante de vós. Jesus é a pedra que vós, con-strutores, rejeitastes, e que se tornou a pedra angu-lar. Não existe salvação em nenhum outro. (Act4,10-12)

Perante tal desassombro, e reconhecendoa realidade do milagre, os membros doSinédrio não tiveram meio de os castigar, por

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receio do povo, que não cessava de glorificara Deus pelo que tinha acontecido. E resolv-eram, então, libertar os Apóstolos, emboraproibindo-os formalmente de falar ou ensin-ar em nome de Jesus.

Mas os Apóstolos, não receando asameaças do Sinédrio, continuaram a pregarCristo no Templo, junto ao Pórtico de Sa-lomão. Pregavam e faziam muitos milagres,pelo que a multidão que os rodeava era cadavez maior, vindo mesmo gente das cidadespróximas de Jerusalém transportandodoentes. Os doentes eram trazidos para asruas, colocados em enxergas e catres, a fimde que à passagem de Pedro, ao menos a suasombra cobrisse alguns deles e os curasse.

Atraídos pela agitação gerada por estesacontecimentos, surgiram o sumo--sacerdotee os saduceus, que voltaram a prender osApóstolos.

Mas durante a noite o Anjo do Senhor ab-riu as portas da prisão e conduziu os

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Apóstolos para o exterior, dizendo-lhes paravoltarem ao Templo para continuarem apregar ao povo a Palavra da Vida.

De manhã cedo, eis que eles estão nova-mente no Templo a anunciar a salvação deJesus Cristo.

Reunido o Sinédrio foram mandados bus-car os Apóstolos à cadeia. Para espanto detodos encontraram a cadeia fechada comtoda a segurança, até com guardas de sen-tinela à porta, mas dos presos não havia omínimo sinal. Perplexos, o sumo-sacerdote eo comandante do Templo não percebiam osucedido, para o qual não viam qualquer ex-plicação, e mais perplexos ficaram aindaquando alguém veio comunicar-lhes que osApóstolos estavam naquele momento noTemplo a ensinar o povo.

O comandante do Templo dirigiu-se ime-diatamente para lá com os guardas, trazendoos Apóstolos à presença do Sinédrio, sem os

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forçarem, pois receavam ser apedrejadospela multidão.

Em resposta às considerações do sumo-sa-cerdote pela sua desobediência ao continuar-em a espalhar a sua doutrina, recusaram-seresolutamente a deixar de pregar porque,dizia Pedro, «é preciso obedecer antes aDeus do que aos homens». (Act 5,29)

Esta atitude dos Apóstolos aumentou-lhesa irritação, pensando, então, seriamente emmatá-los. Interveio, entretanto, um homemilustre, um fariseu doutor da Lei, Gamaliel,respeitado por todo o povo, e que advertiu osmembros do Sinédrio:

Não vos preocupeis com estes homens [...] se o seuprojecto ou actividade é de origem humana, serádestruído; mas, se vem de Deus, não conseguireisaniquilá-los. Cuidado, não corrais o risco de vosmeterdes contra Deus! (Act 5,38-39)

Chamados à razão com estas palavras deGamaliel, os membros do Sinédrio man-daram açoitar os Apóstolos, voltaram a

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proibi-los de falar em nome de Jesus elibertaram-nos.

E os Apóstolos saíram do Sinédrio cheiosde alegria por terem sido dignos de sofrer ul-trajes por causa do Nome do Senhor.

«E cada dia, no Templo e pelas casas, nãocessavam de anunciar a Boa Notícia de JesusMessias.» (Act 5,42)

Entretanto, iam sendo evangelizados, dur-ante os primeiros anos, os judeus de culturaaramaica, aqueles que falavam a língua deJesus – o aramaico –, aliás a língua maisfalada no Médio Oriente naquela época.Esses primeiros convertidos continuavam acomportar-se como qualquer judeu piedoso:rezavam no Templo, observavam os precei-tos alimentares e praticavam a circuncisão.Constituíam mais uma seita no meio das queexistiam até aí, isto é, os fariseus, os sa-duceus e os zelotes.

O que os distinguia desses era, principal-mente, o baptismo em nome de Jesus e eram

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conhecidos como os Nazarenos, isto é,seguidores de Jesus de Na-zaré. Eles con-stituíam, em Jerusalém, uma comunidademodelo:

Eram perseverantes em ouvir o ensinamento dosApóstolos, na comunhão fraterna, no partir do pãoe nas orações. Em todos eles havia temor, porcausa dos numerosos prodígios e sinais que osApóstolos realizavam. Todos os que abraçaram a féeram unidos e colocavam em comum todas ascoisas; vendiam as suas propriedades e os seusbens e repartiam o dinheiro entre todos, conformea necessidade de cada um. Diariamente, todos jun-tos frequentavam o Templo e nas casas partiam opão, tomando alimento com alegria e simplicidadede coração. Louvavam a Deus e eram estimadospor todo o povo. E todos os dias o Senhor acres-centava à comunidade outras pessoas que iamaceitando a salvação. (Act 2,42-47)

Até aí, como vimos, a pregação era diri-gida, em aramaico, aos judeus dessa culturae a Igreja não cessava de crescer.

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Pouco tempo depois começam também aser evangelizados os helenistas, os judeus decultura grega. Mas judeus, ainda...

Começou, com esta abertura aos judeushelenistas, a conversão, primeiro dacomunidade helenista de Jerusalém, e de-pois, a partir do ano 36, a dos judeus de ter-ras mais distantes, mesmo fora da Palestina,mercê das perseguições que, entretanto,começavam a sofrer os “nazarenos”.

Os helenistas, em Jerusalém, que sequeixavam de ser esquecidas as suas viúvasno serviço das mesas, isto é, no serviço dacaridade, preteridas em relação às viúvas doshebreus, recorreram aos Doze, fazendo subiraté eles as suas queixas.

Resolveram, então, os Apóstolos confiar atarefa do serviço às mesas a sete homens deboa reputação, escolhidos pela assembleiados discípulos, destinados a esse serviço oudiaconia (do grego diakonia, ou seja, ser-viço), a fim de que eles – os Doze – se

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dedicassem com assiduidade à oração e aoserviço da palavra.

Foram, assim, depois de escolhidos, desig-nados sete diáconos. Os Actos dos Apóstolosregistaram os nomes dos sete: Estêvão, chefedos sete, Filipe, Prócuro, Nicanor, Timão,Parmenas e Nicolau, prosélito de Antioquia(isto é, um não judeu que observava a Leijudaica e era proveniente de Antioquia).

Em breve, Estêvão, «cheio de graça e depoder, fazia grandes prodígios e sinais» (Act6,8), provoca a inveja e a ira de alguns mem-bros da sinagoga, acabando por ser preso efalsamente acusado de blasfemo. Arrastadopara fora da cidade, é aí apedrejado até àmorte.

«Naquele dia, desencadeou-se uma grandeperseguição contra a Igreja de Jerusalém.»(Act 8,1) Todos os discípulos se dispersarampela Judeia e Samaria, com excepção dosDoze.

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O grande perseguidor era Saulo, que, indode casa em casa, prendia os discípulos de Je-sus e entregava-os à prisão.

Embora dispersos pela perseguição, osdiscípulos tornam-se autênticos missionáriosentre os judeus dos vários lugares aondechegam, anunciando a Boa Nova e realiz-ando milagres, conseguindo a conversão demultidões.

Uma das regiões evangelizadas foi precis-amente a Samaria e o protagonista dessaevangelização foi um dos fugitivos: o diáconoFilipe, um dos sete.

A Samaria, que havia hostilizado Jesus,não O recebendo porque Ele ia a caminho deJerusalém, era palco de um cisma religiosoque vinha dos tempos do regresso do exíliona Babilónia, altura em que se acentuaramas rivalidades entre samaritanos e judeus eque já haviam começado nos inícios da mon-arquia, com a divisão em dois reinos: o do

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Norte, Israel, correspondendo à Samaria, e odo Sul, Judá, com capital em Jerusalém.

A Samaria constitui a segunda etapa daexpansão do Evangelho, após uma primeiraetapa de evangelização de Jerusalém.

Nestas duas primeiras etapas, a evangeliz-ação era dirigida apenas aos judeus, como vi-mos, embora a evangelização da Samariaconstituísse já o esboço de uma abertura dapregação aos judeus segregados do antigoreino do Norte – Israel –, os Samaritanos,deportados para a Assíria no tempo do reiOseias, levados por Sargão, rei assírio, em721 a . C. «porque os israelitas pecaram con-tra o Senhor, seu Deus, que os havia tiradoda terra do Egipto». (2Rs 17,7) O rei assíriohavia mandado vir gente de várias partes doseu Império – da Babilónia, de Creta, deHarmat, etc. – estabelecendo essa gente nascidades da Samaria no lugar dos filhos de Is-rael. Os estrangeiros foram-se misturandocom os israelitas que tinham permanecido

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em Samaria, acabando por se gerar uma mis-tura social que, ao mesmo tempo que ad-orava o Senhor, Deus de Israel, continuava asacrificar aos deuses gentios: adoravam oSenhor mas honravam, ao mesmo tempo, osseus ídolos, costumes que mantiveram até àgeração do tempo de Jesus. Esses Samarit-anos, oriundos da mistura de judeus e gen-tios, nunca mais foram bem aceites pelosjudeus.

Foram esses mesmos Samaritanos que, aoouvirem o diácono Filipe a pregar Cristo e aovê-lo realizar milagres, aderiram em mul-tidão a essa pregação, recebendo o Baptismo.

A Igreja de Jerusalém, ao tomar conheci-mento do que se passava em Samaria, envioupara lá Pedro e João.

Ora, os Samaritanos haviam apenas rece-bido o Baptismo em nome do Senhor Jesus,não tendo ainda descido sobre nenhum deleso Espírito Santo. Então, Pedro e João, depoisde orarem pelos Samaritanos, foram-lhes

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impondo as mãos a fim de receberem oEspírito Santo.

Vivia em Samaria um homem que prat-icava magia, assombrando o povo com assuas habilidades mágicas. Chamava-seSimão e ele mesmo também acreditou napregação do diácono Filipe, tendo recebido oBaptismo. Vivia espantado com os milagres eprodígios que Filipe fazia.

E mais pasmado ficou quando, após achegada de Pedro e João à Samaria, os viaconferirem o Espírito Santo pela imposiçãodas mãos. E o convertido Simão propõe aPedro comprar-lhe o seu poder apostólico dedar o Espírito Santo pela imposição dasmãos. Porém, Pedro repreende-oveementemente, concitando-o ao arrependi-mento e a pedir a Deus que lhe perdoasse. Osamaritano Simão arrependeu-se, pedindomesmo a intercessão do Apóstolo junto doSenhor, de modo a não perder a salvação.Deste episódio, relatado nos Actos dos

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Apóstolos, nasceu um novo termo – “simo-nia” – que passou a designar a compra evenda de poderes ou cargos eclesiásticos.

A Igreja ia sendo edificada, crescendo coma assistência do Espírito Santo, graças à pazde que gozava, entretanto, em toda a Judeia,Galileia e Samaria.

Pedro andava por todo o lado, anunciandoa palavra do Senhor, procla-mando a BoaNova em muitas aldeias e vilas.

Ao passar por Lida, terra situada a cercade 20 quilómetros de Jope ou Jafa, encon-trou lá um paralítico, Eneias, que vivia háoito anos estendido num catre. Ao vê-lo,disse-lhe Pedro: «Eneias, Jesus Cristo vaicurar-te! Levanta-te e arruma a tua cama.»(Act 9,33) E logo o paralítico se levantou,curado, facto que puderam comprovar todosos habitantes de Lida, que, perante aquilo aque tinham assistido, se converteram todosao Senhor.

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De Lida, Pedro dirigiu-se a Jope, chamadopelos discípulos de Jesus existentes nessacidade. O facto é que tinha adoecido e mor-rido uma discípula muito estimada pelasgenerosas esmolas que distribuía e pelasboas obras que praticava. Tratava-se deTabitá, em grego Dórcada, palavra que signi-fica “gazela”.

Pedro, ao chegar junto do corpo de Tabitá,exposto numa sala, mandou sair todos ospresentes, ajoelhou-se e orou. Depois,voltando-se para o corpo, disse: «Tabitá,levanta-te !» (Act 9,40). E Tabitá imediata-mente abriu os olhos e sentou-se. Pedro,tomando-a pela mão, mostrou-a, viva, a to-dos. O milagre tornou-se conhecido em todaa cidade, o que levou muitos a converterem-se e a acreditarem no Senhor.

Entretanto, Pedro ficou instalado em Jopedurante bastante tempo, em casa de umcurtidor chamado Simão.

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Estes dois milagres – a cura do paralíticode Lida e a ressurreição de Tabitá em Jope –precederam a manifestação da própria acçãode Deus quando resolveu abrir as portas daIgreja aos gentios por intermédio de Pedro,como que numa confirmação do primado doApóstolo. Essa manifestação do universal-ismo cristão deu-se em Cesareia.

[...] ao meio-dia Pedro subiu ao terraço para rezar.[em Jope, ou Jafa, em casa do curtidor Simão].Sentiu fome e quis comer; mas, enquanto prepara-vam a comida, Pedro entrou em êxtase. Viu o céuaberto e uma coisa que descia para a terra; pareciauma grande toalha sustentada pelas quatro pontas.Dentro dela havia toda a espécie de quadrúpedes, etambém répteis da terra e aves do céu. E uma vozdisse-lhe: «Levanta--te, Pedro, mata e come!» MasPedro respondeu: «De modo nenhum, Senhor!Porque eu nunca comi coisa profana e impura!» Avoz disse-lhe pela segunda vez: «Não consideresimpuro o que Deus purificou.» Isto repetiu-se portrês vezes. Depois a coisa foi recolhida para o céu.(Act 10,9-16)

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E, enquanto Pedro meditava sobre a es-tranha visão que tinha tido, chegaram, en-tretanto, três mensageiros que lhe pediramque fosse a casa do seu senhor, o centuriãoromano Cornélio, em Cesareia, cerca de 55quilómetros a norte de Jafa.

O centurião Cornélio, homem piedoso etemente a Deus, que dava grandes esmolasaos pobres e orava continuamente a Deus,havia tido também uma visão extraordináriade um Anjo de Deus que lhe disse para envi-ar homens a Jope a chamar um certo Simão,conhecido por Pedro.

E quando Pedro, correspondendo ao quelhe fora solicitado, chega ao contacto comCornélio, compreende completamente avisão que tinha tido: Deus havia-lhemostrado que não se devia chamar impuro ahomem algum. Na realidade, os judeus es-tavam impedidos de contactar com os gen-tios e de comer com eles, pois estes comiamanimais considerados impuros. Eles

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obedeciam a um código de pureza ritual, nãopodendo comer coelhos, lebres, porcos –porque não têm a unha do pé dividida emdois cascos – os répteis e os animais aquáti-cos sem barbatanas ou escamas, e pratica-mente todas as aves do céu. Todas estas pre-scrições se encontram no Levítico (Lv11,1-47).

E – mais ainda – quando Cornélio fala dasua visão em que um Anjo lhe dissera paramandar chamar o Apóstolo, Pedro replicou:«Agora compreendo que Deus não faz difer-ença entre as pessoas» (Act 10,34) e continu-ou o seu discurso de testemunha de Jesus,terminando por dizer que quem acreditasserecebia a remissão dos pecados.

Pedro ainda falava quando o EspíritoSanto desceu sobre Cornélio e quantosouviam a palavra começaram a falar em lín-guas e a glorificar a Deus.

E perante esta manifestação do EspíritoSanto, à qual, além de Pedro, assistiam

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estupefactos os seus companheiros vindoscom ele de Jope, discípulos judeus nessa cid-ade, Pedro não teve qualquer dúvida emministrar a Cornélio e toda a sua família oBaptismo em nome de Jesus.

A notícia do acontecido correu célere echegou a Jerusalém, onde causou grandeperturbação nos Apóstolos e nos discípulosde Jesus, os irmãos da Judeia...

Os Apóstolos e os irmãos que viviam na Judeiasouberam que também os pagãos haviam acolhidoa Palavra de Deus. Quando Pedro subiu a Jerus-além, os fiéis de origem judaica começaram a dis-cutir com ele, dizendo: «Tu entraste em casa de in-circuncisos e comeste com eles!» Então Pedrocomeçou a relatar-lhes, passo a passo, o que haviaacontecido [...] Ao ouvirem isto, os fiéis de origemjudaica acalmaram-se e glorificaram a Deus,dizendo: «Também aos pagãos Deus concedeu aconversão que leva à vida!» (Act 11,1-4;18)

Depois do Pentecostes dos judeus, em Jer-usalém, o Espírito Santo derramara os seus

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dons num Pentecostes dos gentios, emCesareia.

A terceira etapa estava prestes a começar,mercê da feroz perseguição movida aos dis-cípulos de Jesus: a fundação da Igreja de An-tioquia, na Síria. Aí a pregação era feitaapenas aos judeus lá residentes, emboracomeçassem também a ser evangelizados al-guns gregos. Quando a notícia chegou àIgreja de Jerusalém, esta enviou Barnabé aAntioquia, para constatar esta grande «graçaconcedida por Deus». (Act 11,22-24)

Antioquia era a capital da província ro-mana da Síria e a terceira maior cidade doImpério Romano, depois de Roma eAlexandria.

E «foi em Antioquia que os discípulos re-ceberam, pela primeira vez, o nome de“cristãos”». (Act 11,26)

Entretanto, no ano 41, começa de novo aperseguição dos cristãos, movida por umsobrinho de Herodes Antipas que se tornara

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rei da Judeia e Samaria: o rei Herodes Agri-pa I.

Alguns membros da Igreja de Jerusalémforam particularmente “maltratados”: TiagoZebedeu, irmão de João, que foi mandadomatar à espada, para regozijo dos judeus; ePedro, que foi preso para também ser morto.

Pedro foi colocado na prisão e acor-rentado. Para sua guarda foram destacadosquatro piquetes de quatro soldados cada um:dos quatro soldados de cada turno, doisficavam colocados um de cada lado de Pedroe os outros dois ficavam de sentinela à portada prisão.

Pedro dormia quando, de súbito, apareceuo Anjo do Senhor, ficando a masmorra in-undada de luz; o Anjo despertou Pedro, aquem caíram as correntes das mãos;mandado pelo Anjo que o seguisse, assimfez. Passaram pelos postos da guarda até àporta de ferro da prisão que dava para a rua.Essa porta abriu-se imediatamente, por si

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mesma, e Pedro e o Anjo saíram, começandoa caminhar por uma rua, após o que o Anjodesapareceu de junto de Pedro.

Pensando no melhor caminho a tomar,Pedro decidiu-se a ir a casa de Maria, mãe deJoão Marcos (primo de Barnabé e compan-heiro, como este, de Paulo numa das suasviagens).

Em casa de Maria estavam reunidos a orarnumerosos fiéis que ficaram estupefactosquando viram Pedro. Este contou-lhes a suamilagrosa libertação, recomendando-lhesque o participassem aos irmãos de Jerus-além. Depois disso, Pedro retirou-se paraparte incerta. Os escritos não nos dão contadesse lugar...

Pedro como que se eclipsa, para sóreaparecer mais tarde numa assembleia emJerusalém, onde se discutiu uma questão le-vantada, em Antioquia, pelos cristãos judaiz-antes que preconizavam a necessidade dacircuncisão para se poder ser salvo. Paulo e

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Barnabé haviam sido enviados de Antioquiaa Jerusalém para consultarem os Apóstolos eos Anciãos sobre esta questão.

Em Jerusalém, alguns do partido dosfariseus, que se haviam convertido, insi-stiram na necessidade de observância da Leide Moisés: os pagãos convertidos à fé cristãteriam de ser circuncidados.

Após longa discussão, Pedro levantou-se enum discurso lembrou como em Cesareia,após terem abraçado a fé, aos pagãos tam-bém havia sido concedido o Espírito Santo,sem lhes impor o “jugo” da circuncisão.

Em seguida, com o acordo de toda aIgreja, foi enviada uma carta apostólica a An-tioquia em que, nomeadamente, referiamque «decidimos, o Espírito Santo e nós, nãovos impor nenhum fardo» (Act 15,28) senãoa abstenção de carnes imoladas aos ídolos,do sangue, de carnes sufocadas e daimoralidade.

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Após esta assembleia de Jerusalém os es-critos são completamente omissos a respeitode Pedro: o Novo Testamento não mencionao local para onde se dirigiu Pedro após a suaprisão e libertação miraculosa, bem comodepois da Assembleia de Jerusalém.

No entanto, a tradição desde os fins doséculo ii refere Pedro como chefe da Igrejade Roma: Ireneu, na sua obra Contra as Her-esias, menciona explicitamente os ApóstolosPedro e Paulo como fundadores da Igreja deRoma, «a Igreja venerável, muito antiga econhecida de todos»4; Tertuliano refere omartírio de Pedro e Paulo em Roma; e Orí-genes afirma que Pedro foi crucificado emRoma de cabeça para baixo. Eusébio deCesareia, além de citar que Pedro e Paulo fo-ram mortos em Roma, afirma que os nomesdos dois Apóstolos se encontravam ainda noscemitérios daquela cidade.

Mas o grande instrumento escolhido porDeus para converter os gentios era o mais

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judeu – e fariseu fanático – entre os judeus,de nome Saulo, natural de Tarso, cidadegrega da Cilícia, próxima da costa sul da ÁsiaMenor (actual Turquia) e que ficava quaseem frente de Antioquia, do outro lado domar.

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Gesta de Paulo

Saulo, que era conhecido também pelo seunome greco-romano – Paulo –, possuía umavasta instrução, não só filosófica, greco-ro-mana, mas também das Escrituras hebraicas,tendo estudado com o mais importantemestre rabínico do seu tempo: Gamaliel.

Munido de uma sólida instrução nas duasculturas, a greco-romana e a hebraica,acabou por se tornar um fariseu entregue àmissão de catequizar os gentios convertidosao judaísmo – os prosélitos –, que se sub-metiam à circuncisão e eram admitidos aber-tamente na comunidade judaica, e os“tementes a Deus” (caso do centuriãoCornélio, por exemplo), que eram apenassimpatizantes e semi-convertidos.

Pelo ano 36, Saulo, ainda jovem, parti-cipou no martírio de Estêvão. Os Actos dosApóstolos referem-se a ele como um jovem

aos pés do qual os lapidadores de Estêvãodepuseram as suas capas para mais desem-baraçadamente procederem ao apedreja-mento. (Act 7,58)

No mesmo dia do martírio de Estêvãodesencadeou-se uma terrível perseguição aosmembros da Igreja de Jerusalém, especial-mente aos helenistas, que fugiram,dispersando-se pelas terras da Judeia e daSamaria. Entretanto os Apóstolos e oscrentes hebreus não fugiram e foram aprincípio poupados, por se manterem fiéis aojudaísmo local, continuando a frequentar oTemplo diariamente para as suas orações.

Saulo «devastava a Igreja: entrava nas cas-as e arrastava para fora homens e mulheres,para os meter na prisão». (Act 8,3) E, «res-pirando ameaças e mortes contra os discípu-los do Senhor» (Act 9,1), foi pedir credenci-ais ao sumo-sacerdote para poder trazeralgemados para Jerusalém quantos

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encontrasse em Damasco e fossem crentesem Jesus de Nazaré.

Durante a viagem, quando já estava pertode Damasco, Saulo viu-se repentinamentecercado por uma luz que vinha do Céu. Caiupor terra e ouviu uma voz que lhe dizia:«Saulo, Saulo, porque Me persegues?» Sauloperguntou: «Quem és Tu, Senhor?» a voz re-spondeu: «Eu sou Jesus, a quem tupersegues. Agora levanta-te, entra na cidade,e aí te dirão o que deves fazer.» Os homensque acompanhavam Saulo ficaram cheios deespanto, porque ouviam a voz, mas não viamninguém. Saulo levantou-se do chão e abriuos olhos, mas não conseguia ver nada. Entãolevaram-no pela mão para Damasco. E Sauloficou três dias sem poder ver, e não comeunem bebeu nada. (Act 9,3-9)

Aí o foi encontrar Ananias, um discípulode Jesus, mandado pelo Senhor para o curare lhe ministrar o Baptismo.

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Saulo começou imediatamente a pregar nasinagoga de Damasco e, depois, em Jerus-além, onde foi levado à presença dos Apósto-los por intermédio de Barnabé, que fez o re-lato da maravilhosa visão de Saulo a cam-inho de Damasco e como, depois disso,anunciava desassombradamente o nome deJesus nas sinagogas de Damasco. Aceitepelos Apóstolos, Saulo «pregava cora-josamente em Nome de Jesus» (Act 9,28)por todos os lados, em Jerusalém.

Mas a sua vida corria perigo em Jerus-além, de tal modo que os discípulos o en-caminharam para a sua terra natal, Tarso,onde ficou cerca de dez anos. Aí o foi procur-ar Barnabé para o levar consigo para An-tioquia, onde ambos se mantiveram juntosdurante um ano inteiro, ensinando muitagente, primeiramente os judeus nas sinago-gas e depois os pagãos, embora sem lhes im-por as práticas judaicas (a circuncisão e as

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interdições alimentares: rejeição da carne deporco, do sangue, etc.).

Estava-se no ano 46 e, a partir de An-tioquia, a Igreja faz-se ao largo com Saulo eBarnabé. Antioquia constituía o ponto departida da evangelização do Império Ro-mano, e daí se lançaram Saulo e Barnabé nasua primeira viagem missionária.

A primeira paragem foi a ilha de Chipre,pátria de Barnabé. Aí pregavam nas sinago-gas judaicas, mas anunciavam, também, apalavra do Senhor aos pagãos. Foi a partirdaí que Saulo passou a usar o seu nomegreco-romano: Paulo, como que assinalandoo contacto do Apóstolo com o mundo dosgentios.

De Chipre embarcaram para a Ásia Menor,dirigindo-se a Antioquia de Pisídia – umaoutra Antioquia – onde começaram a anun-ciar a Palavra na sinagoga, para depois se di-rigirem abertamente aos pagãos.

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Quando os judeus viram aquela multidão,ficaram cheios de inveja, e com blasfémiasopunham-se ao que Paulo dizia. Então, commais coragem ainda, Paulo e Barnabédeclararam:

Era preciso anunciar a Palavra de Deus, emprimeiro lugar a vós, judeus. Porém, visto que a re-jeitais e não vos julgais dignos da vida eterna,vamos dedicar-nos aos pagãos. Porque é esta a or-dem que o Senhor nos deu: «Eu coloquei-te comoluz para as nações, para que leves a salvação atéaos extremos da Terra.» (Act 13,45-47)

Os pagãos de Antioquia de Pisídia ab-raçaram a fé cheios de alegria, mas os judeusdesencadearam uma perseguição que levou àexpulsão de Paulo e Barnabé da cidade.

Dirigiram-se então para Icónio e depoispara Licaónia, Listra, etc. onde fizeram nu-merosos discípulos, mas onde eram tambémconstantemente apedrejados pela multidãoaliciada pelos judeus.

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Regressaram, finalmente, a Antioquia (daSíria), de onde haviam partido, ao fim de trêsanos de pregação, e assim que chegaram «re-uniram a comunidade e contaram tudo o queDeus havia feito por meio deles: o modocomo Deus tinha aberto a porta da fé aospagãos». (Act 14,27)

Foi em Antioquia que nasceu a controvér-sia sobre a Lei de Moisés entre Paulo e Barn-abé e alguns “judaizantes” que, apesar de ter-em abraçado a fé, ensinavam que era precisocircuncidar os pagãos convertidos e impor-lhes a observância da Lei de Moisés. Como seestabeleceu a confusão, ficou resolvido envi-ar a Jerusalém um grupo de irmãos comPaulo e Barnabé, a fim de consultarem osApóstolos e os Anciãos sobre esta questão.

Estava-se no ano 48-49 quando serealizou a Assembleia de Jerusalém expres-samente para tratar da consulta de An-tioquia. Os tópicos dessa Assembleia estãodescritos mais atrás na Gesta de Pedro.

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Depois de algum tempo passado em An-tioquia a anunciar a Boa Nova, Paulo pro-jecta uma nova viagem, dizendo a Barnabé:«Vamos voltar para fazer uma visita a todasas cidades onde anunciámos a Palavra doSenhor, para ver como estão.» (Act 15,36)

Nesta segunda viagem Paulo separa-se deBarnabé, com quem se tinha desentendido, etoma como companheiro Silas. Atravessa aSíria e depois a vizinha Cilícia, acabando porchegar a Listra. Nessa cidade toma consigoTimóteo, um discípulo grego (filho de paigrego e mãe judia crente) e leva-o nesta se-gunda viagem. Timóteo viria a tornar-se oseu discípulo preferido.

Estava-se no ano 50 quando Paulo iniciaesta sua segunda missão.

Paulo, Silas e Timóteo iam anunciando aPalavra pelas cidades por onde passavam, aomesmo tempo que transmitiam as decisõestomadas pela Assembleia de Jerusalém.

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O objectivo de Paulo para esta viagem eramuito mais modesto do que aquele que veiodepois a verificar-se. De facto, Paulo pro-jectava missionar ao longo das cidades daFrígia, da Galácia e da Ásia Menor. Mas oEspírito Santo tinha outros projectos eimpediu-o de evangelizar nessas cidades...Daí, Paulo e os companheiros passaram àMísia, de onde tentaram dirigir-se à Bitínia.Mas de novo o Espírito Santo não lho permi-tiu, o que os levou a descer para a cidade deTróade depois de atravessarem a Mísia.

Em Tróade, de noite, Paulo teve umavisão: um macedónio apresentou-se de pé,diante dele, formulando um pedido: «Vem àMacedónia e ajuda-nos.» (Act 16,9)

Após esta visão Paulo procura partir ime-diatamente. Embarca no porto de Tróade,onde se encontrava, dirigindo-se àMacedónia, onde desembarca na Samotrácia.O Evangelho chegava, enfim, à Europa.

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E nascem várias comunidades cristãs: emFilipos, em Tessalónica, em Corinto...

Em seguida, numa escala em Atenas,Paulo tenta, em vão, converter os ateniensesque, ao ouvi-lo falar de ressurreição dosmortos, começaram, uns a troçar, enquantooutros disseram: «Ouvir-te-emos falar dissoem outra ocasião» (Act 17,32). No entanto,apesar desta atitude da maioria dos seus ou-vintes, alguns converteram-se, entre eles umaeropagita, Dionísio, (aeropagitas eram osjuízes de um tribunal de justiça ateniense, oAreópago, que era assim chamado por se re-unir na colina de Marte – Ares ou Marte +pagos, colina)

O fracasso do discurso de Paulo perante oAreópago ateniense constituiu para ele umalição. Ao tentar lisongear os seus ouvintes aoconsiderá-los «os mais religiosos dos ho-mens» e ao procurar como que demonstrarque há uma convergência entre a filosofiagrega e a Boa Nova que ele anunciava,

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citando, mesmo, um poeta grego: «nóssomos também da sua estirpe», isto é, «nóssomos da raça de Deus», Paulo pôde con-statar que não seria com a sabedoria humanaque, na Grécia, levaria a água ao seu moinho.

E, assim, depois deste episódio, dirigiram-se para Corinto, onde Paulo deixa de ter amínima preocupação em agradar aos seusouvintes, não querendo saber de mais nada epregando unicamente uma coisa: «JesusCristo e Jesus Cristo crucificado» (1Cor 2,2).Paulo pusera de parte os argumentos per-suasivos da sabedoria humana para pregarsob o poder do Espírito, ensinando asabedoria de Deus.

Corinto constitui a etapa mais importantedesta segunda viagem. Paulo permaneceu alium ano e seis meses.

Nesse porto, cidade fervilhante com cercade 600 000 habitantes (dos quais 400 000eram escravos), procura um casal judeu,Áquila e Priscila, fabricantes de tendas, e fica

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em sua casa, começando a trabalhar, pois eratambém essa a sua profissão. O ano e meioda sua estada em Corinto decorreu do In-verno de 50 ao Verão de 52.

Foi nessa cidade que Paulo escreveu os es-critos mais antigos do Novo Testamento: asCartas aos Tessalonicenses. Tessalónicahavia sido a segunda etapa da viagem dePaulo na Europa, depois de Filipos. Porto demar importante, atravessado pela Via Inácia,que estabelecia a ligação de Roma com a ÁsiaMenor, era uma cidade cosmopolita onde seencontravam as culturas do Oriente e doOcidente. Aí deixara Paulo uma pequenacomunidade de crentes, sujeita às seduçõesdo paganismo, assim como à perseguição.Compreende-se, assim, a preocupação dePaulo com a sorte dos cristãos que deixarapara trás: «Sabeis que, tal como um pai tratacada um dos seus filhos, também a cada umde vós exortámos, encorajámos e adverti-mos.» (1Ts 2,17)

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Todos os sábados, Paulo dissertava na sin-agoga de Corinto, «testemunhando diantedos judeus que Jesus era o Messias» (Act18,5). Mas, perante a sua oposição e as blas-fémias dos coríntios, ficou mais determinadodo que nunca a dirigir-se, no futuro, aospagãos. No entanto, o chefe da sinagoga,Crispo, converteu-se, bem como todos os dasua casa, e ainda muitos coríntios que ab-raçaram também a fé e receberam oBaptismo.

De Corinto, Paulo, acompanhado deÁquila e Priscila, embarcou para a Síria,chegando ao porto de Éfeso, onde se demor-ou algum tempo com os judeus da sinagoga,deixando-os com a promessa de voltar lá denovo. De Éfeso embarcou para Cesareia e daíseguiu por terra para Antioquia. Terminava,assim, a sua segunda viagem missionária.

Depois de ter permanecido algum tempoem Antioquia, Paulo iniciou um terceiropériplo, passando pelas comunidades

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fundadas anteriormente. Atravessou assim aGalácia e a Frígia, acabando por chegar aÉfeso, cidade de 200 000 habitantes, ondeencontrou uma escassa dúzia de crentes,evangelizados por um eloquente judeu de Al-exandria, Apolo, muito versado nas Escritur-as, bem como no que dizia respeito a Jesus,embora conhecesse apenas o Baptismo deJoão. Esses crentes – os chamados “joanitasde Éfeso” – ignoravam que existia o EspíritoSanto. Paulo impôs-lhes as mãos, depois deos baptizar em nome do Senhor Jesus, e ime-diatamente desceu sobre eles o EspíritoSanto, começando a falar línguas e aprofetizar.

Paulo permaneceu entre dois a três anosem Éfeso – entre 54 e 57 – ensinando diaria-mente numa escola a palavra do Senhor, aomesmo tempo que Deus fazia milagres ex-traordinários por seu intermédio.

De Éfeso, Paulo partiu para a Macedónia,que percorreu, exortando os fiéis das

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comunidades que fundara, e desceu à Grécia,onde permaneceu três meses, em Corinto, edepois regressou à Ásia Menor, desembar-cando em Tróade, de onde se dirigiu paraMileto. Daí mandou chamar os anciãos deÉfeso, despedindo-se deles: «Agora tenho acerteza de que não mais vereis o meu rosto»(Act 20,25), evocação da “Paixão” que o es-perava e ia começar em Jerusalém.

Voltando a embarcar em Mileto, atraves-sou o mar navegando até Tiro, onde desem-barcou para se dirigir por terra paraCesareia. Subiu, em seguida, a Jerusalém,onde foi recebido com grande alegria pelosirmãos em Cristo. Reunidos em casa de Ti-ago (Menor), Paulo relatou minuciosamentetudo quanto Deus havia feito entre os pagãospelo seu ministério.

Em Jerusalém dirige-se ao Templo, a fimde se submeter aos ritos da purificação, paraque todos vissem que se mantinha fielcumpridor da Lei, acabando desse modo com

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os rumores falsos postos a circular contraele.

Ia começar a sua “Paixão”. Ao vê-lo noTemplo, os judeus da Ásia, com quem Paulotantas vezes havia discutido nas suas viagensmissionárias, amotinaram o povo, que seapoderou dele, arrastando-o para fora doTemplo, preparando-se para o matar sumari-amente. Nessa altura foi salvo pelos soldadosromanos que, por ordem do tribuno CláudioLísias, o arrancaram das mãos dos judeus.

Algemado, foi conduzido para dentro dafortaleza, onde, quando se preparavam parao açoitar, Paulo invocou a sua cidadaniaromana.

O tribuno romano resolveu, finalmente,enviar Paulo, com uma forte escolta, a com-parecer perante o governador Félix emCesareia.

Alguns dias depois chegaram os acusad-ores de Paulo a Cesareia: o sumo--sacerdote

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Ananias, acompanhado de alguns anciãos ede um advogado.

Acusavam-no de fomentar discórdiasentre os judeus do mundo inteiro e de sercabecilha da seita dos Nazarenos, tendo atétentado profanar o Templo.

Paulo defendeu-se dessas acusações,rebatendo-as como falsas e concluindo,habilmente, com a frase que disse ter pro-ferido em voz alta perante o Sinédrio: «Épela nossa esperança, a ressurreição dosmortos, que estou a ser julgado» (Act 23,6).Paulo reduzia, assim, tudo a uma questãomeramente religiosa, sem interesse, port-anto, para os romanos.

O governador Félix resolveu adiar aaudiência, mantendo, contudo, Paulo preso,embora com uma certa liberdade. E assim omanteve preso durante dois anos: entre osanos 58 e 60.

Quando Félix termina o seu mandato ésubstituído nas suas funções por Pórcio

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Festo, magistrado íntegro. E os judeus con-tinuavam a importunar o governador comqueixas contra Paulo. Festo fê-lo comparecerperante o seu tribunal, onde os judeus ap-resentaram contra ele «muitas e graves acus-ações, que no entanto não conseguiam pro-var» (Act 25,7). E, na iminência de ser envi-ado a Jerusalém para ser julgado, embora napresença de Festo, Paulo defende-se vig-orosamente, apelando para César. «Apelastepara César, irás a César» (Act 25,12) senten-ciou Festo depois de conferenciar com o seuconselho.

Começa, assim, a quarta viagem de Paulo,que o iria conduzir a Roma, como pri-sioneiro. No entanto, a humanidade do cen-turião Júlio, a quem Paulo estava entregue,permitiu-lhe que contactasse os discípulosnas cidades em que iam aportando.

Viagem tormentosa, acabando pornaufragar à vista da ilha de Malta, devido aofacto de o navio ter embatido num baixio, e

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ter começado a desmantelar-se. Os soldadosromanos prepararam-se, então, para mataros prisioneiros, para que estes não fugissema nado. Porém Júlio, o centurião, «querendosalvar Paulo» (Act 27,43), impediu-os de ofazerem, ordenando aos soldados quesabiam nadar que se atirassem à água paraalcançarem terra. Aí aguardariam, certa-mente, os prisioneiros que se salvavam,agarrados a tábuas ou destroços do navio.

Em Malta permaneceram três meses, apósos quais embarcaram num barco de Alexan-dria que passara o Inverno na ilha.Chegaram finalmente a Roma, onde Paulofoi recebido pelos irmãos em Cristo dessacidade.

Em Roma foi autorizado a ficar em aloja-mento próprio, com um soldado que oguardava.

Na casa em que passou a viver recebia osjudeus da cidade a quem procurou doutrinarna fé de Jesus, o que levou alguns à

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conversão. Grande parte deles, porém,manteve-se incrédula, levando Paulo a re-afirmar o seu propósito de se tornarApóstolo dos gentios: «Ficai, agora, sabendo:esta salvação de Deus é enviada aos pagãos, eeles hão-de escutá-la.» (Act 28,28)

Paulo permaneceu dois anos – entre 61 e63 – na casa que alugara, em liberdade vigi-ada, sob custódia militar, que o não impediude receber todos quantos iam procurá-lo e aquem anunciava o Reino de Deus e pregandoa doutrina cristã com o maior desassombro.Durante esse período escreveu algumascartas que dirigiu às várias comunidades quehavia fundado: as chamadas cartas docativeiro. Trata-se de uma carta dirigida aosFilipenses, uma outra dirigida aos Colos-senses, a segunda carta a Timóteo, bemcomo a carta a Filémon e uma carta aosHebreus.

No ano 64, Nero inicia uma perseguiçãoaos cristãos na sequência do incêndio de

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Roma. A tradição considera, entre as vítimasdessa perseguição, as duas grandes colunas efundamento da Igreja de Roma: Pedro ePaulo, o primeiro, crucificado e o segundo,decapitado.

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Gesta dos outros Apóstolos

Aos Onze que compareceram ao encontromarcado por Jesus num monte – na Ga-lileia? (Mt 28,16); em Jerusalém? (Mc 16,14);junto de Betânia? (Lc 24,50); junto ao lagode Tiberíades? (Jo 21) – deu o Senhor asseguintes instruções:

– «Ide e fazei com que todos os povos se tornemmeus discípulos, baptizando-os em nome do Pai, edo Filho, e do Espírito Santo» (Mt 28,19);

– «Ensinando-os a observar tudo o que vosordenei» (Mt 28,20);

– «Eis que Eu estarei convosco todos os dias, atéao fim do mundo» (Mt 28,20);

– «Os sinais que acompanharão aqueles que acred-itarem são estes: expulsarão demónios em meunome, falarão novas línguas, se pegarem em cobrasou beberem algum veneno não sofrerão nenhummal; quando colocarem as mãos sobre os doentes,estes ficarão curados» (Mc 16,17-18).

As testemunhas da Ressurreição – mais dequinhentos discípulos, além dos Onze e dealgumas mulheres, de acordo com a primeiracarta de São Paulo aos Coríntios – foramprovavelmente também testemunhas da “As-censão de Jesus”, onde receberam o man-dato de irem pelo mundo inteiro a pregar aBoa Nova e a baptizar todos em nome do Pai,do Filho e do Espírito Santo.

E, assim, após a “Ascensão”, eles partirame foram pregar por toda a parte. E o Senhor«ajudava-os e, por meio dos sinais que osacompanhavam, provava que o seu ensina-mento era verdadeiro». (Mc 16,20)

Vimos já a gesta de Pedro e a de Paulo. Eos outros onze Apóstolos? Faltam--nos asfontes históricas sobre a actividade mis-sionária da maioria dos Apóstolos.

Dos constantes companheiros de Pedro –os irmãos Zebedeus, Tiago e João, pes-cadores como ele – sabemos que o primeiro,Tiago foi mandado matar à espada pelo rei

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Herodes Agripa I, no início de umaperseguição pelos dias dos Ázimos, da qualpor pouco não foi Pedro também vítima. Ti-ago, que recebeu o mandato de Jesus parapregar a Boa Nova, embarcou para Espanha(segundo a tradição, recolhida por SãoTeodoro, bem como outros testemunhos, taiscomo o Apocalipse do Beato de Liébana,etc.). Regressado à Palestina, é mandado de-capitar por Herodes Agripa. Conta a tradiçãoque o seu corpo, recolhido pelos seus dis-cípulos, foi trasladado de barco paraEspanha, acabando por ser sepultado no loc-al onde se desenvolveu a cidade actualmenteconhecida como Santiago de Compostelapara onde convergiram peregrinações decristãos desde muito cedo (no século iii já olugar da sepultura do Santo era visitadopelos fiéis cristãos, peregrinações queacabaram por ser proibidas em 257 pelo im-perador Vespasiano).

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Quanto a João, companheiro fiel de Pedronos dias que se seguiram à descida sobre elesdo Espírito Santo, com ele curou o aleijadono Templo e com ele compareceu perante oSinédrio, o Tribunal máximo judaico. ComPedro foi também preso por ordem do sumo-sacerdote e libertado da prisão pelo Anjo doSenhor, sofrendo com ele os açoites por or-dem do Sinédrio.

João foi mandado com Pedro à Samaria,pelos Apóstolos, a fim de confirmar as con-versões lá verificadas por intermédio do diá-cono Filipe, um dos sete nomeados pelaAssembleia dos discípulos convocada pelosDoze. Depois destes acontecimentos, relata-dos nos Actos dos Apóstolos, perdemos-lhe orasto. No entanto, a tradição refere que, de-pois de ter vivido muitos anos na Palestina –ele “recolhera” Maria, a mãe de Jesus – Joãoretirou-se para Éfeso, onde viveu ainda mui-tos anos, morrendo com uma idadeavançada: quase 100 anos.

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João foi o único Apóstolo que morreu demorte natural. Todos os outros foram mart-irizados: São Mateus foi provavelmente lap-idado, São Tiago (o Menor) também; São Ti-ago Zebedeu, um dos Boanerges (filhos dotrovão), irmão de São João, foi decapitadopor ordem de Herodes Agripa, como vimos;Santo André, irmão de São Pedro, crucific-ado; São Tomé foi lanceado; São Pedro e SãoPaulo foram martirizados aquando daprimeira perseguição ordenada por Nero, oprimeiro crucificado de cabeça para baixo, osegundo, cidadão romano, decapitado. Todosos restantes Apóstolos foram martirizados emortos. Excep-tuou-se São João Zebedeuque morreu em Éfeso, como vimos, tendo aívivido muitos anos, pelo que as Igrejas daÁsia o consideram o seu Apóstolo.

O primeiro período da Igreja Cristã – aEra Apostólica – termina no fim do século i,com a morte de São João.

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André, irmão de Pedro, é venerado naRússia como o Apóstolo que pregou e mor-reu numa terra então conhecida como Cítia.

Tomé é identificado como o Apóstolo daÍndia, assim como Bartolomeu.

Mateus foi provavelmente para a Etiópia,Judas Tadeu para a Pérsia e Tiago (Menor),o “irmão de Jesus”, para o Egipto.

Estes elementos chegaram até nós atravésde Eusébio de Cesareia, com a sua HistóriaEclesiástica.

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O Império Romano: um “circuitoimpresso”para o Cristianismo

O Cristianismo havia arrancado numamarcha imparável na manhã do dia dePentecostes do ano 30, expandindo-se pelomundo conhecido. Aí estava o Império Ro-mano em toda a sua extensão, com a Pax Ro-mana, a sua organização, as suas excelentesvias de comunicação, pronto a ser a talagarçapropícia ao bordado de um Cristianismonascente.

Na manhã desse dia de Pentecostes do ano30, após a descida do Espírito Santo sobre osApóstolos fez-se a primeira proclamação doEvangelho aos Judeus e prosélitos doJudaísmo vindos de todos os pontos domundo conhecido. Encontravam-se reunidosem Jerusalém peregrinos vindos de todas asnações do Império Romano. Deste modo,estes judeus da diáspora, dispersos e vivendo

nas várias províncias do Império Romano,tornaram-se o principal veículo da evangeliz-ação – a primeira – dos começos doCristianismo.

Jerusalém era para os judeus a pátria nat-ural e afectiva de provavelmente quatro mil-hões de irmãos de raça espalhados por cid-ades tão distantes como Roma, Babilónia eAlexandria. Estes judeus da diáspora eramsúbditos romanos respeitadores das leis nassuas terras de adopção. Eles oravam nas sin-agogas locais e, de toda a diáspora, afluía aoTemplo de Jerusalém o dízimo exigido a to-dos os judeus. Todos os anos muitos mil-hares de peregrinos deslocavam-se de toda adiáspora até Jerusalém para assistirem àsfestas religiosas, de tal modo que esse afluxoanual de peregrinos chegava, por vezes, aquadriplicar a população de Jerusalém naépoca das festas.

Estavam, assim, reunidos os elementos favoráveis àpropagação da Boa Nova: por um lado, o Império

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Romano, permitindo uma rápida difusão através detodas as fronteiras das várias províncias; por outrolado, a diáspora judaica, com as suas peregrinaçõesanuais de milhares de peregrinos a Jerusalém, onde oCristianismo havia emergido e ia crescendo com a in-corporação de muitos elementos da sociedade judaica.

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As perseguições:o gatilho para aexpansão do Cristianismo

Um outro factor que favoreceu a pro-pagação do Cristianismo para as cidadesmais próximas de Jerusalém, na Palestina,Síria e na Ásia Menor consistiu nas primeirasperseguições aos cristãos, sobretudo aos hel-enistas, que se seguiram ao martírio deEstêvão, o primeiro mártir cristão que deutestemunho da sua fé à custa da própria vida,tendo sido apedrejado até à morte.

Os helenistas perseguidos fugiram de Jer-usalém para a Samaria, Fenícia, Chipre e An-tioquia, capital da Síria, terceira cidade doImpério Romano, depois de Roma eAlexandria.

Seguiu-se a incansável evangelização deSaulo de Tarso, tornado Paulo, depois deconvertido, com a fundação de inúmerasIgrejas em quatro viagens missionárias:

Antioquia, Ásia Menor, Filipos, Tessalónica,Corinto...

Apesar das perseguições, a partir do séculoii há cristãos em todo o mundo conhecido eessencialmente no Império Romano.

O número de cristãos é maior no Oriente –Ásia Menor, Síria, Palestina – do que noOcidente – Itália, Sul de Espanha, Norte deÁfrica, Ilíria (actual Jugoslávia), Gália. Foradas fronteiras do Império Romano há tam-bém inúmeros cristãos: no Império Persa,Arménia, Reino de Edessa.

A Igreja enfrentou, quer externa, quer in-ternamente, duras provas que amea-çaramcontinuamente a sua existência, quase sosso-brando, por vezes, sob os rudes golpes quelhe foram desferidos.

Por um lado, sofreu a dura prova externadas perseguições, às quais foi resistindo.Foram muitos os mártires, muito poucos osapóstatas. Ao fim e ao cabo as perseguiçõestiveram um efeito contrário ao desejado

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pelos seus instigadores. Assim, não foi estaprova a mais importante ameaça para aIgreja nos seus começos.

A grande ameaça, essa mais subtil, consis-tiu numa dura prova interna: a defesa daverdade contra correntes ideológicas surgi-das no interior da própria Igreja, em que amensagem cristã se via confrontada com umcerto número de problemas que compro-metiam a unidade ao desvirtuarem os dog-mas fundamentais da fé cristã.

Essas correntes ideológicas eram as her-esias. Desde os primórdios da Igreja pulu-laram os grupos, rivais quanto à regra daverdadeira fé, levando muitas vezes às sep-arações ou cismas.

Já São Paulo advertia Timóteo contra apossibilidade de perder o dom inestimávelda fé, esse dom gratuito de Deus ao homem:«combate o bom combate, com fé e boa con-sciência. Alguns rejeitaram a boa consciênciae acabaram por naufragar na fé» (1Tm

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1,18-19). E São Paulo cita dois hereges, blas-femos, excluídos da comunidade («que en-treguei a Satanás» 1Tm 1,20) como medidapedagógica: Himeneu e Alexandre.

De facto, desenraizar-se da fé da Igreja écair na heresia, fazendo escolhas (hairesis)fora da verdadeira doutrina e portanto forada verdadeira Igreja. A fé tem de ser ali-mentada com a Palavra do Senhor, crescerpela oração, pedindo ao Senhor que no-laaumente, permanecendo enraizada na fé daIgreja.

Os cristãos devem firmar-se na tradiçãodos Apóstolos. E essa tradição conservou-senas Igrejas onde foi possível remontar atéaos Apóstolos, através da sucessão dos bis-pos ou presbíteros. Daí a preocupação de umgrande bispo do fim do século ii – Ireneu,bispo de Lião – em enumerar com todo ocuidado os bispos que se sucederam emRoma desde São Pedro e São Paulo: Lino,Anacleto, Clemente (“que tinha visto os

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próprios Apóstolos e a sua pregaçãoressoava--lhe aos ouvidos”), Evaristo, Alex-andre, Sixto, Telésforo, Higino, Pio, Aniceto,Sotero e Eleutério.

É nesta ordem e “sucessão” que a tradição dada àIgreja desde os apóstolos, e a pregação da verdade,chegaram até nós. E está aí uma prova muito com-pleta de que é única e sempre a mesma, a fé vivific-adora que, na Igreja desde os apóstolos, se conser-vou até ao dia de hoje e foi transmitida na ver-dade.5

Além da Igreja de Roma, outras Igrejashavia em que a sequência dos bispospermitia remontar-se, também, aos Apósto-los: é o caso das Igrejas de Éfeso e Esmirna,Igrejas fundadas por São Paulo na sua ter-ceira viagem na Ásia Menor (actual Turquia).

O próprio Ireneu recorda, emocionado,como em criança havia escutado Policarpo,bispo de Esmirna, a falar de São João, umdos Apóstolos escolhidos por Jesus.Policarpo conhecera-o pessoalmente e dele

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recebera a tradição apostólica: ouvira-o falardos ensinamentos e dos milagres de Jesus,com aquela autoridade que lhe advinha deter sido testemunha ocular, ele, o discípuloque Jesus amava (Jo 13,23). Era assim que opróprio Ireneu fazia remontar a Igreja deLião a Jesus, através de Policarpo.

Desde muito cedo os cristãos foram con-frontados, no mundo em que viviam – o Im-pério Romano –, com o receio que sus-citavam nos pagãos por serem “diferentes” enão participarem dos seus costumes: elesnão frequentavam os teatros, escandalizadospela imoralidade grosseira das peças que láse exibiam, nem o circo, pelo espectáculo,oferecido às massas populares, de homens –aqueles homens feitos à imagem e semel-hança de Deus –, degladiando-se até à mortepara gáudio dos espectadores; eles nãoacreditavam na divindade do imperadorromano, negando-se a adorá-lo e a queimar-lhe incenso; as suas vidas irrepreensíveis, no

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meio dos vícios mais grosseiros, da vulgarid-ade dos adultérios e dos divórcios, con-stituíam como que uma permanente cen-sura; e não deixavam que os não-cristãosfossem admitidos nos seus actos de culto.Pois se até aqueles que estavam a ser pre-parados para o Baptismo – os catecúmenos– só podiam assistir à primeira parte daMissa (as leituras e a homilia, até ao Ofer-tório) sendo admitidos à Missa completa de-pois de devidamente catequizados e baptiza-dos, quando já conheciam a fundo o mistérioda Eucaristia, da conversão do pão e dovinho no corpo e sangue de Cristo. Mesmo opróprio Pai Nosso – a oração que o Senhornos ensinou só lhes era ensinada na vésperado seu Baptismo.

Ora, tudo isto tinha inevitavelmente dedespertar a maledicência dos mal intencion-ados, que chegaram ao ponto de acusar oscristãos de canibalismo nas suas secretas re-uniões, nas quais fariam sacrifícios

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humanos; acusavam--nos ainda de presun-çosos, por afirmarem e reafirmarem que oseu Deus era o único que existia, negando-sea prestar culto a outros deuses, nomeada-mente os romanos e, muito menos, aoimperador.

Estava, assim, preparado o terreno e cri-ado o clima propícios às perseguições, aomartírio e à apostasia.

Há inúmeros relatos de perseguições, unsde escritores não-cristãos, como o histori-ador Tácito (55-120) e Plínio, o Moço(62-114), mas também de escritores cristãoscomo, por exemplo, as chamadas actas dosmártires (Actas dos Mártires de Lião; a Cartasobre o Martírio, de São Cipriano de Cartago,a De Lapsis, do mesmo autor, sobre os dra-mas sofridos pelos cristãos, a força de uns, osmártires, e o fracasso dos outros, osapóstatas; Eusébio de Cesareia, com a suaHistória Eclesiástica).

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O historiador Tácito, nos seus anais, referecomo, aquando do incêndio de Roma no ano64, Nero, para calar o rumor segundo o qualo incêndio tinha sido ateado por sua ordem,declarou os cristãos culpados. Deu início auma perseguição feroz, castigando oscristãos como incendiários. No entanto, oreferido historiador não os julgou culpadosdo incêndio, mas sim apenas bodesexpiatórios.

Nero não se contentava em dar a morteaos cristãos inflingindo-lhes tormentosrefinados. Lembraram-se, até, de os revestirde peles de animais para que fossem dila-cerados pelos cães; ou eram atados a cruzesou untados com matérias inflamáveis e ànoite iluminavam as trevas como archotes.Nero oferecera, mesmo, os seus jardins paraeste espectáculo.

Esta perseguição não ultrapassou os lim-ites de Roma e, segundo a tradição, SãoPedro e São Paulo foram vítimas da mesma.

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Estabeleceu-se uma autêntica “caça” aoscristãos e estes começaram a ser lançados àarena do circo para que fossem dilacerados edevorados pelos leões esfaimados. Outroseram assassinados em plena rua ou tortura-dos cruelmente para divertimento doscortesãos.

Esta perseguição durou cerca de três anosdurante os quais morreu São Pedro, crucific-ado de cabeça para baixo, a seu pedido, poissentia-se indigno de morrer como o seu Sen-hor. Os seus restos mortais repousam numacripta subterrânea da Basílica de São Pedro,no Vaticano, edificada perto do lugar em quese situava o Circo Máximo.

No mesmo ano – e até talvez no mesmodia – foi decapitado São Paulo, pois era cid-adão romano e, no local onde, segundo atradição, foi executado ergueu--se a Igreja deSão Paulo das Três Fontes (“Abbazia delleTre Fontane”). Conta uma lenda que, depoisde decepada, a cabeça de São Paulo saltou

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três vezes e em cada ponto do impacto nosolo nasceu uma fonte.

Novas perseguições no tempo de um outroimperador – Domiciano (81--96). Os cristãossão espoliados e executados – imagine-se! –por ateísmo, por não participarem nos cultostradicionais, nem no culto imperial.

Foi na época desta perseguição que oscristãos se viram obrigados a reunir--se parao culto nos cemitérios subterrâneos – ascatacumbas – onde assistiam à Missa, alumi-ados por lâmpadas de azeite e velas. É daíque vem o costume de, desde então, se alu-miar o altar enquanto se celebra a Missa comduas velas, em memória dos fiéis dascatacumbas e de todos quantos sofreramperseguição. Nessas mesmas catacumbaseram enterrados também os mártires, sendohábito colocar as relíquias de algum santonas aras dos altares, costume que chegou atéaos nossos dias.

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Trajano (98-117), que se vangloriava deprofessar a proverbial tolerância romana, fazjurisprudência ao fixar normas de condutaem relação aos cristãos: estes eram consid-erados ateus e, quando convictos, deviam serpunidos; no entanto, não deviam serprocurados, deixando-se de lado as denún-cias anónimas; e todo o inculpado que se ar-rependesse – que apostatasse – devia serlibertado. É do tempo de Trajano um mártirmuito célebre: Inácio, bispo de Antioquia, oqual, numa carta aos Esmirnenses se refere àIgreja como «Igreja Católica».É aí queaparece pela primeira vez tal expressão: «Acomunidade reúne-se onde estiver o bispo eonde está Jesus Cristo está a IgrejaCatólica.»6

Foi também em Antioquia, onde se refugi-aram os helenistas após o martírio deEstêvão, que os discípulos de Cristocomeçaram a ser conhecidos como«cristãos» (ano 36, ano do martírio de

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Estêvão). Antioquia era a capital da Síria econsiderada a terceira cidade mais import-ante do Império Romano, depois de Roma eAlexandria. «Foi em Antioquia que os dis-cípulos receberam, pela primeira vez, o nomede “cristãos”.» (Act 11,26)

A legislação anti-cristã, depois de Trajano,não foi agravada pelos imperadores que selhe seguiram, até ao ano 180: Adriano, An-tonino Pio e Marco Aurélio. Por mais para-doxal que pareça, datam, no entanto, dotempo de Marco Aurélio, um homem toler-ante e filósofo estóico, algumas das maiscruéis perseguições. São desse tempo omartírio do bispo de Esmirna, Policarpo, dis-cípulo de São João e catequista do futurobispo de Lião, Ireneu; a perseguição de Lião,em 177, motivada por um motim popular, le-vando à prisão e execução de cinquentacristãos, entre os quais o nonagenário bispoPlotino, o apologista São Justino, entreoutros.

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Depois, nos finais do século ii, dado osperigos que cercavam o Império Romano –guerras civis, os bárbaros nas fronteiras, etc.– os imperadores, com o intuito de eliminar-em os factores de divisão e estreitarem oslaços entre os habitantes do Império, in-stituíram o culto imperial. Porém, os cristãosrecusaram-se a um tal culto.

Uma vaga de perseguições desencadeia-sena época do imperador Décio. Este publicouum édito, em 250, ordenando a todos oshabitantes do Império que participassempessoalmente num sacrifício geral em honrados deuses pátrios.

Este édito de Décio surgiu no fim de umalonga época de paz para os cristãos, que jáeram bastante numerosos, mas pouco tem-perados pelas perseguições de outros tem-pos. E assim, embora fossem muitos osmártires como resultado de recusarem sacri-ficar aos deuses pátrios, houve também mui-tos cristãos que claudicaram, acabando por

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sacrificar publicamente. Como consequência,a reintegração destes cristãos lapsi – infiéis– suscitou, mais tarde, controvérsias no seioda Igreja.

Esta legislação foi agravada pelo im-perador seguinte – Valeriano – por dois édi-tos que visavam, sobretudo, a cabeça docorpo cristão: bispos, padres e diáconos.Assim, a Igreja de África é praticamente dizi-mada. Mártires dessa época – ano 258 – fo-ram São Cipriano, bispo de Cartago; o bispode Roma – o Papa – Sixto II; o diáconoLourenço. Mas durante esta perseguição aresistência cristã foi já muito maior, sendomuitos os mártires e muito poucos os lapsi,graças à experiência anterior do tempo deDécio, que serviu para temperar os espíritos.

Após a morte de Valeriano os cristãos con-hecem uma trégua depois da publicação doédito de Galiano, em 261, um édito de toler-ância pelo qual a Igreja deixa de serperseguida durante quarenta anos,

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crescendo muito rapidamente o número decristãos e sendo construídas muitas igrejas,sobretudo na Ásia Menor.

Com Diocleciano sobrevém a últimagrande perseguição, sucedendo-se os éditoscada vez mais rigorosos, levando, por umlado, à morte de quantos recusavam o cultodo imperador, e, por outro, à demolição denumerosas igrejas e à destruição de outroslocais de culto, bem como à destruição doslivros sagrados.

Tal perseguição foi muito violenta emItália, em Espanha e em África, embora decurta duração (entre 303 e 305). No Orienteela foi particularmente violenta e longa(entre 303 e 313). Entretanto, os cristãoseram já muito numerosos, constituindoquase 50% da população.

Finalmente, em 313, surge a paz geral paraa Igreja, com o imperador Constantino, peloédito de Milão. Neste édito era reconhecidainteira liberdade de culto a todos os cidadãos

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do Império, fosse qual fosse a sua religião.Pelo mesmo édito deveriam ser devolvidostodos os edifícios confiscados aos cristãos.São completamente suprimidas as cláusulasdos éditos anteriores particularmente desfa-voráveis e nefastas para os cristãos.

A perseguição de Nero havia sido umacontecimento local, circunscrito à cidade deRoma. Já a última grande perseguição – a deDiocleciano –, quase trezentos anos depois,estendeu-se a todo o Império.

Sem dúvida, os cristãos viveram, duranteos três primeiros séculos, numa insegurançarelativa, mas conheceram igualmente longosperíodos de paz religiosa.

Foram numerosos os mártires nasperseguições movidas aos cristãos nos doisprimeiros séculos – centenas de milhar? –,mas a Igreja, em vez de desaparecer, cresceuainda mais, dando razão ao dito de um es-critor cristão do sé-culo iii, Tertuliano: «o

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sangue dos mártires foi sempre semente decristãos»7.

Houve, sem dúvida, numerosos apóstatasnas perseguições particularmente violentas,especialmente ao fim de longos períodos depaz e tolerância religiosa, em que os ânimos“amoleciam”, sucumbindo ao pavor da mortee do martírio. Lemos nas Actas dos Mártiresde Lião como os carrascos rivalizavam emcrueldades aplicadas aos cristãos mártires,levando os cristãos presos, à espera da suavez de martírio, a assistirem aos suplíciosdos outros, na arena do circo, numa tentativade os fazerem abjurar da sua fé e acabarempor adorar os deuses pagãos para, assim, es-caparem ao martírio. Porém, muitos resi-stiram, suportando com coragem todas astorturas e confessando a sua fé contra as ex-pectativas dos carrascos.

“Mártir” evoca aquele que morre no meiode suplícios atrozes. Mas este vocábulo gregosignifica “testemunha”: o mártir dá

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testemunho da sua fé em Jesus, que é oúnico Senhor, com exclusão de qualqueroutro, nem que seja o imperador.

O cristão não procura o martírio e pode fu-gir à perseguição, mas, quando é preso, dátestemunho até ao fim, seguindo a Jesus aténa sua Paixão e Morte. O mártir identifica-se, então, com Jesus. O mártir chegará à res-surreição com o seu Mestre.

Foram muitos os mártires e muito poucosos apóstatas, como vimos. As perseguiçõessangrentas, conduzindo os cristãos aomartírio sob as mais diversas e atrozesformas, não conseguiram o objectivo dosseus instigadores e desencadeadores: adestruição da Igreja. Pelo contrário, con-tribuíram, até, para, por um lado, firmar a fédos convictos, e, por outro, para espalhar amensagem cristã levada pelos fugitivos dasperseguições até aos confins do ImpérioRomano.

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As primeiras heresias e cismas

Outra ameaça ao Cristianismo nascente,que ia crescendo em muitas culturas, nocenário urbano de muitos pontos do ImpérioRomano até aonde o havia empurrado a fúriapersecutória dos seus inimigos numa novadiáspora, esta cristã, consistia no choque demúltiplas concepções que fermentavam nointerior da própria Igreja, ameaçando aunidade da mensagem cristã. É a ameaça dasheresias e dos cismas a matéria sobre a qualiremos reflectir neste capítulo.

A Igreja nascente começou por enfrentarum desafio muito especial da parte dosjudeus cristãos, que se consideravam des-cendentes dos cristãos primitivos deJerusalém.

Esta comunidade cristã primitiva de Jer-usalém era naturalmente constituída apenaspor judeus e estava inteiramente ligada ao

Templo: reuniam-se diariamente no Temploe os irmãos «eram bem vistos por todo opovo». (Act 2)

O anúncio da Boa Nova foi inicialmentedirigido aos judeus: quando os Apóstoloschegavam a alguma cidade dirigiam-se àssinagogas locais onde pregavam Cristo aosseus irmãos de raça.

Porém, em muitos locais, os judeus re-jeitavam tal mensagem, como aconteceu aPaulo e Barnabé em Antioquia da Pisídia(Act 13,13-52), onde foram mal recebidos,tendo sido violentamente insultados e atémaltratados. Apesar dessa atitude dos judeusos dois evangelizadores declararam:

Era preciso anunciar a Palavra de Deus, emprimeiro lugar a vós, judeus. Porém, visto que a re-jeitais e não vos julgais dignos da vida eterna,vamos dedicar-nos aos pagãos. (Act 13,46)

Entretanto, muitos judeus vinham sendoconvertidos já desde o começo da Igreja, nodia de Pentecostes. Só na manhã desse dia,

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após o discurso de Pedro, baptizaram-secerca de três mil, muitos deles da diáspora,peregrinos que se encontravam em Jerus-além na altura das festas religiosas judaicas,mas também muitos dos habitantes dacidade.

Algum tempo depois, após o milagre dePedro no Templo, junto da Porta Formosa –a cura instantânea de um coxo de nascença–, milagre presenciado por muita gente,juntou-se uma enorme multidão, assom-brada com os relatos dos que haviam as-sistido à cura do aleijado. Pedro tomou a pa-lavra e começou por dizer:

Israelistas, porque vos admirais com o que aconte-ceu? [...] A fé em Jesus deu saúde perfeita a estehomem que está na vossa presença. [...] Portantoarrependei-vos e convertei-vos [...] Após ter ressus-citado o seu servo, Deus enviou-O em primeirolugar a vós, para vos abençoar e para que cada umde vós se converta das suas maldades. (Act3,12-26)

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Muitos dos que ouviam Pedro abraçaram afé e o número de crentes – judeus – elevou-se a cerca de cinco mil.

As conversões dos judeus sucediam-se abom ritmo, mas, entretanto, chegara a vezdos pagãos: Cornélio, o centurião romano deCesareia e toda a sua família e a sua casa,após o seu próprio Pentecostes, suscitadopor uma pregação de Pedro, forambaptizados:

Pedro ainda estava a falar, quando o Espírito Santodesceu sobre todos os que ouviam a Palavra [...]ficaram admirados por o dom do Espírito Santotambém ser derramado sobre os pagãos. De facto,eles ouviam-nos falar línguas estranhas e louvar agrandeza de Deus. (Act 10,44-46)

Esses foram os primeiros pagãos baptiza-dos, e tal facto valeu a Pedro uma censura daparte dos Apóstolos e dos judaico-cristãos deJerusalém. No entanto, quando Pedro lhesexpôs o acontecido pormenorizadamente,eles sossegaram e deram glória a Deus,

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dizendo: «Também aos pagãos Deus con-cedeu a conversão que leva à vida!» (Act11,1-18)

E, à medida que os gentios se iam conver-tendo e recebendo o Baptismo, foram-se es-tabelecendo disputas, cada vez mais acesas,com os judaico-cristãos. Rigorosos quanto àLei de Moisés, queriam impô-la aos gentiosconvertidos. Eram especialmente zelosos noque dizia respeito à circuncisão, afirmando asua absoluta necessidade para se obter a sal-vação: se os gentios, apesar do arrependi-mento e da conversão, não se circuncidassemnão seriam salvos...

Em Antioquia (da Síria), Paulo e Barnabédiscutiram vivamente com eles, reagindo àspráticas do ritualismo judaico que queriamimpor aos gentios.A questão não ficouresolvida, de tal maneira que Paulo e Barn-abé e mais alguns discípulos decidiram subira Jerusalém para consultarem os Apóstolos eos anciãos.

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Chegados a Jerusalém e posta a questãoda controvérsia sobre a Lei de Moisés,reuniu-se o que se pode considerar oprimeiro concílio da Igreja, embora aindanão ecuménico: o Concílio de Jerusalém. Talconcílio teve lugar no ano 52, isto é, dezan-ove anos depois da morte e ressurreição deJesus e nele se pretendeu elucidar se os gen-tios convertidos ao Cristianismo deviam ounão cumprir a Lei de Moisés e fazer-secircuncidar.

A assembleia conciliar foi presidida porPedro que, juntamente com Paulo e Barnabé,argumentou e testemunhou para conseguirque os gentios fossem admitidos na Igrejasem terem de se submeter à Lei. Tiago (TiagoMenor), que era o bispo de Jerusalém, inter-veio, então, conciliador, sendo de opinião«que não se deviam importunar os pagãosconvertidos a Deus» (Act 15,13-21).

Depois de deliberarem resolveram enviaruma carta apostólica a Antioquia, pela mão

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de Paulo, Barnabé e de mais alguns outrosdiscípulos, carta essa em que, a certa altura,escreviam: «Decidimos, o Espírito Santo enós, não vos impor nenhum fardo além des-tas coisas indispensáveis: abster-se de carnessacrificadas a ídolos, do sangue, de carnessufocadas e das uniões ilegítimas.» (Act15,29) Estava, assim, terminada a controvér-sia, sendo os pagãos libertados da imposiçãodos judaico-cristãos para se fazeremcircuncidar.

Apesar de tudo, muitos judaico-cristãosdos mais variados pontos do Império Ro-mano pretendiam, teimosamente, conservara todo o custo os seus particularismos rituaise teológicos.

Quanto aos primeiros, permaneciam fiéisà observância do sábado, à circuncisão e aosinterditos alimentares.

Os segundos mostravam-se particular-mente zelosos do seu monoteísmo.Chegaram ao ponto de considerarem Jesus

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apenas um homem adoptado por Deus nodia do seu Baptismo.

Uma das seitas dos judaico-cristãos – ados Ebionitas – possuía até o seu próprioEvangelho: o Evangelho dos Ebionitas, es-crito com toda a probabilidade em meadosdo século ii.

Para os Ebionitas, também Jesus seria oúltimo de uma longa série de profetas e nãoum Filho de Deus: apenas um filho adoptivode Deus. Observavam rigorosamente osábado e muitos outros rituais do AntigoTestamento. E, na época de Paulo, foramseus inimigos, por ele se opor à obediência acertas práticas judaicas que os judeus queri-am impor aos pagãos convertidos ao Cristi-anismo, nomeadamente a circuncisão.

Os judaico-cristãos eram, normalmente,grupos fechados em si mesmos, não tard-ando, assim, que os outros convertidoscristãos, não judeus e que já os ultrapas-savam e muito em número, acabassem por

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considerá-los hereges. Para este judaico-cris-tianismo herético, negador da divindade deCristo e da redenção trazida pela sua Paixãoe Morte na Cruz, a missão messiânica de Je-sus teria sido a de conduzir o Judaísmo à suaperfeição, através de uma ainda mais rig-orosa observância da Lei...

Mas a maior ameaça, naquela época deperseguição e martírio foi a do Gnosticismo.

Tratava-se de uma corrente ideológica emgrande voga, pretendendo realizar um sin-cretismo religioso ao associar elementos doCristianismo, do Judaísmo, do Helenismo eaté das religiões iranianas.

Mais do que de gnosticismo, poderá falar-se de gnosticismos, pois eram inumeráveis asseitas gnósticas, cada uma com as suas par-ticularidades, embora podendo reduzir-se to-das a um denominador comum: umdualismo matéria-espírito, em que às oper-ações essencialmente mais da matéria e dacarne, a gnose (ou seja, conhecimento), se

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opõe o espírito, resultando a infelicidade dohomem das cadeias que o tornam prisioneirodo seu corpo, do mundo, do tempo e da suaalma inferior pecadora, não o deixando dis-frutar da sua outra alma, a celeste.

Os gnósticos do século ii consideravam-sea elite de um movimento religioso que tinhaa chave do segredo da salvação.

A teologia gnóstica acreditava que haviadois reinos distintos: um dos reinos era omundo da luz, espiritual, governado por umSer único, transcendente e totalmente im-possível de descrever; o outro reino era omundo material das trevas e da ignorância, eneste mundo vivia o homem. A gnose ouconhecimento era a ponte que nos permitiaescaparmos do reino da matéria para o reinodo espírito.

Houve várias seitas ou grupos de gnósti-cos: uma gnose pré-cristã, judaica (provavel-mente os essénios de Qumrã); depois, umagnose judaico-cristã (os ebionitas, já

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referidos a propósito do judaico-cristianismoherético); e, também, uma gnose cristã, quepretendia ter a posse de ensinamentos mis-teriosos, que colhiam em parte em inúmerosevangelhos apócrifos que proliferaram nosprimeiros séculos do Cristianismo.

A maior parte dos gnósticos cristãosrecusava-se a crer na encarnação, e na mortee ressurreição de Cristo. Para eles os sacra-mentos cristãos não passavam de iniciaçõesocultas e não diferiam dos mistérios pagãos.Quanto às suas posições morais, unsentregavam-se a um ascetismo rigoroso, quenada tinha de humano, ao passo que outros,numa posição diametralmente oposta, eram-de um amoralismo total, pois consideravam-se acima das leis morais.

O Cristianismo primitivo da Ásia, da Síriae do Egipto testemunha a proliferação dasseitas gnósticas. Há dois grupos de gnósticosque vêm mencionados no Apocalipse de São

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João: os discípulos de Balaão e os nicolaítas,que praticavam uma imoralidade absoluta.

Entre os membros de comunidades cristãssurgiram alguns orientadores gnósticos.Entre estes adquiriu uma certa notoriedadeum teólogo origináriode Alexandria, Valen-tim, que em Roma chegou a ser consideradopara o cargo de bispo.

Valentim era um intelectual brilhante, ex-ercendo uma influência tão profunda nognosticismo que os seus discípulos eram con-hecidos como Valentinianos.

Para os gnósticos cristãos, Jesus não era oFilho de Deus feito homem, mas sim ogrande revelador da gnose.

O gnosticismo era uma mistura sedutorade Cristianismo, especulação religiosa, misti-cismo, filosofia grega e judaísmo. Os gnósti-cos pretendiam ter um conhecimento totaldos problemas angustiantes que afligem ohomem. Tal conhecimento não é matéria defé, mas sim o fruto de uma iniciação. Não há,

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portanto, “fiéis” nestes movimentos, mas sim“iniciados”.

Para alguém se tornar membro de umaseita gnóstica devia submeter-se a complica-dos rituais de iniciação, muitos dos quais in-cluíam um segundo baptismo.

A gnose representava um perigo mortalpara a Igreja nascente, pois misturava osmistérios cristãos aos das antigas religiõesesotéricas. A ideia da transcendência divinasaia particularmente desvirtuada.

O rápido crescimento e a grande popular-idade do gnosticismo perturbou os chefesdas comunidades cristãs, não tardando areacção dos Padres da Igreja, que refutaramas teorias gnósticas como heréticas.

Contra estas doutrinas ergueu-se especial-mente o bispo de Lião, Ireneu, que escreveua Refutação da falsa gnose (Adversus Haer-eses), e é justamente considerado o “príncipedos teólogos cristãos”, no sentido de ter sidoo primeiro. Nos seus escritos são de destacar

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a importância que atribuía à tradiçãoapostólica oral, o primado da Igreja de Romafundada por Pedro e Paulo, a doutrina da“recapitulação” da humanidade pecadora emCristo, o segundo Adão.

Actualmente ainda existem algumas seitasgnósticas: são seitas teosóficas e antro-posóficas que praticam o ocultismo e o espir-itismo, proliferando em alguns países.

Antes de terminar o século ii os cristãostinham conseguido libertar-se das influên-cias gnósticas, resistindo à tentação de dis-solver a fé numa amálgama de fantasias sin-cretistas da gnose.

Entre os gnósticos surgiu, no século ii, umdos seus representantes mais notáveis napessoa de Marcião, que, vindo da Ásia Menoronde havia nascido, para Roma, aí se fixou e,uma vez iniciado no gnosticismo, começou aensinar e a desenvolver a sua própriateologia.

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Ele acreditava que existiam dois deuses: oDeus do Antigo Testamento e o Deus de Je-sus. O primeiro era o Deus Criador, justo,mas implacável e vingador. O segundo, oDeus de Jesus, era pura graça, amor ebondade. E enquanto o Deus Criador, o doAntigo Testamento, se mostrava em muitaspassagens como um deus mesquinho ecolérico, Jesus viera revelar um outro Deusainda desconhecido, que libertaria o homem,por pura graça, das rigorosas exigências dasleis do Deus Criador. Para Marcião, estesdois deuses tão diferentes personificavam ocontraste que se encontrava, até, nas cartasde São Paulo, da lei e da graça.

Na realidade, e até o que o tornava partic-ularmente perigoso e desestabilizador dascrenças cristãs tradicionais, era o apoio queia buscar para as suas teses às cartas de SãoPaulo, que o haviam profundamente influen-ciado. São Paulo, nos seus escritos, faz con-trastar frequentemente o Evangelho da

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Graça em Cristo com a lei de Moisés. Porém,enquanto São Paulo vê em Cristo ocumprimento das promessas feitas por Deusa Abraão e a Israel, Marcião dá-lhe o seutoque pessoal a justificar a sua própria teolo-gia, vendo uma contradição absoluta entre aBoa Nova de Cristo e o Antigo Testamento, oque o leva a pôr de parte completamente oAntigo Testamento e, mesmo, muitos escri-tos cristãos que ele considerava cheios defalsidades por declararem que muitos passosda vida de Jesus seriam o cumprimento dealgumas profecias do Antigo Testamento.

Assim, a Bíblia de Marcião não continhaabsolutamente nada do Antigo Testamento esó admitia o Evangelho de Lucas, emboramutilado, pois dele eliminou tudo quantodizia respeito ao nascimento de Jesus, supri-mindo, também, numerosas passagens dosensinamentos do Senhor, precisamenteaquelas em que Jesus confessa claramenteque o Deus-Criador é seu Pai.

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Mutila, também, as epístolas de São Paulo,suprimindo todos os textos em que oApóstolo afirma claramente que o Deus quefez o mundo é o Pai de Nosso Senhor JesusCristo, bem como todas as passagens nasquais o Apóstolo faz menção de profecias doAntigo Testamento anunciando a vinda doSenhor.

Deste modo, Marcião pode ser consid-erado como o primeiro a compilar umcânone cristão, pois na sua época ainda nãohavia qualquer lista de Escrituras do NovoTestamento, utilizando cada uma das váriasigrejas cristãs os escritos cristãos que lhesparecessem mais apropriados.

Para Marcião, Cristo não poderia ser real-mente humano, pois se assim fosse Ele teriafeito parte da Criação do Deus antigo. E aorecusar uma verdadeira natureza humana aJesus Marcião defendia que só havia sal-vação para as almas, não participando ocorpo da mesma salvação.

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A Igreja acabou por excomungar Marciãono ano 144, dadas as suas posições clara-mente heréticas face à doutrina cristã ver-dadeira, ameaçando a sua unidade. Ireneu,bispo de Lião, ao denunciar as falsas doutri-nas (Contra as Heresias) aponta os traços ca-racterísticos pelos quais se deve reconhecer averdadeira Igreja: por um lado, a Igrejaanunciava uma mensagem idêntica nomundo inteiro – «as línguas diferem atravésdo mundo (Roma, Egipto, Líbia, Celtas,Ibéria, Germânia...), mas o conteúdo datradição é único e idêntico» –; por outrolado, a Igreja transmitia através da sucessãodos bispos a tradição dos Apóstolos.

Uma vez excomungado, Marcião acaboupor fundar uma pseudo-igreja decalcada daIgreja cristã na sua organização e liturgia.Assim, criou uma estrutura eclesiástica com-pleta para a sua seita – o Marcionismo –,com bispos, presbíteros, diáconos e diacon-isas. Por outro lado, estabeleceu um rigoroso

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código disciplinar, em que exigia a abstinên-cia sexual, proibia o casamento e o consumode carne e de vinho. Na sua própria versãoda Eucaristia usava água em vez de vinho.

No seu zelo apostólico fundou igrejas portodo o lado para onde viajou, em Itália, noNorte de África, no Egipto, na Síria e emChipre. Esta proliferação de igrejas marcion-itas é mencionada, mais tarde, por umcristão célebre de Cartago, Tertuliano, queescreveu que Marcião instituía igrejas «comoas vespas fazem ninhos»8.

Marcião morreu cerca do ano 160, mas omarcionismo manteve-se florescente pormais de duzentos anos, o que é sur-preendente se nos lembrarmos da proibiçãodo casamento aos seus fiéis, bem como a ab-stinência sexual completa para toda a vida.Deste modo, para conseguir manter-se e pro-gredir teria, certamente, de haver um grandezelo apostólico dos seus fiéis para ganharemnovos convertidos.

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O marcionismo chegou, assim, até aoséculo iv, tendo sido ilegalizado pelo im-perador Constantino, que ordenou a entregade todas as casas de culto dos marcionitas àIgreja tradicional cristã.

Nos finais do século ii nasceu mais ummovimento que ameaçou dividir a Igreja.Tratava-se do Montanismo, do nome do seufundador, Montano, ex-sacerdote de umadeusa pagã, Cibele, que se havia convertidoao Cristianismo.

Montano proclamava a Nova Profecia,cuja mensagem era revolucionária: o Mundoacabaria em breve, Cristo regressaria, a Jer-usalém celeste desceria à Terra. Talmensagem era particularmente arrebata-dora, porquanto Montano afirmava ser in-strumento da manifestação do EspíritoSanto, que falava através dele.

Ao entusiasmo dos primeiros tempos doCristianismo, em que o Espírito Santo ac-tuava visivelmente nas assembleias cristãs

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em manifestações extraordinárias da graça –os carismas – sucedeu, a pouco e pouco, umarrefecimento da fé e um crescente mundan-ismo dos cristãos, quer dos leigos, quer dopróprio corpo eclesiástico. A expectativa davinda próxima do Senhor – a “parusia” – foi-se esbatendo após os primeiros anos de es-pera febril e impaciente. Na Igreja foi-se in-stalando um mal-estar indefinível: um senti-mento generalizado de abrandamento da féno regresso iminente de Cristo condicionavauma perigosa laxidão nos comportamentos,afrouxando a vigilância preconizada pelosApóstolos de modo a não serem «acusadosno Dia de Nosso Senhor Jesus Cristo». (1Cor1,8)

Foi neste quadro que surgiu a profecia deMontano sobre uma breve segunda vinda deCristo. Muitos cristãos que acolheram essaprofecia abandonaram as suas casas e o seutrabalho e seguiram o novo profeta paralevarem uma vida rigorosamente ascética, a

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fim de se prepararem, desta forma, para osúltimos dias que afirmavam estarem achegar.

Montano incitava-os a desejarem omartírio e a suportarem jejuns prolongados.Os montanistas advogavam também ocelibato.

O Montanismo espalhou-se a toda a ÁsiaMenor, onde havia começado – na Frígia –,bem como à Síria e, por fim, ao Ocidente,acabando por chegar ao Norte de África,onde seduziu um eminente defensor da fé deCartago: Tertuliano. Este tornou-se o maisilustre convertido do Montanismo, já noprincípio do século iii (em 207).

Tertuliano fundou, ele mesmo, a sua pró-pria Igreja montanista – o Tertulianismo –que conseguiu sobreviver até ao fim da eraimperial.

É a partir de escritos do próprio Tertuli-ano que se conhecem actualmente certos as-pectos do Montanismo, nomeadamente o da

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revelação carismática de alguns dos seusmembros.

Entretanto a Igreja em Roma, emboracondenando a mensagem montanista, tinhadificuldades em a refutar. Os Papas do finaldo século ii, primeiro Eleutério e depois Vít-or, acabaram por condená-la.

Os teólogos viram-se embaraçados. Defacto, ao contrário de outras heresias, osmontanistas não rejeitavam o Antigo Testa-mento (como faziam os marcionitas) e acol-hiam as Sagradas Escrituras na sua totalid-ade, sendo igualmente muito difícil encon-trar erros no seu código de rigorosoascetismo.

O próprio campeão da luta contra as her-esias, Ireneu de Lião, chegou a mencionarque também muitos membros da Igreja tin-ham poderes carismáticos de profecia, até deressuscitar os mortos, e de falar em línguaspor obra do Espírito Santo.

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No entanto, além de ser considerado ummovimento desintegrador da Igreja, não severificaram as profecias proclamadas peloMontanismo de guerras e catástrofes nat-urais que levariam ao fim do Mundo, nem asegunda vinda de Cristo, pelo que a Igrejatradicional o menosprezou. Os montanistasacabaram por se refugiar no campo onde omovimento sobreviveu algumas centenas deanos, até à sua extinção forçada no século vi.

Conta um historiador da época – Procópio– que os últimos montanistas se martiriz-aram a si mesmos, imolando-se vivos pelofogo no interior das suas igrejas, de modo aevitarem ser capturados pelos outroscristãos.

Nos três séculos que duraram asperseguições, os cristãos tiveram de enfrent-ar, além do martírio, algumas crises que serevelariam mais tarde como causas de futur-as controvérsias e debates ideológicos, maslevando, por outro lado, à consolidação

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lenta, mas firme da formulação do dogmacristão.

Uma dessas crises, nascida no interior daprópria Igreja, girava em torno da fé sobrealguns aspectos da doutrina cristã.

Geraram-se vivos debates acerca dadivindade de Cristo, bem como a questão daTrindade, surgindo correntes que se opun-ham à ideia de um Deus ao mesmo tempouno e trino: Pai, Filho e Espírito Santo. Paraessas correntes de opinião tal concepção daTrindade afigurava-se-lhes um politeísmoinconcebível, tal como o dos pagãos no meiodos quais viviam.

Esses cristãos que recusavam o Deus Trinoeram chamados monarquianos, pois defen-diam o princípio do Deus único, o “únicomonarca”. E o seu movimento era conhecidopor Monarquianismo do qual se conhecemduas escolas de pensamento.

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Uma dessas escolas de Monarquianismohavia nascido em Bizâncio e fora trazida paraRoma por Teódoto, cerca do ano 190.

Esta doutrina sustentava que Cristo tinhasido um simples homem, ser mortal, até aoseu Baptismo no rio Jordão por JoãoBaptista. Após o Baptismo, Cristo tornara-seFilho de Deus, por adopção, por obra doEspírito Santo.

Esta teoria “adopcionista” apoiava-se noEvangelho de Lucas: depois de baptizado,Jesus quedara-se em oração, quando o Céuse abriu e o Espírito Santo desceu sobre Elecomo uma pomba; e do Céu viera uma voz:«Tu és o meu Filho amado! Em ti encontro omeu agrado.» (Lc 3,21-22) Tais palavras davoz que se ouviu eram do Salmo 2 («Tu ésmeu filho, Eu hoje te gerei.»)

Esta era a doutrina do monarquianismoadopcionista, que foi, necessariamente, con-denada pela Igreja.

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Mais popular do que o Adopcionismo foi aescola do Monarquianismo Modalista.

Esta escola, levada de Esmirna, na ÁsiaMenor, para Roma por volta do ano 200, porNoeto, ensinava que Cristo fora divino.Porém, considerava a Trindade como sendotrês manifestações (modalidades) de um serdivino único e não como três pessoas real-mente distintas.

Tal doutrina modalista sustentava que oPai e o Filho eram dois modos distintos deum Deus único. Tal doutrina foi tambémcondenada, sendo Noeto excomungado pelaIgreja.

Esta escola de Monarquianismo foi aindadesignada por alguns como Patripassion-ismo, isto é, doutrina sobre a Paixão do Paiou doutrina do Pai que sofre.

Como tal doutrina não negava a divindadede Cristo, tornou-se muito popular, gan-hando rapidamente muitos discípulos. Con-tra tais ideias surgiram apologistas em vários

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pontos, que as atacaram sem tréguas: emRoma, Hipólito; em Cartago, Tertuliano; emAlexandria, Dionísio.

A teologia cristã foi dominada nos doisséculos seguintes pelos debates suscitadospor tais doutrinas, nascendo algumas contro-vérsias relativas à Trindade e à natureza deCristo.

Outra crise que a Igreja enfrentou no per-íodo dos três séculos de perseguições foi a daapostasia, sob várias formas e que, em mui-tos casos, contribuiu mais tarde para o des-encadear de algumas controvérsias e debatesideológicos.

A primeira notícia certa de tais apóstatasencontra-se numa carta de Plínio, o Jovem,ao imperador Trajano, a respeito doscristãos.

Legado romano na Bitínia (Ásia Menor),Plínio, embaraçado perante aqueles que lheeram apresentados em juízo como cristãos,resolve pedir instruções ao imperador. No

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entretanto, refere a conduta que seguia con-tra eles, mesmo antes das instruções superi-ores que pedia: àqueles que confessavam sercristãos e se obstinavam mesmo sob aameaça do suplício, mandava-os executar;mas mandava libertar todos aqueles que neg-avam ser cristãos ou tê-lo sido alguma vez eque, a mando seu e na sua frente, invocavamos deuses, ofereciam incenso e vinho à es-tátua do imperador e, por fim, blasfemavamde Cristo – «tudo coisas às quais, segundo sediz, é impossível obrigar aqueles que sãorealmente cristãos». A sua dificuldade maiorera o caso daqueles que juravam ter deixadode ser cristãos, uns há três anos, outros hámais tempo, e que a sua única culpa tinhasido a de se reunirem semanalmente paracantarem um hino a Cristo, como a um deus,e tomarem uma refeição comum, além de secomprometerem a ser pessoas moralmenteirrepreensíveis – e já tinham renunciado,mesmo, à prática da refeição comum

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semanal, após o édito pelo qual tinham sidointerditas as associações; por outro lado,veneraram também a estátua do imperador eas estátuas dos deuses e blasfemaram deCristo.

A estes primeiros blasfemos da Bitíniajuntou-se, no tempo do imperador Décio, jáno século iii, um grande número de cristãosque apostataram quando se desencadeou aprimeira grande perseguição geral contra oscristãos. Tinha havido um longo período detranquilidade até que, em 250, o imperadorordenou a todos os residentes do ImpérioRomano que realizassem publicamente osacrifício anual a Júpiter.

Deste modo, pela primeira vez os cristãosde todo o Império foram obrigados a demon-strar a sua lealdade ao Estado: assim, teriamde negar a sua fé cristã e tomar parte nossacrifícios pagãos. Era o édito de Décio queobrigava, também, a ter na sua posse um cer-tificado (libellus) comprovativo de que as

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ordens do imperador haviam sidocumpridas,

Todos os que desobedeciam ao édito doimperador eram barbaramente torturados eexecutados, o que levou muitos cristãos a ab-jurarem para evitarem o suplício. Mas mui-tos outros fugiram, esconderam-se nosmontes ou obtiveram certificados por sub-orno dos funcionários. No entanto, aperseguição foi-se intensificando e muitoscristãos, com medo da tortura e até damorte, acabaram por cumprir os sacrifícios:em alguns sítios a maioria dos cristãos obed-eceu ao édito imperial como no caso deCartago; em algumas cidades houvecomunidades, às vezes lideradas mesmo peloseu bispo, que renegaram a fé – é o caso, porexemplo, do bispo de Esmirna.

Entretanto, muitos cristãos morreram pelasua fé: é o caso de Fabiano, bispo de Roma,mas também dos bispos de Antioquia e deJerusalém.

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Quando esta perseguição abrandou – osGodos ameaçavam as fronteiras do Império eas atenções do imperador tiveram de se con-centrar na defesa – as comunidades cristãspuderam respirar de alívio e, confiadamente,os cristãos que haviam fugido e se tinhamescondido voltaram a aparecer.

Esta terrível perseguição de Décio custou àIgreja a morte de milhares dos seus mem-bros. Pior: a perseguição determinou umadivisão na Igreja. O problema foi de naturezadisciplinar e surgiu quando voltou a tran-quilidade: como deviam ser tratados os lapsi(os cristãos “caídos”, ou “vacilantes”, oslapsos), que durante as perseguições tinhamrenunciado à fé?

Posto este problema, as opiniões dividiam-se, destacando-se três pontos de vista que seconfrontavam: o dos condescendentes, o dos“duros” novacianistas e uma posição inter-média, defendida por Cipriano, bispo deCartago.

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Para os condescendentes, qualquer con-fessor (isto é, aquele que sofrera pela fé ehavia sobrevivido ao martírio) podia read-mitir um cristão lapso sem lhe imporqualquer penitência.

Para os “duros”, chefiados por um pres-bítero romano, Novaciano, nenhum dos lapsipoderia voltar a ser readmitido na Igreja.

Para os seguidores do bispo de Cartago,Cipriano, só um sínodo poderia decidir sobreo tratamento a dar aos lapsi, já que a unid-ade da Igreja e a autoridade dos bispos tin-ham de ser salvaguardadas. E, assim, osínodo de Cartago estabeleceu períodos pen-itenciais de exclusão, variáveis consoante ograu da falta cometida pelos lapsi. Competiaao clero o estabelecimento das penitências ea decisão sobre a sua aplicação. Esses grausde “lapso” iam dos sacrificati, isto é, aquelesque haviam oferecido sacrifícios nos altaresdos deuses romanos, aos thurificati, isto é,todos aqueles que haviam obtido, por fraude

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ou suborno dos funcionários imperiais, umcertificado falso, mesmo sem terem obed-ecido à ordem imperial.

Estas diferenças de opinião no tratamentoa dar aos lapsi acabaram por trazer de-savenças dentro da Igreja, chegando aoponto de gerarem um cisma.

A situação desencadeou-se quando Cipri-ano, bispo de Cartago, apoiou Cornélio parabispo de Roma. A atitude caridosa deCornélio para com os cristãos lapsos eraaprovada por grande número de membros daIgreja, o que certamente condicionou a suaescolha para chefe da Igreja de Roma.

Porém, Novaciano, o chefe da facção maisrigorista face aos cristãos lapsi, reclamou ocargo de bispo de Roma, pondo-se em campopara impor a sua autoridade. No entanto, umsínodo em Roma apoiou a escolha de Cipri-ano e excomungou Novaciano. O movimentocismático que então nasceu, o dosNovacionistas, estendeu-se à Gália, a

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Espanha, ao Norte de África e ao Oriente,onde surgiram muitas igrejas nas quais eraseguida a política “dura” de Novaciano emrelação aos lapsi. Tais igrejas perduraram atéao século vii.

As dissenssões surgidas no século iii nãose ficaram por aí uma vez que já no princípiodo século iv começaram a desenhar-se no ho-rizonte cristão novos motivos de preocu-pação e de divisão na Igreja.

O imperador Diocleciano desencadeou, eméditos sucessivos, uma terrível e generalizadaperseguição aos cristãos.

Num primeiro édito ordenava a demoliçãodas igrejas em todo o Império e que fossemqueimados todos os livros cristãos. E todosos cristãos foram demitidos dos cargospúblicos.

Alguns meses mais tarde, um segundoédito condenava à prisão todo o clero cristão.Um terceiro édito, logo a seguir, ordenavaque os prisioneiros oferecessem sacrifícios e

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fossem libertados. Deste modo, muitoscristãos foram coagidos a obedecer eacabaram por fazer sacrifícios e permitir quefossem queimadas as cópias das Escrituras.A tais apóstatas foi dada a designação detraditores (ou seja, “traidores”).

O que se havia passado em Roma poucomais de cinquenta anos antes, no final daperseguição de Décio, repetia-se agora emCartago com as consequências da grandeperseguição de Diocleciano. O estatuto doscristãos que haviam abjurado a sua fé dur-ante as perseguições era vivamente dis-cutido, começando a vingar a ideia de que sóas pessoas que levassem uma vida sem man-cha teriam direito a pertencer à Igreja.

Uma facção de cristãos do Norte de Áfricaclassificava mesmo de “traidores” os cristãosque tinham sucumbido ao medo nasperseguições, indignos, portanto, de continu-arem a pertencer à Igreja. Havia, no entanto,cristãos mais moderados que eram de

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opinião de que não se podia ser tão rigoroso,aceitando de volta ao seio da Igreja todosaqueles que se tinham escondido em vez dedesafiarem abertamente a autoridadeimperial.

As discussões prosseguiram, acesas, atéque no ano 311 rebenta a controvérsia com aeleição do novo bispo de Cartago. Para ocargo foi eleito um clérigo moderado,Ceciliano.

Gerou-se um movimento de contestatáriosà eleição do bispo, alegando que tal eleiçãoteria de ser considerada inválida pois asagração do bispo havia sido feita pelos“traidores”. Os opositores de Ceciliano,provenientes na maior parte da Numídia (re-gião que corresponde à actual Argélia), con-vocaram então um sínodo. Assim se re-uniram setenta bispos que anunciaram a de-posição de Ceciliano. Pouco tempo depoissagraram como bispo para Cartago Donato,

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que deu precisamente o nome ao movimentocontestatário: o Donatismo.

Donato afirmava convictamente que só ossacerdotes cuja vida fosse impecável podiam,na Eucaristia, realizar a transubstanciação(ou seja, a conversão do pão e do vinho noCorpo e no Sangue de Cristo) e que ospecadores não podiam permanecer na Igreja.

Chegou, entretanto, o ano de 313, data emque os imperadores Constantino e Licínio,depois de chegarem a acordo sobre umapolítica religiosa comum, promulgaram ochamado édito de Milão no qual era recon-hecida inteira liberdade de culto a todos oscidadãos do Império, fosse qual fosse a suareligião, devendo os edifícios confiscados serrestituídos. Deste modo, toda a legislaçãodiscriminatória contra os cristãos ficava ab-olida e a Igreja era reconhecida pelo podercivil, recuperando os lugares do culto e osbens de que havia sido despojada.

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O édito surgira em plena controvérsiadonatista. Ceciliano e os que o apoiavam nãoreconheceram a autoridade do sínodo que ohavia deposto, sendo a Igreja seriamenteameaçada por um autêntico cisma: Cartagoficara com dois bispos simultâneos, Cecilianoe Donato.

Os apoiantes de um lado e do outrolevaram o caso ao imperador Constantino,que ordenou a ambos que se apresentassemao bispo de Roma, Milcíades, fazendo-se rep-resentar cada grupo por dez bispos. O bispode Roma agregou-lhes mais quinze bispositalianos, constituindo-se todos em sínodopara deliberarem sobre matéria doutrinal.

O sínodo de Roma, presidido pelo Papa,acabou por reconhecer Ceciliano, deliber-ando, portanto, contra Donato. Mas osdonatistas não se conformaram, não aceit-ando a deliberação desse sínodo, pedindo aoimperador Constantino que ordenasse umnovo julgamento.

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Com a concordância do imperador,reuniu-se um novo sínodo no ano de 314, nosul da Gália, em Arles.

O sínodo de Arles corroborou o julga-mento de Roma, pronunciando-se contra osdonatistas. Mas estes não aceitaram overedicto dos bispos e a controvérsia con-tinuou, de tal modo que em muitas cidadesdo Norte de África se defrontavam dois bis-pos rivais. Nesta região irromperam váriostumultos, acabando Constantino por ordenaro exílio dos dirigentes donatistas, bem comoa confiscação dos bens da Igreja Donatista.Fez mesmo avançar tropas para desalojar ospartidários de Donato das igrejas queocupavam.

Apesar dessas medidas imperiais, osdonatistas mantinham-se firmes, resistindotenazmente a ponto de preferirem a tortura,a prisão e mesmo a morte a uma submissãoaos “traidores”.

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Tudo isto levou Constantino a desistir dosseus decretos anti-donatistas (ao fim de oitoanos de lutas e tumultos, em 321). Como apaz mesmo assim não regressava, o im-perador resolveu a questão de outra maneira.Como os seus soldados não conseguiam de-salojar os donatistas das igrejas que ocu-pavam, ele compensou os “católicos”, dando-lhes dinheiro para construirem outrasigrejas...

Como nota final, se o Donatismo tivessealastrado esse facto levaria o Cristianismo aver-se reduzido a uma pequena seita só de“puros”, de tal modo que, a partir de certa al-tura, ninguém poderia ter a certeza de estar aassistir a uma Eucaristia válida e de recebera Sagrada Comunhão...

Uma outra crise que ameaçou a Igreja noséculo ii, chegando mesmo a dividi-la tem-porariamente, foi a que ficou conhecidacomo a Controvérsia Quartodecímana ou dodécimo quarto dia, que consistiu na disputa

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sobre a celebração da Páscoa entre a Igrejado Oriente e a Igreja de Roma.

A Igreja do Oriente comemorava a Páscoacom uma vigília na mesma noite em que secelebrava a Páscoa judaica, fosse qual fosse odia da semana sobre o qual recaísse.

O costume romano defendia que a Páscoadeveria ser comemorada no domingoseguinte ao da Páscoa judaica. E tal costumeera também seguido em algumas igrejas daÁsia Menor.

As discussões sucederam-se ao longo doséculo ii sem que se chegasse a qualquer con-clusão. Devido às diferenças de calendárioentre o Oriente e o Ocidente, a controvérsiatornava-se particularmente acesa de sete emsete anos quando, em Roma, a grandecomunidade cristã oriunda do Orientecomemorava a morte de Cristo, jejuando, aomesmo tempo que os outros cristãos da cid-ade comemoravam a Ressurreição doSenhor.

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Em 190, o bispo de Roma, Vítor I, umbispo oriundo do Norte de África, dirigiu umconvite a todas as igrejas para que obser-vassem o critério de Roma, celebrando a Pás-coa no domingo a seguir à Páscoa judaica.

Convocou vários sínodos – em Roma, naPalestina e em mais alguns lugares – a fimde que ficasse instituída a nova regra em to-do o mundo cristão. Foram excomungadastodas as comunidades da Ásia Menor que serecusaram a obedecer ao édito do Papa.Porém, apesar disso, continuaram a celebrara Páscoa de acordo com o costume oriental.

Embora desprezado em muitas das igrejascristãs da Ásia Menor, o édito de Vítor teveum grande significado ao mostrar que aIgreja de Roma e o seu bispo, o Papa,começavam a afirmar a sua autoridade sobreas comunidades cristãs dispersas pelomundo, já no século iii.

A controvérsia continuou por todo oséculo iii, alternando focos mais acesos num

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e noutro ponto, com outros que se foramapagando a pouco e pouco, até ficar final-mente resolvida, já em pleno século iv, noprimeiro concílio ecuménico da Igreja – oConcílio de Niceia – convocado, em 325, pelopróprio imperador Constantino, para resolv-er a grave crise ariana.

A primeira heresia que teve uma grandedifusão nasceu, entretanto, em Alexandria,no século iv. Até ao édito de Milão, em 313,as controvérsias e conflitos que surgiam aquie ali na Igreja ficavam mais ou menos local-izados. Com a paz geral para a Igrejacomeçara uma nova era para os cristãos,agora livres de qualquer perseguição. Destemodo, qualquer crise nascida num qualquerponto do seio da Igreja alastrava rapida-mente até aos pontos mais recônditos doImpério.

Foi o que aconteceu com a heresia nascidaem Alexandria, tendo como autor um sacer-dote considerado e popular de nome Ário,

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que sustentava que Jesus Cristo, na realid-ade, não era Deus, não tendo a “mesma sub-stância” que Deus Pai. Para Ário, Jesus nãoteria coexistido desde toda a eternidade como Pai, tendo sido criado do nada, não sendo,portanto, Filho de Deus por natureza, isto é,não seria um filho natural, gerado, masapenas um filho adoptivo de Deus, pelo quenão se lhe poderia propriamente chamar,também, Deus.

Esta doutrina de Ário não foi aceite por Al-exandre, o bispo de Alexandria: o Filho co-existia com o Pai desde toda a eternidade,igual ao Pai, Filho por natureza, gerado, nãopor adopção.

Apesar da autoridade do bispo, a teologiade Ário foi alastrando, acabando por dividira Igreja em duas: a dos que acreditavam queJesus Cristo era a Segunda Pessoa daSantíssima Trindade, com a mesma naturezadivina do Pai («o Pai e Eu somos um» – Jo17,22), e a Igreja daqueles que, com Ário,

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acreditavam que Cristo era apenas umhomem, embora fosse a mais nobre dascriaturas.

As consequências do Arianismo para a fécristã eram muito graves, afectando o dogmada Redenção: se Cristo não fosse o Verbo en-carnado e, portanto, verdadeiro Deus, aRedenção não se teria consumado.

As grandes qualidades de Ário, aliadas àsua capacidade enorme de debater, fizeramcom que o erro ameaçasse espalhar-se rapi-damente, tanto mais que ia adquirindo nu-merosos apoiantes, nomeadamente entre opróprio clero de Alexandria.

Em 318 é convocado um sínodo local deperto de cem bispos egípcios e líbios. Depoisde um exame das doutrinas de Ário o sínodocondenou-o, a ele e aos seus apoiantes, comoheréticos, excomungando-os.

Porém, Ário não aceitou a excomunhão econseguiu muitos mais apoios no Oriente,entre eles o do bispo de Cesareia, Eusébio, e

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também um outro Eusébio, este bispo deNicomédia.

Estava-se numa época em que a Igreja seencontrava dividida no Ocidente pelo Donat-ismo, e se via agora fortemente ameaçadapelo Arianismo, no Oriente, de ficar, tam-bém, dividida em dois campos teológicosopostos.

Impunha-se, portanto, uma reunião de to-dos os bispos do universo cristão para dis-cutirem os pontos de vista doutrinais emconfronto.

Assim, com o consentimento do Papa Sil-vestre I, o imperador Constantino convocouum concílio – o primeiro ConcílioEcuménico ou Universal – para Niceia (actu-al Iznik, no noroeste da Turquia), no ano325. Assistiram a esse concílio mais detrezentos bispos, a maioria da Igreja Orient-al, estando presentes os principais teólogos:Eusébio de Cesareia (o historiadoreclesiástico), Eusébio de Nicomédia (o

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principal bispo ariano) e, também, o bispo deAlexandria, Alexandre (o grande adversáriode Ário), bem como Marcelo de Ancira (a ac-tual Ankara). O Papa enviou um legado parao representar.

Quase todos os bispos condenaram adoutrina de Ário, proclamando solenementeque o Senhor Jesus era «consubstancial» aoPai. O símbolo niceno, como ficou con-hecido, proclamava que o Filho, Jesus Cristo,Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeirode Deus verdadeiro, gerado, não criado, era«consubstancial» ao Pai: constituiu um tri-unfo claro para os defensores da Ortodoxia.

O período que se seguiu ao concílio, contrao esperado, não impediu que o Arianismocontinuasse bem vivo, ameaçando tornarariana toda a Igreja.

Eusébio de Nicomédia, bispo pró-ariano,tornou-se o dirigente máximo do imperador,através da família de Constantino. E ascoisas chegaram ao ponto de Constantino

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acabar por ser baptizado no seu leito demorte, em 337, pelo próprio Eusébio deNicomédia.

Apenas dois anos depois, em 339, Eusébiode Nicomédia é feito bispo deConstantinopla, tornando-se, ele, um arianoconfesso, um dos chefes mais poderosos daIgreja.

Em 341, Eusébio sagrou Wulfila comoprimeiro bispo dos Godos. Wulfila era umjovem missionário junto dos Godos da Dácia,ao norte do Danúbio. Tal facto trouxe con-sequências, mais tarde, de um incalculávelalcance.

O Arianismo só acabou por ser abolidocom a chegada ao poder do imperadorTeodósio, católico sincero, que converteu oCristianismo na religião oficial do Estado.

Teodósio convocou, também, um concílio,em 381: o segundo concílio ecuménico, oConcílio Ecuménico de Constantinopla. Oobjectivo do imperador era eliminar de uma

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vez para sempre o Arianismo, constituindo asua condenação uma entre outras decisõesdo concílio.

Outras decisões consistiram no triunfo dafé nicena e na condenação de uma nova her-esia, derivada do Arianismo: o Macedonian-ismo, que negava a divindade do EspíritoSanto. Neste concílio foi completada a teolo-gia trinitrária, sendo a doutrina católica daSantíssima Trindade fixada no “Símboloniceno-constantinopolitano”. Ficavam, noentanto, ainda, por serem expressamente de-claradas nesse símbolo as relações doEspírito Santo com o Filho, ponto esse que,indefinido, veio dar origem mais tarde àquestão do “Filioque”. Séculos mais tarde talindefinição contribuiu para a separaçãoentre o Oriente e o Ocidente cristãos.

O Arianismo, embora abolido na Igreja,sobreviveu, contudo, como a forma de Cristi-anismo professada pela maioria dos povos

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germânicos que invadiram o Império doOcidente.

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Depois da tempestadevem abonança:a paz geral para a Igreja

Foram várias as perseguições de que oscristãos foram alvo. A primeira foi iniciadapor Nero no ano 64 (morte de São Pedro eSão Paulo), em Roma, e prosseguida por Tra-jano, no século ii, já por todo o Império Ro-mano (morte de Inácio, bispo de Antioquia),e por Marco Aurélio (condenação de Justino,o apologista, do bispo Policarpo, que haviasido discípulo de São João e tendo tido Iren-eu, futuro bispo de Lião, como discípulo).Continuaram no século iii, após um édito deDécio, em 250, que ordenava a todos os hab-itantes do Império que participassem pess-oalmente num sacrifício geral em honra dosdeuses romanos, o que apanhou despreven-idos os numerosos cristãos que viviam tran-quilamente um longo período de paz. Novaperseguição geral poucos anos volvidos, da

iniciativa do novo imperador, Valeriano, que,em 257, interdita o culto cristão, tomandomedidas contra o clero e proibindo as re-uniões nos cemitérios (martírio de Ciprianode Cartago, do Papa Sixto e do seu diáconoLourenço). Seguiu-se um período de quar-enta anos, a partir de um édito de tolerânciado imperador Galiano, de 261, período emque cresceu rapidamente o número decristãos, sendo construídas muitas igrejas.Por último, a última grande perseguição doprincípio do século iv, com o imperadorGalério, associado do imperador Dioclecianono Oriente, perseguição terrível, em que àcondenação dos cristãos à morte ou às minasse juntava a destruição dos livros sagrados edos locais de culto, numa época em que oscristãos constituíam já cerca de 50% da pop-ulação (os quatro éditos de Galério promul-gados no espaço de um ano, entre 303 e 304,visavam acabar de vez e para sempre com oCristianismo e a Igreja).

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Não obstante a violência da perseguiçãodecretada por Galério, os seus resultadospautaram-se por um categórico malogro aonão atingir o objectivo que visava. E, assim, omesmo Galério, ao constatar o fracasso dosseus desígnios, recuou na sua política em re-lação ao Cristianismo, acabando por promul-gar um édito – o édito de Sárdica – em queconcedia aos cristãos um estatuto de tolerân-cia. Tal édito de tolerância, do ano 311,garantia aos cristãos, desde então, uma ex-istência livre bem como inteira liberdadepara celebrarem as suas assembleias e cultos,desde que nada fizessem contra a ordempública. Em compensação, Galério, atacadode inesperada e dolorosa doença, às portasda morte, pedia as orações dos cristãos parasi.

Chegara, finalmente, a paz, sendo liberta-dos todos os cristãos que se encontravampresos. Embora não concedesse aos cristãosplena liberdade religiosa, tal édito de

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tolerância revestia-se de uma enorme im-portância, trazendo uma tranquilidade se-gura para a Igreja, já não sujeita a uma ex-istência precária, constantemente inter-rompida pela fúria persecutória de algunsimperadores romanos. Tinham passado doisséculos e meio de perseguição até os cristãosobterem, pela primeira vez, autorização paraprestar publicamente o seu culto. O ano 311marca essa viragem.

Seria com o filho do tolerante imperadorConstâncio Cloro, imperador do Ocidente – ede sua mulher, Helena, uma cristã – queuma paz geral e definitiva chegaria para aIgreja. Esse filho foi o futuro imperadorConstantino.

Sucedendo no Ocidente a seu pai, Con-stantino desceu da Gália para a Itália, dom-inada, então, por Maxêncio. Embora muitoinferiores em número, as disciplinadasforças de Constantino defrontaram o exér-cito imperial de Maxêncio à entrada norte de

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Roma, derrotando-o e levando-o a umaaniquilação total na Ponte Mílvio, sobre o rioTibre, acabando a maior parte dos soldados,incluindo o próprio Maxêncio, por perecernas águas do Tibre.

O autor cristão Eusébio de Cesareia ex-plica a vitória de Constantino como sendodevida a uma intervenção miraculosa: Con-stantino, nas vésperas da batalha decisiva,teria tido uma visão, em que distinguiu nocéu um sinal com as duas primeiras letras donome Cristo, em grego – X e P – ao mesmotempo que ouviu as palavras gregas Entoutoi nika (ou seja, por este sinal vencerás).Na véspera da batalha, Constantino mandoufazer um novo labarum (estandarte imperial)com o sinal P fixado no centro de um X,mandando que os seus homens desenhassemeste símbolo nos seus escudos.

Empunhando o novo estandarte imperialdurante o combate, bem como os seus ho-mens os escudos com o emblema XP,

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Constantino destroçou o exército deMaxêncio, tornando-se o único senhor aOcidente. O Cristianismo triunfara sobre opaganismo, e os bens confiscados às igrejasdurante as perseguições foram inteiramentedevolvidos.

No Oriente reinava como imperadorúnico, em Nicomédia, Licínio. Os dois im-peradores, Constantino, no Ocidente, eLicínio, no Oriente, uniram as suas políticasem relação ao Cristianismo, publicando, em313, um decreto que confirmava não só a tol-erância religiosa para com os cristãos, con-firmação dos éditos de Galério, como asse-gurava também a liberdade de consciência ede culto a todas as religiões: foi o édito deMilão.

Porém, só mais tarde, em 324, é que ter-minaram definitivamente as perseguiçõesaos cristãos, movidas por Licínio, um pagão,após desentendimentos com Constantino.Este derrotou-o na batalha de Crisópolis,

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ficando sozinho em campo como imperador,tanto do Ocidente como do Oriente.

Imperador único, Constantino procedeu areformas várias das estruturas do Império.Começou por escolher uma nova capital,fazendo de um pequeno porto grego, a cid-ade de Bizâncio, uma grande metrópole, napassagem entre a Europa e a Ásia, uma NovaRoma que se tornaria o centro do Impériocom o nome de Constantinopla (isto é, a cid-ade de Constantino).

Constantino concedeu aos bispos uma cat-egoria semelhante à dos senadores, favore-cendo, assim, o Cristianismo, embora sem otransformar na religião oficial. Fez, no ent-anto, numerosas doações às igrejas cristãs emandou construir várias basílicas, incluindoa de São Pedro, em Roma.

Com Constantino, a Igreja e o Estado pas-saram rapidamente a ser uma só entidade,embora a controvérsia persistisse entre am-bos. O imperador utilizou símbolos cristãos

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na cunhagem de moedas e declarou o domin-go como um dia de descanso. Por outro lado,os princípios morais do Evangelho forampouco a pouco inspirando a própria legis-lação civil, dando origem ao Direito romano-cristão.

Preocupando-se, ao mesmo tempo, com osinteresses do Estado e com os do Cristian-ismo, Constantino tornou-se uma autêntica“eminência parda” da Igreja. O primeiro con-cílio ecuménico da Igreja é por ele convo-cado, no ano 325, em Niceia. Ele própriopresidiu a esse concílio, que teve a presençade 300 bispos e representantes do Papa Sil-vestre, e decidiu as medidas a tomar contraos hereges arianos. O próprio imperador in-tervém em questões teológicas, ao propor umacrescento ao Credo: o do adjectivo ho-moousios, significando que o Filho é damesma substância ou ousia do Pai, isto é, oFilho é consubstancial ao Pai.

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Não obstante a condenação do arianismopelo concílio, as controvérsias persistiram,rejeitando a maior parte dos Orientais a fór-mula do Credo de Niceia, com o seu ho-moousios imperial. O próprio imperador,que estivera na raiz do Credo de Niceia, coma preocupação de apaziguar os Orientais, ter-giversa e acaba por favorecer os arianos. Foium ariano confesso, Eusébio de Nicomédia,quem baptizou, em 337, Constantino no leitode morte.

No primeiro concílio ecuménico – Niceia,em 325 – Constantino aproveitou o ensejopara adaptar a organização da Igreja à doEstado. Assim, a cada província romana cor-responderia uma província eclesiástica, como seu metropolita, isto é, o bispo da capitalda província, com o poder de convocar umconcílio ou sínodo provincial para confirmare investir os bispos da província. Acima dasprovíncias estavam as sedes episcopais dasprincipais cidades do Império: são os

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Patriarcados, precisamente os pontos departida da evangelização. Tais patriarcadosvinham já desde as origens da Igreja, maspassavam a ter uma hierarquia especial os deRoma, de Alexandria, de Antioquia e, ainda,Cartago e Jerusalém. Entretanto, com otempo, o patriarcado de Constantinopla in-voca para si um primado de honra, depois dobispo de Roma.

O Paganismo começou a ser acossado peloimperador Constantino com vista à sua elim-inação. A legislação então produzida é-lhecada vez mais desfavorável. Os cultos pagãosvão sendo interditados pouco a pouco. Algu-mas práticas são já interditadas por Con-stantino: a magia, o aruspício (adivinhaçãopor consulta das entranhas das vítimas sacri-ficadas). Mais tarde, sucessores de Con-stantino proibem, mesmo, os sacrifícios,mandando fechar os templos pagãos e de-cretando a pena de morte para ostransgresssores.

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Após a morte de Constantino, o Cristian-ismo não deixou de progredir, não obstanteas querelas entre os três filhos do imperadorque lhe sucederam: Constâncio II, Con-stantino II e Constante.

Constâncio II reina no Oriente e adopta oArianismo. Constantino II reina no Ocidentee tutela o irmão mais novo, Constante, quegoverna a Panónia, região da Europa Cent-ral. Mas Constante acaba por se revoltar ederrotar o irmão mais velho, apoderando-seda Itália. O Império ficou, assim, dividido emdois: o do Oriente, com a capital em Con-stantinopla, tendo Constâncio II como im-perador, e o do Ocidente, com a capital agoraem Milão, e tendo Constante comoimperador.

Constâncio II, ariano convicto, impõe, porum édito imperial, o seu culto ariano às out-ras formas de Cristianismo. Pelo contrário,Constante, cristão “nicea-no”, subscrevendoos princípios enunciados em 325 pelo

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Concílio de Niceia, que condenaram oarianismo, torna-se perseguidor de donatis-tas e de arianos.

Mas em 350, o imperador do Ocidente,Constante, sofre um golpe de Estado militar,sendo o poder usurpado por um oficialpanónio. No entanto, o irmão, Constâncio II,derrota o usurpador, tornando-se o únicoimperador, do Ocidente e do Oriente.

Um sobrinho de Constantino I, o Grande,de nome Juliano, nomeado “césar” por Con-stâncio II, que o encarregou de defender aGália contra os bárbaros, acaba por se tornarimperador romano, por morte do primo,que, entretanto, se preparava para sufocaruma revolta militar, precisamente das tropasde Juliano e que o haviam proclamado “au-gusto”, isto é, imperador.

Juliano, que reinou entre 361 e 363, ficouconhecido com o cognome de o Apóstata,porquanto, avesso ao Cristianismo, tentaravoltar à religião tradicional, o Paganismo,

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mas um Paganismo muito especial, impreg-nado de gnosticismo. Assim, começou porencerrar as escolas e as igrejas cristãs e torn-ar os cristãos uma espécie de “cidadãos desegunda”. Anula os decretos contra o Pagan-ismo e reabre os templos pagãos. Embora serecusasse a perseguir os cristãos, fechava, noentanto, os olhos quando a população reagiaviolentamente contra os cristãos. Esta tent-ativa de repaganizar o Império Romanoacabou por fracassar pela morte de Julianona Mesopotâmia, em luta contra os Persas. Asua morte foi mesmo considerada peloscristãos como um castigo divino.

Os imperadores que sucederam a Juliano,o Apóstata, foram todos contrários ao Pagan-ismo: Valentiniano e Valente, Graciano eTeodósio, respectivamente imperadores doOcidente e do Oriente.

Graciano foi o primeiro imperador ro-mano a recusar o tradicional título de“Pontífice Máximo”, ao assumir o poder

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imperial em 375. E a última luta entre o Cris-tianismo e o Paganismo acabou por se verifi-car na instituição mais venerável da Romaantiga e que resistia ao Cristianismo: o Sen-ado. Durante mais de quatro séculos as ses-sões do Senado Romano iniciavam-se comum sacrifício a uma deusa alada do triunfo –Nike, em grego, ou Vitória. Graciano, em382, mandou remover o seu altar e a sua es-tátua, que ali se encontravam desde o ano 29a. C., comemorando a vitória de Octavianoem Ácio. Para tal, Graciano apoiou-se nossenadores cristãos, que já eram uma maioria,contra uma “velha guarda” encabeçada pelosenador Símaco, que tudo fez, depois, massem qualquer êxito, para conseguir a restaur-ação do referido altar.

A chegada de um general hispânico, natur-al de Toledo, ao poder pela mão de Graciano,trouxe a consolidação do papel do Cristian-ismo – mas do Cristianismo niceno, orto-doxo – como religião oficial do Estado.

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Tratava-se de Flávio Teodósio, que reinou noOriente como imperador desde 379.

Teodósio promulgou um édito em Tes-salónica em 380 – o Cunctos populos (ouseja, todos os povos) – que visava particular-mente os arianos, decretando que todos ospovos submetidos ao Império deviam «ad-erir à fé transmitida aos romanos peloApóstolo Pedro, à fé professada peloPontífice Dâmaso e pelo bispo de Alexandria,ou seja, o reconhecimento da Santa Trindadedo Pai, do Filho e do Espírito Santo».

Esta fé será fixada definitivamente numconcílio convocado por Teodósio para Con-stantinopla, em 381: o segundo concílioecuménico. Neste concílio ecuménico sãocondenados os arianos, os macedonianossemi-arianos, os apolinaristas e outras her-esias e completa-se a confissão de fé deNiceia:

«Creio no Espírito Santo, Senhor que dá avida, e procede do Pai e com o Pai e o Filho é

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adorado e glorificado.» Isto é: haviaigualdade de natureza entre o Espírito Santoe Deus. É a confissão de fé que mais tardeseria chamada Credo de Niceia-Constantinopla.

No ano seguinte, o imperador determinoua entrega à Igreja Ortodoxa de todos os bensdas igrejas não ortodoxas, como a Ariana, aMacedoniana e a Donatista. Ao mesmotempo surgiu a proibição para que estas igre-jas realizassem qualquer serviço de culto. Emseguida começaram as perseguições, em queos hereges eram torturados e alguns executa-dos. A Igreja perseguida ainda nos princípiosdo século iv tornou-se Igreja perseguidora,em 392, ano em que foi promulgada umaproibição geral de cultos e sacrifícios pagãos,sob pena de castigo máximo.

Com todas estas medidas o imperadorTeodósio – que ficaria conhecido comoTeodósio, o Grande – torna o Cristianismoreligião do Estado, sendo a Igreja Católica a

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Igreja do Estado. A heresia tornara-se crimecontra o Estado.

Tão longe se estava, então, dos tempos deNero, de Décio e de Valeriano e das durasperseguições de Diocleciano e de Galério...Após aqueles tempos tempestuosos para oCristianismo, sobreveio a bonança: a princí-pio tímida, com o édito de tolerância deGalério, depois, franca, numa paz geral edefinitiva para os cristãos, com Constantino,o Grande. Por fim, após um breve interregnode sobressaltos com o imperador apóstataJuliano, chega, finalmente, com Graciano, elogo a seguir com Teodósio, o Grande, a con-solidação da paz, tornando-se o Cristianismoa religião do Estado, com a proibição geraldos cultos e sacrifícios do Paganismo.

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Vida dos cristãos nos primeirosséculos

Os cristãos formavam comunidades locais– as igrejas – cujo modelo nos é apresentadopelos Actos dos Apóstolos: «Eram assíduosao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, àfracção do pão e às orações.»

Precisamente a comunidade de Jerusalémtornara-se o modelo para todos os fiéis epara todas as igrejas.

Havia, inicialmente, um lugar comum ajudeus e cristãos para a oração, bem comopara a escuta das Escrituras: o Templo.Porém, as orações eram cristãs, embora con-tinuassem a frequentar o Templo.

O culto consistia, além das orações, nafracção do pão – a Eucaristia. Essa fracçãodo pão celebrava-se particularmente noprimeiro dia da semana, que é o dia da res-surreição do Senhor, mais tarde designado

como o dia do Senhor (Act 20,7). O pão quese partia constituía comunhão com o corpode Cristo, no ensino dos Apóstolos (SãoPaulo na primeira carta aos Coríntios (1Cor10,16). Do mesmo modo, o vinho tomadonessa refeição, depois de abençoado,tornava-se comunhão com o sangue deCristo (idem).

Desde muito cedo circularam calúniaspopulares, acusando os cristãos de “an-tropófagos”, ou seja, de comungarem o corpoe o sangue de uma criança nas suas reuniõesde culto. Em sua defesa ou justificação (apo-logia) os cristãos procuram esclarecer osseus detractores, expondo por escrito a suadoutrina, bem como a verdade dos costumescristãos, no sentido de não pairarem naopinião pública quaisquer mal-entendidos.Os autores de tais escritos conheciam-secomo apologistas, verdadeiros criadores deuma primeira teologia. Entre os apologistasmais destacados citam-se Justino (140-150)

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que dirigia, em Roma, uma escola de filo-sofia cristã, e Tertuliano (c.197), o autor quemais se distinguiu na defesa dos cristãos coma sua obra Apologética. Uma obra célebre,cujo autor se desconhece, conhecendo-seapenas o seu destinatário pagão, “Diognetes”faz uma vibrante apologia do Cristianismo,afirmando, entre outras coisas, que «o que aalma é para o corpo, são os cristãos nomundo. A alma reside em todos os membrosdo corpo como os cristãos em todas as cid-ades do mundo.»

O que desde muito cedo constituiu um ele-mento de garantia da unidade da comunid-ade cristã foi a celebração comum, com regu-laridade, da fracção do pão, também desdemuito cedo conhecida como Ceia do Senhorou Eucaristia, cujo significado é o de “recon-hecimento” ou “acção de graças”. Tratava-sede uma refeição de lembrança e de acção degraças.

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Um membro novo da comunidade cristãdava um testemunho público da sua fé at-ravés de um rito de iniciação cristã: oBaptismo.

Numa prática que herdaram do Judaísmo,os cristãos fazem a iniciação cristã pelobanho de água – o Baptismo –, operando umnovo nascimento pelo Espírito, fazendo ocristão participar da morte e ressurreição deCristo.

A admissão ao Baptismo obrigava a umapreparação – “catecumenato” (palavra quesignifica período de preparação dos “catecú-menos”, isto é, “aqueles que se instruem nareligião”, neste caso, aqueles que recebem in-strução nas doutrinas do Cristianismo antesdo Baptismo).

Esta preparação podia ser muito curta,como acontecia nos primórdios do Cristian-ismo, a partir do dia de Pentecostes. À mul-tidão, abalada pela sua pregação, declaravaSão Pedro: «convertei-vos e peça cada um o

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Baptismo em nome de Jesus Cristo, para vosserem perdoados os pecados. Recebereis en-tão o dom do Espírito Santo.» Preparação es-ta muito rápida, sem dúvida, exigindo para aadmissão ao Baptismo uma conversão, com-preendendo um arrependimento dos seuspecados, com o propósito de observar osmandamentos, o acolhimento da mensageme proclamação da fé em Cristo.

Preparação muito curta no tempo ou maisprolongada, sempre incluiu uma catequese,que consistia no ensino do dogma e da moralcristãos, dando-se paulatinamente a con-hecer o conteúdo da fé àqueles que, fascina-dos e maravilhados pela proclamação doEvangelho (o que se designa por Kerigma,significando anúncio ou proclamação em altavoz) manifestam o desejo de serem cristãos.Podemos encontrar exemplos de pro-clamações kerigmáticas do Evangelho no dis-curso de Pedro após o Pentecostes (Act2,14-36), levando três mil a receberem o

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Baptismo; o discurso de Pedro após a curado coxo de nascença colocado na Porta For-mosa todos os dias para pedir esmola (Act3,12--26) elevando-se a partir daí o númerode crentes a cerca de 5000; os discursos dePaulo na sinagoga de Antioquia da Pisídia(Act 13,16-41), primeiro dirigindo-se aosjudeus e depois, no sábado seguinte, os dis-cursos desassombrados que Paulo e Barnabédirigiram aos pagãos após terem sido re-pelidos pelos seus irmãos judeus (Act13,44-49); todos os discursos de Paulo e quelevaram à fundação de igrejas na Macedónia,em Corinto, em Éfeso etc.

No fim da preparação catequética seguia-se um ritual, uma vez que, examinando ocomportamento dos catecúmenos, esteseram julgados dignos de receber o Baptismo.Esse ritual desenrolava-se (tal como actual-mente) a partir da Sexta-Feira Santa até aoDomingo, altura em que começavam os ritosbaptismais propriamente ditos, aos quais se

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seguia a recepção do sacramento da Con-firmação, participando, a partir daí, os novosbaptizados na primeira Comunhãoeucarística, encerrando-se aí a iniciaçãocristã. Todo este ritual se aplicava à iniciaçãocristã dos adultos.

Porém, é tradição imemorial da Igreja aprática de baptizar as crianças, não obstantea opinião contrária de um apologista tão em-inente como Tertuliano, que afirmava a esserespeito: «Ninguém nasce cristão, faz-se.»No entanto, desde os tempos mais antigos, oBaptismo é administrado às crianças, vistoser uma graça e um dom de Deus que nãosupõem méritos humanos, sendo as criançasbaptizadas na fé da Igreja.9

Além da Eucaristia e do Baptismo (e daConfirmação), um outro sacramento caracte-rizou desde sempre a vida litúrgica dasprimeiras comunidades: a Reconciliação ouPenitência.

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O perdão dos pecados era “automático”após a conversão e o Baptismo. Àqueles queouviram a pregação de Pedro e dos outrosApóstolos e, emocionados até ao fundo docoração, à sua pergunta «Que havemos defazer, irmãos?», respondeu Pedro, como vi-mos acima: «Convertei-vos e peça cada um oBaptismo em nome de Jesus Cristo, para aremissão dos seus pecados; recebereis, en-tão, o dom do Espírito Santo». (Act 3,37-38)

O poder de perdoar os pecados foi outor-gado por Jesus Cristo aos discípulos que seencontravam, em expectativa, reunidos nolocal habitual (a casa da última ceia pascal?),com as portas fechadas, com medo dasautoridades judaicas. Jesus, após a sua res-surreição, fez a sua primeira apariçãopostando-se milagrosamente no meio dosdiscípulos. Depois de lhes mostrar as chagasdas mãos e do peito, soprou sobre eles oEspírito Santo e instituiu o sacramento daReconciliação: «Os pecados daqueles a quem

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perdoardes serão perdoados. Os pecadosdaqueles a quem não perdoardes não serãoperdoados.» (Jo 20,19-23)

No final do século i, uma obra em que seencontravam compilados os “ensinamentosdos Apóstolos” – a Didaqué – já prescreveaos cristãos a necessidade da confissão dospecados antes da oração e da Eucaristia.

Sacramento instituído pelo próprio Sen-hor, prevendo a queda após o Baptismo, le-vando à perda da graça baptismal, eleoferece uma nova oportunidade de conver-são e recuperação da graça da justificação.Este sacramento é, segundo os Padres daIgreja, «a segunda tábua de salvação depoisdo naufrágio que é a perda da graça»10.

Nos primeiros séculos, a “reconciliação”dos pecadores que, após a remissão dospecados trazida pelo Baptismo, cometiamfaltas particularmente graves, tais como a id-olatria, o adultério ou o homicídio, exigia daparte da Igreja uma disciplina muito

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rigorosa. Era exigida uma penitência públicapelos pecados cometidos, penitência que, porvezes, e nos casos mais graves, durava longosanos antes que fosse concedida areconciliação.

Muito mais tarde, e só no século vii, é queentrou em vigor a prática “privada” da pen-itência antes da reconciliação, passando osacramento a processar-se de uma formamais secreta, só entre o penitente e o sacer-dote. Nesta nova prática estava prevista apossibilidade da repetição, permitindo-se,desde então, a frequência regular dosacramento.

Não obstante as mudanças verificadas nadisciplina e na celebração do sacramento,uma mesma estrutura fundamental caracter-izou sempre a sua recepção. Por um lado, ohomem penitente que se converte sob aacção do Espírito Santo “sofre” uma série deactos claramente definidos no Catecismo Ro-mano Tridentino: a contrição, a confissão

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dos pecados e a reparação do mal. Por outrolado, a intervenção da Igreja, actuando emnome de Jesus Cristo, concedendo o perdãodos pecados por meio do bispo e dos seus sa-cerdotes, estabelece o modo de reparação ereza pelo pecador. É esta a dupla estruturafundamental do sacramento do Perdão quedesde sempre se verificou na sua celebração.

Os locais de culto e de celebrações litúr-gicas foram variando com o tempo e ascircunstâncias.

Como já vimos, havia inicialmente umlugar comum a judeus e a cristãos para as or-ações e a escuta das Escrituras: o Templo. Narealidade, os primeiros cristãos – os primeir-os membros da Igreja – eram judeus, le-vando uma vida de judeus piedosos: faziamas suas orações no Templo e continuavam aobservar os preceitos alimentares (não co-miam carne de animais impuros, tais como ocoe-lho, a lebre, o porco, isto é, todos os ani-mais sem a unha dividida, nem carne de

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animais aquáticos sem barbatanas, nem es-camas, que consideravam animais imundos,tudo prescrições que se encontram noLevítico – (Lv 11), bem como a praticar a cir-cuncisão. Estes discípulos de Cristo sócomeçaram a receber o nome de cristãos emAntioquia, talvez mais de dez anos após oPentecostes. Até aí eram designados comoirmãos, ou crentes, ou simplesmente dis-cípulos ou, ainda, santos.

Fora de Jerusalém, as sinagogas con-tinuavam a ser os locais frequentados pelosprimitivos judaico-cristãos e aqueles que osApóstolos procuravam para anunciar a BoaNova. Porém, após a queda e a destruição deJerusalém, com o incêndio e a pilhagem doTemplo, no ano 70, por tropas romanascomandadas por Tito, filho do imperadorVespasiano, deu-se uma definitiva separaçãoentre judeus e cristãos. Estes haviam deixadoJerusalém antes do cerco romano, tendo-seestabelecido além do Jordão numa cidade

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chamada Pela. Poupados, assim, à extermin-ação, foram considerados traidores por seterem mantido “neutros” durante a guerrajudaico-romana, a ponto de os rabis terem,mais tarde, acrescentado às preces da sin-agoga uma oração condenando os judeuscristãos, que passaram, desde então, a nãopoderem participar no culto das sinagogas.

Em Roma, bem como em todas as cidadesdo Império Romano em que havia igrejas lo-cais, os cristãos começaram a separar-se dassinagogas, ao mesmo tempo que os própriosjudeus procuravam, também, a separaçãonos últimos anos do século i.

Para o seu culto próprio os cristãoscomeçaram por se reunir em casas particu-lares, habitações muitas vezes de algum con-vertido mais abastado. Veja-se, por exemplo,como Paulo se refere a uma casa-igreja par-ticular especial, na sua Epístola aosRomanos:

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Saudações a Prisca e Áquila, meus colaboradoresem Jesus Cristo, que arriscaram a própria cabeçapara salvar a minha vida. Sou grato não somente aeles, mas também a todas as Igrejas dos pagãos.Saudai também a Igreja que se reúne em casadeles. (Rm 16,3-5)

As perseguições iniciadas com Nero, eprosseguidas nos séculos seguintes por Dom-iciano, Trajano e Marco António, obrigaramos cristãos a esconderem--se para a celeb-ração do culto, “enterrando-se” nos cemitéri-os subterrâneos – as catacumbas – formadospor várias galerias que, no seu conjunto, at-ingiam os 100 a 150 quilómetros. Só à voltade Roma havia 42 catacumbas constituídaspor túneis ao longo da Via Ápia e de outrasestradas em torno da cidade.

Aí eram sepultados os cristãos, assimcomo muitos judeus, que preferiam a sepul-tura à cremação, muito praticada pelos ro-manos. As catacumbas multiplicaram-se apartir de meados do século ii, havendo

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“escavadores” profissionais que, além da per-furação das galerias, também as iam decor-ando. O terreno dos arredores de Roma eraconstituído por uma rocha em que facil-mente se escavavam os túneis, mas era, noentanto, suficientemente resistente para per-mitir a sobreposição de andares múltiplos demodo a aproveitar-se ao máximo a área docemitério.

Nas épocas mais críticas de perseguiçãoera nesses cemitérios que se refugiavam oscristãos, assistindo aí à celebração eu-carística, alumiados por velas e lâmpadas deazeite. Ainda hoje em dia se alumia o altar dosacrifício da Missa com, pelo menos, duasvelas, em memória dos fiéis cristãos dascatacumbas e dos mártires vitimados pelasperseguições ao longo dos séculos.

No século iii começaram a ser construídasverdadeiras igrejas, sobretudo a partir da se-gunda metade do século. A mais antiga igrejacristã conhecida encontra-se entre as ruínas

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de Dura-Europos, antigo posto romanoavançado junto do rio Eufrates e datando de242 d. C. E no tempo do imperador Dioc-leciano são já numerosos os edifícios reli-giosos cristãos. No princípio do seu reinadoDiocleciano foi mesmo tolerante para com oscristãos, havendo rumores de que a sua mul-her e a sua filha, assim como muitos do seuséquito pessoal, simpatizavam com eles, hav-endo possivelmente numerosos cristãos noGoverno e no exército.

Do seu palácio na nova capital de Nicomé-dia (actual Izmit, na Turquia), Dioclecianovia uma basílica cristã na colina em frente.Com o evoluir dos acontecimentos no Im-pério, venceram os inimigos do Cristianismo,que acabaram por instigar Diocleciano a umaimplacável perseguição visando a supressãodos cristãos. Numa série de éditos, Dioc-leciano ordenou a demolição de todas asigrejas em todo o Império, bem como quefossem queimados todos os escritos cristãos.

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Deste modo foi também destruída a basílicacristã que ele se habituara a contemplar doseu palácio, em Nicomédia. Em dez anos, acomunidade cristã foi quase completamentedespedaçada, tendo sido condenado à prisãotodo o clero cristão.

Milhares de cristãos foram mortos noLeste do Império, sendo mesmo destruída,na Frígia, uma cidade cristã inteira, mor-rendo os seus habitantes na fogueira por serecusarem a abjurar a sua fé e a sacrificar aosídolos pagãos.

As grandes perseguições só viram o seufim com a publicação do édito de Milão, de313, que ordenava uma tolerância total parao Cristianismo (bem como para qualqueroutro culto), sendo revogados todos os de-cretos anticristãos, devendo ser devolvidostodos os lugares de culto, bem como todos osbens da Igreja.

Começava uma era de paz para o Cristian-ismo, mas um novo inimigo perfilava-se no

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seu horizonte: a heresia, cuja difusão era fa-cilitada pela paz religiosa geral.

Do Templo e sinagogas às casas-igrejasparticulares e às catacumbas até, na segundametade do século iii, à construção de edifí-cios destinados exclusivamente às celeb-rações litúrgicas, não apenas simples igrejas,mas também basílicas vastíssimas podendoalbergar milhares de pessoas, as comunid-ades cristãs foram-se organizando, dotando-se das estruturas necessárias ao seu governo.

À comunidade inicial de Jerusalém, aogrupo dos Doze – o grupo apostólico eleitopelo próprio Jesus Cristo, completado comMatias, que ocupou o lugar deixado vago porJudas e que acompanhou sempre os Apósto-los tenso sido escolhido pelos Onze depois deestes terem pedido ao Senhor que lhes indi-casse quem devia ocupar, no ministérioapostólico, o lugar abandonado por Judas –grupo que dirigia a comunidade palestinianade língua aramaica –, juntou-se o grupo dos

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Sete, liderado por Estêvão, e que dirigia acomunidade judaica de língua grega.

Com o martírio de Estêvão instala-se, deseguida, feroz perseguição aos discípulos deCristo, o que levou à dispersão dos helenis-tas, que se tornaram missionários.

Nessa época formaram-se várias comunid-ades cristãs, com organizações muito própri-as, fruto das circunstâncias locais.

Deste modo, nas comunidades nascidas doJudaísmo, a organização decalcava-se nomodelo das comunidades judaicas exist-entes. Nestas comunidades, tal como nacomunidade de Jerusalém, a chefia ficavaentregue a um colégio de anciãos ou pres-bíteros (ancião e presbítero são sinónimos,porquanto presbítero vem do grego pres-bíteros, que significa velho, idoso, digno derespeito, venerável, experiente). Assim, porexemplo, o chefe do colégio dos anciãos emJerusalém é Tiago, «o irmão do Senhor»,que ficou a governar a Igreja de Jerusalém

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após a partida de Pedro. As comunidadesfundadas pelos Doze eram deste género.

Depois da Igreja de Jerusalém, adquiriugrande importância a Igreja de Antioquia,nascida da pregação dos helenistas fugitivose perseguidos após o martírio de Estêvão.Começa aí uma Igreja missionária, tendocomo expoentes máximos Paulo e Barnabé,Apóstolos como os Doze, sem, na realidade,pertencerem ao seu grupo. São missionáriositinerantes que só param para fundarcomunidades locais, cuja chefia entregamaos epíscopos (etimologicamente do gregoepiskopos, significando guardião ou vigia) eaos diáconos (do grego diakonos, signific-ando servidor).

Na Igreja estabelecida em Antioquia haviaprofetas que, nas assembleias, comentavama Palavra de Deus, e doutores, que eram es-pecialistas nas Sagradas Escrituras.

No século i, muitas igrejas foram fundadaspelos próprios Apóstolos, que estabeleceram

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uma organização muito própria: sob a autor-idade superior do Apóstolo, enquanto eleviveu, um colégio de presbíteros dirigia acomunidade, ordenando a sua vida litúrgicae disciplinar.

À medida que os Apóstolos foram mor-rendo, os seus sucessores, os bispos, ficaramcom o poder necessário para o governo dasrespectivas comunidades, possuindo a plen-itude do sacerdócio. Todos os ministros –bispos, presbíteros, diáconos – eram instituí-dos como tais pela imposição das mãos, apósmuita oração e jejum.

A instituição do primado romano constituia chave da unidade das Igrejas dispersas peloImpério Romano.

Pedro havia sido escolhido por Cristocomo rocha firme sobre a qual havia de as-sentar a sua Igreja. E tal como Roma con-stituía o centro de um vasto Império, de queera a capital, assim também desde sempre –desde as suas origens – a Igreja de Roma

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ocupou um lugar de excepção na IgrejaUniversal. Pedro foi o primeiro bispo deRoma e os seus sucessores na cátedra ro-mana mantiveram as prerrogativas de umprimado reconhecido por todas as igrejas lo-cais. A Igreja romana foi desde sempre epara sempre o centro da unidade da Igrejauniversal.

Após a queda e destruição de Jerusalém,no ano 70, o movimento cristão cresceu rapi-damente, muito especialmente em Roma, detal modo que a importância da Igreja deRoma leva-a, naturalmente, a liderar os as-suntos da Igreja por todo o império. E o seuprestígio, como cabeça da Igreja Universal,advinha-lhe também do facto de Pedro ePaulo, os dois pilares da Igreja, estaremsepultados em Roma.

A Igreja Romana era também conhecidapela sua generosidade, enviando con-tribuições para muitas Igrejas de todo oImpério.

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Os sucessores de Pedro – os Papas – in-tervinham de modo autoritário, prescre-vendo o que se devia fazer e exigindo obed-iência às suas ordens.

Já nos princípios do século ii, Santo Iná-cio, bispo de Antioquia, atribuía à Igreja ro-mana um direito de supremacia eclesiásticauniversal como Igreja «posta à cabeça dacaridade».

No final do século ii há já uma hierarquiafixada para todas as comunidades cristãs: obispo, presidindo ao colégio dos presbíteros,os sacerdotes e os diáconos sendo os sacer-dotes e os diáconos ordenados pelo bispopela imposição das mãos.

Para a ordenação de um bispo vários bis-pos impunham as mãos para o ordenarem.Tanto um bispo como os sacerdotes impun-ham as mãos para ordenarem outros sacer-dotes. Os diáconos eram ordenados pela im-posição das mãos de um bispo.

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Nos primeiros tempos era só o bispo quepresidia à Eucaristia, pregava, baptizava eministrava o sacramento da Reconciliação.Porém, à medida que aumenta o número doscristãos nas grandes cidades – tal comoRoma ou Alexandria – são criados várioslugares de culto que ficavam entregues asacerdotes.

Em finais do século ii, confrontando-secom algumas doutrinas heréticas, a Igreja,pela pena de Ireneu, bispo de Lião, na suaobra Contra as Heresias, vê-se na necessid-ade de definir a verdadeira doutrina: esta é atradição dos Apóstolos, que se conservavanas igrejas onde era possível remontar atéaos Apóstolos pela sucessão dos bispos. Opróprio Ireneu enumera cuidadosamente osbispos que se sucederam em Roma desdePedro e Paulo.

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As Escrituras cristãs.O nascimentoda Teologia

No princípio, os cristãos compartilhavamcom os judeus as Antigas Escrituras – o An-tigo Testamento, com a sua Lei, os Profetas,os livros históricos e os livros sapienciais.

Porém, há um facto que, contra toda a ex-pectativa, se impõe a todos quantos haviamseguido Jesus pelos caminhos da Palestina,na sua pregação da Boa Nova, com a pro-clamação do Reino de Deus: a Ressurreiçãodo crucificado. A realidade que se mantinhacomo que encoberta por um véu “explodiu”nas suas mentes e nos seus corações: Jesus éo Cristo, o Messias anunciado pelos profetas,o Filho de Deus. Esta iluminação esclarecepara eles as Antigas Escrituras que, à novaluz recebida, anunciam tudo quanto os dis-cípulos haviam testemunhado durante a vidado seu rabi da Galileia, o Jesus de Nazaré.

Assim, em Isaías passaram a ver como noSenhor se haviam realizado as profecias doServo.

Vimo-lo [...] desprezado e abandonado, como al-guém cheio de dores, [...] menosprezado e descon-siderado. Na verdade, ele tomou sobre si as nossasdoenças, carregou as nossas dores. [...] Foi feridopor causa dos nossos crimes, esmagado por causadas nossas iniquidades [...] fomos curados pelassuas chagas [...] o Senhor carregou sobre ele todosos nossos crimes. Foi maltratado, mas humilhou-see não abriu a boca, como um cordeiro que é levadoao matadouro [...] Terá uma posteridadeduradoura e viverá longos dias e o desígnio doSenhor realizar-se-á por meio dele. (Is 52,13-53,12)

Desde então, no centro do anúncio danova doutrina há um facto inaudito e prodi-gioso: a ressurreição de Jesus, numa novaperspectiva – a das Escrituras. Não havia opróprio Jesus esclarecido os dois discípulosque regressavam cabisbaixos à sua aldeia deEmaús após os acontecimentos da cruci-fixão? «Ó homens sem inteligência e lentos

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de espírito para crer em tudo quanto os pro-fetas anunciaram! Não tinha o Messias desofrer essas coisas para entrar na suaglória?»

Os Apóstolos pregavam Cristo, descre-vendo os factos de que haviam sidotestemunhas, mas agora vistos com os olhosda fé. Eles pregavam, falavam, mas não es-creveram. E, assim, o Cristianismo não seformou em torno de um livro sagrado, massim à volta de uma comunidade detestemunhas.11 E após a ressurreição de Je-sus, a Igreja nascente viveu da mensagem deJesus, isto é, do Evangelho (ou seja, da BoaNova) “traditada” boca a orelha, sem recursoa nenhum dos quatro evangelhos, que aindanão haviam sido escritos...

A essa pregação, em que era jubilosamenteanunciada a morte e ressurreição de Jesus,bem como a salvação de todo aquele queacreditasse que Jesus era o Salvador enviadopor Deus – núcleo do kerigma cristão –,

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seguia-se uma catequese para responder aumas tantas perguntas postas pelos neo-con-vertidos: Quem era Jesus? Qual era a suavida? Quais eram os seus ensinamentos?Porque tinha sido condenado pelos chefes dopovo judaico aliados ao poder romano ?

E a catequese sistemática consistia na res-posta a tantas dessas perguntas, indo desde onascimento de Jesus em Belém, até à suamorte e ressurreição em Jerusalém, compormenores da sua vida entre esses dois su-cessos, acabando, com o tempo, por esboçar-se a trama dos três primeiros evangelhos,chamados sinópticos – Marcos, Mateus e Lu-cas – postos agora por escrito, necessidadeinstante surgida à medida que iam desapare-cendo os primeiros pregadores, testemunhasdirectas dos acontecimentos.

O primeiro “Evangelho” a ser escrito foi ode Marcos (João Marcos, primo de Barnabé,companheiro de Paulo nas suas viagens deevangelização). A Tradição considera-o como

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reflectindo a catequese de Pedro,testemunha presencial privilegiada dosacontecimentos da vida de Jesus de Nazaré.Pedro ministrava tal catequese à comunid-ade de Roma.

O Evangelho de Marcos foi escrito depoisdo ano 64, ano da perseguição de Nero, de-pois, portanto, da crucifixão de Pedro e pou-co tempo antes da tomada e destruição deJerusalém por Tito, no ano 70.

Dois dos evangelhos são atribuídos, pelaTradição, a duas testemunhas directas, adois dos Apóstolos: um a Mateus, o pub-licano, outro a João, que o escreveuprovavelmente em Éfeso. Um outro Evan-gelho, ainda, foi atribuído a Lucas, um dis-cípulo de Paulo, de origem grega, médico deprofissão e natural, com toda a probabilid-ade, de Antioquia da Síria. A Lucas é at-ribuído, também, um segundo livro, os Actosdos Apóstolos, em que o autor põe especial-mente em relevo a acção do Espírito Santo.

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Além dos três evangelhos sinópticos – deMarcos, Mateus e Lucas – surgiram muitosoutros “evangelhos”, de tal maneira quemuitas comunidades cristãs tinham o seupróprio evangelho: de Tomé, de Tiago, dePaulo, etc.

Os evangelhos sinópticos são assim cha-mados desde o século xviii por terem emcomum o seu esquema básico e apresentar-em muitas concordâncias (synopsis, emgrego, significa “visão simultânea” ou “visãodo conjunto”). A explicação mais plausível –e mais largamente aceite – para este facto éque o Evangelho de Marcos tenha sido oprimeiro a ser escrito, seguindo-se os escri-tos de Mateus e Lucas, que reviram e ampli-aram a versão de Marcos, introduzindo nosseus respectivos evangelhos cerca de mais deduzentos e cinquenta versículos, muito con-cordantes nestas duas versões. Nesses ver-sículos estão muitos ensinamentos de Jesus,a maior parte do Sermão da Montanha,

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incluindo as Bem-Aventuranças e o PaiNosso, bem como a descrição de algunsmilagres.

É provável que a fonte destes versículos,que se não encontram em Marcos, tenha sidoum compêndio de palavras de Jesus que seperdeu no tempo e que, actualmente, se des-igna como Q, letra inicial da palavra alemãQuelle, que significa fonte.

Uma síntese dos quatro evangelhos foi,durante vários séculos, usada em muitascomunidades do Oriente. Trata-se do cha-mado diatessarão, consistindo numa ediçãocompacta dos quatro evangelhos, elaboradacomo uma narrativa única e concatenada (dogrego dia + téssares, ou seja, quatro, signific-ando “através de quatro”).

Tal obra foi concebida por Taciano,homem de cultura grega, embora natural daAssíria, e que viveu em Roma em meados doséculo ii.

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Quase contemporâneos dos quatro evan-gelhos que conhecemos surgiram inúmerostextos ilegítimos ou apócrifos, que vieramlançar a confusão e acender as discussõessobre a legitimidade deste ou daquele texto.

Nos séculos ii e iii escreveram-se algumasobras, tendo como tema central as vidas dosApóstolos, com os seus poderes miraculosose as “aventuras” sobrenaturais que tiveram.Tratava-se de histórias destinadas a aliment-ar a sede de maravilhoso de muitos cristãos.Desde cedo ficaram conhecidos tais relatoscomo Actos Apócrifos, isto é, ilegítimos. Sãoinúmeros tais Actos: Actos de Paulo e Tecla,Actos de Pedro, Actos de André, Actos deJoão, etc.

Além de tais apócrifos – Evangelhos e Ac-tos de Apóstolos – surgiam outros escritoselaborados para creditar certas heresias. Foio caso da tentativa de Marcião, que pre-tendeu, cerca do ano 140, reformar a Igreja.Para tal, rejeitava em bloco o Antigo

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Testamento e aceitava apenas um dos Evan-gelhos – o de Lucas – de que, entretanto, re-tirara tudo quanto considerava serem adita-mentos falsos. Assim, esta Bíblia de Marcião,com o seu Evangelho mutilado de Lucas,acabou por acender uma viva controvérsia,que terminou com a excomunhão de Marciãoem 144.

Até aí não havia ainda um cânone cristão(do grego Kanon, ou seja, régua, modelo oupadrão), de tal modo que pode considerar-seo herético Marcião como o primeiro a com-pilar um cânone cristão, pois ainda não haviaqualquer lista de Escrituras do Novo Testa-mento. As várias igrejas cristãs utilizavamcada uma os escritos cristãos que lhes pare-cessem mais apropriados.

No princípio do século ii, as comunidadescristãs começaram a preocupar-se com a le-gitimidade ou canonicidade dos inúmerostextos que circulavam. As discussões sobre oassunto não cessaram até aos nossos dias.

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Para determinar quais as Escrituras que seri-am canónicas assentou-se em alguns critéri-os de escolha. Um desses critérios é aapostolicidade, por significar uma maiorproximidade das fontes.

A escolha foi-se fazendo ao longo doséculo ii, de tal modo que pelo ano 300 osevangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e Joãoforam proclamados canónicos pelo bispo deLião, Ireneu. Este bispo sentia-se ligado aCristo através de Policarpo, bispo de Es-mirna (na actual Turquia), que havia sidodiscípulo do Apóstolo João. Ireneu recordavaas palavras que ouvira, quando jovem, a Poli-carpo, ao contar este tudo quanto tinhaouvido dizer a respeito do Senhor da boca deJoão.

Ireneu, na sua proclamação da canonicid-ade dos quatro evangelhos, explicava:

Uma vez que há quatro zonas do mundo [...] equatro ventos principais, como a Igreja está espel-hada por todo o mundo [...] é justo que ela tenha

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quatro pilares [...] [Deus] deu-nos o Evangelho sobquatro formas, mas ligado por um só Espírito.12

Estava lançada a base do Novo Testa-mento, edificado em torno dos quatro evan-gelhos (a “Quadriga do Senhor”, como lhechamava São Jerónimo). Assim, ao lado dosquatro evangelhos eram geralmente aceitesos Actos dos Apóstolos e a maioria das cartasde Paulo.

Num fragmento de um documento dosfinais do século ii, descoberto em 1740 naBiblioteca Ambrosiana de Milão, por um bib-liotecário italiano de nome Muratori,encontra-se uma lista das obras aceites noNovo Testamento pela primitiva Igreja deRoma. Esse documento, que ficou, desde en-tão, conhecido como o Cânone de Muratori,inclui os quatro evangelhos, os Actos dosApóstolos, 13 cartas de Paulo, carta de Judas,1.ª, 2.ª e 3.ª de João e Apocalipse de João.Porém, além de não incluir a carta aosHebreus, cita como fazendo parte do Novo

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Testamento o Apocalipse de Pedro e aSabedoria de Salomão.

Só no século iv, em 367, apareceu umalista de 27 livros, idêntica à do actual NovoTestamento, numa carta do bispo de Alexan-dria, Atanásio. Trinta anos mais tarde, em397, um Concílio de Cartago publica umalista idêntica.

Além dos Escritos que fazem parte doNovo Testamento, a primitiva literaturacristã apresentou-se sob a forma de outrosgéneros literários: a literatura martirológica,a literatura de defesa da fé contra as heresi-as, os escritos dos Padres Apostólicos, a liter-atura apologética em defesa da verdadecristã e tendo como alvo leitores alheios ouhostis à Igreja.

Os três primeiros séculos do Cristianismoforam anos de perseguições de que resul-taram numerosos mártires, cristãos que de-ram testemunho da sua fé em Jesus até aofim, até à morte, muitas vezes no meio de

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suplícios atrozes. A Igreja primitiva foi aIgreja dos mártires.

Os relatos das perseguições podiam ser,quer sob a forma dos autos dos julgamentos– as “actas dos mártires” – quer sob a formade relatos escritos por cristãos contem-porâneos que foram testemunhas dos factosrelatados – as chamadas “paixões”, que eramlidas nas igrejas no dia de aniversário domartírio.

As actas dos mártires consistiam em rela-tos do processo judicial: as perguntas dosmagistrados, as respostas dos mártires, asentença que os condenava à morte. As cópi-as dessas actas obtidas pelos cristãos satis-faziam o desejo de conhecer os pormenoresdos acontecimentos que rodeavam a con-denação de quantos davam a sua vida pela féem Cristo.

Temos exemplos de actas de mártires naCarta das Igrejas de Lião e Viena (na Gália)sobre a perseguição ocorrida em Lião, em

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177, vitimando o bispo de Lião, Potino,homem de 90 anos, e Blandina, cujo martíriose arrastou por vários dias.

Do martírio de São Justino, em 165, hátambém um relato do seu processo judicial.Há, ainda, relato do processo judicial emartírio de São Cipriano, em Cartago, em258.

Entre as “paixões” ressalta A Paixão dePerpétua e Felicidade. Perpétua, jovemcartaginesa, presa quando ainda eracatecúmena com sua criada Felicidade, re-cebe o Baptismo na prisão e sofrem ambas omartírio na arena. Esta Paixão era lida dur-ante as cerimónias litúrgicas no século iv, emÁfrica.

A literatura anti-herética surgiu no séculoii pela necessidade que os cristãos tiveram dedefender a sua fé contra uma infinidade dedoutrinas nascidas no interior da própriaIgreja.

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Entre os escritos anti-heréticos ocupalugar especial um tratado do bispo de Lião,Santo Ireneu, conhecido como AdversusHaereses ou Contra as Heresias.

Nessa obra, Santo Ireneu indica com pre-cisão qual é a verdadeira doutrina, a qual seencontra na verdadeira Igreja. É a tradiçãoapostólica guardada na Igreja e que épregada, ensinada e transmitida «com vozunânime como se não pos-suísse senão umaúnica boca», desde as igrejas estabelecidasna Germânia às que se encontram entre osIberos ou entre os Celtas, desde o Egipto e aLíbia às que se encontram no centro domundo, isto é, em Roma.

Essa tradição dos Apóstolos conservava-se, segundo Santo Ireneu, nas igrejas ondeera possível remontar aos Apóstolos pela su-cessão dos bispos ou presbíteros. Assim, porexemplo, nas igrejas de Esmirna e de Éfeso épossível chegar até aos Apóstolos pela se-quência dos bispos. Santo Ireneu enumera

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cuidadosamente os bispos que se sucederamem Roma à cabeça da Igreja desde a suafundação por Pedro e Paulo: primeiro Lino(de que Paulo faz menção nas suas cartas aTimóteo), depois Anacleto, em seguida Cle-mente (o qual tinha visto os próprios Apósto-los, tendo estado em relação com eles,ressoando-lhe, ainda, aos ouvidos a suapregação); a Clemente sucedeu Evaristo, aeste, Alexandre; em seguida Sixto, o sextobispo a partir dos Apóstolos; depois, Telés-foro, em seguida, Higino, Pio, Aniceto,Sotero e, por fim, o décimo segundo bispo deRoma de nome Eleutério, contemporâneo deSanto Ireneu.

Além da importância dada por Santo Iren-eu à tradição apostólica oral e a defesa doprimado da Igreja de Roma, fundada porPedro e Paulo, o tratado Contra as Heresiasdesmascara as pseudo-revelações de algumasdoutrinas e de algumas seitas que se valiamde chefes carismáticos para vingarem. Entre

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as doutrinas heréticas mais atacadas porSanto Ireneu contam-se os gnósticos, espe-cialmente um deles, Marcião, era um dosmais conhecidos e cuja falsa doutrina é cuid-adosamente “desmontada”.

A obra de Santo Ireneu é mais vasta, pro-pondo o bispo de Lião uma teologia, orde-nando todo o seu pensamento em torno dotema da “recapitulação” da humanidadepecadora em Cristo, o segundo Adão,doutrina esta desenvolvida por São Paulo nasua Carta aos Efésios (Ef 1): Deus escolheu-nos em Cristo antes da fundação do mundo,predestinando-nos para sermos adoptadoscomo seus filhos e manifestando-nos o mis-tério da sua vontade e o plano que estabele-ceu para conduzir os tempos à sua plenitude,submetendo tudo a Cristo, “recapitulando”n’Ele o que há no Céu e na Terra. «Porque aglória de Deus é o homem vivo, e a vida dohomem é a visão de Deus.»

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Santo Ireneu é justamente considerado o“príncipe dos teólogos cristãos”, no sentidocronológico de primeiro.

No meio de falsas doutrinas que nasciamum pouco por todo o lado, ameaçando minara unidade da Igreja, os bispos e os presbíter-os procuravam esclarecer os seus fiéis sobreo que era a verdadeira fé da Igreja. Era nashomilias por ocasião das celebrações eu-carísticas e nas catequeses aos futuros bap-tizados que esses responsáveis das váriascomunidades se esforçavam por manter oseu rebanho unido em torno de Cristo.

Além de Santo Ireneu, outros bispos fo-ram também escrevendo os seus escritos teo-lógicos, fazendo nascer uma verdadeira ciên-cia da Teologia.

O terceiro bispo de Antioquia, Inácio,havia conhecido pessoalmente os apóstolosSão Paulo e São João. No tempo do im-perador Trajano é preso e conduzido a Romapara ser julgado como cristão.

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No trajecto de Antioquia a Roma, noprincípio do século ii, escreve a váriascomunidades cristãs, conservando-se até ho-je sete dessas cartas, consideradas jóias daliteratura cristã mais antiga: carta aos Efési-os, carta aos Romanos, carta aos Es-mirnenses, carta à comunidade de Trabes,carta à comunidade de Filadélfia e, ainda,uma carta ao bispo de Esmirna, SãoPolicarpo.

Na Carta aos Esmirnenses aparece pelaprimeira vez a expressão “Igreja Católica”:«A comunidade reúne-se onde estiver obispo e onde está Jesus Cristo está a IgrejaCatólica.»13

Na Carta aos Romanos, Inácio deAntioquia refere-se à Igreja de Roma como aque tem no mundo «a presidência da carid-ade»14.

Para Santo Inácio, o bispo é, na igreja loc-al, o centro da ortodoxia e o ministro dossacramentos:

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Ninguém ouse fazer sem o bispo coisa alguma con-cernente à Igreja. Como válida só se tenha a Eucar-istia celebrada sob a presidência do bispo ou de umdelegado seu. [...] Sem a união do bispo não é lícitobaptizar nem celebrar a Eucaristia... (Carta aos Es-mirnenses)15.

Santo Inácio de Antioquia pretendia, nassuas cartas a outras tantas comunidades daÁsia Menor e de Roma, salvaguardar a unid-ade doutrinal, defendendo com veemência apessoa de Jesus Cristo como verdadeiroDeus e verdadeiro homem, numa época emque circulavam algumas falsas doutrinas quefalavam de Jesus como de alguém que teriatomado uma aparência de homem: «Evitai--os como às feras, são cães raivosos, mordeminsidiosamente.»16

Já no princípio do século iii a Teologia re-cebe um novo impulso na cidade de Alexan-dria, no norte do Egipto, na sua costa medi-terrânica, cidade que constituía desde háséculos um célebre centro intelectual, com a

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sua famosa biblioteca contendo mais de meiomilhão de volumes. Nesta cidade havia,desde o final do século ii, uma célebre escolade catecúmenos que, no entanto, vivia na de-fensiva em face da filosofia e religião pagãs.

Entretanto, começou a dirigir a escola decatecúmenos, a partir de 190, um grego deAtenas, Clemente, convertido ao Cristian-ismo, possuidor de uma sólida formação nafilosofia e literatura grega clássicas. A suagrande obra consistiu na elaboração de umafilosofia cristã, tentando a aliança dopensamento grego com a fé cristã.

Das suas obras destacam-se a Exortaçãoaos gregos (ou Protríptico), o Pedagogo (in-struções catequéticas), entre outras.

A seguir a Clemente aparece-nos um outroteólogo de Alexandria – Orígenes – quecomeçou por conquistar um vasto renomequando colocado pelo bispo Demétrio àfrente da escola catequética de Alexandria, a

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ponto de atrair até os próprios pagãos comoouvintes.

Escritor fecundo, a sua obra vai desde oscomentários bíblicos (a Mateus, João,Cântico dos Cânticos, Epístola aos Ro-manos), a obras teológicas, como o tratadoDos Princípios, que pode ser considerado oprimeiro manual de Teologia; desde obrasapologéticas, como a apologia Contra Celso,tratado extenso contra um crítico pagão doCristianismo, Celso de Alexandria, a tratadossobre a oração, a exortação ao martírio, etc.

Infatigável viajante, Orígenes visitouRoma, a Grécia e a Palestina, onde, emCesareia, é ordenado sacerdote, fundando aíuma grande biblioteca cristã.

Pela sua vastíssima obra verifica-se quepraticamente consagrou a sua vida a coment-ar e a pregar as Escrituras, desenvolvendo ateoria de que cada texto bíblico tem três ní-veis de significado ou sentido: o literal ouhistórico, o moral e o espiritual ou místico.

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Para Orígenes, em toda a Escritura estápresente Cristo:

O Antigo Testamento não é um Evangelho, poisnão mostra «Aquele que deve vir»; apenas O anun-cia. Ao contrário, todo o Novo Testamento é Evan-gelho, pois não somente diz, no início: «eis oCordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo»,mas contém louvores e ensinamentos diversosd’Aquele por quem o Evangelho é um Evangelho.(Comentário ao Evangelho segundo São João).17

Grande parte da obra de Orígenes desa-pareceu por ter sido destruída em virtudedas condenações que sofreu – acusações deheresia pela frequente utilização de alegoriasna interpretação da Bíblia e pela influênciada filosofia platónica.

Se foram numerosos os seus adversários,sobretudo dois séculos mais tarde, não foimenor o número dos seus admiradores,entre os quais se contavam alguns dosmaiores Padres da Igreja: Jerónimo, Am-brósio de Milão, Basílio e Gregório de

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Nazianzo, que muito contribuíram paratransmitir as suas obras. É através de SãoJerónimo que se conhecem os títulos de oito-centas das duas mil obras que compôs. Narealidade, Orígenes foi um dos mais prolífi-cos escritores cristãos.

Orígenes como que previra o movimentoanti-origenista que se iria desencadear pelascontrovérsias que a sua doutrina iria suscitarséculos mais tarde. O certo é que Orígenesmanifestou sempre expressamente a sua in-tenção de ser “um homem da Igreja”, não seafastando nunca do Magistério eclesiástico.Chegou a escrever: «Desejo ser um homemda Igreja, não o fundador de uma her-esia.»18

Foi martirizado durante a perseguiçãomovida por Décio em 250, acabando pormorrer em 254, confessor da fé, em con-sequência das torturas sofridas.

No Norte de África outra cidade competiacom Alexandria, disputando-lhe o estatuto

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de segunda cidade do Império Romano:Cartago.

Entre numerosos e notáveis defensores dafé que nasceram nessa cidade distingue-separticularmente um filho seu: Tertuliano.Homem culto, era advogado em Romaquando, no ano 195, se converteu ao Cristi-anismo, voltando para Cartago para servir aía Igreja, como um zeloso catequista.

Homem de carácter arrebatado, combateuintransigentemente, a princípio o paganismoe o judaísmo, depois o gnosticismo, o modal-ismo e, por fim, até a própria Igreja Católica.Escrevia essencialmente em latim, podendoconside-rar-se o primeiro escritor cristão deimportância a escrever nesta língua, sendo,por vezes, chamado de pai da Teologia latina.

Autor de obras polémicas, expostas em es-tilo original e latim brilhante, numa lógicaextrema, mas que muitas vezes deslumbravamais do que convencia. Discordava da escolade Alexandria na apresentação que esta fazia

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do Cristianismo como uma nova filosofia.Chegou mesmo a afirmar que a filosofiagrega, que os alexandrinos cultivavam, era afonte de todas as heresias.

Tertuliano fazia uma leitura literal dasEscrituras como história, em contraposiçãocom as interpretações alegóricas e filosóficasdos seus contemporâneos alexandrinos. In-sistia na primazia da fé sobre a razão: «Coma nossa fé não precisamos de mais nada emque acreditar.»19

No seu combate aos hereges, como osgnósticos Marcião e Valentim, dizia que nãosó estavam errados, como nem sequer tin-ham o direito de discutir com a Igreja.

Os seus escritos mais importantes são aApologética, Prescrição contra os hereges,Contra Marcião, Contra Praxeias.

Em 207, uma dúzia de anos depois de seter convertido ao Cristianismo, Tertulianorompe com a Igreja Católica, aderindo a ummovimento radical, a Nova Profecia ou

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Montanismo. Este movimento caracterizava-se por um extremo rigorismo moral, uma ét-ica fanaticamente ascética, chegando aoponto de afirmar que os cristãos teriam deter uma vida totalmente livre de pecado de-pois de receberem o Baptismo, não devendohaver lugar para um “segundoarrependimento”.

Mais tarde Tertuliano chegou a formar asua própria Igreja – Tertulianista – aindamais rigorosa do que a Igreja Montanista.

Um outro teólogo da Escola de Cartago éCipriano, pagão de nascimento, no princípiodo século iii e convertido à fé em 246, sendopoucos anos mais tarde ordenado presbíteroe acabando por se tornar bispo de Cartago eprimaz da Igreja Latina.

Da sua obra teológica destacam-se umtratado Sobre a Unidade da Igreja Católica,um escrito de cunho pastoral, De Lapsis,sobre os que apostataram na perseguição de

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Décio, e um escrito Sobre a Oração doSenhor.

Acabou a sua vida martirizado, em 258,por se ter recusado a comportar-se conformeos ritos romanos, tornando-se o primeirobispo mártir de África.

Cipriano lia muito as obras de Tertuliano,a quem chamava “o mestre”, apesar de ele seter afastado da Igreja oficial.

No princípio do século iv, Luciano deSamosata fundou, em Antioquia, uma EscolaTeológica, que se regeu por métodospróprios na interpretação das SagradasEscrituras. Assim, os teólogos antioquenosrejeitavam o método alegórico próprio daEscola alexandrina, por considerarem que talmétodo conduzia ao falseamento dos textosbíblicos. A Escola de Antioquia assentava asua leitura das Escrituras numa inter-pretação literal dos textos.

A literatura apologética destinava-se a es-clarecer leitores alheios à Igreja e a refutar as

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acusações de quantos a hostilizavam, indodas calúnias populares mais grosseiras às ob-jecções de intelectuais e de políticos.

A opinião pública romana consideravacorrentemente os cristãos como ateus, pornão participarem nos cultos tradicionais,bem como no culto imperial, atribuindo-lhes, por essa razão, a culpa das calamidadesque aconteciam – terramotos, inundações,pestes e até os avanços dos bárbaros – cal-amidades provocadas por vingança dosdeuses pagãos, menosprezados peloscristãos.

Acusavam-se os cristãos de se entregarema orgias nas suas reuniões nocturnas, em que“irmãos” e “irmãs” praticavam o incesto.

Chegavam ao ponto de porem a circularcalúnias incríveis, acusando-se os cristãos decanibalismo nas suas refeições rituais emque seria comido o corpo de uma criança ebebido o seu sangue.

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Tais calúnias corriam de boca em boca,embora compreensivelmente, não aceitescompletamente por todos, porquanto aboçalidade romana não era geral.

Mais sérias eram as objecções dos intelec-tuais que se documentavam na leitura dasEscrituras e na observação dos costumes dascomunidades cristãs. Dois intelectuaisdistinguiram-se particularmente: um, Celso,no século ii, o outro, Porfírio, no século iii.

Celso, numa obra escrita em grego – A Pa-lavra da Verdade – acusa os cristãos deapenas aliciarem para as suas fileiras «osnéscios e os imbecis, os escravos, as mul-heres de baixa condição, as crianças»20.Afirma, em certo ponto, ser inimaginável que«passados tantos séculos, Deus tenha, final-mente, começado a preocupar-se com a justi-ficação dos homens, dos quais, até então,tinha vivido completamente afastado...» e in-cita os cristãos a apoiar o imperador com to-das as forças, a combater por ele, a não se

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furtarem aos deveres civis e ao serviço milit-ar, etc.

Porfírio, no seu tratado Contra os Cristãos,refuta os dogmas cristãos, especialmente aEncarnação e a Ressurreição, que ridicular-iza, acabando por considerar absurdo oCristianismo.

Face às múltiplas objecções de que sãoalvo, os cristãos defendem-se, expondo emnumerosos escritos a sua doutrina e os cos-tumes cristãos, procurando fazê-lo com amaior clareza e numa linguagem facilmentecompreensível para os seus destinatários dacultura greco-latina.

Tais escritos são chamados apologias (dogrego apología, ou seja, defesa, justificação).Os seus autores são os apologistas, escritorescristãos que assumiram a defesa do Cristian-ismo perante as detracções que vinhasofrendo.

A literatura apologética dirigia-se aos rep-resentantes da autoridade pública– o

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imperador, os magistrados –, aos intelec-tuais e ao povo romano em geral.

Conservam-se, ainda hoje, algumas obrasimportantes de apologistas cristãos. Estãoneste caso as obras de São Justino, que noano 150 defende a fé cristã contra judeus epagãos na escola de filosofia que fundara emRoma. A sua obra compreende as duas Apo-logias dedicadas ao imperador Antonino Pio,em que procura defender os cristãos dasacusações caluniosas correntes; e, ainda,uma obra de apologética anti-judaica – oDiálogo com Trifão – em que o autor demon-stra ao rabino Trifão, a partir do AntigoTestamento, que Jesus era o Messias anun-ciado pelos profetas, que a Igreja é o novo Is-rael e que o Cristianismo realiza a plenitudeda Lei.

Uma obra de autor desconhecido doprincípio do século iii constitui uma belaapologia onde se louva o ideal cristão –trata-se da Carta a Diogneto.

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Os cristãos não diferem dos demais homens pelaterra, pela língua ou pelos costumes. Não habitamcidades próprias, não se distinguem por idiomasestranhos, não levam vida extraordinária [...] Mas,habitando, conforme a sorte de cada um, cidadesgregas e bárbaras, é acompanhando os usos locaisem matéria de roupa, alimentação e costumes, quemanifestam a admirável natureza da sua vida, quetodos reputam extraordinária. Habitam as suaspátrias, mas como estrangeiros [...] Tudo suportam[...] casam-se e procriam, jamais lançam fora o quegeraram. [..] Vivendo na carne, não vivem segundoa carne...21

Assim o autor desconhecido vai rebatendoas calúnias que circulavam entre o povo.

Numa certa passagem desta Carta oscristãos são mesmo apresentados como aalma do mundo:

O que é a alma no corpo, são os cristãos no mundo:como por todos os membros do corpo está difun-dida a alma, assim os cristãos por todas as cidadesdo universo [...] habitam no mundo, mas não sãodo mundo...22

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Para o autor desta poética apologia, depoisde refutar as várias calúnias que circulavamentre a população, atribuindo aos cristãos osmais nefandos crimes, era tão digno de ad-miração o comportamento dos cristãos quesó podia ter uma única explicação: a gran-deza dos seus ideais, na obediência às leis es-tabelecidas, no seu amor a todos, mesmo aosque os perseguiam, na sua pobreza e carên-cias de tudo, mas abundando em tudo, sendodesonrados, mas ganhando a glória atravésda desonra.

Já nos encontrámos com um dos maisnotáveis defensores da fé, chamado de pai daTeologia latina, Tertuliano, que foi precis-amente um dos mais talentosos apologistascristãos.

Ficaram célebres algumas das suas frases,que se tornaram autênticas fórmulas. Por ex-emplo: «Ninguém nasce cristão, faz-se.»Com esta frase, Tertuliano mostrava-se con-trário ao baptismo das crianças.

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«O sangue dos mártires é semente decristãos.» De facto, foi a extrema coragemdos cristãos perseguidos e barbaramentemartirizados que muito contribuiu para asua própria conversão.

A Teologia cristã ficou a dever-lhe muito,desde a sua criação de um vocabulário latinopara a reflexão cristã às suas argumentaçõescom referência à Trindade e à pessoa deCristo, argumentações que influenciaram aolongo dos séculos grandes pensadorescristãos.

Para finalizar, não podíamos deixar dereferir a importância de uma obra do final doséculo i, consistindo num manual cristãoelaborado na Síria e contendo instruçõesvárias: trata-se da Didaqué ou Ensinamentodos Doze Apóstolos.

Nesta obra encontram-se orientaçõessobre o Baptismo e sobre a Eucaristia, con-tendo as mais antigas orações eucarísticas

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conhecidas. Descreve, também, as funçõesdos bispos, dos presbíteros e dos diáconos.

Uma análise desta obra, descoberta noséculo xix num mosteiro medieval, revela-nos que nos finais do século i os cristãospraticavam, ainda, muitas formas culturaisjudaicas. No entanto, esforçavam-se já parase afastar das mesmas, alterando os dias dejejum e formulando preces diferentes dasjudaicas.

Vimos como se foi formando a ciência teo-lógica cristã, nascida com a primitiva liter-atura cristã.

Depois de um período inicial em que a BoaNova era “traditada” de boca a orelha, numapregação jubilosa em que era anunciada aPaixão, a Morte e a Ressurreição de Jesus,bem como a salvação de todo aquele queacreditasse que Jesus era o Salvador enviadopor Deus – conteúdo do kerigma cristão –se-guia-se uma catequese sistemática para

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instrução dos neo-convertidos, cate-queseessa transmitida também por via oral.

À medida que foram desaparecendo astestemunhas dos factos ocorridos com Jesusde Nazaré, nasceu a necessidade de pôr acatequese por escrito. Foram aparecendo osprimeiros evangelhos escritos – os sinópticos– de Marcos, Mateus e Lucas, e, mais tarde,o Evangelho de São João. Outras obras com-pletavam essa catequese: os Actos dosApóstolos, as cartas de São Paulo, de SãoJoão, entre outras, acabando por ficar con-cluído o Novo Testamento, núcleo da Teolo-gia primitiva, constituído por vinte e setelivros.

A necessidade de defender a fé contra in-úmeras doutrinas ou correntes heréticas nas-cidas dentro da própria Igreja fez surgir, noséculo ii, uma literatura anti--herética pelapena de Santo Ireneu, chamado “o príncipedos teólogos cristãos”, e de Santo Inácio deAntioquia, autor de várias cartas, numa das

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quais aparece pela primeira vez a expressão“Igreja Católica” – na carta aos Esmirnenses–, escritos que vieram enriquecer o primitivonúcleo da Teologia.

A Escola de Alexandria trouxe um novoimpulso à Teologia, a partir do século iii,com as obras de Clemente e de Orígenes.

Rivalizando com Alexandria, a Escola deCartago deu-nos o pai da Teologia latina,Tertuliano, bem como Cipriano, autor deuma abundante obra teoló-gica.

Já no século iv nascia a Escola de An-tioquia, por mão de Luciano de Samosata,utilizando os seus teólogos um métodopróprio de interpretação das SagradasEscrituras, pela interpretação literal dostextos.

A literatura apologética veio acrescentarnovo enriquecimento da Teologia pela ne-cessidade de defender o Cristianismo dascalúnias que surgiam um pouco por todos oslados, fazendo-o sob a forma das chamadas

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apologias, em que a doutrina era expostacom a maior clareza.

Com os Padres da Igreja, a partir do séculoiv, a literatura cristã continuou a enriquecer-se, e com ela a Teologia, com numerosasobras, quer em grego, quer em latim(debruçar-nos-emos sobre estes Padres daIgreja em capítulo próprio).

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Os Padres da Igreja

O termo “Padre” (ou seja, pai) era at-ribuído ao bispo nos primeiros séculos daIgreja. A eles pertencia, por direito, a tarefade ensinar, eram os mestres, aqueles quetransmitiam a doutrina e a disciplina devida.

Este título foi dado, também, aos ascetasdo deserto, aqueles eremitas do Oriente quese concentravam na busca de Deus no isola-mento e ofereciam os seus conselhos e umapalavra espiritual àqueles que os pro-curavam. Alguns ficaram famosos e eramconhecidos como os Padres do Deserto.

A partir do século iv, receberam o nome de“Padres da Igreja” os pastores e mestres quetomaram parte no Concílio de Niceia (325).Eles personificavam o princípio da tradição,de tal modo que na época do Concílio deÉfeso, o terceiro concílio ecuménico, pouco

mais ou menos cem anos depois do primeiro,o recurso ao argumento dos “Padres” vigorouplenamente como dado adquirido.

A Patrologia – estudo da vida e da obrados Padres da Igreja – atribui o nome dePadres da Igreja a um certo número deautores cristãos cuja autoridade se baseia emquatro critérios:

1) Ortodoxia doutrinária;2) Santidade de vida;3) Reconhecimento por parte da Igreja,

mesmo que indirecto;4) Antiguidade.A ortodoxia doutrinária significa a existên-

cia de um consenso ou acordo entre osPadres sobre os pontos essenciais dadoutrina numa dada época. Na progressivaformulação do dogma cristão ao longo dosséculos, algumas formulações dos séculos ii eiii mostraram-se erróneas em alguns pontos,embora permanecessem, face a critérios pos-teriores no tempo, em consonância com o

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depósito genuíno da fé. Os Padres, testemun-has privilegiadas da tradição, eram os garan-tes da fé da Igreja.

A preocupação dos Padres da Igreja pelaortodoxia da fé não era meramentedoutrinária, uma vez que zelavam, igual-mente, por uma ortopraxia, isto é, pela fé op-erante na vida moral, nas obras demisericórdia.

Um Padre da Igreja foi alguém que espel-hou na sua vida os ensinamentos que trans-mitia. Os Padres da Igreja uniam a doutrinaà santidade de vida, uma santidade publica-mente reconhecida pela Igreja.

A aprovação ou reconhecimento da Igrejaé manifesta em muitos casos de umamaneira expressa, mas noutros casos de umamaneira indirecta, consistindo na citação dedeterminados escritores de modo honrosoem concílios e documentos oficiais.

O critério de antiguidade estabelece a “id-ade dos Padres” naquele período em que se

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fundam os alicerces das formulaçõesdoutrinárias, da liturgia e das orientaçõesdisciplinares da Igreja. A maioria dos autoresalonga essa “idade” desde as origens até aosséculos vii e viii. Considera-se esta épocapatrística como compreendendo trêsperíodos:

1) Das origens até ao Concílio de Niceia(325);

2) A chamada “idade de ouro dos Padresda Igreja”, entre o Concílio de Niceia e o deCalcedónia, em 451;

3) O declínio, desde Calcedónia até aosséculos vii-viii.

O período das origens abrange os chama-dos “Padres Apostólicos” – aqueles quetiveram relações mais ou menos directascom os Apóstolos: São Clemente de Roma,que foi o terceiro sucessor de São Pedro naSé de Roma, no tempo dos imperadoresDomiciano e Trajano (de 92 a 102), citadopor Santo Ireneu («ele viu os Apóstolos e

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com eles conversou, tendo ouvido directa-mente a sua pregação e ensinamento»23);Santo Inácio de Antioquia, terceiro bispo deAntioquia, que conheceu pessoalmente osApóstolos São Paulo e São João; São Poli-carpo, bispo de Esmirna, discípulo directo deSão João.

A esse período pertencem, também, al-guns autores do século ii, que redigiram es-critos apologéticos e anti-heréticos: SãoJustino, autor do Diálogo com Trifão e deduas Apologias; Atenágoras, apologista;Santo Ireneu, discípulo de São Policarpo, eque foi bispo de Lião, na Gália, considerado“o príncipe dos teólogos cristãos”, no sentidocronológico, isto é, de ter sido o primeiro, é oautor da importante obra Contra as heresias,e da sua obra ressaltando a importância queatribuía à tradição apostólica oral, o primadoda Igreja de Roma (fundada por Pedro ePaulo), a doutrina da “recapitulação” da

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humanidade pecadora em Cristo, o segundoAdão, etc.

Pertencem, ainda, a este período os quefizeram, do fim do século ii ao início doséculo iv, os primeiros ensaios de sistematiz-ação doutrinária: Orígenes, Tertuliano,Santo Hipólito, discípulo de Santo Ireneu,São Cipriano de Cartago, Novaciano, oprimeiro teólogo a escrever em latim, etc.

O segundo período – a idade de ouro dosPadres da Igreja, entre o Concílio de Niceia eo Concílio de Calcedónia – é o período dasobras mais importantes e das formulaçõesdoutrinárias basilares.

Este período vai de Santo Atanásio, que,ainda como diácono, acompanhou o seubispo de Alexandria ao Concílio de Niceia,onde se distinguiu pelo combate à heresiaariana, sendo ele próprio bispo de Alexan-dria três anos depois, em 328, até SantoAgostinho, de Hipona, compreendendoautores como os campeões da vitória contra

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o arianismo – “os grandes Capadócios”,Basílio de Cesareia e seu irmão Gregório deNisa e o amigo de ambos Gregório de Nazi-anzo; São João Crisóstomo, o “Boca deOuro”, que foi bispo de Constantinopla; oegípcio São Cirilo, bispo de Alexandria, quemanteve a doutrina ortodoxa contraNestório; um Santo Ambrósio, bispo deMilão, administrador do Baptismo àqueleque havia de ser o maior dos Padres Ociden-tais, Santo Agostinho; e um São Jerónimo, otradutor de numerosos livros da Bíblia, dir-ectamente do hebraico e do aramaico para olatim, a célebre Vulgata.

O período de certo modo injustamentechamado “período de declínio”, que vai doConcílio de Calcedónia, no século v, até aoséculo viii, estabeleceu um traço de uniãoentre o mundo antigo, greco-romano, e acristandade derivada dos povos bárbaros,educados por obra de grandes missionáriossob o impulso do Papa São Gregório Magno.

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Entre os Padres da Igreja deste períodocontam-se dois grandes Papas a quem aHistória atribuiu o apelativo de “Magno”:São Leão I, do século v, e São Gregório, doséculo vi; e conta ainda com o último Padreocidental – Santo Isidoro de Sevilha, doséculo vii; mas também o último dos Padresda Igreja grega, o monge São João Damas-ceno, do século viii.

Quanto às línguas das obras dos Padres daIgreja, a primeira foi o grego e, depois, apartir do século ii e princípio do século iii, olatim. No Oriente houve autores que utiliz-aram o siríaco, o arménio e o copta.

Os Padres ocidentais escreveram todos emlatim. No Oriente, os Padres foram na suamaioria gregos.

O estudo da Patrologia costuma confinar-se à chamada “Idade de Ouro”, distinguindo-se a “patrística” de língua grega da“patrística” de língua latina.

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Os grandes autores de língua gregaencontram-se no século iv e são consid-erados os maiores escritores desse século, aeles se devendo grande parte da reflexão teo-lógica suscitada pelos grandes conflitos dog-máticos nascidos no Oriente.

Eusébio de Cesareia, que foi bispo deCesareia na Palestina, embora nãopreenchendo os critérios estabelecidos paraser considerado Padre da Igreja, pois assum-iu uma posição equívoca na controvérsiaariana (primeiro critério), é, no entanto,autor importante da patrística grega, consid-erado como foi fundador da ciência daHistória da Igreja, deixando-nos umaHistória Eclesiástica, documento de ines-timável valor graças ao qual conhecemos amaior parte das informações chegadas atéaos nossos dias sobre os três primeiros sécu-los do Cristianismo.

Um seu contemporâneo, Santo Atanásio,nascido em Alexandria, aderiu, ainda jovem,

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ao monaquismo nos desertos do Egipto,onde conheceu muito de perto Santo Antão,“o pai dos monges”. Atanásio foi contem-porâneo de Ário, presbítero em Alexandria,figura central de uma heresia – o Arianismo– que sustentava que o Filho de Deus tinhasido criado por Deus, não gerado, negandonão só a divindade de Jesus Cristo, mas tam-bém a sua co-eternidade: «Houve um tempoem que Ele [o Filho] não era»24, era assimcomo muitos resumiam a doutrina ariana.Atanásio, tornado diácono da Igreja de Alex-andria, acompanhou, como vimos, o seubispo, Alexandre, ao Concílio de Niceia, em325. Aí se distinguiu pelo combate quemoveu à heresia ariana. Em 328 era elepróprio bispo de Alexandria, tendo feito dadefesa da ortodoxia em face do Arianismo arazão de ser da sua vida. Foi paladino da lutaanti-ariana, o que lhe valeu muitos diss-abores e sofrimentos durante um episcopadoturbulento e que lhe acarretou ter sido

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expulso cinco vezes de Alexandria e sete anosde exílio. A sua obra escrita consiste em Dis-cursos contra os Arianos, Contra os Pagãos,Discurso sobre a Encarnação do Verbo, Avida e obras de Santo Antão, esta última obramuito popular, tendo um enorme êxito,ponto de partida de muitas vocaçõesmonásticas, como, por exemplo, a de SantoAgostinho.

A vitória definitiva, no plano teológico, foiconseguida graças à obra de três Padres daIgreja, que ficaram conhecidos como os“Padres Capadócios”, pois eram todos nat-urais da Capadócia, região que se encontraactualmente no leste da Turquia: Basílio deCesareia e seu irmão Gregório de Nisa e oamigo de ambos Gregório de Nazianzo.

São Basílio frequentou as escolas superi-ores de Cesareia, Constantinopla e Atenas,tendo sido colega, na Universidade de Aten-as, de São Gregório Nazianzeno. À brilhantecarreira administrativa que se lhe abria

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preferiu tornar--se monge. Instituiu umacomunidade de monges, tendo redigido umaRegra Monástica. Depois, ordenado sacer-dote, foi chamado ao episcopado, sendonomeado bispo de Cesareia. Preocupava-secom as questões sociais, construindo hospi-tais para indigentes e hospedarias para per-egrinos. Combateu o Arianismo, a ponto deresistir ao imperador Valente, que eraariano. A precisão e a clareza da sua doutrinavaleram-lhe ter ficado conhecido como “o ro-mano entre os gregos”, distinguindo-se peloque escrevera sobre a Santíssima Trindade,sendo sua a fórmula “três hipóstases e umaessência”. Comentador da Sagrada Escritura,é o autor de um Comentário ao Hexâmeron(ou seja, Génesis), além de vários sermões ede duas Regras Monásticas, as Grandes e asPequenas Regras. É conhecido como “o paido monaquismo oriental”. A mortesurpreendeu-o antes do Concílio de Con-stantinopla, mas nessa assembleia seu irmão

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Gregório de Nisa defendeu com vigor aposição pró-nicena do seu falecido e prestigi-ado irmão.

São Gregório Nazianzeno, um dos maioresoradores cristãos de todos os tempos – “oDemóstenes cristão” – filho do bispo deNazianzo, na Capadócia, por quem foi orde-nado padre [Nada de espantos! estávamosainda no século iv]. Grande amigo de toda avida de São Basílio, que o sagrou bispo,desempenhou um importante papel na lutaanti-ariana. O imperador Teodósio recon-heceu Gregório de Nazianzo como bispo deConstantinopla, em 381. Foi durante o Con-cílio de Constantinopla, em 381, queGregório de Nazianzo foi sagrado bispodaquela cidade, graças ao brilho da sua elo-quência vigorosa em defesa da causa nicena,sendo, então, adoptado o Credo de Niceia,que se tornou o Credo da Igreja Ocidental. Omovimento ariano foi condenado nesse con-cílio. Entretanto, o próprio Concílio de

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Constantinopla foi palco de conflitos entre osbispos, sendo a nomeação de Gregório deNazianzo contestada pelos bispos do Egipto eda Macedónia, argumentando que ele tinhasido antes bispo de uma pequena cidade,Nazianzo. O próprio Gregório de Nazianzorefere-se ao que se passou em certas alturasdo concílio: «Os bispos palravam como umbando de pegas pousadas numa árvore. Erauma algazarra de miúdos [...] Discutiam de-sordenadamente, cara com cara, todos aomesmo tempo.»25 Desgostoso com aqueladesordem, São Gregório resolveu demitir-se,retirando-se para as suas terras. O título de“teólogo” foi-lhe reconhecido pela sua ex-posição da doutrina trinitária nos seus cinco“discursos teológicos” em defesa dadivindade do Filho e do Espírito Santo.

São Gregório de Nisa, irmão de SãoBasílio, entrou para um mosteiro antes deser sagrado bispo de Nisa. Pensador emístico, notabilizou-se no Concílio de

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Constantinopla. São admiráveis as suas re-flexões de cunho contemplativo e na refut-ação do Apolinarismo, do Arianismo e doMacedonianismo. As suas obras principaissão a Grande Catequese e uma Vida deMoisés. A Igreja não lhe atribuiu, no entanto,o título de “Doutor”, tal como o fez com osoutros dois Padres Capadócios, uma vez quea sua doutrina vem eivada de alguns errospela influência que sofreu de Orígenes e doPlatonismo.

O mais conhecido entre os Padres daIgreja grega foi São João Crisóstomo, o“Boca de Ouro”. Nasceu em Antioquia, ondeviveu durante a juventude uma vidamonástica no deserto. Ordenado presbíteroem 386, tornou-se um pregador famoso,valendo-lhe a sua eloquência o título dadopela posteridade de Crisóstomo (isto é, bocade ouro). Foi eleito, contra a sua vontade,Patriarca de Constantinopla, em 397. O exer-cício zeloso das suas funções pastorais

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acabou por trazer-lhe dissabores na corte, àqual não conseguia adaptar-se por não serhomem do mundo, nem político. Queria re-formar, à força, os costumes do clero e doscortesãos, o que o levou a ser deposto e exil-ado, uma primeira vez, em 403, permane-cendo, no entanto, em Constantinopla graçasà pressão popular, mas num segundo exílio,em 404, para longe, para a Arménia,acabando por morrer em 407 no Ponto. Co-mentador das Sagradas Escrituras nos seusSermões de preparação do Baptismo e autorde alguns tratados sobre O Sacerdócio, OMatrimónio e A Virgindade. O Papa São PioX proclamou-o padroeiro dos pregadores.

No século v o doutor egípcio mais ilustrefoi São Cirilo, bispo de Alexandria, eleito em412. Opôs-se, em 428, às ideias do Patriarcade Constantinopla, Nestório, que parecia di-vidir Cristo em duas pessoas, uma o homemJesus, filho de Maria, e a outra o Verbo hab-itando em Jesus. Cirilo combateu a doutrina

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de Nestório, mantendo a doutrina ortodoxa,apoiando-se no Papa Celestino. Nestório re-age, apelando para os seus apoiantes daEscola de Antioquia, de onde era originário,e, perante o tumulto que se ia avolumando, oimperador Teodósio II convoca um concílioecuménico para Éfeso, o terceiro concílioecuménico da História da Igreja, realizadoem 431. Este concílio condenou e depôs oPatriarca Nestório, consagrando a tese tradi-cional da unidade de pessoa em Cristo e oconsequente título, que compete a Maria, deTheotókos (ou seja, Mãe de Deus). São Cir-ilo, que defendeu vigorosamente o título deMãe de Deus para a Virgem Maria, deveconsiderar-se o “Doutor mariano”, sendo oprincipal mariólogo entre todos os Padres daIgreja. É autor de comentários exegéticos aoAntigo e ao Novo Testamento, de tratadossobre a Santíssima Trindade e a Encarnação,etc. É considerado um dos maiores Padres daIgreja de língua grega.

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Entre os Padres da Igreja de línguas ori-entais sobressai Santo Efrém de Nísibe eEdessa (306-373), considerado o maior po-eta sírio, chamado a “cítara do EspíritoSanto”. Filho de pais cristãos, nasceu em 306em Nísibe, na Mesopotâmia, região nocentro das conquistas, ora do Império Ro-mano, ora do Império Persa. E quando Nís-ibe fica na posse dos Persas, Efrém refugia-se em Edessa, mais a ocidente, cidade deuma igreja muito antiga de língua siríaca.Escreveu comentários bíblicos e, em formade hinos, tratados contra os gnósticos,arianos e Juliano, o apóstata, bem comohomilias em verso e hinos litúrgicos, os quaiscontêm admiráveis louvores à Virgem Maria.

Os grandes Padres da Igreja de língualatina encontram-se, também, no século iv:nesse século encontram-se as três colunas dohumanismo cristão: Ambrósio de Milão, Jer-ónimo de Belém e Agostinho de Hipona.Num mundo que desabava à sua volta – o

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Império Romano do Ocidente – estes ho-mens conseguiram manter de pé umacristandade frágil com o vigor das suas pa-lavras e a sua notável actividade.

Governador da Ligúria e da Emília, Am-brósio, que residia em Milão, viu-se repenti-namente, aos 34 anos, aclamado bispo pelopovo milanês, que admirava a sua sabedoria.No entanto, Ambrósio era ainda um simplescatecúmeno... Recebeu, então, a brevetrecho, o Baptismo, sendo logo de seguidaordenado sacerdote e sagrado bispo! Dis-tribuiu, então, os seus bens aos pobres, exi-gindo aos cristãos a justiça social. E tratoulogo de adquirir uma boa cultura teológica,sob a direcção de um sacerdote, Simpliciano,lendo os principais autores gregos, sobre-tudo Orígenes e São Basílio. Foi amigo e con-selheiro de alguns imperadores – entre elesValentiniano II e Teodósio, o Grande – o queo não impediu de excomungar um deles,Teodósio, impondo-lhe uma penitência de

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vários meses pela chacina de sete mil tes-salonicenses ordenada pelo imperador. FoiSanto Ambrósio quem baptizou SantoAgostinho, que viria a ser o maior dos Padresde língua latina. Teve uma notável actividadede exegese e de pregação. A sua obra escritafora primeiro pregada, antes de ser pub-licada, sendo admirável a maneira comotransmitia a fé da Igreja. Escreveu umcomentário ao Génesis, um outro comentárioao Evangelho de São Lucas, bem como umtratado sobre os deveres dos ministroseclesiásticos e um outro sobre os sacramen-tos. Introduziu o canto dos Hinos na liturgiadas Igrejas do Ocidente, sendo-lhe atribuí-dos alguns hinos antigos, inclusive o TeDeum. Numa época particularmente difícil,Santo Ambrósio revelou uma singular capa-cidade de estadista, com uma clarividênciapolítica, que aplicou tanto na sua carreiracivil como, depois, no seu governo pastoralcomo bispo de Milão, fazendo crescer

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notavelmente o prestígio da sua sede epis-copal, não apenas em Itália, mas para alémdas suas fronteiras.

São Jerónimo, nascido na Dalmácia (quecorresponde à actual Sérvia) é o mais eruditode entre os Padres latinos, sendo chamadovir trilinguis (ou seja, o homem de três lín-guas), por saber latim, grego e hebraico. Éconhecido, também, como o “Doutorbíblico”, pelas suas pesquisas no campo daSagrada Escritura. Familiarizou-se, comoestudante em Roma, com os autores clássi-cos. Peregrinou, depois, pela Palestina, at-raído pela vida monástica e ascética, tendosido eremita durante alguns anos. Aos 32anos foi ordenado sacerdote pelo bispo deAntioquia, Paulino, seguindo pouco depoispara Constantinopla, onde foi ouvinte de SãoGregório Nazianzeno e amigo de SãoGregório de Nisa. Em 382 seguiu para Roma,onde permaneceu três anos como secretáriodo Papa Dâmaso, que o encarregou de fazer a

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revisão da versão latina da SagradaEscritura. Após a morte do Papa deixouRoma para se fixar na Palestina, em Belém,onde viveu trinta e cinco anos, perto da grutada Natividade, e onde estudou hebraico comvários professores judeus. Em Belém, dur-ante todos aqueles anos, trabalhou afincada-mente na interpretação da SagradaEscritura, traduzindo para latim, directa-mente do hebraico e do aramaico, o AntigoTestamento. O conjunto dos livros bíblicostraduzidos para o latim, por incumbência doPapa Dâmaso, constitui o notável legado deSão Jerónimo, na obra conhecida com onome de Vulgata. Mas a São Jerónimo deve-se ainda uma intensa produção literária desessenta e três volumes de comentários emlatim e mais de cem homilias sobre o signi-ficado das Escrituras.

A terceira coluna do humanismo cristãofoi o principal Padre da Igreja e um dosmaiores génios teológicos de todos os

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tempos: Santo Agostinho. A sua actividadeliterária pertence ao património universal,constituindo a sua autobiografia espiritual,da infância à conversão – as Confissões –uma obra-prima da literatura universal. Nas-cido em Tagaste, na Numídia, filho de umfuncionário público e de uma fervorosacristã, Mónica, levou uma vida desregrada nasua juventude, até se fixar em Cartago comoprofessor de eloquência. A leitura de Cícero(o Hortensius) faz-lhe sentir uma atracçãopor uma vida menos sensual e mais dedicadaà busca da verdade, que procura incessante-mente nas filosofias e no maniqueísmo, quelhe parecia propor o autêntico cristianismo,em oposição à doutrina da Igreja que elechamava “uma história de velhas”.Transferindo--se para Milão, passou a ouvirregularmente os sermões de Santo Am-brósio, ao mesmo tempo que ia lendo SãoPaulo. Um dia, julgando ter ouvido a voz deuma criança que lhe dizia Tolle et lege (isto

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é, toma e lê), abriu ao acaso um livro quetinha ao lado – as Epístolas de São Paulo – esentiu, ao ler, que «todas as trevas da dúvidase dissipavam»26.

Como quem vive em pleno dia, comportemo-noshonestamente: nada de comezainas e bebedeiras,nada de devassidão e libertinagens, nada de discór-dias e invejas. Pelo contrário, revesti-vos do Sen-hor Jesus Cristo e não vos entregueis às coisas dacarne, satisfazendo os seus desejos.27

Tinha finalmente encontrado a luz, sendobaptizado no sábado santo de 387 por SantoAmbrósio. Sua mãe, Mónica, morria poucodepois, ela que tanto tinha contribuído paraa conversão de Agostinho com as suas or-ações. Voltando para África, quis entrar navida monástica na sua terra natal, onde fun-dou um mosteiro, vivendo alguns anos emretiro de orações e estudos. Granjeou talfama que o povo o escolheu para o sacerdó-cio, sendo ordenado pelo bispo de Hipona,pequeno porto do Norte de África, em 391.

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Passados quatro anos foi sagrado bispo deHipona, onde passou a desenvolver uma in-tensa actividade teológica e pastoral durantetrinta e quatro anos de episcopado. Em cen-tenas de Sermões (400) com o objectivo deinstruir o seu povo, nas suas Cartas – de quese conservam 276 – dirigidas a imensas per-sonalidades do mundo romano, nas suasConfissões, autobiografia escrita entre 397 e400, em muitos dos seus tratados, SantoAgostinho comentou o Antigo e o NovoTestamento e tratou dos grandes temas daTeologia, cujo avanço foi decisivo com o seucontributo. Todos os teólogos posteriores re-correrão a Santo Agostinho, incluindo osprotestantes Lutero e Calvino e o heréticoCornélio Jansen (Jansénio). Numa das suasobras – A Cidade de Deus – faz uma reflexãode Teologia e de História em que procura de-cifrar os sinais dos tempos e o plano daProvidência Divina num mundo que se des-moronava à sua volta, com a ruína do

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Império Romano do Ocidente, submergidopelas invasões dos povos bárbaros, precis-amente quando se tornara um Impériocristão. A Cidade de Deus é simultaneamenteuma obra apologética em que SantoAgostinho se dirige aos pagãos, refutando ainterpretação que eles faziam ao atribuíremas desgraças de Roma, tomada por Alaricoem 410, a um castigo dos deuses por se terabandonado a velha religião. Muitas outrasobras escreveu Santo Agostinho, como oEnchiridion (manual), compêndio dedoutrina cristã, o tratado De Trinitate (Sobrea Trindade) e obras polémicas várias contraas heresias com que se defrontou: o Ma-niqueísmo, o Donatismo, o Arianismo e oPelagianismo. Morreu em 430 na sua cidadesitiada pelos Vândalos.

Entre os Padres da Igreja Ocidental con-tamos, ainda, São Leão Magno, o Papa maiseminente dos primeiros séculos, que con-solidou o primado pontifício romano e se

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tornou, também, notável pelo Tomo a Flavi-ano, a sua carta ao Patriarca de Constantino-pla, em que reconhecia as duas naturezas deCristo, carta aclamada pelos 600 bispospresentes no Concílio de Calcedónia, em 451.Deixou várias obras – cartas e sermões –obras-primas da antiga teologia e eloquênciacristãs.

Ainda nos séculos v-vi conta-se, entre osPadres da Igreja latina, São Bento de Núrsia,fundador de várias comunidades monásticas,na última das quais – a Abadia do MonteCassino – escreveu a Regra dos Mosteiros, aregra beneditina que se tornou o principalcódigo de vida monástica do Ocidente,amplamente copiada, traduzida e comentadadurante a Idade Média e até nos nossos tem-pos. O espírito de São Bento, resumido nolema ora et labora, exerceu uma grande in-fluência na História da Igreja e da civiliza-ção. Pio XII chamou a São Bento “Pai da

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Europa” e Paulo VI proclamou-o “Patrono daEuropa”.

Já nos séculos vi-vii, um dos mais notáveisPontificados da História teve à sua frenteSão Gregório Magno, que promoveu a evan-gelização de Inglaterra, enviando mongesmissionários, entre os quais Santo Agostinhode Cantuária. Reformou o rito da Missa epromoveu o canto litúrgico, que desde entãofoi chamado “canto gregoriano” e se temconservado vivo até à Igreja dos nossos dias.As obras de São Gregório Magno consistemem várias homilias, numerosas cartas, asMoralia (os “Morais”) e os diálogos, cujo se-gundo livro conta a vida de São Bento. Assuas obras eram avidamente lidas pelos ho-mens da Idade Média.

Um bispo de Sevilha – Santo Isidoro deSevilha –, do século vii, é considerado emgeral como “o último Padre do Ocidente”.Escritor fecundo, exerceu grande influênciana Idade Média com a sua obra

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enciclopédica: as Etimologias, a primeira en-ciclopédia cristã em vinte volumes, contendoos conhecimentos profanos e religiosos dasua época, à qual fez chegar as riquezas dasabedoria da Antiguidade.

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Transformação da sociedade:depagã a cristã

Depois de o Cristianismo ter sido procla-mado religião do Estado por Teodósio em380, em poucos anos o Paganismo, agoraperseguido, acaba por ver proibidas as prát-icas de culto, em 392. Os templos pagãos sãodemolidos um pouco por toda a parte e emmuitos lugares os santuários pagãos sãosubstituí-dos por templos cristãos.

O Estado, outrora ao serviço do Pagan-ismo, passou agora a estar ao serviço doCristianismo. A reunião dos domingos para oculto cristão que se verificava desde o séculoi foi oficializada, em 321, por Constantino,que fez do domingo um dia legal de des-canso. O imperador promoveu o Cristian-ismo de muitos modos, sem perder de vista,no entanto, todos os outros seus súbditos, aponto de dizer, uma vez, a um grupo de

clérigos: «Vós sois os bispos dos membros daIgreja, mas eu serei o bispo, nomeado porDeus, daqueles que estão fora dela...»28 EmBizâncio, que havia de chamar-se Con-stantinopla, um templo de Afrodite foi der-rubado e no seu lugar construída a Igreja dosSantos Apóstolos, uma basílica com as im-agens dos Doze Apóstolos e um sarcófagopara Constantino... o “13.º Apóstolo”!

Não obstante os esforços de Constantino,que trabalhou arduamente na promoção doCristianismo, o mundo do Império Romanonão se tornou cristão com um estalar de de-dos. Com Constantino a maioria da popu-lação do Império era ainda pagã, coexistindoo Cristianismo e o Paganismo, que até se in-terpenetravam por vezes. Mas a tolerância,agora, era para com o Paganismo, que,apesar de tudo, continuava a constituir ofundamento da cultura e assim continuou atéao século vi. O sistema pagão de ensino e decultura permaneceu intacto a princípio,

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frequentando a maioria das crianças cristãsas escolas pagãs, juntando-se os cristãos aospagãos nas antigas cidades da cultura –Atenas, Antioquia, Alexandria – para escutaros grandes filósofos neoplatónicos.

Numerosos costumes pagãos subsistiramainda ao longo do século iv, para grande es-cândalo do clero. O teatro pagão, os com-bates de gladiadores, as corridas de quadrig-as, os banhos, ao lado de práticas supersti-ciosas, como os amuletos e os presságios,continuavam a caracterizar os costumes.

O poder do Estado, que antes estava aoserviço do Paganismo, está agora ao serviçodo Cristianismo. Religião e Estado são insep-aráveis. A religião era o fundamento e o ci-mento da sociedade. Com o advento do Cris-tianismo só a religião muda uma vez que oEstado permanece com as mesmas estrutur-as mentais.

No entanto, foi-se assistindo a pouco epouco a uma lenta cristianização da

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sociedade. Certas festas, certos costumesmatrimoniais e funerários vão-se impreg-nando, gradualmente, de espírito cristão. Háuma influência cristã na legislação familiar: alei dificulta o divórcio, embora o não tenhaabolido; o tratamento nas prisões torna-semais humano, não podendo os carcereirosdeixar os presos morrer de fome e sendo fac-ultada ao clero o direito de visita às prisões.No entanto, a escravatura torna-se assuntodelicado: pois se a própria Igreja tem escra-vos... Mas é proibido separar-se as famíliasde escravos e a alforria começa a serfacilitada.

E embora não haja uma transformaçãoprofunda das estruturas, que se mantêmpagãs, é através da criação de instituições decaridade que essas mesmas estruturas vãosendo transformadas a longo prazo. E, namedida em que o edifício da administraçãocivil se ia desmoronando ao longo do séculov, sob os golpes dos povos bárbaros que

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cercavam o Império, o vazio de autoridade iasendo preenchido pelos bispos cristãos, quepassaram a intervir cada vez mais na vidados seus povos diocesanos, tomando espe-cialmente a seu cargo a protecção das pess-oas socialmente débeis, incapazes de se de-fenderem a si mesmas.

Num período de grande escassez, umbispo da Ásia Menor – Basílio de Cesareia –organiza a caridade montando uma autêntica“cidade de urgência”, com igreja, mosteiro,hospício e hospital, onde são acolhidos osviajantes, os doentes e os pobres. A esmola, oacolhimento de peregrinos (um centro noporto de Óstia, que servia Roma), hospitaisum pouco por toda a parte, constituem ocerne das preocupações cristãs.

A conversão cristã do Império Romanoacarretou consequências cheias de signific-ado do ponto de vista histórico-cultural: asmultidões viram as portas da Igreja abertas– escancaradas – à sua espera e prontas a

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acolhê-las. Os pusilâmines podiam transpô-las sem receio, com segurança, sem arriscaro martírio ou os inconvenientes decorrentesde uma conversão à fé cristã, quase certos naépoca das perseguições. E fizeram-no emmassa.

A Igreja, atenta à nova realidade, estabele-ceu regras para a admissão de pessoasadultas ao Baptismo. Foi, assim, instituídoum período de preparação catequética e as-cética, período mais ou menos longo, em quepodiam examinar-se as disposições dorecém-convertido – o neófito – para recebercom dignidade o Baptismo, normalmenteconferido nas grandes solenidades litúrgicasda Páscoa e Pentecostes.

Essa nova instituição da Igreja era ocatecumenato, no qual se inscreviam ordin-ariamente os neófitos – aqueles que“pediam” o Baptismo – no início daQuaresma. As catequeses, dadas pelo própriobispo ou por alguém idóneo por ele

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encarregado, percorrem as fórmulas reuni-das em sínteses da fé – as “profissões de fé”–, resumos da fé professada pelos cristãos.São os “credos” ou “símbolos da fé”, sinais deidentificação e de comunhão entre os crentes(a palavra grega symbolon significava a met-ade de um objecto partido em dois, e que seapresentava como sinal de identificação,sendo pela justaposição das duas partes quese verificava a identidade do portador...). Poranalogia, era o conhecimento perfeito do“símbolo da fé” que habilitava os neófitos aserem admitidos ao Baptismo. Esseconhecimento era-lhes ministrado aos pou-cos nas reuniões litúrgicas especiais, em queeram também submetidos a exorcismos.Chegado o Sábado Santo, proclamavam sole-nemente um dos símbolos aprendidos, geral-mente o Símbolo dos Apóstolos, cujos dozeartigos constituíam um resumo fiel da fé dosApóstolos e que se tornara o símbolo baptis-mal da Igreja de Roma.

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Não obstante a instituição destecatecumenato no século iv, muitos dos quepretendiam tornar-se cristãos por opor-tunismo não aceitavam senão com muita di-ficuldade as exigências morais do Baptismo,pelo que o iam adiando até à velhice, oumesmo até ao leito de morte. Pois se até oprimeiro imperador “cristão” por excelência– Constantino, o Grande – só se baptizou noseu leito de morte... E o próprio Teodósio,que havia feito do Cristianismo a religião ofi-cial do Estado e fora, provavelmente, edu-cado como cristão, embora crente inabaláveldo Credo de Niceia, só quando se viu “aper-tado” em Tessalónica por doença grave, aos34 anos, julgando que se ia aproximando amorte, aceitou finalmente o baptismo... E, aocurar-se, entendeu que o Baptismo, com assuas exigências morais, lhe impunha umavida sem mancha, em que novos pecados olevariam às penas eternas depois da morte.Apesar disso o cristianíssimo Teodósio, dez

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anos após o seu baptismo, quando residia emMilão, fez chacinar sete mil espectadores decorridas de quadrigas num estádio de Tes-salónica, porquanto os adeptos de um popu-lar campeão condutor de quadrigas, presopor conduta imoral, haviam linchado brutal-mente o comandante da guarnição romanaque procedera à prisão do referido campeão.Furioso com a morte do seu oficial, Teodósiodeu ordem para a chacina, perpetrada pelossoldados romanos.O bispo de Milão,Ambrósio, ameaçou-o de excomunhão, o queabalou profundamente Teodósio. O im-perador despiu os seus trajes de púrpura ecompareceu diante do bispo na catedralpedindo perdão publicamente. Perdão quenão foi concedido imediatamente, tendo Am-brósio imposto vários meses de penitênciaantes de lhe dar a comunhão.

A maioria dos cristãos devotos dessa épocaentendia as exigências morais do baptismodo mesmo modo, pois a Igreja ainda não

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instituíra a chamada “ordem dos penitentes”,em que os pecadores se submetiam a umapenitência muito dura, com uso de cilício evestimenta de pêlo de cabra, eram excluídosda comunhão, submetiam-se a jejuns, renun-ciavam às relações conjugais e à prática dedeterminadas profissões, etc., podendo asproibições conjugais e profissionais continu-ar até à morte, mesmo depois da reconcili-ação... Embora constituísse já um progresso,os rigores de tal penitência oficial fizeramcom que muitos recém-convertidos fossemadiando o seu Baptismo, submetendo-se àpenitência só quando viam aproximar-se amorte...

A partir do século iv, e mais frequente-mente no século v, generalizou-se o bap-tismo das crianças, baptismo administradoaos filhos de pais cristãos imediatamenteapós o nascimento, já não apenas nas solen-idades da Páscoa e do Pentecostes, mas sim,portanto, ao longo de todo o ano. Deste

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modo, a pouco e pouco e cada vez mais fo-ram faltando os conversos adultos dado serprática normal a incorporação na Igreja logodepois do nascimento. Daí a inutilidade docatecumenato de adultos, que acabou pordesaparecer.

A cristianização das cidades foi muitorápida, uma vez que a Igreja obtém umaliberdade plena para evangelizar, celebrar oculto, criar instituições de caridade: centrosde acolhimento de peregrinos, hospitais,mosteiros...

Porém, os campos permaneceram pagãos (pagani), com a sua população aferrada àtradição idolátrica e aos ritos que asse-guravam a fecundidade dos campos e dogado. A cristianização dos povoados ruraisfoi-se fazendo, no entanto, graças à activid-ade catequética de grandes pastores mis-sionários que foram cristianizando os hábi-tos sociais mais arreigados bem como as suasfestas religiosas tradicionais. Assim, além da

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destruição dos ídolos, a Igreja procurou in-tegrar os costumes e as festas religiosas nadisciplina sacramental e no ciclo litúrgicoanual. No local de antigos templos pagãos fo-ram erigidos templos cristãos. Um grandebispo missionário, que se distinguiu particu-larmente no século iv, foi São Martinho deTours.

A par destas medidas, revelou-se um ex-celente meio de catequese do povo das aldei-as o culto dos mártires, dos santos e dasrelíquias, que sempre impressionaram pro-fundamente os rústicos dos campos.

Este trabalho de evangelização dos cam-pos foi muito lento no desenraizar das super-stições e dos cultos idolátricos que permane-ciam como característica da religiosidadepopular. Construíram-se numerosas igrejasnos campos, centros de uma organizaçãoparoquial, com o seu clero próprio, a quemficava entregue a pastoral das populaçõesrurais.

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O bispo de chefe da Igreja local e pastor dacomunidade cristã de uma determinada cid-ade passou, a partir do século iv, a sê-lo tam-bém de um território mais ou menos ex-tenso, onde exercia a sua autoridade. Nas-ceram, assim, as dioceses, tendo como centrouma cidade episcopal, rodeada por um es-paço rural mais ou menos extenso, confin-ando com outros territórios tendo comocentro, por sua vez, outra cidade episcopal,em que exercia um poder jurisdicional umbispo diocesano dentro das fronteiras da suadiocese e apenas sobre as pessoas residindodentro delas, respeitando os territórios e aspessoas das outras dioceses.

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Imitação de Cristo:ascetismo emonaquismo

Uma vida de imitação de Cristo constituiuum ideal seguido, desde as origens do Cristi-anismo, por fiéis cristãos de ambos os sexos.Tal ideal de vida ascética levava algunscristãos a abandonar tudo pelo Reino deDeus, renunciando ao casamento e escol-hendo uma vida de castidade, pelo que per-maneciam virgens e guardavam continência,ao que acrescentavam um certo número depráticas austeras e comportamentos discip-linados, praticando a oração e a mortificaçãocristãs e fazendo obras de misericórdia.

Porém, nos três primeiros séculos, os as-cetas cristãos não abandonavam o mundo e,embora reunindo-se, por vezes regular-mente, para ouvirem a Palavra de Deus e or-arem, não viviam em comum, permanecendoem suas casas, no exercício das suas

profissões e administrando os seus própriosbens.

No século iv assistiu-se ao aparecimento,entre mulheres, de uma forma inicial demonaquismo, em que viúvas e donzelas vir-gens se comprometiam a guardar castidade,passando a viver em comum. É o caso, porexemplo, das matronas romanas Paula eMarcela, incentivadas por São Jerónimo aoestudo da Palavra de Deus nas SagradasEscrituras, animando-as no exercício daascese cristã.

Assim se gerou uma nova forma de vidaascética cuja característica peculiar consistianuma fuga do mundo para consagração aoserviço divino. Os tempos que se seguiram àpaz da Igreja, com a instituição do Cristian-ismo como religião oficial do Estado, em queser-se cristão já não comportava risco algum,condicionaram um certo relaxamento.Multidões de neófitos, pagãos recentes,afluíam à Igreja, que lhes abriu as portas. Os

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neo-cristãos não tinham o mesmo fervor quehavia nas comunidades cristãs no tempo dasperseguições e do martírio. Daí cristãos maisexigentes procurarem a perfeição por umafastamento dos ambientes seculares. Destemodo nasce uma tradição anacorética (deanacoretas, do grego anachorein, que signi-fica aquele que abandonou o mundo), erem-ítica (de eremitas, isto é, aqueles que se re-tiram do mundo, refugiando-se no deserto,eremos, em grego) e monástica (de monges,monachos em grego, significando aquelesque se retiram do mundo para viverem soz-inhos) é a de grupos de homens e mulheresque adoptaram, a partir do século iv, umaforma religiosa de vida comunitária,isolando-se do mundo para se dedicarem apráticas de ascese e oração.

O eremitismo cristão teve a sua origemhistórica no Egipto, a partir do ano 300. Umdesses eremitas era Antão, cuja biografia seencontra num livro atribuí.do a Atanásio,

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bispo de Alexandria e grande opositor doArianismo. Esse livro– Vida de Santo Antão– conta a decisão de Antão, proprietárioagrícola abastado, em retirar-se para odeserto. Foi porventura o Evangelho dojovem rico que levou Antão a distribuir osseus bens pelos pobres e ir viver na solidãodo deserto como eremita. A sua reputação desantidade foi aumentando e era muito pro-curado por quantos necessitavam de consolo,de conselho ou de ajuda.

Muitos, homens e mulheres, inspiradosem Santo Antão, na sua vida rigorosamenteevangélica e disciplinada, seguiram-lhe o ex-emplo, abalando para o deserto, formandocolónias de eremitas e mosteiros. Taismosteiros começaram a propagar-se pelaPalestina e Síria.

No sul do Egipto – o Alto Egipto –começou um movimento para fundarmosteiros, onde os religiosos que haviamprofessado os votos, assentando numa

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obediência incondicional a um superior, naobrigação da pobreza e na castidade, nosilêncio e em duros trabalhos manuais, pas-savam do eremitismo a um cenobitismo(vindo do grego koinos bios, ou seja, vida emcomum) ou vida em comunidade monástica.Esse movimento foi iniciado no século iv porPacómio, contemporâneo de Antão, que,além de organizar mosteiros para os homens(fundou nove mosteiros), incentivou afundação de casas semelhantes para mul-heres, tendo sua irmã Maria dirigido doisdesses mosteiros. Todos esses mosteirosabarcavam no conjunto vários milhares demembros, que se conheciam então comomonges.

Os monges pacomianos tinham a sua ex-istência minuciosamente regulada por pre-scrições escritas por Pacómio – a Regra –que passou a constituir um guia essencial dainstituição monástica.

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Na Ásia Menor foi o bispo de Cesareia,Basílio, o Grande, quem promoveu e or-ganizou o monaquismo, dando-lhe um fun-damento teológico, insistindo para que se to-masse como modelo o Evangelho, com ên-fase no amor efectivo ao próximo.

Basílio de Cesareia redigiu uma regra paraos monges, compreendendo o noviciado, osvotos, a obediência rigorosa ao superior(abade) e controlo de qualquer forma ex-agerada de ascetismo. Esta regra impôs-seem todo o Oriente, de tal modo que actual-mente ainda continua a ser seguida.

E foi, finalmente, um concílio – o Concíliode Calcedónia, em 451 – que integrou o mon-aquismo na organização eclesial, colocando-o sob a supervisão dos bispos.

No Ocidente, tal como no Oriente, a vidaconsagrada organizou-se a partir do séculoiv, expandindo-se o monaquismo, tanto dehomens como de mulheres. O exemplo vinhado Oriente, trazido por monges como

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Atanásio e Jerónimo, que faziam a propa-ganda da vida monástica. Em Roma existi-am, cerca do ano 350, várias comunidadesfundadas por mulheres da alta sociedade. Vi-mos já o exemplo das matronas romanasPaula e Marcela, assistidas espiritualmentepor São Jerónimo. É instituída, mesmo, umaliturgia própria, de consagração das virgensou da entrega do véu.

Agostinho, futuro bispo de Hipona, quisser monge após a sua conversão, fundandoum mosteiro na sua terra natal, Tagaste.Quando bispo, quer que o seu clero adopte asgrandes linhas da vida monástica. Os sacer-dotes eram escolhidos de preferência entreos monges, e era-lhes pedido que adop-tassem certos aspectos da vida do monge,como o celibato. A chamada Regra de SantoAgostinho constitui um conjunto de consel-hos para a vida religiosa e viria a ser tomadacomo norma, na Idade Média, para a vidacomum entre o clero.

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João Cassiano, depois de conhecer osmosteiros orientais, regressa ao Ocidente,fundando dois mosteiros em Marselha: um,destinado aos homens – o mosteiro de SãoVítor; outro, destinado a mulheres – omosteiro de São Salvador. Os seus escritos –as Instituições monásticas e as Colações –constituem uma regra em que a moderação éa primeira das virtudes monásticas.

Bento de Núrsia constitui, no século vi, opai dos monges do Ocidente. Funda doismosteiros: primeiro, o de Subiaco, e depois ode Montecassino. E é neste segundomosteiro que ele compõe, no final da suavida, a célebre Regra de São Bento, baseadanuma regra anónima – a Regra do Mestre –e nos escritos de Pacómio e de Basílio deCesareia. Este código beneditino acabou porse tornar a regra típica do monaquismoocidental, tendo como elementos determin-antes da vida monástica:

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1 – Uma vida comum: nos locais de habit-ação, de trabalho e de oração;

2 – Uniformidade no vestuário, na ali-mentação, na vida ascética;

3 – Uma regra escrita, para assegurar acoesão da comunidade;

4 – A obediência aos superiores.Até ao século xii todos os mosteiros do

Ocidente se inspiraram nessa regra. O super-ior do mosteiro é o abade, o chefe de famíliae que “faz, de facto, as vezes de Cristo nomosteiro” (Benedicta Regula ou Regra deSão Bento). Ele é o “abba”, isto é, o Pai...Além de chefe da comunidade, a que se deveobedecer prontamente, ele é o mestreespiritual.

A vida dos monges é pobre, mas sem osexageros do monaquismo oriental, levandouma vida austera, mas moderadamente, noque diz respeito ao sono, ao vestuário, ao ali-mento e à oração. Os monges passam o dia

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entre a oração e a liturgia, a leitura e oestudo e meditação da Sagrada Escritura.

Foi grande a influência dos mosteiros be-neditinos, especialmente na sua contribuiçãopara o nascimento da Europa, seguindo-se àderrocada do Império Romano do Ocidente.

Importância notável adquiriu o mona-quismo celta, contemporâneo do beneditino.A Igreja da Irlanda, uma Irlanda evangeliz-ada por São Patrício, adoptou uma organiza-ção monástica que melhor se adaptava aotipo de sociedade existente na ilha, uma so-ciedade de clãs. Os monges celtas tornaram-se grandes missionários, levando o seu ardorapostólico até ao coração da Europa. O maiordesses missionários irlandeses foi Colum-bano (século vi), que fundou mosteiros aolongo da sua digressão evangelizadora pelocontinente europeu, sobretudo nos locaismais inóspitos, que acabaram por se tornarcentros de colonização e de reconquista

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cristã de regiões de onde fora varrida a fépelas invasões bárbaras.

A Inglaterra, evangelizada por Agostinho eos seus monges beneditinos, enviados porum Papa ele também monge beneditino –Gregório Magno – tornou-se, por sua vez,missionária das regiões germânicas aindabárbaras do continente europeu. Um mongebeneditino inglês, Winfrid, foi enviado peloPapa Gregório II em missão oficial de organ-ização da Igreja germânica e da Igreja franca.Winfrid recebeu o nome de um mártir –Bonifácio – e começou a sua missão naFrísia, de onde passou a organizar os bispa-dos germânicos, fundando a abadia de Fulda,que se tornaria importante foco religioso deonde irradiaram as missões germânicas. EmFrança procura restaurar a Igreja franca,uma Igreja devassa, onde clérigos amanceba-dos com concubinas levavam uma vidamundana de guerreiros e de caçadores. Boni-fácio acaba por ser morto em 754,

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juntamente com cinquenta e dois dos seusmonges, pelos frisões. Sem dúvida estemonge beneditino inglês foi o grandeapóstolo da Alemanha, que o considera seupadroeiro. Na altura da sua morte grandeparte da Europa era já cristã graças à suaacção missionária: os Países Baixos, a Bél-gica e a Alemanha Central e do Sul.

O monaquismo visigótico deu origem avárias “regras” na Hispânia visigóticacatólica: a regra de São Leandro, para vir-gens; a regra de Santo Isidoro, para omosteiro Honorianense, na Bética; a regra deSão Frutuoso de Braga, que deu origem a ummovimento ascético que sobreviveu à ocu-pação islâmica.

Foi graças aos mosteiros e aos seusmonges, nomeadamente aos beneditinos,que, num mundo em convulsão – guerras,assolações dos bárbaros, que tudo levavamna sua frente, arrasando e destruindo os an-tigos e venerandos centros da civilização e da

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cultura – chegaram até aos nossos dias os es-critos mais antigos do Cristianismo, assimcomo os escritos clássicos greco-romanos. Osmonges copiavam e protegiam, e recopiavame voltavam a copiar, vezes sem fim, os anti-gos rolos de pergaminho contendo escritos,não só cristãos, como as Sagradas Escrituras,mas também os poemas de Homero, Catulo eHorácio, as obras de Ésquilo, Sófocles eEurípides, os relatos históricos de Tucídidese Tito Lívio, os trabalhos filosóficos dePlatão, Aristóteles, etc. Essas cópias foramzelosamente conservadas e eficazmente pro-tegidas das destruições dos povos bárbaros,que durante séculos assolaram a Europa,conseguindo que chegassem intactos até ho-je. O que não teriam dado os monges bened-itinos para obterem um exemplar dos mil-hares de manuscritos que encerravam vinteséculos de cultura existentes na biblioteca deAlexandria, mandada queimar, no século vii,pelo califa Omar, sucessor de Maomé!...

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A lenta formulação dogmáticada fécristã

Depois da tempestade das perseguiçõesaos cristãos que se verificaram nos trêsprimeiros séculos surgiu a bonança e, comela, a profissão do credo cristão com plenaliberdade, a ponto de verem a luz do dia múl-tiplas concepções que iam fermentando nointerior da própria Igreja e que, repentina-mente, adquiriam foros de cidadania com asnovas facilidades para se exprimirem e se es-palharem. Essas concepções culminaram, emmuitos casos, em heresias e cismas, de que jáestudámos as primeiras em capítulos anteri-ores. E vimos como a primeira grande her-esia teve uma grande difusão no século iv,alastrando rapidamente graças à bonançaque começara no ano 313. Referimo-nos aoArianismo, nascido em Alexandria, com basena doutrina ensinada pelo sacerdote Ário e

que esteve na base da necessidade, entãonascida, de se formular, com precisão, odogma trinitário.

Ário sustentava que Jesus Cristo na realid-ade não era Deus, não tendo a “mesma sub-stância” que Deus Pai, não passando de umfilho adoptivo de Deus.

Esta doutrina foi condenada por Alexan-dre, bispo de Alexandria, para quem JesusCristo coexistia com Deus Pai desde toda aeternidade, sendo, portanto, igual ao Pai,Filho por natureza, gerado, não criado, coma natureza divina.

Porém, o Arianismo encontrara acolhi-mento muito favorável entre os intelectuaisracionalistas impregnados da filosofia grega,o que explica a sua rápida difusão.

Foi necessário um concílio universal –ecuménico – para condenar a heresia deÁrio: o Concílio Ecuménico de Niceia, em325, o primeiro dos concílios universais, con-vocado com o consentimento do Papa

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Silvestre I pelo próprio imperador Con-stantino. Nesse concílio foi proclamado sole-nemente que o Senhor Jesus era “consub-stancial” ao Pai (em grego homoousios).

Mas, ao concílio condenatório da heresiaariana seguiu-se, paradoxalmente, umperíodo filo-ariano, tendo como dirigentemáximo o bispo Eusébio de Nicomédia, quealcançou uma grande influência na própriacorte imperial, a ponto de o imperador Con-stantino acabar por ser baptizado no seuleito de morte, em 337, pelo bispo pró-ariano. Dois anos depois, Eusébio deNicomédia tornou-se bispo de Constantino-pla, sendo, assim, um ariano confesso umdos mais poderosos chefes da Igreja.

Só com a chegada ao poder do imperadorTeodósio, católico niceno sincero, é que oArianismo acabou por ser abolido.

Num concílio convocado por Teodósio, em381 – o segundo concílio ecuménico – o Con-cílio Ecuménico de Constantinopla – cujo

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objectivo era eliminar para sempre o Arian-ismo, triunfou, finalmente, a fé nicena e odogma católico teve mais uma importanteachega na sua formulação. O facto é que oArianismo, entretanto, dera origem a umanova heresia que negava a divindade doEspírito Santo: o Macedonianismo. Ficava,assim completa a teologia trinitária, fixadanum credo: o símbolo niceno-constantino-politano, em que a doutrina da SantíssimaTrindade ficara perfeitamente definida.

No entanto, um ponto permaneceria in-definido: o das relações do Espírito Santocom o Filho. Tal indefinição deu, mais tarde,origem à questão do Filioque, que con-tribuiu, séculos mais tarde, para a discórdiae, finalmente, a separação entre o Oriente e oOcidente cristãos.

Apenas cem anos depois do Concílio deNiceia, em que se havia chegado a acordoacerca da divindade de Cristo – o Filho, Je-sus Cristo, era Deus verdadeiro de Deus

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verdadeiro, gerado, não criado, consubstan-cial (homoousios) ao Pai; e cinquenta anosdepois do I Concílio de Constantinopla, emque a teologia trinitária ficou completa com adefinição da divindade do Espírito Santoante a heresia que a negava, o Macedonian-ismo, nascia outra questão fundamental:como se conjugaram em Cristo, «perfeitoDeus e perfeito homem», a divindade e ahumanidade?

No século v, as duas grandes escolas teoló-gicas do Oriente – Alexandria e Antioquia –tinham concepções opostas perante aquestão cristológica.

A escola de Alexandria defendia que anatureza divina de Cristo penetrava de talmodo a natureza humana – como o fogo fazao ferro incandescente – que se fizera uma“mistura” de naturezas, uma união interna.

Para essa escola Cristo é o Verbo (Deus)que possui um corpo.

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A escola de Antioquia defendia, pelo con-trário, a perfeita humanidade de Cristo: aunião das duas naturezas, humana e divina,em Cristo, seria apenas externa ou moral.Mais do que de “encarnação”, deveria falar-se de “inabitação” do Verbo, que “habitaria”no homem Jesus como numa tenda.

Estes pontos de vista divergentes das duasescolas teológicas tiveram os seus campeõesem dois bispos: Cirilo, bispo de Alexandria,que defendia a unidade de Cristo – uma ún-ica natureza, pois na Encarnação a naturezahumana tinha sido absorvida pela divina – eNestório, bispo de Constantinopla, origináriode Antioquia, que se insurgia contra apiedade popular que invocava Maria comoTheotokos.

A questão cristológica atingiu o augequando o bispo Nestório começou a pregarpublicamente contra a maternidade divinade Maria. Ele negava-lhe o título de

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Theotokos, atribuindo-lhe, apenas, o de Mãede Cristo ou Christotokos.

Estas pregações incendiaram os ânimos,rebentando tumultos populares, que levaramo Patriarca de Alexandria, Cirilo, a denunciara doutrina nestoriana ao Papa Celestino I. OPapa começou por pedir a Nestório que seretratasse, e como ele se recusou a fazê-lo, oimperador Teodósio II convocou o Concíliode Éfeso, que se realizou em 431, presididopelo bispo de Alexandria.

Nesse concílio, Nestório é deposto, consid-erado herege, o que levou a que a multidão,que acompanhava do lado de fora os trabal-hos do concílio, desse largas à sua alegriapelo triunfo da Theotokos.

Entretanto, a controvérsia continuou, atéque, em 433, dois anos depois do Concílio deÉfeso, se chegou a uma fórmula concili-atória, por proposta de João de Antioquia: ada “união hipostática” das duas naturezasem Cristo, designando-se Maria com o título

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de Theotokos, porque o Verbo de Deus setinha feito carne e feito homem.

Nestório foi condenado, deposto e dester-rado. Apesar deste acordo, no entanto, mui-tos bispos orientais recusaram-se a aceitar acondenação de Nestório. Nasceu então umnovo movimento – o Nestorianismo – que,por circunstâncias políticas, se tornou adoutrina professada pela Igreja no ImpérioPersa.

O zelo missionário dos nestorianos persaslevou-os a evangelizar a Índia, chegando,mesmo, à China,

Após a morte do bispo de Alexandria, Cir-ilo, em 444, reacendeu-se a controvérsia. Es-cassos dez anos se tinham passado após oacordo pelo Símbolo da União, de João deAntioquia, como ficou conhecido.

Em Alexandria os teólogos refutaram adoutrina do Concílio de Éfeso, das duasnaturezas, a divina e a humana, na pessoaúnica de Cristo. Voltam as querelas em torno

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do termo physis, que em grego significanatureza. Enquanto para o latim era perfeita-mente clara a distinção entre natureza (phys-is) e pessoa, o mesmo não acontecia com ogrego. Deste modo, a utilização do termophysis em sentidos diferentes, levava a quepara uns existisse uma única natureza em Je-sus, para outros duas.

Assim, os teólogos alexandrinosafirmavam que em Cristo não havia mais doque uma natureza, pois na Encarnação anatureza humana tinha sido absorvida peladivina. Esta doutrina foi anunciada por ummonge de Constantinopla– Eutiques – tendoficado conhecida como o monofisismo (demonos, ou seja, uma + physis, ou seja,natureza).

O bispo de Constantinopla – o PatriarcaFlaviano – convoca um sínodo que acaba porexcomungar o monge Eutiques. Este apelapara o bispo de Roma, o Papa Leão, e para obispo de Alexandria, Dióscoro.

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É convocado um novo concílio, que sereúne em Éfeso, em 449. O concílio decorreno meio de graves tumultos, sendo depostosFlaviano, bem como todos aqueles queafirmavam as duas naturezas. A maioria dosassistentes do concílio eram protegidos deEutiques, entre eles o próprio bispo de Alex-andria, Dióscoro, que se serviu de um bandode monges desordeiros para agitar as ses-sões, a ponto de impedirem os legados ponti-fícios de lerem a epístola dogmática do Papadirigida a Flaviano (o Tomo a Flaviano, ex-posição sobre a Encarnação, em que o PapaLeão Magno afirma que Cristo possui umcorpo verdadeiro, da mesma natureza que ode Sua Mãe, Maria, unindo-se as duasnaturezas numa só pessoa). No fundo daquestão estavam, como vimos, as palavras“natureza” e “pessoa”, cuja distinção eraclara no latim, mas não no grego.

Após a morte do imperador Teodósio II,apoiante e amigo de Eutiques, o novo

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imperador, Marciano, pede ao Papa LeãoMagno que convoque um novo concílioecuménico.

O concílio reúne-se numa cidade queficava em frente a Constantinopla,Calcedónia, no ano 451. Desta vez é o próprioPapa que preside. É mesmo a primeira vezque um bispo de Roma, o Papa, preside a umconcílio ecuménico.

O Concílio de Calcedónia aprova de ummodo unânime a doutrina cristológica con-tida na epístola de Leão Magno a Flaviano. Oentusiasmo suscitado pela leitura do Tomo aFlaviano levou os padres conciliares a ex-clamarem: «Pedro falou pela boca deLeão!»29

Dióscoro é deposto e exilado. É estabele-cida desde então a base da Cristologia: Cristoé uma pessoa com duas naturezas.

Condenado, o Monofisismo, longe de de-saparecer, é adoptado como religião nacionalno Egipto – Igreja de língua copta – e

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também na Síria – Igreja de língua siríaca –e ainda a Igreja Arménia.

A “doutrina ortodoxa” (isto é, a doutrinarecta) de Calcedónia é imposta peloimperador.

E assistia-se, assim, ao primeiro cisma(rasgão) na Igreja, com a separação das Igre-jas (Egipto, Síria, Arménia) perante asquerelas cristológicas.

A questão cristológica só chegou ao seutermo com o III Concílio Ecuménico de Con-stantinopla (680-681), completando-se oSímbolo de Calcedónia (Cristo... verdadeiroDeus e verdadeiro homem... consubstancialao Pai, segundo a divindade consubstancial anós, segundo a humanidade... um só emesmo Cristo... que reconhecemos existirem duas naturezas, sem confusão nem sep-aração.. numa só pessoa ou hipóstase...) comuma profissão de fé nas duas energias e duasvontades de Cristo.

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No entanto, a Igreja monofisista perduraaté à actualidade no Egipto e na Etiópia.

Já próximo do fim do século iv surge umnovo movimento, desencadeado por ummonge bretão – Pelágio.

Esse movimento situava-se no centro deuma questão teológica levantada na Igreja doOcidente: a questão da Graça e das suas re-lações com a liberdade humana e qual o pa-pel de uma e de outra na salvação eterna dohomem. Esta foi a única questão teológicaimportante nascida no Ocidente. As outrasduas questões teológicas de grande im-portância – a doutrina da SantíssimaTrindade e a questão cristológica – tiveram oseu nascimento e as suas disputas noOriente.

O Pelagianismo minimizava o papel daGraça e maximizava a capacidade danatureza humana para o bem.

Para Pelágio, o pecado original de Adão eEva não seria transmitido à sua

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descendência, de tal modo que, se o homemnascia sem pecado, o seu livre arbítrio levá-lo-ia a escolher se seguia ou não o caminhooferecido por Cristo. Desse modo não terianecessidade da Graça de Deus e, portanto, dasalvação, porquanto o homem podia atingir aperfeição moral pelos seus próprios esforços.Tudo o que o homem precisava como ori-entação moral estava contido na SagradaEscritura. A escolha seria sua: ou seguia adoutrina moral do Antigo Testamento ou dosEvangelhos, ou recusava-a e dispunha-se aenfrentar os terrores do Juízo Final.

O grande adversário do Pelagianismo foi obispo de Hipona, Santo Agostinho, com umacontribuição decisiva para a formulação dadoutrina católica da Graça.

Argumentava Santo Agostinho: «Ohomem que tem medo de pecar por causa dofogo do inferno não tem medo de pecar, masde ser queimado.»30

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E foi o trabalho árduo de Santo Agostinhocontra o Pelagianismo que levou à con-vocação de dois sínodos em África, queacabaram por condenar as ideias de Pelágio,que foi, finalmente, excomungado pelo PapaInocêncio I, em 417.

No entanto, o erro persistiu, mas foi nova-mente condenado um ano depois. O prob-lema do livre arbítrio e da Graça ficou comoque em banho-maria, para voltar a aquecermuito mais violentamente alguns séculosmais tarde, com Martinho Lutero e JoãoCalvino.

Vimos como a formulação dogmática da fécristã se foi fazendo no meio de questões le-vantadas por heresias que foram aparecendonos primeiros séculos, levando algumas acismas ou cisões no seio da Igreja. Essaformulação fez-se à volta de alguns temasfundamentais: o da Santíssima Trindade, omistério de Cristo e o problema da Graça.

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As autênticas batalhas teológicas que setravaram, fora e dentro de concíliosecuménicos, tiveram os seus campeões e ter-ríveis adversários. Entre os primeirosdestacamos os nomes de Santo Atanásio,primeiro, diácono no Concílio de Niceia e,depois, bispo de Alexandria; os PadresCapadócios – os irmãos Basílio de Cesareia eGregório de Nisa, e o amigo de ambos,Gregório de Nazianzo; São Cirilo, bispo deAlexandria, campeão da doutrina cristoló-gica contra Nestório; o Papa Leão Magno,que contribuiu decisivamente para a formu-lação do dogma cristológico com o seufamoso Tomo a Flaviano, aclamado pelospadres do Concílio de Calcedónia («Pedrofalou pela boca de Leão!»); Santo Agostinho,de Hipona, que contribuiu decisivamentepara a formulação da doutrina católica daGraça.

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A progressão da evangelização:aevangelizaçãodos povos bárbaros

Com a morte de Teodósio, o Grande, em393, o Império Romano separa-se definitiva-mente em duas partes, cada uma delas re-gida por um dos seus filhos: o mais velho,Arcádio, fica a reinar sobre o Oriente; o maisnovo, Honório, herda o Ocidente.

O grande Império Romano, labori-osamente construído pedra a pedra nos doisprimeiros séculos da era cristã, acabara, aofim de mais dois séculos, em finais do séculoiv, dividido em dois: o Império Romano doOriente e o Império Romano do Ocidente.

A primitiva capital do Império – Roma –tinha vindo a perder o seu esplendor inicial afavor da nova capital dos imperadores ro-manos, sua residência oficial – Constantino-pla –, grande centro do Cristianismo. E en-quanto o Império do Oriente, com a capital

em Constantinopla, sobrevive por ummilénio, entre o século v e o século xvi, em-bora vendo o seu território tornar-se cadavez mais exíguo sob os golpes dos povos queo rodeavam, o Império do Ocidente desa-parece ao longo do século v sob os ataquesdos povos bárbaros, miscelânea de povos as-sim designados por não serem gregos, nemromanos (do grego barbaros, ou seja, es-trangeiro; o grego barbaros era uma palavraonomatopaica que representava o falar inin-teligível dos estrangeiros): tribos germânicasfugindo na frente dos terríveis Hunos vindosdas estepes asiáticas transpunham as duasfronteiras leste do Império, constituídas, anorte, pelo rio Reno, e, a sul, pelo rio Danú-bio. Ao longo dessas fronteiras sediavam-seos Visigodos, os Ostrogodos, os Alamanos, osVândalos, os Francos, etc.

Já desde o século ii que irrompiam emsolo romano vagas sucessivas de bárbarosvindas do Norte da Europa: Vândalos,

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Alanos, Visigodos, Ostrogodos, entre outras.Cada um destes povos é empurrado paraoeste e para sul por um outro povo em mi-gração. E, assim, os bárbaros acabaramdesde muito cedo por se instalar no Império,autorizados pelo próprio poder romano. Foideste modo que os Visigodos, que ocupavamas terras além-Danúbio, na fronteira da Dá-cia e da Trácia, pressionados pelos Hunos,solicitaram autorização, em 377, ao im-perador Valente, um imperador cristão, masariano, para atravessarem o rio e se estabele-cerem em terreno do Império. O imperadorconcedeu que se instalassem na Trácia,desde que reconhecessem a sua autoridade evivessem de acordo com as leis romanas,exigências que os Visigodos se prontificarama cumprir. Mas, logo no ano seguinte, em378, é derrotado e morto pelos invasoresbárbaros, a quem dera a mão na desastrosabatalha do Andrinopla, após o que os Visi-godos se instalaram em todos os Balcãs.

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Entretanto, o imperador ariano já tinhaenviado missionários arianos para cristianiz-ar os Godos. Entre esses missionáriosdestacou-se Úlfilas (ou Wulfila, “pequenolobo”), um cristão da Capadócia, que, paratornar acessível aos Godos a doutrina cristã,compôs um alfabeto gótico, que substituiu oscaracteres rúnicos germânicos e traduziu aBíblia para a nova língua convertida, passívelagora de ser escrita ao contrário da línguagermânica primitiva.

O povo Visigodo estava completamentecristianizado mesmo antes de terminar oséculo iv. Cristianizado, mas arianizado. E,tal como os Visigodos, foram também evan-gelizados no Arianismo os Ostrogodos, osBurgúndios, os Suevos e os Vândalos,tornando-se, assim, para os povos Godos oArianismo a sua religião nacional, em con-traste com as populações românicas, queeram católicas.

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Entre os povos germânicos, apenas osFrancos e uma parte dos Lombardos, povosdo Norte, não foram cristianizados.

Estes povos arianizados tiveram diferentesitinerários religiosos. Assim, Suevos, Bur-gúndios e Visigodos acabaram por se con-verter ao catolicismo no século seguinte,século vi. Os Ostrogodos e os Vândalos per-maneceram arianos até à sua extinção, nomesmo século vi.

Era de tal maneira a fixação de povos ger-mânicos em solo romano, e já desde hábastante tempo, que os próprios Visigodosforneciam recrutas para o exército romano,de tal modo que o imperador Graciano dis-punha de um corpo de tropas germânicas. E,quando Honório, filho de Teodósio, oGrande, ficou com o Império Romano doOcidente, tinha como comandante das suastropas um Vândalo, o general Estilicão, queconsegue conter durante algum tempo as in-vestidas de Alarico, rei dos Visigodos.

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Mas Alarico acaba por se apoderar deRoma em 410, pondo a cidade a saque: osVisigodos pilharam, mataram e incendiaramà vontade, poupando, no entanto, váriasigrejas... porque, cristãos arianos comoeram, respeitavam as instituições cristãs.

A repercussão desta notícia no mundo foitremenda, a ponto de os pagãos acusarem oscristãos de serem os responsáveis por talcatástrofe, de tal modo que os deuses pagãostradicionais da Roma antiga os castigavamassim... Santo Agostinho respondeu-lhes, es-crevendo A Cidade de Deus, tratado aomesmo tempo de Teologia, de História e deApologética, em que o autor contrapunha a«cidade do homem», produto efémero, e a«cidade eterna», que era o Reino de Deus.Para Santo Agostinho, os pagãos, em vez deculparem os cristãos, deveriam era culpar asua falta de fé...

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Já não havia nada que contivesse as hor-das bárbaras e o horror e o medo apossou-sede todos no Ocidente, no século v.

Na mesma altura das investidas dos Visi-godos (os Godos do Oeste, em contraposiçãoaos Ostrogodos, ou Godos do Leste), que ir-romperam na Itália logo desde o princípio doséculo, os Vândalos, povos germânicos ori-undos da Escandinávia, atravessavam oReno e pilhavam a Gália, acabando por se es-tabelecer na Hispânia. Por sua vez, os Visi-godos, em 416, invadiram a Hispânia, em-purrando na sua frente os Vândalos e outrospovos germânicos que também ocupavam oterritório hispânico: os Suevos e os Alanos.Assim, esses povos fugiram para o Sul deEspanha, chegando esses territórios a serconhecidos como a “Vandaluzia” (actual An-daluzia). Daí, os Vândalos, comandados porGenserico, passaram para o Norte de África,que conquistaram em 430, enquanto SantoAgostinho agonizava em Hipona. Em 439

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caiu Cartago, de que os Vândalos fizeram asua capital e ponto de partida para as suassortidas guerreiras, em que se entregavam apilhagens sistemáticas: tornavam-se, assim,os primeiros piratas do Mediterrâneo.Apoderam-se, em seguida, das ilhasBaleares, da Córsega, da Sardenha e daSicília, acabando, mesmo, por chegar aRoma em 455, que, claro, pilharam,saqueando a cidade durante duas semanas.Um grande Papa, Leão I (que ficou naHistória como São Leão Magno) foi ao en-contro de Genserico, entrando em nego-ciações, conseguindo a promessa de que acidade não fosse incendiada e a populaçãoseria respeitada. Genserico levou grandesriquezas e troféus para a sua capital, Cartago,permanecendo aí oitenta anos até à con-quista do reino Vândalo por Belisário, gener-al do imperador romano do Oriente, Justini-ano I.

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Os Vândalos caracterizavam-se pela suavocação de pirataria, a sua crueldade e pelasua intransigência religiosa: cristãos, masarianos, assim se conservaram até ao fim,perseguindo e massacrando as outras popu-lações cristãs não arianas, católicas que en-contravam no caminho das suas conquistas.Todas estas características acabaram por for-jar novas palavras no léxico latino: “vandal-ismo”, “vandalizar”, “vândalo”, significandorespectivamente o acto de produzir estragosou destruição de monumentos ou quaisquerbens públicos ou particulares, com opropósito de determinar a sua ruína; o es-tragar ou destruir de modo selvagem bens,propriedades, locais, etc., danificando, ar-rasando, arruinando, actos praticados fre-quentemente em bandos, com a finalidadede causar prejuízos; aquele que estraga oudestrói bens públicos, coisas belas, valiosasou históricas, etc., trazendo prejuízo à civiliz-ação, à arte, à cultura...

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Mas todos esses povos germânicos, in-stalados pacificamente nas bordas do Im-pério Romano desde o século ii, irrompiam,no século v, fugindo precipitadamente dosHunos, tribo asiática liderada por Átila, queatravessou o Danúbio e os Alpes, chegando aItália.

Os Hunos agiam pelo terror que desper-tavam, atacando tudo o que se lhe atraves-sasse no caminho. No entanto, não estavaminteressados em conquistar o Império Ro-mano, mas sim em enfraquecer o poder ro-mano através de negociações em que impun-ham o pagamento de tributosavultadíssimos.

Os Hunos haviam forçado o caminho paraa Gália, sendo parados, em 451, por um gen-eral romano, Aécio, que, com a ajuda do reidos Visigodos, Teodorico I, reúne um exér-cito composto de romanos, francos, alanos,visigodos e burgúndios, coligação que con-segue fazer recuar Átila, que acaba por ser

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derrotado numa batalha particularmentesangrenta – dos Campos Catalúnicos – re-cuando precipitadamente para além doReno.

Porém, no ano seguinte, Átila vira-se paraa Itália, levando tudo à sua frente a caminhode Roma, onde, inclusivamente, se refugiarao imperador Valentiniano III. E Átila só nãose apoderou de Roma graças à corajosa acçãode um grande Papa, Leão I – o nosso LeãoMagno, outra vez – que viajou 320 quilómet-ros no dorso de um cavalo para se encontrarcom ele, em Mântua, persuadindo o rei dosHunos a abandonar a Itália. Certamente queo vultuoso tributo levado pelo Papa foi decis-ivo, mas não foi difícil dissuadir Átila de ata-car Roma uma vez que as suas tropas se en-contravam desgastadas pelos sucessivos re-contros e começavam a ser dizimadas pelapeste e pela fome. E, assim, os Hunosacabaram por se retirar para as planíciesrussas.

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A ameaça dos Hunos trouxera um períodode paz entre Romanos e Godos, que se ali-aram para conter as hordas mongóis. Mas,acabado o perigo mongol, as tribos germân-icas estavam agora livres para agir, partindopara o assalto em grande escala do ImpérioRomano do Ocidente.

Em 455 morreu o imperador ValentinianoIII, neto de Teodósio. Era o princípio do fimdo Império Romano do Ocidente, com Romasaqueada por Genserico.

Até 475, ou seja durante vinte anos, houvenove imperadores, todos eles fracos,acabando o poder imperial por ser usurpadopor um general romano, que maquinou anomeação daquele que viria a ser o últimoimperador do Ocidente: Rómulo Augustulo,rapaz imberbe de doze anos, que acabou porser destronado por um bárbaro, Odoacro,chefe dos mercenários instalados na Itália,que, no entanto, nunca foi reconhecido comorei nem imperador.

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Com a instalação dos Ostrogodos na Itália,a partir de 481, a ocupação do Sul da Gália eda Hispânia pelos Visigodos, e o impériomediterrânico dos Vândalos, com-preendendo o Norte de África e as ilhasmediterrânicas, os Germanos são senhoresdo Ocidente, enquanto no Oriente o impérionão só se mantinha como se lançava, noséculo seguinte, numa tentativa de recon-quista dos territórios ocupados pelosbárbaros.

Aquilo que tinha sido uma lenta instalaçãopacífica dos povos germânicos em solo ro-mano, a partir do século ii, com assimilaçãodos costumes e aceitação das leis romanas,transformou-se, em finais do século iv, emvagas assoladoras sucessivas de invasão econquista, aterrorizados esses mesmos povosgermânicos, fugindo na frente dos Hunos,povos nómadas originários da Ásia, que ir-romperam na Europa Ocidental, onde a suaselvajaria e crueldade semeavam o terror por

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todo o lado. No século v, o seu chefe, Átila,tinha uma reputação de ferocidade tal queera conhecido por um terrível cognome: o deFlagelo de Deus.

Estas invasões bárbaras trouxeram, no en-tanto, um bem: o de pôr em contacto com aIgreja um novo mundo de etnia e cultura di-versas da romana. Germanos e eslavos, quedesceram da Escandinávia em direcção aosul, foram sendo evangelizados a partir doséculo iv.

O quadro territorial era o mesmo: o Im-pério Romano. Porém, a geografia po-líticaera agora outra. Uma nova oportunidade deevangelização surgia com oaparecimento dasnovas populações que se deslocavam, nor-malmente com todos os seus rebanhos e asfamílias, em carroças em que transportavamtodos os seus bens. Deslocação necessaria-mente lenta, portanto, criando múltiplasocasiões de contacto com os “missionários”cristãos.

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No meio da “barbárie” que se ia in-stalando, saqueando, pilhando, queimando,matando, muitas vezes uma única instituiçãoorganizada permanecia de pé: a Igreja. Ondenão chegasse já a administração imperial, osbispos tinham de enfrentar essa situação,passando a administradores dos bens dassuas comunidades, entrando em contactocom os bárbaros que se estabeleciam nassuas Igrejas particulares, evangelizando, pro-tegendo e alimentando os pobres, as grandesvítimas em tais situações.

Era um facto que muitos dos povos ger-mânicos invasores já tinham antes abraçadoo Cristianismo, mas um Cristianismo her-ético: o Arianismo. No entanto, de umamaneira geral eram tolerantes com os católi-cos autóctones, salvo a terrível excepção dosVândalos, que perseguiram cruelmente oscatólicos nos territórios que ocuparam noNorte de África.

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Esta situação suscitou, mesmo, a um sa-cerdote de Braga, Cerósio, discípulo de SantoAgostinho, um “desabafo”, ao constatar asconversões dos bárbaros ao Cristianismo:

As Igrejas de Cristo cheias de Hunos, de Suevos, deVândalos, de Burgúndios e muitas outras mul-tidões de crentes [...] deviam [levar-nos] a louvar ecelebrar a misericórdia de Deus porque tantasnações, mesmo à custa da nossa ruína, chegaramao conhecimento da verdade que com certezanunca teriam podido conhecer doutra maneira.31

Século terrível, este século v, em que senotabilizou, como já vimos, uma figura ex-traordinária da Igreja: a do Papa Leão I(Papa São Leão Magno), que sempre se er-gueu, quando necessário, face aos maistemidos chefes dos bárbaros: em 452, aochefe dos Hunos, Átila, e três anos depoissaiu ao encontro do vândalo Genserico, queinvadira a Itália pelo sul, a partir do Norte deÁfrica. Foi este Papa também que, em 451,dirigiu uma epístola dogmática ao Patriarca

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de Constantinopla – o Tomo a Flaviano –que, em pleno Concílio de Calcedónia, levouà adesão unânime dos padres conciliares àdoutrina cristológica nela contida, con-denando a heresia monofisista.

Muitos outros homens da Igreja se notab-ilizaram nesta época de “barbárie”: temos,assim, um Hilário de Arles, na Gália do sul;um Sidónio Apolinário, bispo de Clermont;Pedro Crisólogo, em Ravena; Leandro eIsidoro, irmãos, em Sevilha; Martinho deDume, Braga, fundador da Igreja por-tuguesa; o primaz dos burgúndios, Avito deVienne.

Entre os povos germânicos havia um povoque permanecia pagão no meio dos váriosreinos germânicos formados na EuropaOcidental que já tinham abraçado, há muito,um Cristianismo herético.

Esse povo era o povo franco. Os Francosestenderam-se pelo norte da Gália, acabandopor constituir o seu próprio reino à custa dos

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territórios conquistados em luta com os Visi-godos e com os Burgúndios. O jovem rei dosFrancos, Clóvis, converteu-se directamenteao Cristianismo católico, sem passar peloArianismo dos restantes povos germânicos:no Natal de um dos anos perto do final doséculo v (496? 500?), Clóvis, casado com acatólica Clotilde, faz-se baptizar, juntamentecom numerosos companheiros (três mil), porRemígio, bispo de Reims. Passara a haver,desde então, mais um rei católico nummundo rodeado de bárbaros arianos: esse reiera o rei dos Francos, Clóvis; o outro reicatólico era o imperador romano doOcidente. Para os povos católicos dos ter-ritórios do antigo Império Romano doOcidente, Clóvis, único rei bárbaro católico,tor-nou-se o protector natural da religiãocristã católica, chegando ao ponto de intervirnos assuntos do clero, convocando oprimeiro Concílio da Gália, em Orleães.

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Os Suevos arianos da Ibéria já se haviamconvertido ao catolicismo em 450, ao passoque os Visigodos da mesma Ibéria só se con-verteriam em 586 com o seu rei, Recaredo.

Em Itália reina o rei dos Visigodos,Teodorico, que era ariano, mas mantinha re-lações cordiais com o papado romano, re-lações que azedaram com as medidas toma-das contra os arianos pelo imperador ro-mano do Oriente, Justino. Tendo obrigado oPapa João I a ir a Constantinopla para inter-ceder a favor dos arianos, o Papa nada con-seguiu, pelo que, no seu regresso a Roma foimandado encarcerar por Teodorico,acabando por morrer na prisão.

Os sucessores de Teodorico foram in-capazes de se oporem à reconquista da Itáliapelo então imperador do Oriente, Justiniano.Precedendo a conquista da Itália, o reinovândalo do Norte de África não resistiu aoataque do general Belisário, que se virou, emseguida, para a Europa, começando por

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desembarcar na Sicília e passando daí àpenínsula itálica, conquistando sucessiva-mente Nápoles e Roma, que se entregarampraticamente sem luta.

A Itália acabou por se converter numaprovíncia do Império Romano do Oriente,tendo os bárbaros sido completamenteaniquilados.

Papas sucessivos são severamente mal-tratados pelos bizantinos: primeiro, o PapaSilvério, que não cedeu à exigência de sefazerem concessões aos monofisistas, sendo,por esse motivo, desterrado, maltratado edesrespeitado, morrendo de fome ao fim depouco tempo; o novo Papa, Vigílio, é tambémmandado prender por Justiniano por nãoceder às exigências bizantinas.

A dominação bizantina tornou-se in-suportável para os romanos da península,abrindo caminho a uma outra invasão depovos germânicos: os Lombardos, que

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fundaram um reino no norte da Itália com acapital em Pavia.

Entretanto, as devastações da Guerra Gót-ica, como ficou conhecida a guerra de vinteanos empreendida por Justiniano para con-quistar a Itália, as inundações quedestruíram as searas, trazendo a fome, ossurtos de peste, as razias dos Lombardos,que chegaram a ameaçar Roma, trouxeram ocaos, havendo a necessi-dade desesperada dese encontrar um líder capaz de restaurar aordem civil.

No Ocidente só havia uma instituição queera praticamente a única fonte de ordem: aIgreja. Pois foi à Igreja que o povo foi buscaro seu salvador: um monge, Gregório, eleitopor unanimidade Papa após a morte do PapaPelá-gio II, em 590.

Gregório, nascido de uma família nobreromana, a família dos Anícios, iniciara a suacarreira como prefeito de Roma. Quando os

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Lombardos sitiaram a cidade, Gregório or-ganizou a defesa de Roma.

Ao fim de poucos anos, em 574, Gregório,que ansiava por uma vida contemplativa eascética de monge, desfaz-se da maior parteda sua herança e, nas herdades da suafamília, na Sicília, funda seis mosteiros emais um sétimo em Roma. Retira-se, então,da vida civil, instalando-se no Mosteiro deSanto André, que fundara na própria mansãoem que residia, em Roma.

Eleito Papa por unanimidade, Gregório foio primeiro monge elevado às altas funçõesda chefia da Igreja universal. O novo bispode Roma pôs-se imediatamente a ajudar osfamintos e os doentes, ao mesmo tempo quereorganizava as propriedades papais, de cu-jos rendimentos saíam os salários do clero,bem como a manutenção das igrejas e osustento das obras de caridade. E a efi-ciên-cia de tal reorganização foi tal que essas

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propriedades forneciam alimentos a umagrande parte da Itália faminta.

Gregório tomou em suas mãos as funçõescivis, especialmente as que se relacionavamcom a educação e a assistência. E como nãochegava auxílio de Constantinopla para a de-fesa de Roma, sitiada pelos Lombardos, elesubsti-tuiu-se ao fraco exarca e tratou dir-ectamente com os bárbaros, dos quais se liv-rou depois de hábeis negociações e da en-trega de uma substancial soma de dinheiro,conseguindo estabelecer com eles umatrégua de trinta anos.

Quanto aos assuntos espirituais, Gregório,apesar da sua saúde débil, nunca deixou depraticar os hábitos do monge, continuando ajejuar e a fazer vigílias nocturnas de oração.Empreendeu uma série de reformas que seimpunham: do clero, da liturgia da Missa, daassistência aos pobres e aos doentes. Paraorientação dos futuros bispos escreveu ummanual – a Regra Pastoral –, escrevendo

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também muitas obras destinadas ao cristãovulgar, geralmente não instruído: as Homili-as, sem a densidade teológica de um SantoAgostinho ou de um São Jerónimo, num es-tilo claro, acessível ao povo simples. Este es-tilo serviu de modelo durante toda a IdadeMédia. Criou, também, uma escola de canto– a Schola cantorum – que inovou a músicareligiosa, de que o Canto Gregoriano é exem-plo, continuando a ouvir-se ainda hoje emtodas as igrejas católicas do mundo.

Preocupado com os milhões de bárbarosque constituíam as tribos germânicas doNorte da Europa, que ainda se conservavampagãs ou então convertidas à heresia ariana,Gregório impulsionou a evangelização dessespovos. Empreendeu também a conversão daantiga Britânia romana, em que o Cristian-ismo se vira banido pelas invasões dosbárbaros anglo-saxões pagãos. Para tantoenviou--lhes quarenta monges do seu antigomosteiro de Santo André, em Roma, sendo

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um deles o chefe da missão: Agostinho, oabade do mosteiro. Os monges romanosdesembarcaram na Britânia em 597,empreendendo uma evangelização tão bemsucedida que o Papa nomeou Agostinhobispo de Cantuária, enviando--lhe maismonges romanos para o ajudarem.

Mas não foram só os anglo-saxões os be-neficiados das preocupações missionárias doPapa Gregório. Convencido de que não podiacontar com qualquer apoio vindo do im-perador do Oriente, o Papa teve o bom sensode procurar fazer aliados entre os bárbarosque constituíam uma ameaça constante àIgreja. E, para Gregório, o modo para fazerdeste povo um aliado seria através de umaconversão ao Cristianismo, pelo que formouum autêntico exército de monges que envioupara converter e ensinar esses povos pagãos.Assim se voltou para os Francos e para osLombardos, povos que foi preparando pa-cientemente para a conversão.

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O Papa Gregório escreveu centenas decartas, tendo chegado até nós 854. Nessascartas escrevia ora instruções minuciosas aum novo clérigo sobre o modo de poupar osrecursos da Igreja, evitando-se o desperdício,ora para a Sicília, pedindo cereais paraRoma, ora combatendo os leigos corruptosque delapidavam os bens da Igreja, etc. Masassinava sempre: Servo dos servos de Deus(Servus servorum Dei).

Em 604 morreu o primeiro monge quechegou a ser Papa, São Gregório, como ficouconhecido depois de elevado aos altares pelaIgreja, com o sobrenome de “Grande”: SãoGregório Magno. Um epitáfio de autordesconhecido no seu túmulo chama-lhe Côn-sul de Deus: bispo de grandes capacidadespráticas, que em tempo de guerra e de pestese substitui naturalmente ao exarca biz-antino, assumindo a responsabilidade dasfinanças e do bem-estar do povo, a quem ali-mentou com as produções dos latifúndios

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papais de Itália e da Sicília, do Norte deÁfrica, da Gália e da Dalmácia, que tão bemreorganizou, conseguindo aumentar o seurendimento.

São Gregório Magno é considerado oquarto dos doutores da Igreja, ao lado e nomesmo plano que Ambrósio, Jerónimo eAgostinho, tendo tido uma influência con-siderável na Idade Média: com ele é inaug-urada uma Igreja medieval, tendo sido lança-dos os fundamentos da unidade espiritual ecultural de uma Europa do Norte, do Sul e doOeste. A Idade Média vê em São Gregórioum Papa exemplar, a ponto de o próprioMartinho Lutero o considerar o último bispoda Igreja de Roma.

Enquanto os povos germânicos partidosda Escandinávia migraram principalmentepara o Ocidente, outros povos bárbaros, osEslavos, cujas tribos ocupavam os territóriosentre a cordilheira dos Cárpatos, na EuropaCentral, e o rio Dniepre, que atravessa de

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norte a sul as planícies que correspondemactualmente à Bielorússia e à Ucrânia,avançaram até ao mar Báltico e, para sul, atéao mar Adriático, aos Balcãs e à Grécia,causando grandes perturbações à Igreja. Masforam-se convertendo, pouco a pouco, entreos séculos iv e o vii, ao Cristianismo, compet-indo entre si Roma e Bizâncio na suaevangelização.

A conversão de tais povos coincidiu com obaptismo do seu príncipe, tal como já sehavia dado no caso dos Francos, com a con-versão do seu rei, Clóvis. Mas a evangeliza-ção propriamente dita, culminando na con-versão desses povos, essa, embora catalizadapela conversão do seu príncipe, levava porvezes séculos.

Roma e Bizâncio competiram entre si naevangelização desses povos, dando--se, emmuitos casos, choques inevitáveis. É o caso,por exemplo, dos Búlgaros, que em 864 seconverteram após o baptismo do seu czar,

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Bóris. Este príncipe jogou com a competiçãoentre Roma e Bizâncio, mas a Bulgáriaacabou por ser atribuída ao Patriarcado deConstantinopla, não obstante os veementesprotestos de Roma.

Dois irmãos, Metódio e Constantino, ori-ginários de Tessalónica, cidade gregarodeada de eslavos, conhecedores da línguaeslava desde a infância, foram enviados emmissão pelo Patriarca de Constantinopla, Fó-cio, em 863, tendo obtido grandes êxitos nomeio dos eslavos, pois celebravam a liturgiana língua eslava, de que não havia, ainda, re-gisto escrito. Constantino inventou o alfa-beto eslavo, a primeira escrita eslava,traduzindo-se os evangelhos e os textos litúr-gicos para essa língua. E os dois irmãosfundaram, na Morávia e na Panónia (actualHungria), uma missão de liturgia eslava,sendo a sua actividade apostólica solene-mente confirmada pelo Papa. Os doisirmãos, Metódio e Constantino (agora Cirilo,

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novo nome que adoptara depois de professarem Roma), viram-se perseguidos pelos bis-pos bávaros e francos orientais, e os seus su-cessores foram mesmo expulsos da Morávia,encontrando refúgio na Bulgária recente-mente convertida, onde o alfabeto eslavo foiadoptado sob uma forma mais simplificada,o alfabeto cirílico.

À conversão dos Búlgaros seguiu-se a cris-tianização dos Sérvios, conduzida por Bizân-cio. E, na mesma época, deu-se a cristianiza-ção dos Romenos que, não obstante a sualíngua latina, viram a sua Igreja adoptar o al-fabeto eslavo na liturgia.

Enquanto a Igreja búlgara e a Igreja sérviaficaram ligadas a Bizâncio, outros eslavosorientaram-se para a Igreja católica romana.Foi o caso dos Húngaros, cujo rei, Estêvão I,o Santo, se fez coroar rei com uma coroa en-viada, em 1001, pelo Papa Silvestre II. Foi ocaso, também, dos Boémios, com a conver-são do seu príncipe, São Venceslau, e a dos

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Polacos, que aderiram ao Cristianismo com oseu príncipe, o duque Mieszko. Os Croatas eos Eslovenos, eslavos do sul, foram tambémcristianizados e, com o seu rei, Tomislav,colocaram-se na esfera de influência deRoma. Todos estes povos eslavos, aoconverterem-se, adoptaram o alfabeto latinoe a língua latina na liturgia.

As tribos eslavas orientais formavam oreino de Kiev, assistindo-se ao baptismo emmassa da sua população nas águas do rioDniepre, após a conversão e baptismo do seupríncipe, Wladimir, adoptando a língua litúr-gica e literária eslava e submetendo-se àautoridade do Patriarca de Constantinopla.

A cristianização da Europa completou-secom a conversão, entre os séculos ix e xi, dospovos escandinavos e dos países bálticos. Asprimeiras tentativas missionárias do séculoix foram goradas pelos Normandos ou Vik-ings, navegadores que assolavam as costasda Europa em rápidas incursões,

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contribuindo para a anarquia trazida pelasincursões islâmicas a sul. Só com a fixaçãodesses povos nas ilhas Britânicas e no con-tinente europeu, na Normandia francesa, sefoi conseguindo a sua cristianização a partirde um clero autóctone, que mostrou ser omais adequado para fazer a evangelização deum povo fortemente paganizado e violenta-mente anticristão.

Enquanto a Europa se ia evangelizandopara Norte e para Leste, na contra-correntedas invasões dos bárbaros, uma outra in-vasão se dava a Sul, desde o Atlântico até aoPróximo Oriente: a invasão islâmica.

No século viii (711), os muçulmanos, de-pois de se terem apoderado da maior partedo Oriente cristão, bem como do Norte deÁfrica, atravessaram o estreito de Gibraltar,conquistando rapidamente a Espanha vis-igótica, penetrando, em seguida, através dosPirenéus, no sul de França, onde foram

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contidos, em 732, em Poitiers, pelas forçascristãs comandadas por Carlos Martel.

A partir de Cartago a ofensiva islâmicaameaçou a Sicília e Roma, em 846, já muitodepois de ter ocupado, no século vii, todo oNorte de África, a Palestina, a Síria e a Pér-sia. As mais antigas igrejas cristãs do Orientee do Norte de África foram declinando,mantendo-se, actualmente, raros exemplos:a copta, do Egipto, e a maronita, do Líbano.

A geografia religiosa viu redesenhados osseus mapas nesses séculos conturbados deinvasões. Roma já não estava no centro dacristandade: esse centro deslocara-se paranorte. Nascera um novo império cristão, estegermânico, que pretendia ser o herdeiro doImpério Romano do Ocidente: o império deCarlos Magno. O mundo cristão divide-seentre um império oriental grego – Bizâncio –e um império ocidental latino.

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Alta Idade Média:nova geografiapolíticae religiosa da Europa

Nos séculos que se seguiram às invasões,com o aparecimento dos novos reinosbárbaros, a Igreja enfrentou tempos muitodifíceis face a uma decadência que se mani-festava principalmente na brutalidade erudeza dos costumes, numa falta de cultura eanalfabetismo crescentes, desembocandonum Cristianismo poluído por um pagan-ismo supersticioso.

Ao contrário do século iv, em que a cristi-anização da sociedade foi muito rápida nascidades logo que a Igreja se viu livre paraevangelizar, celebrar o culto e criar institu-ições de caridade, ao passo que os campospermaneciam pagãos, agarrados a tradiçõesidolátricas e ritos que, supostamente, asse-gurariam a fecundidade das terras e do gado,nos séculos conturbados que se seguiram às

invasões bárbaras, em que a vida urbanaquase desapareceu ao mesmo tempo que ocomércio, o Cristianismo tornou-se pratica-mente uma religião camponesa popular,multiplicando-se as paróquias rurais, onde oculto dos santos e das suas relíquias adquiri-ram um fervor renovado.

A evangelização continuava com redo-brado ardor desde que os monges a tomarama seu cargo, perante sacerdotes e bispos quesó desacreditavam a sua fé com a vida de-bochada que levavam. Vimos já como osmonges irlandeses no século vi se tornarammissionários, levando o seu ardor apostólicoaté ao coração de uma Europa que emmuitas das suas regiões fora varrida a fécristã pelas invasões bárbaras. Vimos, tam-bém, como monges seus contemporâneos, osbeneditinos, exerceram uma grande influên-cia através dos seus mosteiros, especial-mente na sua contribuição para o

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nascimento da Europa, seguindo-se à derro-cada do Império Romano do Ocidente.

No século viii assiste-se a uma profundamodificação na geografia política e religiosada Europa. O Império Romano do Oriente –o Império Bizantino, como já era maiscomummente conhecido embora possuindo,ainda, bastantes territórios em Itália –, foi-seafastando gradualmente do Ocidente, quedurante séculos protegeu das incursõesbárbaras. Essa protecção foi-se tornandocada vez mais fraca à medida que o Impériose via ameaçado por uma nova invasão: a doIslão. E, assim, a Igreja do Ocidente, isoladado Oriente e ameaçada pelos invasoreslombardos, vê-se obrigada a voltar-se para oúnico reino ocidental capaz de a proteger: oreino dos Francos, cujos reis merovíngios(dinastia iniciada com Meroveu) são cristãosdesde a conversão, no século v, do seu ante-passado, o jovem rei dos francos Clóvis,

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considerado na sua época como o primeiro eúnico soberano bárbaro católico.

A expansão islâmica levara à perda dosPatriarcados de Antioquia, Alexandria e Jer-usalém, levando muitos cristãos a fugiremdiante dos árabes, buscando a sua protecçãoem Constantinopla, à volta da qual se iam in-stalando. Entre esses refugiados havia mui-tos monges e clérigos que levavam consigo ariqueza dos seus mosteiros e igrejas, e umariqueza ainda maior constituída pelo tesourodos conhecimentos que possuíam. Con-stantinopla foi a grande beneficiada,tornando-se o seu Patriarca o chefe naturalda Igreja do Oriente, rivalizando em podercom o bispo de Roma, o Papa.

No século vi, o reino franco adquiriu umestatuto que durou dois séculos: o de prin-cipal potência da Europa Ocidental e Cent-ral, aliada do Império Bizantino contra osOstrogodos e, depois, contra os Lombardos.

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Em 511, Clóvis era o senhor de um vastoreino, que se estendia desde o vale do Renoaté aos Pirenéus, instalando-se em Paris, deque faz a sua capital. Aí mandara construiruma basílica, a dos Santos Apóstolos, sobre otúmulo de Santa Genoveva. Nessa mesmabasílica foi sepultado no ano de 511.

Clóvis construíra a sua autoridade combase na conservação das estruturas romanase na colaboração com a Igreja. Conquistadordo reino que governa, considera-o como suapropriedade pessoal, dispondo dele a favordos seus quatros filhos, que partilharão aherança respeitando os seus antigos limitespolíticos.

Entretanto, o reino foi sendo dilaceradopelas querelas entre os filhos de Clóvis. Foireunificado por Clotário I, em 558, para sernovamente dividido, em 561, entre os seusquatro filhos...

As diversas partes do reino foram ad-quirindo particularidades próprias ao longo

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de vários anos de conflitos entre os herdeirosda coroa franca: a Nêustria (Noroeste daGália), a Borgonha, a Austrásia (França Ori-ental) e a Aquitânia. O rei da Austrásia,Dagoberto, instala-se em Metz, de que faz asua capital, e acaba por se apoderar da Bor-gonha, da Nêustria e da Aquitânia. No localdo suplício de São Dinis, em Paris,Dagoberto, o último rei merovíngio a conser-var sob a sua autoridade a totalidade doreino franco, manda construir uma abadia naqual virá a ser sepultado.

A realeza franca, uma realeza hereditária epatrimonial, considera o reino como um bempessoal por direito de conquista. Respeita,no entanto, Roma, mantendo em funciona-mento as instituições romanas, e rodeando-se de um pessoal administrador competente,em que sobressaem os prefeitos dos paláciosreais detentores do poder.

Estes prefeitos do palácio, inicialmentesimples intendentes da casa real, uma

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espécie de chefes da criadagem do serviço dacorte, eram também encarregados da gestãodo fisco e das propriedades reais, tornando-se, a pouco e pouco, os chefes incontestadosdo Governo, assumindo um papel políticocada vez mais importante durante o reinadodos últimos reis merovíngios, em que os con-flitos que dividiam as aristocracias dos váriosEstados francos os transformavam emautênticos “reis-fantoches”, sem poder nemfortuna, delapidados na devassidão e na“compra” da fidelidade da aristocracia.

O prefeito do palácio comanda o exércitoreal, lança impostos, preside ao tribunal real,é, em suma, um autêntico primeiro-ministro,chefe do Governo, impondo, aliás, que otratem por príncipe, isto é, primeiro ouprincipal.

Cada território do reino tinha o seuprefeito, porta-voz da aristocracia local.Estes prefeitos conduzem a guerra que opõecada um destes territórios aos outros.

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Entre esses prefeitos acabou por se notab-ilizar um, da família dos Pepinidas, quehavia entrado na cena política no reinado deDagoberto. Esse prefeito, a todos os títulosnotável, era Carlos, filho de Pepino de Her-stal e neto de Pepino de Landeu, prefeito dopalácio da Austrásia. Carlos impôs-se aosoutros reinos, que acabam por lhe recon-hecer o título de “príncipe dos francos”, sob aautoridade nominal do rei titular, Thierry IV.Carlos dilata o domínio franco, batendo-seem todas as fronteiras, derrotando os Turín-gios, os Alamanos, os Bávaros e os Frisões.E, quando a Aquitânia se vê ameaçada pelosÁrabes que, sob o comando do seu generalHorr haviam cruzado os Pirenéus, invadindoo sul de França, Carlos derrota-os numabatalha decisiva em Poitiers, em 732, e maistarde, em 737, em Avinhão. Com essa vitóriaCarlos passa a ser cognominado de “Martel”,alusão a Judas Macabeu (que significapequeno martelo, em hebraico), defensor

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corajoso do povo referido na Bíblia. O exér-cito franco tornara-se invencível com CarlosMartel graças à sua cavalaria. Mas a ma-nutenção do armamento e das montadasconstituía um encargo pesadíssimo, pelo queCarlos Martel, para financiar as suas cam-panhas guerreiras não hesitou em apoderar-se, sem quaisquer escrúpulos, dos bens daIgreja. Daí a sua reputação de espoliador daIgreja.

A Carlos Martel sucedem os seus dois fil-hos, Pepino, o Breve, e Carlomano. Em breveeste último retira-se para o mosteiro deMonte Cassino, em 747, ficando Pepino, oBreve, como único senhor do reino. Em 750,Pepino resolve fazer uma consulta ao PapaZacarias: quem seria mais digno de sechamar rei? O que era apenas de nome, nestecaso o último Rei merovíngio, Childerico III,ou aquele que detinha o poder efectivo, nocaso vertente o próprio Pepino?A resposta doPapa encoraja-o a fazer-se, primeiro, eleger

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e, depois, sagrar rei, em Soissons, no ano de751. Três anos depois, o Papa Estêvão renovaa sagração, em Saint-Denis, a seu favor e dosseus dois filhos, Carlomano e Carlos. Nasceraa França carolíngia, com a proibição papalde, no futuro, se escolher um rei fora dafamília eleita, sendo, daí em diante, o reifranco “rei pela graça de Deus”.

Pepino, o Breve, deixa, após a sua morte, oreino a seus dois filhos. E, com a morte deCarlomano, em 771, fica Carlos como únicosenhor do reino, tornando-se Carlos Magno.

Carlos Magno, um robusto gigante de 1,92metros de altura, procura continuar a polít-ica de seu pai, Pepino, o Breve. De facto, estedefendera o Papa – Zacarias – das ameaçasdos Lombardos, restabelecendo o papado emRoma, com a concessão, em 756, de plenasoberania sobre os territórios que ele recon-quistara aos Lombardos. Nasciam assim osestados pontifícios, que se haviam de manterpor novecentos anos, até 1870.

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O objectivo fundamental da política deCarlos Magno consistia na propagação da fée civilização cristãs, culminando na instaur-ação de um Estado cristão, em que ele via acondição necessária para a salvação da Hu-manidade: o rei, ministro de Deus, teria pormissão assegurar a transmissão da fé até aosconfins do universo.

No Natal de 800, Carlos Magno foicoroado imperador na Igreja de São Pedroem Roma, pelo Papa Leão III. Como querenascia o Império do Ocidente, com a suacapital em Aix-la-Chapelle, um impériolatino-germânico, mas sobretudo cristão, emque o soberano baseia o seu poder na Igreja,que procura tutelar, reformando-a, escol-hendo ele mesmo os bispos, que torna altosfuncionários reais com funções fiscalizador-as; introduz no seu reino os livros da liturgiaromana; exige a fundação de escolas para osclérigos, restaura o estudo do latim clássico,das Sagradas Escrituras e dos Padres da

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Igreja: um autêntico renascimento carolín-gio, como é designado, renovação culturaliniciada em finais do século viii, começandocom Carlos Magno, que atraiu à sua corte osmaiores sábios seus contemporâneos vindosde Inglaterra – Alcuíno de York –, de Itália ede Espanha. O latim é restaurado na suaforma clássica, tornando-se uma língua dacultura.

Algum tempo depois de Carlos Magnomorrer – quarenta anos depois – o Impériodo Ocidente desmembra-se mercê de umadecadência carolíngia, assim designada pelacrise da sociedade que se verificava devido àfalta da autoridade suprema, vendo-se o Im-pério dividido em cinco reinos, onde os seussenhores são cada vez mais poderosos nomeio da anarquia reinante, com o paísameaçado em todas as suas fronteiras pelosNormandos, pelos Sarracenos e pelosMagiares.

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Para governarem, os reis que sucederam aCarlos Magno – Luís, o Piedoso, seu filhoLotário, Carlos, o Calvo –, assediados pelosNormandos que atacam por todos os lados,viram-se na necessidade de se apoiarem emgrupos privados guerreiros, que constituíamuma casta militar nobiliária, a detentora, defacto, de um poder efectivo e real. São os vas-salos (ou fiéis), pagos com terra (o benefí-cio). Esta aristocracia foge cada vez mais aocontrolo do rei, que tem uma dificuldadecrescente em impor a sua autoridade a essesseus representantes no reino – os condes. Ecom o facto de, a partir de 840, a vassalagemse tornar hereditária, deixando o rei de ter apossibilidade de recuperar um benefícioaquando da morte do seu vassalo, nascia asociedade feudal, consagrada por Carlos, oCalvo, numa capitular, em 877.

O impacto do feudalismo nas estruturaseclesiásticas deu lugar a uma crise moral dasociedade com os abusos que a breve trecho

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se verificaram.Os grandes nobres, os sen-hores da guerra – os duques, os condes e osbarões – consideravam-se donos absolutosdos seus territórios. E, como donos e sen-hores absolutos, procuravam tirar deles omaior proveito económico. Pretenderam,mesmo, explorar o filão religioso.

Edificavam igrejas nos seus domínios paraproporcionarem serviços religiosos à suapopulação camponesa, mas queriam ser elespróprios a nomear os reitores dessas igrejaspara melhor poderem explorar economica-mente a situação que criavam.

Mosteiros e outras igrejas colocavam-sesob a sua protecção e isso custava--lhes acedência de alguns direitos a esses grandessenhores.

As guerras ficavam caras, os guerreiroseram exigentes, de maneira que esses sen-hores da guerra queriam, também, dispordos patrimónios eclesiásticos ou entãoarrogavam-se o direito de, em paga, designar

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familiares seus como titulares de bispados eabadias, o que conferia à nobreza um acres-cido poder social.

Com todos estes abusos duas consequên-cias se impuseram: uma secularização davida eclesiástica cada vez mais acentuada eum empobrecimento moral da sociedade.

Porém, os abusos chegaram ao máximo doque seria possível naqueles anos do século x,que ficou conhecido como o saeculum ob-scurum ou século de ferro, de que trataremosnum capítulo mais adiante.

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A difícil afirmação do PrimadoRomano

A expansão do Evangelho vinha-sefazendo paulatinamente, mas praticamentelimitada aos povos de cultura mediterrânica.As perseguições decretadas pelos im-peradores romanos longe de acabarem comos cristãos, como pretendiam, contribuíram,muitas vezes, para a sua difusão, graças, emalguns casos, às deportações de cristãos, massobretudo à coragem dos mártires e confess-ores, que levaram muitos à conversão.

A partir do século iv, as invasões dosbárbaros contribuíram, e de que maneira –muito para além do que seria de esperar –,para nova expansão do Cristianismo. Deram-se grandes migrações de povos, outras tantasoportunidades para a Igreja se pôr em con-tacto com um novo mundo étnico e cultural:tribos germânicas, empurradas pelos Hunos,

invadem o Império Romano, chegam mesmoa tomar Roma e acabam por se instalar umpouco por todo o Império: Gália, Espanha,Norte de África, etc., surgindo vários reinosbárbaros.

A Igreja conseguira sobreviver a todas es-tas vicissitudes, mas transformara-se pro-fundamente. A maioria desses povos bárbar-os era já cristã, mas convertida a um Cristi-anismo herético: o Arianismo. O Arianismoera a sua religião nacional graças aos mis-sionários arianos, que foram tão eficazes queno final do século iv estavam completamenteconvertidos, numa altura em que o Arian-ismo desaparecera do Império Romano,tendo deixado de ser o problema teológicoaceso dos primeiros tempos.

Paradoxalmente, enquanto os germanosinvasores, os novos senhores da terra, eramarianos, a maioria da população das terraspor eles invadidas era românica e católica. Esó no século vi os povos germânicos que

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resistiram à extinção – os Suevos, os Bur-gúndios, os Visigodos – tiveram uma se-gunda conversão à fé cristã.

A afirmação do primado romano foi-sefazendo pouco a pouco.

A Igreja de Roma ocupava desde as ori-gens um lugar de excepção na Igreja Univer-sal, não só devido à presença dos doisApóstolos, Pedro e Paulo, como também àsua localização na capital do Império.

Desde sempre o bispo de Roma intervémna vida das outras Igrejas, sendo recon-hecido um primado de honra à Igreja deRoma pelas igrejas do Oriente, de tal modoque estas recorriam com frequência a elapara a solução de casos difíceis, como, porexemplo, na altura da crise ariana ou dasquerelas cristológicas.

Mas a divisão do Império Romano, nosfinais do século iv, em dois – Oriente eOcidente – teve profundas repercussões navida da Igreja.

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O Império do Ocidente tinha como capitalRoma. Roma era também a sede apostólica:o bispo de Roma era o Patriarca do Ocidente,a cultura e a lín-gua latinas caracterizavamas populações dentro das suas fronteiras.Com-preendia a Itália, a Gália, a Espanha, oNorte de África, a Bretanha, a Panónia e, aleste, os rios Reno e Danúbio constituíam asua fronteira.

O Império do Oriente tinha como capital acidade edificada por Constantino – Con-stantinopla – sobre uma outra mais antiga –Bizâncio – no Bósforo; compreendia a Dácia,a Trácia, a Macedónia, a Ásia Menor, aPalestina, Síria, Egipto e Líbia. As culturasgrega, síria e copta caracterizavam as popu-lações dentro das suas fronteiras. Cincosedes apostólicas (Patriarcados) sobressaíamnesta parte do Império Romano: Con-stantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerus-além e Cartago.

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O I Concílio Ecuménico de Constantino-pla, em 381, deu ao bispo da capital do Im-pério do Oriente a primazia de honra dentroda Igreja, depois do bispo de Roma «em vir-tude dessa cidade (Constantinopla) ser anova Roma»32.

Os Papas dos séculos iv e v – Dâmaso,Leão Magno e Gelásio – definiram o funda-mento dogmático do primado de Roma: osPapas eram os legítimos sucessores doApóstolo Pedro: «Tu és Pedro, e sobre estapedra construirei a minha Igreja» (Mt 16,18)e em Jo 21,17, de Jesus para Pedro: «Cuidadas minhas ovelhas.»

O exercício desse primado sobre as igrejasdo Ocidente traduziu-se em inúmerasocasiões pela intervenção do Papa em assun-tos doutrinários, onde a sua autoridade erareconhecida, mas, também, de índole discip-linar e jurisdicional.

Quanto às igrejas do Oriente, estas davama primazia de honra ao bispo de Roma e

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reconheciam a sua autoridade nos assuntosdoutrinais. Até ao século iv as Igrejas do Ori-ente apelaram para Roma nos casos difíceis,como, por exemplo, o apelo do bispo deCesareia, Basílio, na altura da crise ariana,ou o apelo do bispo de Alexandria na contro-vérsia cristológica. Porém, Constantinopla,em virtude de ser a sede do poder político,queria ter o primado de honra depois dobispo de Roma, e o Concílio de Calcedónia,em 451, concedeu-lhe, de facto, essa im-portância por um cânone, o cânone 28, quedecretava, além disso, que os bispos dasIgrejas Orientais (das dioceses do Ponto, daÁsia e da Trácia) seriam ordenados pelaIgreja de Constantinopla. E esse mesmo con-cílio não dá qualquer poder disciplinar oujurisdicional ao Papa sobre as Igrejas doOriente.

A divisão do Império Romano pôs a nu umdualismo, sempre latente, entre os dois

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mundos: o mundo latino e o mundo grego,Roma e Constantinopla.

E este dualismo não se limitava aos cam-pos político e cultural. Reflectia-se, também,nos campos religioso e eclesiástico. Astensões entre a Igreja do Oriente e a doOcidente foram lentamente provocando umafastamento crescente, que culminou, porfim, no afrontamento e no Cisma.

Tal Cisma teve uma gestação lenta até seconsumar.

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O Cisma de Acácio

O dualismo Oriente-Ocidente, culturagrega-cultura latina, acabou por ter grandesreflexos no Cristianismo, suscitando diver-gências que tinham a sua raiz não só nasdiferenças de temperamento dos povos dasduas culturas em confronto – o pragmatismolatino versus a tendência especulativa do es-pírito oriental –, como também na diferençade língua, com a consequente dificuldade, oumesmo falta de comunicação.

Nos três primeiros séculos do Cristian-ismo, o grego tinha sido a língua da Igreja,mas a partir dos finais do século iii o latimfoi-se introduzindo na literatura e no cultolitúrgico, de tal modo que já no século iv aLiturgia ocidental tinha passado a ser total-mente latina.

A incompreensão linguística, por um lado,afastou espiritualmente o Oriente e o

Ocidente cristãos e, por outro, suscitou umadesconfiança recíproca, numa época em quepululavam as heresias e as controvérsiasteológicas.

O célebre cânone 28 do Concílio deCalcedónia, de 451, converteu praticamenteConstantinopla no principal Patriarcado doOriente, ao considerá-la “nova Roma”, porser a capital do Império e residência do im-perador. Era concedido ao Patriarcado deConstantinopla a autoridade e a jurisdiçãosobre todos os territórios do Império do Ori-ente não dependentes dos outros três Patri-arcados orientais.

Entretanto, Roma ia-se afastando cada vezmais do Império do Oriente, buscando pro-tecção nos imperadores francos ougermânicos.

Era inevitável, neste clima de tensão cres-cente entre Roma e Constantinopla, o apare-cimento de discórdias, que iam enfraque-cendo a comunhão das duas Igrejas.

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Neste pano de fundo da diferença de tem-peramentos, incompreensão linguística, es-paços culturais diferentes – latinidade aOcidente, helenismo a Oriente –, diferençasde alianças políticas, etc., era natural vir aestabelecer-se uma ruptura, um “rasgão”:tudo isto esteve na génese do Cisma doOriente.

No século v, Roma e Constantinopla ex-perimentaram uma primeira ruptura: oCisma de Acácio, motivado pelas tendênciasmonofisistas deste Patriarca.

Este cisma prolongou-se por cerca detrinta anos. O monofisismo havia sido con-denado, em 451, pelo Concílio de Calcedónia,que definiu, com o Papa Leão, a união hi-postática das duas naturezas em Cristo. Noentanto, com o cisma de Acáciodesencadeou-se uma crise extremamentegrave, que incubou a lenta gestação do cismado Oriente, que dividiu as Igrejas Ocidental eOriental até aos nossos dias.

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O Império cristão do Oriente – o ImpérioBizantino – com o seu código de leis ampla-mente inspirado no Evangelho, devido aoimperador Justiniano, com a sua Liturgiasumptuosa, desdobrando-se em edifícios ad-miráveis (de que é exemplo a igreja de SantaSofia, em Constantinopla), na veneração dasimagens ou ícones, que eram consideradosautênticos “sermões silenciosos” ou “livrospara iletrados”, com os seus Padres da Igrejade língua grega, como Atanásio, Basílio,Gregório de Nazianzo e Gregório de Nisa(estes três os Padres Capadócios) e o “bocade ouro”, João Crisóstomo, este Império eraum mundo diferente, que já se vinhaafastando lentamente, desde o século v, dadoo seu estilo de vida próprio, os antagonismospolíticos, culturais e litúrgicos, e as “tem-pestades” teológicas das querelascristológicas.

Os desentendimentos entre Roma e Con-stantinopla, tendo como pano de fundo todas

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estas diferenças, faziam-se sentir, também,nos aspectos teológicos. O monofisismo, em-bora condenado no Concílio de Calcedónia,em 451, continuava na fórmula de féelaborada pelo Patriarca de Constantinopla,Acácio, em 482, a mando do imperador epara vigorar em todo o Império. Tal fórmula,porém, não foi reconhecida pelo Papa, pornela terem sido abandonados elementos es-senciais da profissão de fé do Concílio deCalcedónia. O Papa Félix II mandou umadelegação a Constantinopla encarregada decitar o Patriarca Acácio, para comparecerperante o tribunal do Papa, em Roma.

Citava-o invocando a autoridade que lheadvinha de Mt 16,18 («Tu és Pedro»). Mas osdelegados papais são encarcerados comoautênticos prisioneiros de guerra. Quandolibertados e regressados a Roma, o PapaFélix II excomunga Acácio e os seus seguid-ores e queixa-se ao imperador do tratamentoa que haviam sido sujeitos os seus enviados,

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aproveitando a ocasião para lhe negar per-emptoriamente o direito de decidir emquestões de fé.

O Patriarca Acácio não aceitou a excomun-hão papal e, por sua vez, excomungou oPapa. E o cisma perdura trinta anos, até 519,quando o imperador acabou por aceitar umanova regra de fé elaborada pelo Papa na al-tura – Hormisdas –, regra rigorosamente fiela Calcedónia.

O diálogo difícil entre Roma e Con-stantinopla, separadas por apenas 1500quilómetros havia dado lugar a um primeiro“rasgão” ou cisma, degrau da escadaria deequívocos que haveria de conduzir a umcisma muito mais grave, cujas consequênciasa Igreja ainda sofre actualmente.

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O problema da iconoclastia versusa iconolatria

Um problema surgido no século viii con-stituiu mais uma acha para a fogueira que iaconsumindo os últimos laços que ligavam asduas Igrejas, a do Ocidente e a do Oriente.Esse problema era o da iconoclastia.

Um grande imperador bizantino – LeãoIII –, que havia salvo Constantinopla do as-salto dos muçulmanos, acabou por dar ori-gem, no ano 726, a uma grave crise religiosa,ao meter-se num terreno que não era o seu –o teológico –, influenciado, talvez, pelo Islão,seu vizinho, mas mais provavelmente com apretensão de purificar a religiosidade popu-lar e limitar a influência dos monges,grandes defensores dos ícones.

Assim, Leão III começou por mandardestruir uma imagem de Cristo muito ven-erada, que se encontrava por cima da porta

do seu palácio, em Constantinopla. Era oprincípio de uma política iconoclasta, emque foi proibida a veneração das imagenssagradas, bem como o culto das relíquias dossantos, sendo mesmo ordenada a suadestruição.

E o imperador perseguiu, encarcerou emandou executar todos os sacerdotes emonges que tentassem opor-se-lhe. Instalou-se, a partir daí, uma grave crise religiosa quedurou mais de um século.

A cristandade bizantina dividiu-se em doispartidos: o dos veneradores de imagens – osiconólatras, ou, mais simplesmente, icólatras(do grego icon, imagem + latra, que venera)– e o dos destruidores de imagens – os icon-oclastas (do grego icon + clasta, que destrói).

O imperador solicitou mesmo ao Papa quesancionasse os seus éditos iconoclastas.Porém, o Papa – Gregório II – negou-se afazê-lo, protestando contra os mesmos, o quelevou Leão III a exercer represálias contra a

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Igreja romana: tentou invadir a Itália e envi-ou, até, uma frota com a missão de se-questrar o Papa. Mas uma tempestade afun-dou a frota e o imperador bizantino acaboupor se limitar a confiscar as terras que aIgreja romana possuía na Sicília (ilha quepertencia a Bizâncio), terras ricas naprodução dos cereais com os quais os Papasmatavam a fome dos pobres de Roma haviamais de duzentos anos.

Os defensores das imagens, que eram osmonges orientais, alguns dos quais haviamsofrido o martírio nessa defesa, bem como agrande massa do povo, que, por vezes, seamotinou na contestação à iconoclastia,voltaram-se para o Papa de Roma em buscade apoio.

Os sucessores de Leão III continuavam aser iconoclastas, atingindo a iconoclastia oseu auge no reinado do imperador Con-stantino V e assim se mantiveram até à

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chegada ao trono da Imperatriz Irene, fer-vorosa iconólatra.

A Imperatriz Irene consegue ver convo-cado um concílio ecuménico – oII Concíliode Niceia. O concílio reúne-se em Niceia pornão ser possível realizar-se em Constantino-pla, dado que a população da cidade se torn-ara iconoclasta.Assim, sob a guarda de umforte contingente de fiéis a Irene, reuniu-se oconcílio em 787.

No final do concílo, os iconoclastas sãocondenados vigorosamente, é reconhecida alegitimidade da veneração das imagens e opapel do Papa – Adria-no I – como mestreda fé de toda a Igreja sai reforçado.

Poucos anos passados começa um novoperíodo iconoclasta, em 813. Era Papa LeãoIII, o Papa que havia coroado Carlos Magnocomo imperador no ano 800. Recomeçam asquerelas entre os defensores de um e deoutro lado, para virem a acalmar só em 843.

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A partir deste segundo período iconoclastachegou, finalmente, o acordo: os ícones jánão seriam contestados. Porém, foram es-tabelecidas regras precisas para a execuçãodos mosaicos e pinturas, segundo rigorososprincípios teológicos. Nas paredes das igrejasas pinturas deviam obedecer a uma hierar-quia que vai de Cristo pantocrator (isto é,todo-poderoso) da cúpula até aos santos dasparedes das capelas.

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O Cisma de Fócio

O fosso que se vinha cavando entre aIgreja latina e a Igreja grega, desde o séculov, viu-se repentinamente ampliado, quandotudo parecia serenar, com a chamadaquestão dos búlgaros.

O príncipe dos búlgaros, o czar Bóris,converteu-se em 864 ao Cristianismo e pediuao Papa Nicolau I que lhe enviasse mis-sionários para trabalharem na conversão daBulgária.

Fócio, Patriarca de Constantinopla,protestou, com a alegação de que o territórioda Bulgária se encontrava sob a jurisdiçãoeclesiástica de Constantinopla. Aproveitou aocasião para acusar a Igreja de Roma de her-esia, por ter introduzido no Credo “uma pro-posição falsa”: que o Espírito Santo procediado Pai e do Filho (qui ex Patri Filioqueprocedit).

Fócio atreveu-se mesmo a negar aprimazia do bispo de Roma, alegando que asede primaz devia ser em Constantinopla,visto os imperadores aí residirem. Chegouaté a “depor” o próprio Papa, num sínodocelebrado em 867, em Constantinopla.

Com este Cisma de Fócio, predecessor doCisma do Oriente, as diferenças entre latinose gregos não seriam, no futuro, apenas dis-ciplinares e litúrgicas, mas também dogmát-icas, ficando a unidade da Igreja irre-mediavelmente comprometida.

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O século de ferrodo Pontificado

Quando o Cristianismo emergiu daclandestinidade com o édito de Milão, de313, afastado o perigo das perseguições, duasnovas ameaças à integridade à túnica semcostura surgiram: a “livre circulação das her-esias” pelo Império Romano e a ameaça,para a Igreja, da ingerência do Estado.

Constantino não se contentava apenas, noseu interesse pela Igreja cristã, com a suaprotecção, mas preocupava-se também comos conflitos doutrinais susceptíveis de per-turbarem a ordem pública. Para tal, toma ainiciativa de convocar os concílios. Foi elequem convocou e presidiu ao primeiro con-cílio ecuménico da História da Igreja: o deNiceia, em 325. E até foi ele quem acaboupor decidir quais as medidas que seriamtomadas contra os hereges arianos.

Esta experiência da “IgrejaConstantiniana”, traduzindo-se numamaneira nova de relacionamento entre aIgreja e o Estado, marcou profundamente aIgreja até aos nossos dias. Esta Igreja con-stantiniana só acabou com um Concílio donosso tempo – o Concílio Vaticano II – quereconheceu a separação dos domínios tem-poral e espiritual, distanciando-se do poder.

Outro imperador romano, Teodósio,tornou a religião cristã a religião oficial detodo o Império Romano pelo édito de Tes-salónica, de 380. Ao mesmo tempo, Teodósioprocede à extinção do politeísmo romano ebeneficia a Igreja cristã com múltiplos priv-ilégios fiscais e jurídicos, entregando, alémdisso, às igrejas os bens confiscados aos tem-plos pagãos. Nesta “Igreja Teodosiana” opoder do Estado, outrora ao serviço doPaganismo, está agora ao serviço do Cristi-anismo. A separação de religião e Estado nãose concebe, pois a religião continuava a ser o

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fundamento e o cimento da sociedade. OEstado era o mesmo, só a religião é que tinhamudado...

De certo modo, com a ingerência doEstado sob Constantino e depoisTeodósio, aIgreja ficou um tanto enfeudada ao Império.No entanto, os bispos ainda eram livrementeeleitos pelo clero local e pela população.

O imperador cristão, com a missão de de-fender a Igreja e de promover a ordem cristãna sociedade, constituiu um novo factor deprimordial importância para a consolidaçãoda conversão do mundo romano aoCristianismo.

Já Constantino, o primeiro imperadorcristão, se arrogava – ele, um leigo apenas –o título significativo de “bispo do exterior”.

Não obstante os preciosos serviços presta-dos pelos imperadores cristãos à Igreja, assuas ingerências na vida eclesiástica troux-eram muitos abusos, cuja expressão máximafoi o chamado “cesaripapismo”.

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Tais abusos foram particularmente gravesna Igreja do Oriente. Já no Ocidente a inde-pendência eclesiástica se viu mais salva-guardada graças à autoridade do papado,residindo em Roma, face à debilidade dosimperadores ocidentais.

O papel do imperador cristão como pro-tector da Igreja era considerado tão indis-pensável que, após a extinção do ImpérioRomano do Ocidente, o Pontificado romano,com os seus domínios territoriais, se pôs soba protecção do Império do Oriente,ameaçado como estava, ao norte, pelos irre-quietos Lombardos e a sul pelas incursõesdos Sarracenos.

Porém, essa protecção começou a vacilar ea falhar devido às dificuldades que o Impériodo Oriente vinha sentindo cada vez mais coma crescente pressão do Islão.

Deste modo, o Pontificado romano, neces-sitado de se apoiar em novo “braço secular”,acabou por se voltar para o único reino

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ocidental capaz de assumir essa missão dedefesa: o reino dos Francos.

Chegou, entretanto, ao poder CarlosMagno, cuja política se orientou fundament-almente no sentido da propagação da fé e deuma civilização cristã.

O Papa Leão III coroou-o, em 800, naIgreja de São Pedro em Roma como im-perador do Ocidente. Renascia, assim, umImpério no Ocidente, este latino-germânico,após um período de mais de trezentos anosda sua extinção. O novo Império era funda-mentalmente cristão, com uma missão: a deprotecção da Igreja e da sua sede apostólicaromana.

A desagregação deste Império começouapós a morte de Carlos Magno. A autoridadesuprema deu lugar a um feudalismo, em queos senhores feudais passaram a deter o poderefectivo e real, constituindo a única pro-tecção contra as incursões dos Normandos,dos Sarracenos e dos Magiares.

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A protecção recebida dos senhores feudaistrouxe para a Igreja graves perturbações. Osnovos senhores, com um poder absoluto,pretendiam ser eles a nomear os clérigos dassuas “igrejas próprias” para delas tirarem omáximo proveito económico. Pretendiam,também, serem eles mesmos a designar bis-pos e abades, cargos muito apetecidos peloseu prestígio e poder social, designando paraesses cargos os seus familiares e aliados.

Tais abusos conduziram a uma evidentesecularização da vida eclesiástica e a um em-pobrecimento moral da sociedade.

O século x constituiu um período degrande turbulência em que a Europa, inva-dida pelos Normandos, pelas hordas Magi-ares (húngaros) e pelos Sarracenos, perten-cia a quem combatia, sofrendo a Igreja pro-fundamente com a falta de protecção que lheseria conferida pela autoridade imperial,caindo nas mãos das facções feudais entãodominantes em Roma.

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Esse período ficou conhecido como o“século de ferro” do Pontificado.

Várias famílias nobres de Roma – afamília de Teofilacto, os Crescêncios e osTusculanos – pretenderam sujeitar o Ponti-ficado na sua própria sede apostólica aosmesmos abusos que os senhores feudais vin-ham cometendo nas suas “igrejas próprias”.Tornaram-se, praticamente, donos do tronopontifício. Neste século sucederam-se osPapas-fantoches: alguns eram indivíduos debaixo nível moral e até adolescentes semqualquer preparação.

Apesar de todos os atropelos, o Pontific-ado sobreviveu a todas estas provas, semdúvida graças à assistência divina, que nuncalhe faltou e que impediu que ele se desviasse,até nas piores crises, um milímetro que fosseda sã doutrina da fé e da moral.

Um senador romano, Teofilacto, está noinício desse período conturbadíssimo, emque Papas chegavam ao trono pontifício lá

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colocados após lutas sangrentas em que seenvolveram os familiares do clã Teofilacto.Alguns desses Papas amasiaram-se comnobres adúlteras e tiveram filhos bastardos,que, por sua vez, chegaram mesmo a herdaro trono pontifício. É o caso, por exemplo, dofruto de uma ligação adúltera de um Papacom uma filha do próprio Teofilacto: Octavi-ano, jovem devasso, que chegou a sersagrado Papa aos dezanove anos, tomando onome de João XII.

Apesar de tudo, João XII esteve, en-tretanto, na génese, em 962, do SacroImpério Romano-Germânico, ao coroar im-perador o rei da Alemanha, Otão I, impérioque teve uma longa vida, só terminando noprincípio do século xix, em 1806.

Otão I assinou com João XII uma espéciede concordata, em que se confirmavam osdireitos do Papa sobre os territórios pontifí-cios, mas sem que se deixasse de estabelecerum controlo apertado da administração

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pontifícia, ficando a própria eleição do Papasubmetida à escolha ou à aprovação doimperador.

Ficavam as eleições papais livres da in-tromissão dos senhores romanos, mas opróprio Otão I faz e desfaz Papas...

Mais tarde chega a dominação da famíliados Crescêncios, que “fez” João XV (985),depois o imperador Otão III “faz” GregórioV. Por último, “é feito” Silvestre II, que, noentanto, luta intransigentemente pela liber-dade da sede apostólica.

Mas a morte de Silvestre II, logo a seguir àdo imperador Otão III lança novamenteRoma na anarquia. Os Crescêncios “fazem”vários Papas, bem como os Tusculanos.

Depois, mais escândalos: dois Papas emdisputa, simultaneamente, pelo trono ponti-fício, até que chega o novo imperador, Hen-rique III, que os depõe e nomeia Clemente IIe, depois deste, Dâmaso II.

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Este período constitui um segundo séculode ferro, até que, após o síno-do de Worms, édesignado para Papa Bruno de Toul, quetomou o nome de Leão IX.

O bispo Bruno de Toul contactara estreita-mente com os monges de Cluny e, imbuídodo espírito cluniacense, só aceitou a suanomeação com a condição de ser aprovadopelo clero e pelo povo de Roma. Assim,dirigiu-se a Roma como um simples pereg-rino, sendo, em 1049, na Páscoa, eleito Papapor aclamação, tal como nos primeiros tem-pos da Igreja. Desencadeia-se, a partir daí, areforma pré-gregoriana, que vinha sendo jápreparada pela santidade do mosteiro deCluny.

Os Papas escolhidos por Henrique III deentre os bispos alemães consti-tuíam, apesarde tudo, escolhas acertadas, restituindo estesPapas germânicos dignidade e prestígio aoPontificado.

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Leão IX impulsionou a reforma de que aIgreja tanto necessitava. Aumentou onúmero dos membros do Colégio Cardinalí-cio, que passaram a ser colaboradores nogoverno da Igreja e eleitores dos Papas dofuturo.

Poucos anos passados, em 1059, o PapaNicolau II elaborou uma lei segundo a qual,no futuro, o Papa seria eleito apenas peloscardeais, não sendo necessário a confirm-ação e o reconhecimento do imperador.

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O Milenarismo

A aproximação do ano 1000 é acompan-hada, no Ocidente, por uma apreen-são sus-citada pelo capítulo xx do Apocalipse de SãoJoão:

Quando se completarem os mil anos, Satanás serásolto da prisão do Abismo. Ele vai sair e seduzir asnações dos quatro cantos da terra, Gog e Magog,reunindo-os para o combate. São numerosos comoa areia do mar. Eles espalharam-se por toda aTerra e cercaram o acampamento dos santos e aCidade amada. (Ap 20,7-9)

Na interpretação dos chamados “milen-aristas”, o mundo acabaria no ano 1000.Mas, quando a data fatídica passou sem teracontecido nada, estes profetas de desgraçastransferiram os seus temores para o ano1033, que se supõe ser o milenário da Paixãoe Morte de Cristo.

Sucederam-se entre 980 e 1030 umastantas calamidades que pareciam vir dar

razão ao texto de São João. Houve chuvas di-luvianas, Invernos particularmente rigor-osos, pragas de gafanhotos que acarretaramgrandes fomes.

Uma grande parte da Europa é assoladapela fome, em 1032-1033, passando as pess-oas a alimentar-se de raízes e de ervas,chegando, em alguns casos, a verificar-se an-tropofagia. Por outro lado, há populações in-teiras dizimadas por epidemias. A tudo istose juntavam fenómenos nos céus: passagensde cometas, eclipses do Sol, queda de met-eoritos... E os próprios acontecimentospolíticos pareciam estar de acordo com aprofecia apocalíptica: Almançor destruiuSantiago de Compostela e, no Oriente, umcalifa inicia uma política anticristã,mandando arrasar o Santo Sepulcro.

O medo espalhou-se pela Europa e emmuitas terras formavam-se longas procissõesde penitentes e flagelantes. Muitos vendiamtudo quanto possuíam e distribuíam o

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produto pelos pobres, em contraste com osincrédulos e os mais cínicos que se en-tregavam a grandes bacanais...

Convencidos da iminência do regresso deCristo à Terra, formam-se bandos de peregri-nos que se põem a caminho de Jerusalém, naexpectativa de lá morrerem e estarempresentes na vinda do Senhor.

Mas o mundo não terminou no ano 1000,nem no ano 1033. E, assim, há um enormesentimento de alívio e a vida recupera anormalidade.

A Igreja não parou. A evangelização con-tinuou: Polónia, Rússia, mas sobretudo aHungria, que se converteu, permanecendo amaioria do povo húngaro desde então fiel àIgreja Católica e ao Papa, depois de, no ano1001, o duque Wajk ter pedido o Baptismo,tomando o nome de Estêvão e recebendo doPapa Silvestre II o título de rei.

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O Cisma do Oriente– ano 1054

Entre o século v e o século x foram numer-osos os atritos e as rupturas, seguidas de re-conciliação, entre Roma e Constantinopla.

Entretanto chegou o ano de 1054 e a ne-cessidade de se estabelecer uma aliançaentre o Papa e o imperador bizantino, a fimde combaterem um inimigo comum – osNormandos – que atacavam o sul da Itália.Para isso, impunha-se a reconciliaçãoreligiosa.

O Papa Leão IX enviou um legado papal, ocardeal Humberto, para negociar a pazeclesiástica.

A incompreensão da mentalidade biz-antina por parte do legado papal esbarroucom a inflexibilidade do Patriarca de Con-stantinopla, Miguel Cerulário, que nãoescondia os seus veementes sentimentos ant-ilatinos. Pouco foi preciso para levar o

cardeal Humberto a depositar uma bula deexcomunhão sobre o altar da Basílica deSanta Sofia, acusando Miguel Cerulário deheresia ao suprimir o Filioque do Credo, deusar abusivamente o título de Patriarca, etc.Por um lado, a questão do Filioque já de hábastante tempo vinha servindo de arma dearremesso entre o Ocidente e o Oriente, e,por outro lado, quando Miguel Ceruláriosubiu ao trono patriarcal de Constantinoplaos laços entre Roma e Bizâncio eram dosmais tensos, de tal modo que o Patriarca deConstantinopla entendeu mesmo não deveranunciar a sua eleição ao Papa.

Bizâncio em peso tomou o partido do seuPatriarca, o qual se atreveu, mesmo, a man-dar queimar em praça pública o texto da ex-comunhão. E, oito dias depois, Miguel Cer-ulário e o seu sínodo patriarcal responderamexcomungando, por sua vez, o legado papal equem o tinha enviado: o próprio Papa Leão

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IX, que, aliás, já havia três meses que estavamorto.

Estava, assim, formalmente aberto oCisma, embora, na altura, ninguém tivessedado grande importância a estes aconteci-mentos, pois não eram inéditos e já tinhahavido situações bem piores. Para mais a ex-comunhão do legado papal era de duvidosavalidade, porquanto ocorrera quando LeãoIX já tinha morrido.

O sínodo reunido em Constantinopla releutodos os velhos slogans anti-romanos,acabando por afirmar que a única Igreja Or-todoxa era a que se reunia em torno do im-perador bizantino e do Patriarca deConstantinopla.

Embora o começo do Cisma do Orientetivesse passado totalmente despercebidopara a massa do povo cristão, grego e latino,o tempo encarregou-se de revelar aoscristãos a existência da interrupção da

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comunhão eclesiástica da Igreja grega com aIgreja latina e o Papa.

A reconciliação passou, desde então, aconstituir um desígnio de vários Papas, bemcomo, do outro lado, de alguns imperadoresbizantinos e homens da Igreja grega.

Houve mesmo concílios ecuménicos, comoo de Lião, em 1274, e o de Florença, de 1439,em que chegou a parecer que a comunhãodas duas Igrejas tinha sido conseguida.

A conquista, em 1453, de Constantinoplapelos Turcos, que converteram em mesquitaa admirável Basílica de Santa Sofia, con-struída séculos antes pelo imperador Justini-ano, reduzindo os cristãos, quer gregos, querlatinos, à condição de “infiéis”, oraperseguidos, ora tolerados, acabou de vezcom esses desejos de união das duas Igrejase, portanto, com os desejos de pôr termo aoCisma do Oriente.

Houve, no entanto, Igrejas orientais quepermaneceram unidas a Roma ou se

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colocaram, ulteriormente, sob a sua obediên-cia: os uniatas e os rutenos da Europa Cent-ral, da Ucrânia, os maronitas, com um Patri-arca em Antioquia sagrado pelo Papa Alex-andre IV, e pequenas comunidades de ritobizantino, arménio, sérvio, caldeu e copta.Todas estas Igrejas têm tido uma acção me-diadora no diálogo das Igrejas Católico-Ro-mana e Ortodoxa.

Em 7 de Dezembro de 1965, dia seguinteao do encerramento do Concílio Vaticano II,o Papa Paulo VI e o Patriarca Atenágoras Ifazem uma declaração comum lamentandoas ofensas e censuras mútuas sem funda-mento, de 1054, levantando as excomunhõesrecíprocas, constituindo um grande primeiropasso no caminho da reconciliação.

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Balanço do primeiro milénio

Principiava o segundo milénio da IgrejaCatólica. O Evangelho chegara e era escut-ado, efectivamente, em quase todos os can-tos da Terra.

Embora no final do século vi a Igreja aindapermanecesse centrada no mundo mediter-rânico, dentro das fronteiras do Império Ro-mano – a Pax Romana oferecera os meios efavorecera o estabelecimento do Cristian-ismo, terreno “pronto” para receber a se-menteira cristã –, nesse início da Idade Mé-dia a maior parte da Europa começou a serevangelizada, desde a Inglaterra à Rússia,desde a Hungria à Escandinávia. E, assim,no século xi, o Cristianismo era já a profissãode fé dominante em quase todo o continenteeuropeu.

Entrado, já desde os tempos apostólicos,na Pérsia, no Egipto, na Ásia Menor, chegou

mesmo, nos séculos que se seguiram aostempos apostólicos, à China (século vii). Aíchegaram, de facto, monges de uma Igrejacismática – nestorianos –, sendo autorizadosa construir mosteiros e a estabelecerem-seno país. O Cristianismo sobreviveu aí doisséculos, começando a enfraquecer a partir doséculo ix, depois de ter sido decretada peloimperador chinês a dissolução dosmosteiros.

Os povos germânicos que pressionavam asfronteiras do Império Romano, na Europa anorte e a leste, mostraram-se perfeitamentepermeáveis à evangelização. Esses povos fo-ram convertidos por um missionário notável:Úlfilas, feito bispo pelo bispo ariano Eusébiode Nicomédia e mandado evangelizar o seupróprio povo, porquanto era filho de um paigodo pagão e de uma mãe romana cristã. Osgodos, arianos, acabaram mais tarde por serconvertidos à Igreja Católica, no século vi.

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Para sul havia o grupo mais isolado decristãos do mundo antigo: no sudoeste da Ín-dia, a Igreja fundada pelo Apóstolo Tomé.Poderemos, porventura, avaliar a odisseia deTomé – o “incrédulo” Tomé – tendo de per-correr naqueles tempos os cerca de 4000quilómetros que vão da Palestina ao sul daÍndia, passando pela Síria, Mesopotâmia,Pérsia, Afeganistão, o rio Ganges?

A Etiópia fora convertida por um mis-sionário – Frumâncio – que havia naufrag-ado ao largo da costa desse país, no mar Ver-melho, feito escravo na corte do rei eacabando por conquistar a corte com a suapregação e por se tornar bispo da Igrejaetíope, ordenado pelo bispo de Alexandria,Atanásio.

Na Europa do Norte, tribos celtas, evan-gelizadas e convertidas por São Patrício, o“apóstolo dos Irlandeses”, tornaram-se, porsua vez, missionárias evangelizadoras daInglaterra.

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Um povo germânico que ocupava a Gáliano século iii – os Francos – converteu-se dir-ectamente do Paganismo ao Cristianismocatólico depois do seu rei Clóvis, ter sidoconvertido e ter, em seguida, decretado a ap-resentação de todos os súbditos junto ao riopara serem baptizados, a fim de não provo-carem o seu descontentamento... Era o Natalde 496. Este procedimento de baptismos pordecreto do príncipe haveria de repetir-semais tarde em vários povos...

Mesmo depois da queda do Império Ro-mano sob os golpes dos povos bárbaros, oCristianismo não deixou de se difundir portodo o lado.

No final do século vi, um grande Papa –precisamente São Gregório Magno(590-604) – empreendeu a conversão dosbárbaros que constituíam uma amea-ça àIgreja. O Papa, monge beneditino, conven-cido de que não podia contar com qualquerajuda da parte do Império do Oriente, tomou

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a resolução sensata de procurar fazer aliadosentre os bárbaros. Para pregar entre estesenviou como missionários os própriosmonges para os territórios bárbaros ondefundavam mosteiros e convertiam o povo.

Para junto dos pagãos anglo-saxónicos,que ocupavam a metade leste da Inglaterra,enviou uma missão chefiada pelo mongeAgostinho. Este, depois da conversão do reiAdalberto de Kent, construiu a sua própriacatedral em Cantuária. A partir daí osmonges da sua missão, obtido um reforço deRoma, começaram a dirigir-se para norte,para os territórios que os monges celtas jáhaviam começado a evangelizar.

A partir da Inglaterra e da Irlanda, osmonges, quer irlandeses, quer romanos,viraram-se para o continente, a fim de mis-sionarem na Europa Central, zona muitodevastada por guerras desde há séculos ecom a vida completamente desorganizada.Os monges celtas e os monges romanos

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foram-se embrenhando na Europa,fundando mosteiros que se tornavam centrosonde os camponeses encontravam ajudapara restaurarem as suas vidas e voltarem acultivar as terras devastadas pelas sucessivasvagas de bárbaros lutando entre si para seimporem como senhores das terras.

Entre esses monges sobressai um mongebeneditino inglês, Winfrid, encarregado, em719, pelo Papa Gregório II, da missão ger-mânica. Tal missão foi um êxito, de tal modoque o Papa – que entretanto lhe haviamudado o nome para Bonifácio – o ordenouarcebispo de Mogúncia. São Bonifácio é o be-neditino inglês venerado como o “apóstolodos Alemães”, tendo sido martirizado e so-frido a morte às mãos dos Frisões aquandode uma missão com vários outros monges,martirizados eles também nesse territóriopagão.

Os Normandos – os terríveis vikings –,povos escandinavos, começaram a ser

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evangelizados com grandes dificuldades avencer e muito lentamente, no século viii.Primeiro, em 717, o monge anglo-saxão Wil-librord, discípulo de Winfrid e bispo deUtreque, faz a primeira tentativa para pregaro Evangelho entre os povos escandinavos, naDinamarca.

No século ix, um monge franco, Anscário,enviado à Suécia, teve pouco sucesso, pas-sando em seguida à Dinamarca, onde con-struiu a sua primeira igreja, que acabaria porser destruída após a sua morte. Só maistarde, no século x, é que os povos escand-inavos se converteram, quando dominadospor reis favoráveis ao Cristianismo: com o reiCanuto, a Dinamarca tornou-se inteiramentecristã; com o rei Olavo I, educado e conver-tido ao Cristianismo em Inglaterra, e que im-pôs a sua fé aos seus súbditos, seguiu-se aNoruega.

A partir da Germânia seguiram osprimeiros missionários para a Morávia

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(parte da actual República Checa). No séculoix, dois irmãos oriundos de Tessalónica, Cir-ilo e Metódio, foram pregar o Evangelho naMorávia. Para tal traduziram as SagradasEscrituras para a língua morávia ecomeçaram a celebrar a Eucaristia na mesmalíngua. E assim conseguiram a conversão denumeroso povo. No final do século, aMorávia constituía-se como cristã, ligada àIgreja Ocidental. Seguiu-se-lhe, no século x,a Boémia (parte, também, da actualRepública Checa), então sob o domínio dopríncipe Boleslau II.

Também no século x se convertia aPolónia, depois do baptismo do seu príncipe,conversão que acelerou após a conversão dofilho, Boleslau Chrobry.

Entretanto, também no século ix, se con-vertia o povo búlgaro juntamente com o seuczar Bóris, em 864, assim como os povos daRoménia e da Sérvia. Porém, tais conversõesfizeram-se sob a égide da Igreja de Bizâncio.

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Mais para Leste ficavam os territórios daRússia, onde os missionários, quer da IgrejaOriental, quer da Igreja Ocidental, esbar-raram com muitas dificuldades, sendo malsucedidos. Só nos finais do século x é que aIgreja de Bizâncio conseguiu lá penetrar,após a conversão do imperador de Kiev,Vladimiro, que adoptou seguidamente oCristianismo como a religião oficial da suanação: em 998 deu ordens para que se bap-tizassem todos os seus súbditos, como ele jáo fizera. E quem não comparecesse no riopara esse fim no dia seguinte cairia em des-graça... No ano seguinte, Vladimiro casoucom a irmã do imperador do Oriente.

De um pequeno grupo inicial – o “pequen-ino rebanho”, como se lhe referia o próprioSenhor –, de um punhado de uma dúzia degalileus como que escolhidos a dedo por Je-sus, nasceu uma Igreja com a incumbênciade «ir por todo o mundo anunciar a BoaNova» (o Evangelho). Esses enviados

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(Apóstolos) cumpriram a ordem do Senhor ede tal modo o fizeram que, no fim doprimeiro milénio, o Evangelho atingira quaseos quatro cantos da Terra.

Mas, a partir do século vii, nascera umadoutrina da Arábia, uma nova profissão de fémonoteísta, pregada por um “profeta”,Maomé. Nascia o Islamismo, que se tornourapidamente um grave escolho à expansãodo Cristianismo. O Império de Bizânciocomeça a ter dificuldades crescentes napregação do Evangelho para Oriente e paraSul.

Mais ainda: o Cristianismo chegou mesmoa desaparecer em territórios inteiros. Assim,na Ásia Menor, um dos primeiros territóriosdo mundo a serem evangelizados – especial-mente por São Paulo – já quase nada restada Igreja Cristã. O Norte de África, comCartago, deixa de ser cristã, submetida peloIslamismo. A própria Península Ibérica vê“quase” perdidos os seus reinos Visigóticos

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para o Islão. A Palestina, a Síria e o Egipto,terras tão sagradas para os cristãos, caíramnas mãos dos islamitas.

Os muçulmanos chegaram a cercar Con-stantinopla, mas não conseguiram con-quistar a cidade. Invasões muçulmanas su-cessivas – autênticas vagas de conquista,numa marcha triunfal – acabaram por pararno sul de França, onde os defrontou e des-baratou um rei cristão, rei dos Francos –Carlos Martel – em 732, em Poitiers. E, aofim de poucos anos, em 739, os muçulmanossão definitivamente rechaçados de França.

Mas o empenhamento que os muçulmanospunham nas suas conquistas conduziu, aoaproximar-se o fim do primeiro milénio, auma ruptura do elo que unia o Império doOcidente ao Império Bizantino. Com essaruptura ficaram os dois Impérios isoladosum do outro. Deste modo, faltou à Igreja deRoma o apoio do imperador do Oriente,vendo-se os Papas obrigados a porem-se sob

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a protecção dos reis cristãos da Europa,nomeadamente do reino Franco. E, assim, oúltimo grego a ocupar a cátedra papal foi in-vestido em 741: o Papa Zacarias.

Em meados do primeiro milénio surgiuem Itália, na Úmbria, uma figura ímpar,Bento de Núrsia (480-547), que viria atornar-se o pai dos monges do Ocidente.Começou por fundar um mosteiro em Su-biaco e, mais tarde, um outro mosteiro emMonte Cassino, para onde se transferiu comos seus monges. Neste mosteiro, já para ofim da sua vida, compôs um conjunto de pre-scrições que regulariam a vida dos seusmonges, e que ficaria conhecida como Regrade São Bento. Nessa regra, baseada numtexto antigo – a Regra do Mestre – bemcomo nos textos de São Pacómio e SãoBasílio, acrescentou Bento as suas experiên-cias vividas.

O êxito desta regra monástica foi tal queela foi o modelo, ou mesmo autêntico molde,

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de que saíram algumas centenas de milharesde monges, vinte e três Papas e cinco mil bis-pos. “Beneditino” tornou-se sinónimo de“monge” durante muitos séculos.

E já vimos como um grande Papa, SãoGregório Magno – o primeiro beneditino aocupar a cátedra papal (590-604) – fundouvários mosteiros com o património da her-ança paterna. Construiu um desses mosteir-os na sua própria residência, em Roma, ondeingressou como monge. E vimos comoGregório Magno enviou monges beneditinospara evangelizarem a Inglaterra. Daí novasvagas de monges, alguns deles já anglo-saxões, são enviados a evangelizarem osalemães.

São Bento é o patrono da Europa. É recon-hecido o papel fundamental que o mona-quismo – nomeadamente o beneditino –desempenhou na evangelização da Europa ena construção da sua identidade cristã.33

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Quatro séculos mais tarde, quando aIgreja sofria na sua estrutura eclesiástica oimpacto do feudalismo, nesse “século ob-scuro” que ficou conhecido como o século deferro da Igreja, em que a vida cristã con-heceu a sua degradação máxima, reis e im-peradores, ansiosos por porem a mão nasriquezas da Igreja, arrogavam-se o direito deinvestir bispos e abades de mosteiros,colocando, nesses cargos eclesiásticos, famil-iares e fiéis amigos e aliados. Em Roma, opapado tornara-se privilégio de influentesfamílias romanas, sendo o trono papal dis-putado por vários candidatos, cada um desua família. Foram assassinados vários Pa-pas e outros pura e simplesmente depostos, afim de deixarem a cátedra vaga para um su-cessor de uma das outras famílias influentes.

Uma grande ajuda ao papado, vítima detão feroz cerco, adveio, no princípio doséculo x, da Ordem Beneditina. Em Cluny,na Borgonha, era fundado um mosteiro por

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Guilherme, duque da Aquitânia, que tomouas medidas necessárias para que essemosteiro ficasse directamente sob o controlodos Papas (ano 910). O espírito de Cluny,herdeiro do velho ideal monástico, ultrapas-sou as fronteiras da Borgonha e em poucosanos mais de dois mil mosteiros se confed-eravam em França, Itália e Alemanha, conta-giando, com a reforma monacal a que sehaviam submetido, a restante Igreja, que,aos poucos, foi adoptando também areforma.

Com Cluny e um Papa beneditino,Gregório VII (chamado Hildebrando en-quanto monge, tendo sido conselheiro decinco Papas antes de ser eleito, por sua vez,Papa), é que a Europa adquiriu uma config-uração efectivamente cristã no segundomilénio da História da Igreja.

Às perseguições dos três primeiros sécu-los, com milhares de vítimas (centenas demilhares? milhares de milhares?), até a uma

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época em que o Cristianismo já ombreavacom o Paganismo em número de adeptos(50/50), pois o sangue dos mártires foi, semdúvida, a semente de muitos cristãos (nodito de Tertuliano), seguiu-se uma trégua dealguns séculos, trazendo a paz necessária àreflexão teológica, mas dando azo, por outrolado, ao aparecimento de desvios – heresiase cismas – que suscitaram discussões infin-das, a que só se pôs termo com a convocaçãode alguns concílios ecuménicos (ou univer-sais), com o primeiro, em 325, em Niceia.Durante o primeiro milénio registaram-seoito concílios ecuménicos (mais outros dois:o “latrocínio” de Éfeso, como lhe chamou oPapa Leão Magno, e um concílio espúrio emConstantinopla). Nesses concíliosresolveram-se várias questões dogmáticas: odogma da Santíssima Trindade, as questõescristológicas, o problema da Graça. Questõesessas levantadas, precisamente, pelas heresi-as que pulularam nos séculos iv e v, heresias

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que tiveram um ponto final na sua discussãonos vários concílios, mas que, após a suacondenação pela Igreja, deram origem a out-ros tantos cismas, com a formação de Igrejasheréticas, que persistiram ao longo domilénio e passaram, mesmo, para o milénioseguinte.

Balanço positivo, apesar de tudo, o desteprimeiro milénio. A Igreja conheceu 140 Pa-pas, de um total de 266 que houve até hoje.Muitos deles venerados como santos, canon-izados pelo martírio nos três primeiros sécu-los; muitos outros, hábeis governantes,capazes de conduzir a barca de Pedro semsoçobrar nas tremendas tempestades queteve de suportar. Citemos, a título de exem-plo: São Leão Magno (I), São GregórioMagno (I), São Gregório II, São Nicolau I, oGrande, São Silvestre II, o Papa da viragemdo milénio.

Sem dúvida que o segundo milénio rece-beu como herança um importante legado a

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que havia que dar continuidade edesenvolver.

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Notas de Rodapé1 Código do Direito Canónico, cânone 751.2 Quoist, p. 205.3 Descalzo, p. 308.4 Folch Gomes, p. 117.5 Folch Gomes, p. 118.6 Idem, p. 43.7 Ramos, 1995: 116.8 Ramos, 1955: 132.9 Catecismo da Igreja Católica, 1282.10 Idem, 1446.11 AA. VV., 1991: 63.12 Ramos, 1995: 83.13 Folch Gomes, p. 43.14 Idem, p. 39.15 Idem, p. 43.16 Idem, p. 35.17 Idem, p. 151.18 Ramos, 1995: 161.19 Idem, p. 162.20 Comby, 1992: 36.21 Folch Gomes, p. 110.22 Idem, p.111.23 Folch Gomes, p. 118.24 Comby, 1992: 93.25 Idem, p. 98.

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