história das pesquisas em lagoa santa: museus, crânios e … · e da flora e formulando teorias...
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História das Pesquisas em Lagoa Santa: Museus, Crânios e Antropologia
Biológica no Brasil1
Pedro Da-Gloria – USP
Walter Alves Neves - USP
Mark Hubbe - The Ohio State University, EUA
Resumo (1500 caracteres com espaço):
A região de Lagoa Santa, Minas Gerais, foi alvo das primeiras intervenções
paleontológicas e arqueológicas no Brasil. Peter W. Lund, um naturalista dinamarquês,
realizou intervenções nas grutas da região entre 1835 e 1844, encontrando milhares de
fósseis de animais e humanos nas cavernas locais. No começo do século XX, os achados
de Lund motivaram pesquisadores do Museu Nacional do Rio de Janeiro e da Academia
de Ciências de Minas Gerais a fazerem novas intervenções na região. De fato, na primeira
metade do século XX centenas de esqueletos humanos antigos foram estudados dentro de
uma perspectiva tipológica. Na década de 1950, Wesley Hurt, filiado à Universidade de
Dakota do Sul, empreendeu a primeira missão arqueológica de cunho profissional em
Lagoa Santa, enquanto na década de 1970, a Missão Francesa liderada por Annete
Laming-Emperaire encontrou o esqueleto mais antigo das Américas. Na década de 1990,
Walter Neves da Universidade São Paulo propôs um modelo de migração para as
Américas que considera a chegada de dois componentes biológicos principais ao
continente. Recentemente, novos trabalhos têm aberto a possibilidade de estudar o
material humano depositado em museus sob uma nova perspectiva, incorporando a saúde
e o modo de vida dessas populações. Dessa forma, uma renovação de interesses na
antropologia biológica de Lagoa Santa começa a surgir, gerando um novo conjunto de
questões antropológicas.
Palavras chave: Arqueologia, Biologia, Antropologia Física
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
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Resumo expandido:
Este trabalho visa traçar a história das pesquisas na região de Lagoa Santa, Minas
Gerais (Figura 1). Essa região apresenta um longo histórico de pesquisas que remonta ao
século XIX, quando ela foi primeiro visitada por naturalistas europeus. Lagoa Santa é
uma região cárstica, cuja topografia inclui centenas de grutas e abrigos sob rocha em
afloramentos calcários. Além de proporcionar paisagens de interesse turístico, as
características geomorfológicas da região favorecem a preservação de material ósseo. A
química do solo das cavernas funciona como um agente fossilizador, retardando a
degradação da parte inorgânica dos ossos (PILÓ, 1998). Ao longo dos anos, a região
destacou-se pela enorme quantidade de ossos de fauna extinta e humanos preservados em
cavernas e abrigos sob rocha. Os esqueletos humanos, foco do presente trabalho, formam
a maior coleção osteológica da transição do Pleistoceno para o Holoceno2 nas Américas
e são ainda hoje cruciais para o estudo dos primeiros grupos humanos do continente. Além
de prover dados empíricos para estudos bioarqueológicos, as pesquisas em Lagoa Santa
formam parte importante da história das ciências arqueológicas e paleontológicas
brasileiras, incluindo a relação entre antropologia e arqueologia, intercâmbios
internacionais, constituição das coleções de museus e mudanças de abordagens teóricas.
Figura 1 – Localização da região arqueológica de Lagoa Santa no mapa do Brasil.
2 A transição do Pleistoceno para o Holoceno ocorre por volta de 11,500 anos atrás e está associada a uma mudança de um clima mais frio e seco para um clima mais úmido e quente.
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Nos séculos XVIII e XIX, as disciplinas científicas modernas ainda não estavam
consolidadas, havendo uma profusão de naturalistas, responsáveis por investigar assuntos
desde a biologia e a geologia até a história e a antropologia. Alexander Von Humboldt,
por exemplo, viajou pela Amazônia entre 1799 e 1803, registrando a diversidade da fauna
e da flora e formulando teorias sobre a ocupação do continente. Humboldt também
descreveu grupos indígenas nos Andes peruanos e equatorianos, e observou aspectos da
arquitetura arqueológica do Império Inca. As pesquisas em Lagoa Santa se iniciaram com
a passagem de um desses naturalistas, o dinamarquês Peter W. Lund, pela cidade de
Curvelo - MG em 1834 durante uma excursão pelo interior do Brasil junto com Ludwig
Riedel. Lund se encantou com os fósseis apresentados a ele na ocasião por outro
naturalista e compatriota, Peter Claussen. Ele percebeu imediatamente o potencial
científico daquele material, resolvendo se instalar permanentemente na cidade de Lagoa
Santa a partir de 1835 (HOLTEN e STERLL, 2011). Nos quase dez que se seguiram Lund
pesquisou intensamente as grutas de Lagoa Santa. Com a ajuda de seu assistente,
topógrafo e desenhista Peter Brandt, visitaram mais de 800 grutas na região (LUND,
1845). Lund exumou milhares de ossos de fauna das cavernas de Lagoa Santa, que foram
posteriormente estudados em detalhe por Herluf Winge, um dinamarquês, na obra E
Museu Lundi, publicada em três volumes entre 1888 e 1915 (e.g., WINGE, 1888, 1915).
Lund não se restringiu a estudos paleontológicos, escrevendo também sobre botânica,
geografia, zoologia, geologia de cavernas, etnografia e arqueologia.
No que diz respeito à arqueologia, Lund encontrou restos esqueletais humanos em
apenas seis grutas, porém foi na Gruta do Sumidouro que seus achados mais marcantes
aconteceram. Ele encontrou restos de mais de 30 indivíduos misturados com animais
extintos, tais como a capivara gigante (Hydrocaerrus sulcidens), o grande jaguar (Felis
protophanter), o lobo de caverna (Palaeocyon troglodytes) e o cavalo (Equus ferus;
LUND, 1845). Essa convivência entre megafauna extinta e humanos era algo impensável
na época, visto que o catastrofismo de Georges Cuvier, do qual Lund era um adepto,
preconizava que os humanos apareceram na Terra somente depois da última extinção dos
grandes animais. Lund não só questionou as teorias vigentes de sua época, como também
observou as semelhanças e diferenças entre animais extintos e atuais no Brasil, sendo sua
coleção mencionada mais tarde na obra seminal de Charles Darwin como uma “admirável
coleção de ossadas fósseis recolhidas nas cavernas do Brasil por Mr. Lund e Clausen”
(DARWIN, 1859:276). Os achados na Gruta do Sumidouro tiveram importante
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repercussão internacional durante o século XIX, uma vez que a maioria dos esqueletos
escavados ficaram depositados na Europa, sendo alvos de diversos estudos por europeus
(e.g., TEN KATE, 1885; HANSEN, 1888). No cenário nacional, os crânios achados na
região fomentaram discussões sobre as características físicas da raça de Lagoa Santa, em
contraposição aos crânios das populações litorâneas que constituíam o “Homem dos
Sambaquis” (LACERDA e PEIXOTO, 1876). Uma questão marcante derivada dos
estudos de Lund foi a antiguidade da ocupação humana na região e consequentemente se
os humanos conviveram com a megafauna extinta. De fato, essa questão norteou muitas
das intervenções arqueológicas posteriores em Lagoa Santa.
Somente no começo do século XX novas intervenções arqueológicas foram
empreendidas em Lagoa Santa. Lanari (1909) escavou a Lapa do Caetano, achando pelo
menos três indivíduos depositados abaixo de uma placa estalagmítica. Essa posição
estratigráfica sugeriu a ele que os ossos teriam sido depositados durante o Pleistoceno, ou
seja, anteriormente ao período Holocênico, quando as placas estalagmíticas teriam sido
formadas pelo aumento de umidade.
Jorge Padberg-Drenkpol retomou as escavações em Lagoa Santa com apoio
institucional do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Em 1926, Padberg-Drenkpol
encontrou ossos humanos nos sítios da Lapa do Caetano, Lapa Mortuária, Lapa da
Limeira, Lapa d´Agua e Lapa da Moreira. Padberg-Drenkpol coletou 13 caixas de ossadas
humanas e de animais incluindo cerca de 100 esqueletos humanos bastante fragmentados
(PADBERG-DRENKPOL, 1926). Apesar dessa enorme coleção osteológica, pouco se
sabe sobre o contexto arqueológico desse material. Não há desenhos, descrição
estratigráfica e nem mesmo registro de outros materiais arqueológicos encontrados nos
sítios. Posteriormente, Bastos de Ávila realizou uma intervenção arqueológica na Lapa
das Carrancas, exumando 12 esqueletos humanos (ÁVILA, 1937). Infelizmente, não há
também descrições detalhadas dessa intervenção arqueológica.
A passagem do século XIX para o XX foi um momento de mudanças políticas e
institucionais no Brasil, tais com a consolidação de grandes museus brasileiros no norte
(Museu Paraense Emílio Goeldi) e no sudeste (Museu Paulista e Museu Nacional) do
país. O Museu Nacional do Rio de Janeiro teve um papel central nas expedições em Lagoa
Santa. Nesse museu, a arqueologia, a antropologia e a etnologia estavam conectadas, e
membros do museu realizavam expedições em terras indígenas, empreendiam escavações
arqueológicas e participavam de estudos de saúde em escolas públicas do Rio de Janeiro.
Edgard Roquette-Pinto, por exemplo, realizou estudos dos tipos raciais brasileiros,
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buscando entender a base biológica da mestiçagem no Brasil. Embora dentro de uma
perspectiva racialista, Roquette-Pinto não acreditava na hierarquia entre as raças, nem na
degeneração biológica dos tipos mestiços (SANTOS, 2012; SOUZA, 2012). Nessa
perspectiva, ele promoveu estudos que visavam entender as condições de saúde e higiene
da população carioca, considerando este fator de suma importância para entender a
situação ruim da população brasileira. Nesse mesmo período, Bastos de Ávila se ocupava
de estudos sobre o padrão de crescimento de crianças, ao mesmo tempo que estudava as
populações pré-históricas de Lagoa Santa (GONÇALVES et al., 2012). A antropologia
nesse período era entendida como a história natural do Homem, estando no Museu
Nacional bastante atrelada à biologia comparada e à anatomia médica (KEULLER, 2012).
Dentro desse contexto de ideias, grupos de pesquisa do Museu Nacional e de Belo
Horizonte debatiam a origem e a morfologia dos habitantes de Lagoa Santa.
Entre 1930 e 1960, membros da Academia de Ciências de Minas Gerais (ACMG)
dedicaram-se à escavação de sítios arqueológicos em Lagoa Santa, liderados por Harold
Walter, Arnaldo Cathoud, Josaphat Penna e Aníbal Mattos. Suas intervenções
arqueológicas resultaram em um grande número de esqueletos humanos, que estão
atualmente depositados no Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade
Federal de Minas Gerais. Harold Walter foi o grande expoente desse grupo no que diz
respeito a escavações arqueológicas. Ele descreveu suas intervenções nos sítios Abrigo
de Limeira, Abrigo de Mãe Rosa, Abrigo de Samambaia, Abrigo do Eucalipto, Abrigo do
Galinheiro, Abrigo do Sumidouro e Lagoa Funda (WALTER, 1958). Suas descrições
arqueológicas, no entanto, tinham pouco detalhamento espacial e estratigráfico. Além
disso, Walter usou conceitos como “homem primitivo” (p 12), “cultura inferior” (p 71) e
“vida fácil” (p 97), o que denota uma visão ingênua da sequência cultural da região. Essa
visão de pré-história remonta às correntes antropológicas evolucionistas do século XIX,
que hierarquizavam as sociedades pelo seu grau de complexidade e de civilização. Nesse
sentido, Walter acreditava que os habitantes de Lagoa Santa representavam populações
primitivas em relação à civilização ocidental. Apesar de descrições bastante superficiais
de suas escavações, sua obra de 1958 é o primeiro grande tratado de arqueologia de Lagoa
Santa. Walter buscou entender tanto o material encontrado como as implicações desse
acervo para o modo de vida dos habitantes da região.
Nesse mesmo período, houve um intenso debate entre a ACMG e o Museu
Nacional quanto à interpretação dos seus achados. O grupo de Minas Gerais defendia a
contemporaneidade entre a megafauna extinta e o Homem de Lagoa Santa, enquanto o
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grupo do Museu Nacional, liderado por Padberg-Drenkpol e Bastos de Ávila, defendia a
tese oposta (CATHOUD et al., 1939). Essa discussão foi centrada no crânio do “Homem
de Confins” escavado pela ACMG nos anos de 1933 a 1935. Esse crânio humano foi
encontrado junto com um crânio de cavalo extinto e um fêmur de mastodonte no interior
da caverna da Lapa Mortuária (WALTER et al., 1937). Tentativas de datação relativa
usando flúor (WALTER, 1958) e fosfato (HURT, 1960) não resolveram o debate,
enquanto datações radiocarbônicas e reanálises estratigráficas da caverna não obtiveram
resultados conclusivos (NEVES et al., 2008). Além disso, na primeira metade do século
XX houve um intenso debate sobre a afiliação racial dos crânios de Lagoa Santa, no qual
merecem destaque o livro “A Raça de Lagoa Santa” de Aníbal Mattos (1941) e o artigo
de Bastos de Ávila (1950) que classificou Lagoa Santa como uma raça Lácida3. Esses
debates foram centrados em conceitos tipológicos e racialistas, predominantes à época.
Os anos de 1955 e 1956 foram marcados pelas primeiras expedições arqueológicas
de carácter profissional em Lagoa Santa, lideradas por Wesley Hurt da Universidade de
Dakota do Sul. Ao invés de se preocupar com definições morfológicas e racialistas, Hurt
procurava entender as ocupações antigas na região. Ele estabeleceu uma parceria com o
Museu Nacional do Rio de Janeiro, incluindo também pesquisadores de outras
instituições, tais como o paranaense Oldemar Blasi. O projeto tinha como questão
principal a convivência entre a megafauna extinta e os humanos, remontando aos
primeiros estudos na região realizados por Peter Lund. Sua equipe escavou os abrigos do
maciço de Cerca Grande e da Lapa das Boleiras, encontrando 24 sepultamentos e grande
quantidade de material lítico (HURT e BLASI, 1969). Essa expedição gerou as primeiras
datas radiocarbônicas para Lagoa Santa: 9.028 ± 120 AP e 9.720 ± 128 AP, atestando a
antiguidade das ocupações na região (HURT, 1964). De fato, eles não encontraram
nenhum vestígio de megafauna extinta nos sítios arqueológicos escavados, concordando
com a tese defendida pelos pesquisadores do Museu Nacional na década de 1930 de que
a ocupação humana em Lagoa Santa não era contemporânea com a megafauna extinta.
Uma resposta mais sólida para esse debate só veio recentemente com datações de
megafauna do mesmo período da ocupação humana na região, ainda que não exista
evidência de interação entre humanos e megafauna nos sítios arqueológicos (NEVES e
PILÓ, 2003; A. HUBBE et al., 2013). Essa intervenção mostra também a importância do
3 A raça Lácida é úma terminologia criada por José Imbelloni caracterizada por crânios dolicocéfalos, platirrinos e hipsicefálicos, ou seja, crânios alongados, achatados dos lados e com aberturas nasais largas.
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intercâmbio internacional para as pesquisas nos museus nacionais. Hurt, por exemplo,
contribuiu para a constituição do Museu Paranaense e do Museu de Antropologia da
Universidade Federal de Santa Catarina.
A década de 1970 foi marcada pela chegada da Missão Francesa na região de
Lagoa Santa. Liderada por Annette Laming-Emperaire, a Missão focou seus esforços na
escavação do sítio Lapa Vermelha IV, utilizando-se de métodos de escavação refinados.
Neste sítio foram identificadas fogueiras, líticos e conchas trabalhadas, embora a
densidade de ocupação do sítio parece ter sido pequena. Por outro lado, as escavações
atingiram profundidade de mais de 10 metros, chegando a níveis pleistocênicos
(LAMING-EMPERAIRE, 1979). Surpreendentemente, no fundo do sítio foi encontrado
um esqueleto humano de uma mulher jovem, incluindo um crânio em ótimo estado de
preservação. Uma datação estratigráfica desse esqueleto apontou para cerca de 11,000
anos AP, caracterizando-o como o esqueleto mais antigo das Américas, e gerando mais
tarde grande repercussão internacional (NEVES et al., 1999). A Missão Francesa também
foi pioneira no estudo da arte rupestre dentro de um contexto cronológico, produzindo
datas do Holoceno Médio para pinturas encontradas na Lapa Vermelha IV. Esse trabalho
estimulou o início de um registro sistemático de pinturas e de gravuras rupestres na região
(PROUS, 1977; BAETA, 2011). Infelizmente, com a morte precoce de Laming-
Emperaire em 1977, as intervenções da Missão Francesa na região foram interrompidas.
Entre 1976 e 1979, uma equipe liderada pelo arqueólogo André Prous da
Universidade Federal de Minas Gerais escavou o sítio Grande Abrigo de Santana do
Riacho a cerca de 60 km ao norte do carste de Lagoa Santa. Embora localizado fora do
carste, esse sítio se insere dentro do contexto cultural e estilístico de Lagoa Santa. Nesta
escavação foi encontrado um rico material arqueológico datado da transição do
Pleistoceno para o Holoceno, além de painéis de pinturas rupestres nas paredes do abrigo.
Ainda mais interessante, 40 indivíduos foram exumados em um estrato arqueológico
datado do Holoceno Inicial4 (NEVES et al., 2003; CORNERO, 2005). As análises
arqueológicas desse sítio foram publicadas em Prous e Malta (1991) e Prous (1992-1993),
consistindo no sítio mais detalhadamente escavado e melhor analisado da região até
aquele momento.
As décadas seguintes de pesquisas em Lagoa Santa foram marcadas pelos estudos
craniométricos comparativos liderados por Walter Neves da Universidade de São Paulo.
4 O Holoceno é dividido nos períodos Inicial, Médio e Final. O Holoceno Inicial compreende o período aproximado entre 11,500 e 7,000 anos atrás
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Motivado por suas análises da morfologia craniana dos habitantes de Lagoa Santa, ele
propôs um modelo de migração para as Américas que considera a chegada de dois
componentes biológicos principais ao continente, encontrando uma diferença de
morfologia craniana entre os primeiros americanos e os indígenas modernos (NEVES e
HUBBE, 2005; M. HUBBE et al., 2010). Em 2000, iniciou-se um grande projeto liderado
por Neves na região, visando responder perguntas longamente debatidas em Lagoa Santa.
Entre essas perguntas, pode-se destacar: 1) a contextualização cronológica das ocupações
humanas de Lagoa Santa; 2) o estudo comparativo da morfologia craniana dos primeiros
habitantes da região em um contexto mundial e suas implicações para os modelos de
migração para as Américas; e 3) sondagem e escavação de novos sítios arqueológicos que
permitissem estudar de maneira mais sistemática o modo de vida dessa população. Entre
os anos de 2000 até 2009, o projeto gerou e continua gerando uma quantidade enorme de
dados arqueológicos que estão contribuindo para o entendimento da vida dessas primeiras
populações americanas.
As pesquisas em Lagoa Santa ao longo do século XX denotam um distanciamento
da antropologia praticada nas universidades brasileiras. Enquanto no começo do século
XX a antropologia era bastante ligada à biologia e à arqueologia, como ocorria no Museu
Nacional, já no decorrer do século XX a antropologia brasileira inseriu-se nos recém-
criados institutos de ciências humanas. As atividades arqueológicas ficaram restritas aos
museus, com algumas inserções pontuais nos departamentos de história (BARRETO,
1999). O departamento de antropologia da Universidade de São Paulo (USP), por
exemplo, se consolidou na faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, enquanto
a arqueologia tem sido realizada no Museu de Arqueologia e Etnologia. Na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), André Prous fundou o setor de Arqueologia na década
de 1970, conectado ao Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG. A
antropologia biológica passou a existir em institutos de biologia, vinculados a
departamentos de genética, como é o caso do Laboratório de Estudos Evolutivos
Humanos da USP, fundado em 1994 por Walter Neves. Essa trajetória mostra uma
fragmentação do campo da antropologia, criando redutos de saber na antropologia
cultural, biológica e arqueologia com pouco diálogo entre si. De fato, essa ausência de
diálogo deveu-se muito à trajetória da antropologia brasileira de se distanciar de ideias
relacionadas à antropometria e ao determinismo biológico, que eram presentes na
antropologia biológica do começo do século XX. Todavia, os estudos de antropologia
biológica se transformaram ao longo do século XX, incorporando novos marcos teóricos
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e metodológicos, bem como questões relacionadas diretamente com a origem da espécie
humana e com a origem da variação biológica que se observa no planeta atualmente.
As pesquisas realizadas nos últimos 30 anos com esqueletos humanos em Lagoa
Santa têm tido uma ênfase em medição de crânios, gerando resultados importantes para a
compreensão da entrada do ser humano nas Américas. De fato, esses estudos
craniométricos já incorporaram inovações teóricas da nova antropologia biológica, pois
não estão mais preocupados com a definição de raças e tipologias, mas sim com o estudo
de histórias populacionais. Esses estudos no Brasil, no entanto, exploraram uma fração
pequena do potencial do material esqueletal depositado nos museus brasileiros. A análise
de outros elementos do esqueleto além do crânio abre a possibilidade de entendermos
aspectos da saúde e do modo de vida desses antigos habitantes do continente. Ainda mais,
os dados arqueológicos gerados nos últimos anos em Lagoa Santa podem ser usados em
conjunto com os dados osteológicos para reconstruir o modo de vida de populações do
passado. Alguns trabalhos anteriores já abordaram questões relacionadas à saúde e ao
estilo de vida usando material de Santana do Riacho (SOUZA, 1992-1993; NEVES e
CORNERO, 1997; CORNERO, 2005) e da Gruta do Sumidouro (NEVES e KIPNIS,
2004). Porém, só recentemente um trabalho sistemático abordou toda a coleção Lagoa
Santa dentro da perspectiva de saúde. O trabalho de Da-Gloria (2012) abordou cinco
aspectos da saúde e do estilo de vida dos primeiros habitantes da região: subsistência,
atividade física, infecções, estresse não específico durante o crescimento e violência. O
autor comparou os esqueletos de Lagoa Santa com um banco de dados comparativo de
6.733 esqueletos humanos oriundos de populações caçadoras-coletoras e agricultoras
viventes no continente americano antes do ano 1500 a fim de reconstruir o
comportamento desses primeiros habitantes de Lagoa Santa.
Essa nova perspectiva de análise do material de Lagoa Santa depositado nos
museus brasileiros tem o potencial de abrir novos diálogos com a antropologia. O
entendimento da saúde de populações pré-históricas incorpora novas abordagens teóricas
na antropologia biológica, usando conceitos como o de biocultura, que se refere a
processos de interação entre o corpo e o ambiente natural e cultural. Estudos de saúde
desses crânios permitem conectar história indígena recente e pré-história brasileira,
estabelecendo novas conexões entre antropologia e arqueologia. Dessa forma,
acreditamos que o diálogo entre antropologia, arqueologia e biologia está sendo renovado
em Lagoa Santa, contribuindo para o surgimento de novas questões de relevância
antropológica.
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