hunt, lynn. a nova história cultural

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A NOVA HISTORIA CULTURAL Lynn Hunt Tradução JEFFERSON LUIZ CAMARGO Martins Fontes São Paulo 2006

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Introdução - Lynn Hunt A nova historia cultural

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  • A NOVA HISTORIA CULTURAL

    Lynn Hunt

    Traduo JEFFERSON LUIZ CAMARGO

    Martins Fontes So Paulo 2006

  • Ttulo original: THE NEW CULTURAL HISTORY. Copyright The Regents of the University of California.

    Copyright 1992, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., So Paulo, para a presente edio.

    1 edio 992 2s edio 2001

    2s tiragem 2006

    Traduo JEFFERSON LUIZ CAMARGO

    Reviso da traduo Silvana Vieira

    Revises grficas Adalberto de Oliveira Couto

    Marcelo Rondinelli Produo grfica

    Geraldo Alves

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Hunt, Lynn A nova histria cultural / Lynn Hunt ; traduo Jefferson Luiz

    Camargo. - 2- ed. - So Paulo : Martins Fontes, 2001. - (O homem e a histria).

    Ttulo original: The new cultural history. Vrios colaboradores ISBN 85-336-1433-0

    1. Histria social - Historiografia 1. Ttulo. II. Srie.

    01-2419 CDD-306.09

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Cultural: Historiografia : Sociologia 306.09

    2. Histria social : Historiografia : Sociologia 306.09

    Todos os direitos desta edio para o Brasil reservados Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

    Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 So Paulo SP Brasil Tel. (11)3241.3677 Fax (11) 3101J042

    e - mail: info@martinsfontes. com .br http ://www. martinsfontes.com. br

    S U M R I O

    Apresentao: histria, cultura e texto Lynn Hunt

    PARTE I Modelos de histria cultural

    I. A histria da cultura de Michel Foucault Patricia O'Brien

    II. Massas, comunidade e ritual na obra de E. P. Thompson e Natalie Davis

    Suzanne Desan III. Saber local, histria local: Geertz e alm

    Aletta Bier sack ' IV. Literatura, crtica e imaginao histrica: O de-

    safio literrio de Hayden White e Dominick LaCapra

    Lloyd S. Kramer

  • A P R E S E N T A O

    HISTRIA, CULTURA E TEXTO

    LYNN HUNT

    Em 1961, E. H. Carr declarou que "quanto mais socio-lgica a histria se torna, e quanto mais histrica a sociolo-gia se torna, tanto melhor para ambas".1 Na poca, a de-clarao foi um brado de guerra dirigido principalmente a seus colegas historiadores sobretudo os de extrao in-glesa que Carr pretendia arrastar, ainda que com relu-tncia, para a nova era de uma histria de orientao so-cial. Em retrospecto, parece que Carr estava coberto de ra-zo: os dois campos convergiam agudamente para o scio-histrico. A sociologia histrica tornou-se um dos mais im-portantes subcampos da sociologia, e talvez tenha sido o que mais rapidamente se desenvolveu; enquanto isso, a his-tria social superou a histria poltica como rea mais im-portante de pesquisa histrica (o que pode ser comprovado pela quadruplicao, nos Estados Unidos, das teses de dou-

    1. Edward Hallett Carr, What is History? (Nova Iorque, 1965; primeira edi-o, 1961), p. 84.

  • 2 A NOVA HISTORIA CULTURAL

    toramento em histria social entre os anos de 1958 e 1978, ultrapassando o nmero de teses em histria poltica)2.

    Na histria, o avano para o social foi estimulado pela influncia de dois paradigmas de explicao dominantes: o marxismo, por um lado, e a escola dos "Annales", por ou-tro. Embora dificilmente se pudesse considerar o marxis-mo como novidade nas dcadas de 1950 e 1960, estavam vin-do a primeiro plano, dentro daquela modalidade explicati-va, novas correntes que fomentavam o interesse dos histo-riadores pela histria social. No final da dcada de 1950 e nos primeiros anos da de 1960, um grupo de jovens histo-riadores marxistas comeou a publicar livros e artigos so-bre "a histria vinda de baixo", inclusive os atualmente cls-sicos estudos de George Rude sobre as classes populares pa-risienses, de Albert Soboul sobre os sans-culottes parisien-ses, e os de E. P. Thompson sobre a classe operria ingle-sa.3 Com essa inspirao, os historiadores das dcadas de 1960 e 1970 abandonaram os mais tradicionais relatos his-tricos de lderes polticos e instituies polticas e direcio-naram seus interesses para as investigaes da composio social e da vida cotidiana de operrios, criados, mulheres, grupos tnicos e congneres.

    Ainda que uma influncia mais recente, a escola dos An-nales adquiriu proeminncia na mesma poca. A revista ori-ginal, Annales d'histoire conomique et sociale, foi fundada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre. Na dcada de 1930, foi de Estrasburgo para Paris, onde, em 1946, rece-beu seu nome atual, Annales: Economies, Socits, Civilisa-

    2. Robert Darnton, "Intellectual and Cultural History", em The Past Before Us: Contemporary Historical Writings in the United States, ore. Michael Kammen (Ithaca, N.I., 1980), p. 334.

    3-George Rud, The Crowd in the French Revolution (Oxford, 1959)- Al-bert Soboul, Les Sans-culottes parisiens en l'an II, 2? ed. (Paris, 1962)- E P Thomp-son, The Making of the English Working Class (Londres, 1963)

    APRESENTAO 3

    tions. A Annales tornou-se uma escola ou, pelo menos, assim comeou a ser chamada quando afiliou-se institu-cionalmente Sexta Seo da Ecole Pratique des Hautes Etu-des, depois da Segunda Guerra Mundial. Fernand Braudel deu-lhe um sentido geral de unidade e continuidade, tanto por presidir a Sexta Seo quanto por dirigir a Annales nas dcadas de 1950 e 1960.4 Por volta dos anos 1970, o prest-gio da escola era internacional; o International Handbook of Historical Studies de 1979 continha mais verbetes relati-vos escola dos Annales do que a qualquer outro assunto, com exceo de Marx e do marxismo.5

    Mas existiu mesmo um "paradigma" dos Annales, co-mo insistiu Traian Stoianovich em seu livro do mesmo no-me? Para ele, a escola dos Annales enfatizava as abordagens seriais, funcionais e estruturais do entendimento da socie-dade como um organismo total e integrado. " O paradigma da Annales constitui uma indagao sobre como funciona um dos sistemas de uma sociedade, ou sobre como funcio-na toda uma coletividade em termos de suas mltiplas di-menses temporais, espaciais, humanas, sociais, econmi-cas, culturais e circunstanciais".6 E uma definio que dei-xa muito pouca coisa de fora; conseqentemente, em seu suposto avano rumo "histria total", perde toda especi-ficidade.

    Fernand Braudel, a figura central da escola dos Anna-les nas dcadas que se seguiram Segunda Guerra Mundial, apresentou um modelo aparentemente mais preciso em sua obra sobre o mundo mediterrnico. Postulou trs nveis de

    4. Sobre a histria da escola dos Annales, ver Traian Stoianovich, French His-torical Method: The Annales Paradigm (Ithaca, N.I., 1976) e Guy Bourd e Herve Martin, Les Ecoles historiques (Paris, 1983).

    5. Georg G. Iggers e Harold T. Parker (orgs.), International Handbook of Historical Studies (Westport, Conn., 1979).

    6. Stoianovich, French Historical Method, p. 236.

  • 4 A NOVA HISTORIA CULTURAL

    anlise que correspondiam a trs diferentes unidades de tem-po: a structure, ou longue dure, dominada pelo meio geo-grfico; a conjoncture, ou mdia durao, voltada para a vi-da social, e o "evento" efmero, que inclua a poltica e tu-do o que dizia respeito ao indivduo. A estrutura, ou longa durao, tinha prioridade, enquanto os eventos eram equi-parados poeira ou espuma do mar.7

    Embora o prprio Braudel tenha exercido uma enorme influncia (graas, ao menos em parte, s importantes posi-es acadmicas que acumulou), seu exemplo no inspirou muitos trabalhos especificamente comparveis. Pelo contr-rio, os historiadores franceses da terceira gerao dos Anna-les homens como Emmanuel Le Roy Ladurie e Pierre Goubert estabeleceram um modelo alternativo de hist-ria regional total, com o enfoque voltado no para as regies econmicas mundiais, mas para regies dentro da Frana. No trabalho desses estudiosos, predominava a histria so-cial e econmica; longue dure certamente era dado o devi-do valor, mas a dimenso geogrfica, ainda que presente, apa-recia apenas como uma espcie de frmula no incio de cada estudo, e no como esprito condutor do trabalho. Ainda assim, esse modelo de explicao histrica era basicamente semelhante ao de Braudel: o clima, a biologia e a demogra-fia dominavam a longa durao juntamente com as tendn-cias econmicas; as relaes sociais, mais nitidamente sujei-tas s flutuaes da conjoncture (em geral definida em unida-des de dez, vinte, ou mesmo cinqenta anos), constituam uma segunda ordem de realidade histrica; e a vida poltica, cultural e intelectual configuravam um terceiro nvel, extre-mamente dependente, de experincia histrica. A interao entre o primeiro e o segundo nvel assumia a primazia.

    7. Fernand Braudel, La Mditerrane et le monde mditerranen l'poque de Philippe II (Paris, 1949); traduo inglesa: Londres, 1972-73.

    APRESENTAO 5

    A nfase da escola dos Annales histria econmica e social logo se difundiu, chegando mesmo s mais tradicio-nais revistas histricas. Por volta de 1972, na bastante con-vencional Revue historique8, a histria econmica e social tinha suplantado a biografia e a histria religiosa enquanto categorias mais abrangentes, depois da histria poltica. Na revista norte-americana French Historical Studies, o nme-ro de artigos sobre histria econmica e social praticamen-te dobrou (de 24 a 46 por cento) entre 1965 e 19849. Em-bora eu s tenha pesquisado cuidadosamente as revistas so-bre histria francesa, tenho a impresso de que a mesma tendncia pode ser detectada na maior parte dos campos de estudo. E. H. Carr no foi um historiador na linha dos An-nales, mas suas palavras exprimem bem a posio a. Anna-les: "Uma vez que a preocupao com os fins econmicos e sociais representa, em termos do desenvolvimento huma-no, um estgio mais amplo e mais avanado do que a preo-cupao com os fins polticos e constitucionais, podemos ento dizer que a interpretao econmica e social da his-tria representa, em termos da histria, um estgio mais avanado do que a interpretao exclusivamente poltica"10.

    Nos ltimos anos, contudo, os prprios modelos de ex-plicao que contriburam de forma mais significativa para a ascenso da histria social passaram por uma importante mudana de nfase, a partir do interesse cada vez maior, tan-to dos marxistas quanto dos adeptos dos Annales, pela his-

    8. Alain Corbin, "La Revue historique: Analyse du contenu d'une publica-tion rivale des Annales", emAu Berceau des Annales: Le Milieu strasbourgeois, l'his-toire en France au dbut du XXe sicle, org. Charles-Olivier Carbonell e Georges Livet (Toulouse, 1979), p. 136.

    9. Meus nmeros so extrados de Lynn Hunt, "French History in the Last Twenty Years: The Rise and Fall of the Annales Paradigm", Journal of Contem-porary History 21 (1986): 209-24.

    10. Carr, What is History?, pp. 164-65.

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    tria da cultura. Na historia de inspirao marxista, o des-vio para a cultura j estava presente na obra de Thompson sobre a classe operria inglesa. Thompson rejeitou explici-tamente a metfora de base/superestrutura e dedicou-se ao estudo daquilo que chamava "mediaes culturais e morais" "a maneira como se lida com essas experincias mate-riais... de modo cultural"11. Em The Making of the English Working Class (p. 10), ele descreve a conscincia de classe como "a maneira pela qual essas experincias [de relaes produtivas] so manipuladas em termos culturais: incorpo-radas em tradies, sistemas de valores, ideias e formas ins-titucionais". Embora o livro tenha provocado muita con-trovrsia entre os marxistas, muitos dos quais acusaram Thompson de uma tendncia para o voluntarismo e o idea-lismo, teve uma grande influncia sobre os historiadores mais jovens12.

    O mais surpreendente exemplo do desvio dos historia-dores marxistas para a cultura o seu crescente interesse pela linguagem. Em 1980, num editorial intitulado "Lin-guagem e Histria", os organizadores da History Workshop admitiram a influncia cada vez maior do que chamavam "lingstica estrutural" (um uso incorreto do termo, que no obstante revela a influncia do interesse pela linguagem). Argumentavam que a ateno linguagem podia desafiar as "teorias reflexivas do conhecimento" e afetar a prtica dos "historiadores socialistas" ao focalizar as funes " 'se-miticas' da linguagem"13. O livro de William Sewell so-bre a linguagem de trabalho da classe operria francesa ,

    11. Citado em Ellen Kay Trimberger, "E. P. Thompson: Understanding the Process of History", em Vision and Method in Historical Sociology, org. Theda Skocpol (Cambridge, 1984), p. 219.

    12. Trimberger examina muitas das crticas sobre Thompson em ibid. 13. History Workshop 10 (1980): 1-5; citaes, p. 1.

    APRESENTAO 7

    no mbito da histria francesa, o produto mais conhecido desse interesse14.

    Contudo, a despeito de toda a ateno dedicada ao fun-cionamento da "superestrutura", a maior parte dos histo-riadores marxistas fez pouco mais que afinar a sintonia com o modelo marxista fundamental de explicao histrica. Co-mo disse Thompson, "a experincia de classe , em grande parte, determinada pelas relaes produtivas dentro das quais os homens nascem ou entram de modo involuntrio"15. Num livro autoconscientemente marxista sobre histria e lingstica, Rgine Robin afirmava que s se pode dar sen-tido ao discurso poltico tendo por referncia um nvel "ex-tralingstico" de experincia, ou seja, a experincia das re-laes sociais de produo16. Nos modelos marxistas, en-to, a experincia social , por definio, sempre funda-mental.

    A mais notvel exceo dessa caracterizao do interes-se marxista pela cultura pode comprovar a norma. Em sua pioneira coletnea de ensaios, Language of Class, Gareth Sted-man Jones tentou atracar-se com as impropriedades da abor-dagem marxista. Ao discutir a linguagem cartista de classe, ele observa: " O que ainda no foi suficientemente questio-

    14. William H. Sewell, Jr., Work and Revolution in France: The Language of Labor from the Old Regime to 1848 (Cambridge, 1980).

    15. Thompson, Making of the English Working Class, p. 10. Mesmo a "dial-tica da revoluo" de Sewell, a despeito de sua nfase sobre o papel representado pelas contradies do pensamento iluminista, conserva uma concepo fundamen-talmente marxista. A conscincia dos trabalhadores progrediu sob o impacto das transformaes na organizao do trabalho e em decorrncia das lutas polticas dos diversos perodos revolucionrios franceses. Para uma crtica da posio de Sewell, ver Lynn Hunt e George Sheridan, "Corporatism, Association, and the Language of Labor in France, 1750-1850", Journal of Modern History 58 (1986): 813-44.

    16. Para uma discusso da posio de Robin e de outros historiadores mar-xistas da linguagem revolucionria francesa, ver Lynn Hunt, Politics, Culture, and Class in the French Revolution (Berkeley e Los Angeles, 1984), p. 22.

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    nado se essa linguagem pode, ou no, ser analisada sim-plesmente em termos de sua expresso da suposta conscincia de uma classe ou grupo social ou ocupacional especficos ou em termos de sua correspondncia com a mesma". Alm disso, ele critica Thompson por supor "uma relao relativamente direta entre 'ser social' e 'conscincia social' que deixa pouco espao independente para o contexto ideo-lgico dentro do qual a coerncia de uma linguagem espe-cfica de classe pode ser reconstituda". Contudo, ao demons-trar a importncia da tradio ideolgica do radicalismo e das diretrizes e do carter inconstante do Estado, Stedman Jones est, na verdade, distanciando-se de uma anlise mar-xista. Como ele mesmo sustenta em sua introduo: "No podemos, portanto, decodificar a linguagem poltica para chegar a uma expresso primal e material do interesse, uma vez que a estrutura discursiva da linguagem poltica que, em primeiro lugar, concebe e define o interesse"17. Pode-se ainda considerar marxista um desvio to radical do pro-grama marxista?

    O desafio aos velhos modelos foi especialmente rigo-roso na escola dos Annales. Embora a histria econmica, social e demogrfica tenha permanecido dominante na pr-pria Annales (respondendo por mais da metade dos artigos entre 1965 e 1984), a histria intelectual e cultural passou a ocupar um slido segundo lugar (com algo em torno de 35 por cento dos artigos, contra 11 a 14 por cento para his-tria poltica)18. A medida que a quarta gerao dos histo-riadores dos Annales passou a preocupar-se cada vez mais com aquilo que, muito enigmaticamente, os franceses cha-mam mentalits, a histria econmica e social sofreu um

    17. Gareth Stedman Jones, Language of Class: Studies in English Working Class History, 1832-1982 (Cambridge, 1983), pp. 94, 101 e 22.

    18. Hunt, "The Last Twenty Years", quadro 1.

    APRESENTAO 9

    recuo em termos de sua importncia19. Esse interesse apro-fundado pelas mentalits (mesmo entre os membros da ge-rao mais velha dos historiadores dos Annales) levou tam-bm a novos desafios ao paradigma dos Annales.

    Os historiadores da quarta gerao dos Annales, como Roger Chartier e Jacques Revel, rejeitam a caracterizao de mentalits como parte do chamado terceiro nvel de ex-perincia histrica. Para eles, o terceiro nvel no de mo-do algum um nvel, mas um determinante bsico da reali-dade histrica. Como afirmou Chartier, "a relao assim estabelecida no de dependncia das estruturas mentais quanto a suas determinaes materiais. As prprias repre-sentaes do mundo social so os componentes da realida-de social"20. As relaes econmicas e sociais no so an-teriores s culturais, nem as determinam; elas prprias so campos de prtica cultural e produo cultural o que no pode ser dedutivamente explicado por referncia a uma di-menso extracultural da experincia21.

    Ao se voltarem para a investigao das prticas cultu-rais, os historiadores dos Annales, como Chartier e Revel, foram influenciados pela crtica de Foucault acerca dos pres-supostos fundamentais da histria social. Foucault demons-trou a inexistncia de quaisquer objetos intelectuais "natu-

    19. Volker Sellin investiga a histria da palavra e do conceito em "Mentali-tt und Mentalittsgeschichte", Historische Zeitschrift 241 (1985): 555-98.

    20. Roger Chartier, "Intellectual History or Sociocultural History? The French Trajectories", em Modern European Intellectual History: Reappraisals and New Perspectives, org. Dominick LaCapra e Steven L. Kaplan (Ithaca, N.I., 1982), p. 30.

    21. Como Foucault explicou em sua obra sobre o discurso, ele no estava interessado em determinar as causas "subjacentes" das formaes discursivas, mas, antes, em ver "historicamente de que modo os efeitos de verdade se produzem no interior de discursos que no so, em si mesmos, nem verdadeiros nem fal-sos" (citado em Mark Poster, "Foucault and History", Social Research 49 (1982): 116-42; citao, p. 128.

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    rais". Como explicou Chartier, "a loucura, a medicina e o Estado no so categorias que possam ser conceituadas em termos de universais cujos contedos so particulariza-dos por cada poca"22; so historicamente dados como "ob-jetos discursivos", e uma vez sendo historicamente funda-mentados, e, por implicao, sempre sujeitos a mudanas, no podem oferecer uma base transcendental ou universal para o mtodo histrico.

    Tambm existem algumas semelhanas entre Foucault e os historiadores da primeira e da segunda gerao dos An-nales; todos esses estudiosos estavam em busca de regras an-nimas que governassem as prticas coletivas, e todos tive-ram parte em deslocar da histria o "sujeito" individual da histria. Ao contrrio das primeiras geraes de historia-dores dos Annales, porm, Foucault era fundamentalmen-te antipositivista. No acreditava que as cincias sociais pu-dessem unir-se na investigao da natureza do homem, exa-tamente porque repudiava o prprio conceito de "homem" e a prpria possibilidade de mtodo nas cincias sociais. Na verdade, alguns crticos chegaram a chamar suas "genealo-gias" de "antimtodo"23.

    Embora os historiadores tenham se interessado muito pelas crticas incisivas de Foucault, no adotaram seu m-todo ou antimtodo como modelo de prtica. Fou-

    22. Chartier, "Intellectual History", p. 43. 23. Para uma discusso proveitosa dos mtodos de Foucault, ver Larry Shi-

    ner, "Reading Foucault: Anti-Method and the Genealogy of Power-Knowledge", History and Theory 21 (1982): 382-97, e Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow, Mi-chel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics (Chicago, 1982). A diferen-a entre a escola de Annales e o "estruturalismo" discutida em Stuart Clark, "The Annales Historians", em The Return of Grand Theory in the Human Scien-ces, org. Quentin Skinner (Cambridge, 1985), pp. 177-98. Clark observa que "a histria estrutural de Braudel e da Annales deve mais a sua hostilidade a qualquer forma de fenomenologia do que a sua antecipao do estruturalismo" (p. 195). O determinismo de Braudel baseava-se numa preferncia por um relato natural, e no cultural, da experincia (p. 192).

    APRESENTAO 11

    cault recusava-se a oferecer anlises causais e negava a vali-dade de qualquer relao redutiva entre as formaes dis-cursivas e seus contextos scio-polticos entre mudanas de ponto de vista sobre a loucura, por exemplo, e transfor-maes sociais e polticas na Frana dos sculos XVII e XVIII. Argumentava com veemncia contra a pesquisa de origens, e suas "genealogias" no exigiam nada da funda-mentao habitual em economia, sociedade ou poltica. Con-seqentemente, embora seus insights locais do funcionamen-to de instituies especficas e tipos de discurso tenham ge-rado um nmero considervel de pesquisas (muitas das quais tentando corrigir as prprias construes de Foucault, em geral bastante precrias), seu programa permanece idiossin-crtico em termos gerais. E como poderia ser de outro mo-:

    do, se Foucault descreve sua verso da histria como uma verso que "perturba o que antes se considerava imvel; ... que fragmenta o que antes se acreditava unificado; ...que demonstra a heterogeneidade daquilo que se imaginava coe-rente em si mesmo", e se declara que "tenho plena cons-cincia de que nunca escrevi outra coisa a no ser fices"? Confessamente, prossegue dizendo: "No pretendo chegar ao ponto de afirmar que as fices esto alm da verdade [hors verit], Parece-me ser possvel produzir uma obra de fico dentro da verdade"24. No entanto, ele nunca espe-cifica seu modo de determinar essa "verdade", ou mesmo qual seria o status epistemolgico da mesma.

    Mesmo que Foucault no tenha sido inteiramente bem-sucedido na abertura de um terceiro caminho atravs dos domnios da histria cultural, ao lado do marxismo e da escola dos Annales, no se pode negar sua enorme influn-

    24. Citado em Allan Megill, Prophets of Extremity: Nietzsche, Heidegger, Fou-cault, Derrida (Berkeley e Los Angeles, 1985), pp. 235, 234.

  • 12 A NOVA HISTORIA CULTURAL

    cia sobre a conceituao do campo. No ensaio "A Historia da Cultura de Michel Foucault" (captulo 1 deste livro), Pa-tricia O'Brien examina tanto a influencia de Foucault co-mo suas prticas enquanto historiador da cultura. A ensas-ta argumenta convincentemente que Foucault estudou a cul-tura pelo prisma das tecnologias de poder, que ele situou estrategicamente no discurso. Ele no tentou remontar o funcionamento do poder ao Estado, ao processo legislativo ou luta de classes; ao contrrio, buscou-o nos "lugares me-nos auspiciosos" nas operaes dos sentimentos, no amor, na conscincia, no instinto, e nas copias heliogrficas de pro-jetos de prises, nas observaes dos mdicos e nas trans-formaes mais abrangentes em disciplinas como a biolo-gia e a lingstica.

    Qual , ento, o programa da "nova histria cultural"? Como a obra de Foucault, a histria mais ampla das men-talits foi criticada pela ausncia de um enfoque claro. Fran-ois Furet denunciou que essa falta de definio estimulava uma "busca infinita de novos temas", cuja escolha era regi-da apenas pelos modismos do momento25. Do mesmo mo-do, Robert Darnton lanou a acusao de que "apesar de uma enxurrada de prolegmenos e discursos sobre o mto-do..., os franceses no elaboraram uma concepo coerente de mentalits enquanto campo de estudo"26.

    As crticas de Furet e Darnton nos advertem vigorosa-mente contra o desenvolvimento de uma histria cultural definida apenas em termos de temas para pesquisa. Assim como, s vezes, a histria social passou de um para outro grupo (trabalhadores, mulheres, crianas, grupos tnicos, velhos e jovens) sem desenvolver um senso suficiente de coe-

    25. Franois Furet, "Beyond the Annales", Journal of Modern History 55 (1983): 389-410; citao, p. 405.

    26. Darnton, "Intellectual and Cultural History", p. 346.

    APRESENTAO 13

    so ou interao entre os temas, do mesmo modo uma his-tria cultural definida topicamente poderia degenerar nu-ma busca interminvel de novas prticas culturais a serem descritas fossem elas carnavais, massacres de gatos ou jul-gamentos por impotncia27.

    Mas Furet e Darnton so, em alguns aspectos, injustos em suas crticas, sobretudo pelo fato de eles prprios traba-lharem com o gnero que atacam. Os historiadores como Chartier e Revel no propuseram simplesmente um novo conjunto de temas para investigao; foram alm das men-talits, com o objetivo de questionar os mtodos e objeti-vos da histria em geral (razo pela qual sua obra to cheia de prolegmenos sobre o mtodo). Endossaram a avaliao de Foucault de que os prprios temas das cincias humanas o homem, a loucura, a punio e a sexualidade, por exem-plo so produto de formaes discursivas historicamen-te contingentes. Essa crtica radical, porm, encerra um pro-blema bsico: o seu tom niilista. Onde estaremos quando todas as prticas, sejam elas econmicas, intelectuais, pol-ticas ou sociais, revelarem ser culturalmente condicionadas? Colocando de outro modo, uma histria da cultura poder funcionar se estiver despojada de todo e qualquer pressu-posto terico sobre a relao da cultura com o universo so-cial se, de fato, o seu programa for concebido como o

    27. Para uma viso bastante inflamada da histria social, mas que ao menos reconhece a existncia das crticas, ver Peter N. Stearns, "Social History and His-tory: A Progress Report", Journal of Social History 19 (1985): 319-34. Como o proprio Stearns admitiu em um ensaio anterior, "A histria social tpica tem uma tendencia inerentemente centrfuga. Assim, a abordagem tpica no apenas relete a falta de uma conceituao mais ampla, mas tambm impede terminante-m e n . t e o desenvolvimento de uma periodizao scio-histrica adequada" ("To-ward a Wider Vision: Trends in Social History", em The Past Before Us, org. Kam-men, p. 224). Vale observar que a histria cultural apareceu em The Past Before CJ logo em _se^uida histria intelectual (Darnton, "Intellectual and Cultural His-tory ), e nao a histria social. Mas no h dvida de que, entre os historiadores intelectuais, Darnton o que mais se volta para a historia social.

  • 14 A NOVA HISTORIA CULTURAL

    solapamento de todos os pressupostos acerca da relao en-tre a cultura e o universo social?

    Os ensaios deste livro dedicam-se ao exame de tais ques-tes. A Parte I examina, de maneira crtica e apreciativa, os modelos que j foram propostos para a histria da cul-tura. A Parte II apresenta exemplos concretos dos novos tipos de trabalho que esto sendo atualmente realizados. O leitor pouco encontrar em termos de teorizaes sociol-gicas nestas pginas, uma vez que a ascenso da nova hist-ria cultural foi marcada por um declnio dos intensos deba-tes acerca do papel da teoria sociolgica no mbito da his-tria (pelo menos entre os historiadores da cultura nos Es-tados Unidos). Por esse motivo, as declaraes de E. H. Carr sobre esse assunto na dcada de 1960 parecem muito data-das. Em lugar da sociologia, as disciplinas influentes hoje em dia so a antropologia e a teoria da literatura, campos nos quais a explicao social no tratada como ponto pa-cfico; no obstante, a histria cultural deve defrontar-se com novas tenses no s dentro dos modelos que oferece, mas tambm entre eles. Esperamos que os ensaios deste livro possam transmitir alguma compreenso das perspectivas e dos problemas potenciais da utilizao de insights oriundos dessas disciplinas limtrofes.

    No momento, o modelo antropolgico reina supremo nas abordagens culturais. Rituais, inverses carnavalescas e ritos de passagem esto sendo encontrados em todos os pases e em quase todos os sculos. O estudo quantitativo das men-talits enquanto "terceiro nvel" da experincia social nun-ca teve tantos seguidores fora da Frana. A influncia so-bre as abordagens anglo-sax e, especialmente, norte-americana da histria da cultura originou-se tanto (ou ain-da mais) dos antroplogos sociais ingleses ou de formao inglesa quanto de uma histria das mentalits segundo o es-tilo dos Annales. Em seus ensaios pioneiros em Society and

    APRESENTAO 15

    Culture in Early Modem France, Natalie Z. Davis mostrou a importncia dos conceitos emprestados de Max Gluck-man, Mary Douglas e Victor Turner, bem como do antro-plogo francs Arnold Van Gennep. Seu trabalho, junta-mente com o de E. P. Thompson em "The Moral Economy of the English Crowd in the Eighteenth Century", estimu-lou um grande interesse pela fora motriz da "comunida-de"28. Em "The Reasons of Misrule", Davis explica que es-perava "mostrar que, em vez de ser apenas uma 'vlvula de segurana' desviando a ateno da realidade social, a vi-da festiva pode... perpetuar certos valores da comunidade". Do mesmo modo, ao interpretar os ritos de violncia du-rante as guerras religiosas francesas, ela conclui que "pode-mos reduzi-los a um repertrio de aes... que tm por ob-jetivo purificar a comunidade religiosa"29. Uma interpre-tao social direta parecia muito menos frutfera do que os conceitos introduzidos a partir da literatura antropolgica. Em seu ensaio no presente volume, "Massas, Comunidade e Ritual na Obra de E. P. Thompson e Natalie Davis" (ca-pitulo 2), Suzanne Desan explora as virtudes e os aspectos problemticos dessa noo de comunidade. Conclui que os historiadores da cultura devem desenvolver uma noo mais diferenciada de comunidade e ritual, uma abordagem mais sensvel s maneiras pelas quais os diferentes grupos, inclu-sive o das mulheres, usam o ritual e a comunidade para fo-mentar o isolamento de suas prprias posies. A violn-cia, do ponto de vista da autora, pode transformar e redefi-nir a comunidade tanto quanto a define e consolida.

    Nos ltimos anos, o mais notvel antroplogo a traba-lhar com a histria cultural Clifford Geertz. Sua colet-

    28. O artigo embrionrio de Thompson est em Past and Present 50 (1971): 36.

    i M a t a l i e Zemon Davis, Society and Culture in Early Modem France (Stan-I, Calif., 1975), pp. 97, 178.

  • 16 A NOVA HISTORIA CULTURAL

    nea de ensaios, The Interpretation of Cultures, tem sido cita-da por historiadores que atuam numa ampla variedade de contextos cronolgicos e geogrficos30. Em The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History, por exemplo, Robert Darnton exps claramente as vantagens das estratgias interpretativas geertzianas. A histria cultu-ral, declarou ele, "a histria de natureza etnogrfica. . . .A modalidade antropolgica de histria... parte da pre-missa de que a expresso individual ocorre no mbito de um idioma geral". Sendo assim, trata-se de uma cincia in-terpretativa: seu objetivo ler "em busca do significado o significado inscrito pelos contemporneos"31. A decifra-o do significado, ento, mais do que a inferncia de leis causais de explicao, assumida como a tarefa fundamen-tal da histria cultural, da mesma maneira que, para Geertz, era a tarefa fundamental da antropologia cultural.

    Alguns dos problemas associados abordagem geertzia-na foram discutidos por Roger Chartier numa longa rese-nha em Journal of Modem History. Ele questiona o pressu-posto de que "as formas simblicas so organizadas num 'sistema'... [pois] isso implicaria coerncia e interdependncia entre elas, o que por sua vez pressupe a existncia de um universo simblico comum e unificado"32. De que modo, especificamente, pode um "idioma geral" ser capaz de ex-plicar todas as formas de expresso cultural? Em outras pa-lavras, Chartier questiona a validade de uma busca do sig-

    30. Clifford Geertz, The Interpretation of Cultures (Nova Iorque, 1973). 31. Robert Darnton, The Great Cat Massacre and Other Episodes in French

    Cultural History (Nova Iorque, 1984), pp. 3, 6, 5. 32. Roger Chartier, "Text, Symbols, and Frenchness", Journal of Modern

    History 57 (1985): 682-95; citao, p. 690. Darnton respondeu exaustivamente em "The Symbolic Element in History", Journal of Modern History 58 (1986): 218-34. Ver tambm o debate entre Pierre Bourdieu, Robert Darnton e Roger Chartier em "Dialogue propos de l'histoire culturelle", Actes de la recherche en sciences sociales 59 (1985): 86-93.

    APRESENTAO 17

    nificado segundo o modo interpretativo geertziano, pois o mesmo tende a anular as diferenas na apropriao ou no uso das formas culturais. O anseio por ver a ordem e o sig-nificado obscurece a existncia de luta e conflito.

    No ensaio "Saber local, Histria local: Geertz e alm" (captulo 3), Aletta Biersack faz eco a algumas dessas crti-cas. Sugere que uma dose de Marshall Sahlins poderia ser salutar para futuras obras sobre a histria da cultura, pois seu "reexame" da estrutura e do evento, ou da estrutura e da histria, em termos dialticos, rejuvenesce as duas me-tades. Deve-se notar, porm, .que a crescente compreenso literria do significado (a interpretao do significado cul-tural como um texto a ser lido), por parte de Geertz, refor-mulou fundamentalmente as tendncias atuais da auto-reflexo antropolgica. Na seo final de seu ensaio, Bier-sack investiga a influncia de Geertz sobre esse movimen-to textualizador da antropologia e mostra como as preocu-paes dos antroplogos cruzam-se cada vez mais com as dos historiadores da cultura.

    O prprio Chartier defende "uma definio de hist-ria que seja basicamente sensvel s desigualdades na apro-priao de materiais ou prticas comuns"33. Ao propor essa reorientao que se distancia da comunidade e se volta pa-ra a diferena, Chartier revela a influncia do socilogo fran-cs Pierre Bourdieu (tambm discutido no abrangente en-saio de Biersack). Bourdieu reformulou o modelo marxista de explicao da vida social ao dar muito mais ateno cultura; embora insistisse que "o modo de expresso carac-terstico de uma produo cultural sempre depende das leis do mercado no qual oferecido", direcionou seu prprio trabalho para o desvelamento da "lgica especfica" dos

    bens culturais". Na essncia dessa lgica encontram-se os

    33. Chartier, "Texts, Symbols, and Frenchness", p. 688.

  • 18 A NOVA HISTRIA CULTURAL

    meios de apropriao dos objetos culturais. Agora que a obra mais influente de Bourdieu, Distinction, foi traduzida para o ingls, sua influncia sobre os historiadores da cultura deve provavelmente aumentar34.

    Chartier enfatiza que os historiadores da cultura no devem substituir uma teoria redutiva da cultura enquanto reflexo da realidade social por um pressuposto igualmente redutivo de que os rituais e outras formas de ao simbli-ca simplesmente expressam um significado central, coeren-te e comunal. Tampouco devem esquecer-se de que os tex-tos com os quais trabalham afetam o leitor de formas va-riadas e individuais. Os documentos que descrevem aes simblicas do passado no so textos inocentes e transpa-rentes; foram escritos por autores com diferentes intenes e estratgias, e os historiadores da cultura devem criar suas prprias estratgias para l-los. Os historiadores sempre fo-ram crticos com relao a seus documentos e nisso resi-dem os fundamentos do mtodo histrico. Chartier vai ainda mais alm, defendendo uma crtica de documentos baseada em um novo tipo de histria da leitura. No ensaio "Tex-tos, Impresso, Leituras" (captulo 6), oferece-nos um exem-plo que enfatiza a diferena. Tomando como ponto de par-tida o prlogo quinhentista da Celestina, Chartier mostra que, nos primrdios da Europa moderna, o significado dos textos dependia de uma grande diversidade de fatores, des-de a idade dos leitores at as inovaes tipogrficas, co-

    34. Bourdieu talvez seja mais conhecido por seu conceito de habitus, definido por ele em termos difceis, mas tambm influentes: " O habitus no apenas uma estrutura estruturante que organiza as prticas e a percepo das prticas, mas tam-bm uma estrutura estruturada: o princpio da diviso em classes lgicas que orga-niza a percepo do mundo social , em si prprio, o produto da internalizao da diviso em classes sociais" (Distinction: A Social Critique of the Judgement of Tas-te, traduzido por Richard Nice [Cambridge, Mass., 1984], pp. xiii, 1, 170). Esta ci-tao capta muito bem a relao de Bourdieu com o marxismo: o habitus tanto determinado pelo mundo social quanto determinante da percepo do mesmo.

    APRESENTAO 19

    mo a multiplicao de indicaes cnicas. Seu enfoque da relao triangular entre o texto do modo como concebi-do pelo autor, impresso pelo editor e lido (ou ouvido) pelo leitor lana dvidas sobre as clssicas concepes da hist-ria da cultura, em especial sobre a dicotomia entre cultura popular e cultura erudita ou de elites.

    Ao contrrio de Roger Chartier, a maioria dos histo-riadores da cultura tem demonstrado alguma relutncia em utilizar a teoria da literatura de qualquer forma direta. No ensaio "Literatura, Crtica e Imaginao Histrica: O De-safio Literrio de Hayden White e Dominick LaCapra" (ca-ptulo 4), Lloyd Kramer estuda a obra dos dois historiado-res mais estreitamente associados teoria literria. Ao mes-mo tempo em que mostra com clareza de que modo as abor-dagens literrias permitiram a White e LaCapra expandi-rem as fronteiras da histria cultural, o ensaio de Kramer permanece sensvel s razes da contnua marginalizao des-sas obras. No foi por acaso que, nos Estados Unidos, as influncias literrias emergiram primeiramente na histria intelectual, com seu enfoque em documentos que, em sen-tido literrio, so textos, embora os historiadores culturais que trabalham com outros documentos alm dos grandes livros no considerem a teoria literria especialmente rele-vante. Um dos objetivos do presente livro mostrar de que modo uma nova gerao de historiadores da cultura usa tc-nicas e abordagens literrias para desenvolver novos mate-riais e mtodos de anlise.

    O ensaio de Kramer tambm demonstra a grande va-riedade de influncias literrias em vigor. Os escritos de Whi-te e LaCapra revelam, por si s, significativas divergncias de nfase White alinha-se com Foucault e Frye, LaCapra com Bakhtin e Derrida. Afinal, algumas teorias enfatizam a recepo ou leitura dos textos, outras sua produo ou escrita, outras a unidade e coerncia do significado, outras

  • 20 A NOVA HISTORIA CULTURAL

    ainda enfatizam o papel da diferena e as maneiras pelas quais os textos funcionam no sentido de subverter suas aparen-tes finalidades35. Assim como Geertz e Sahlins representam dois plos na escrita antropolgica Geertz enfatizando a unidade e Sahlins a diferena , da mesma forma a crti-ca literaria tem abordagens igualmente dicotomizadas: nas palavras de Fredric Jameson, "a 'interpretao' antiquada, que ainda pergunta ao texto o que ele significa, e os mais recentes tipos de anlise, que... perguntam como ele fun-ciona" (ou seja, em particular a desconstruo, uma abor-dagem crtica intimamente associada a Jacques Derrida)36. A primeira enfatiza a unidade; a segunda, a diferena.

    Na "interpretao", a unidade torna-se possvel graas ao que Jameson chama de "uma operao alegrica na qual um texto sistematicamente reescrito em termos de um certo cdi-go mestre fundamental ou de alguma 'instncia basicamente de-terminante' ". Acompanhando essa linha de raciocnio, pode-ramos dizer que, em Thompson e Davis, os rituais da violncia so lidos ou reescritos como alegorias para a comunidade. exatamente essa alegorizao que Jameson considera censur-vel na crtica literria. Como ele enfatiza: "O descrdito em que caiu a interpretao est, portanto, em consonncia com a m reputao que incidiu sobre a prpria alegoria"37.

    Ao mesmo tempo, porem, Jameson conclui que a ten-so entre a anlise daquilo que um texto significa e de co-mo ele funciona uma tenso inerente prpria lin-guagem38. A unidade no possvel sem uma percepo

    35. Um breve exame das teorias literrias atualmente em voga pode ser en-contrado em Terry Eagleton, Literary Theory: An Introduction (Minneapolis, 1983).

    36. Fredric Jameson, The Political Unconscious: Narrative as a Soally Symbo-lic Act (Ithaca, N.I., 1981), p. 108.

    37. Ibid., p. 58. 38. Ibid., pp. 108-9. No disponho de espao aqui para comentar mais ampla-

    mente a variante pessoal de marasmo de Jameson, critica literria ps-estruturalista. Ate o momento, sua influncia sobre a escrita histrica tem sido pequena.

    APRESENTAO 21

    da diferena; a diferena certamente no pode ser apreendi-da sem uma percepo contrria da unidade. Assim, os his-toriadores da cultura realmente no tm de escolher (ou, na verdade, no podem escolher) entre as duas entre uni-dade e diferena, entre significado e funcionamento, entre interpretao e desconstruo. Assim como os historiado-res no precisam escolher entre sociologia e antropologia, ou entre antropologia e teoria da literatura para conduzi-rem suas pesquisas, tambm no precisam fazer uma esco-lha definitiva entre as estratgias interpretativas baseadas no desvelamento do significado, por um lado, e as estratgias desconstrutivas baseadas no desvelamento dos modos de pro-duo do texto, por outro. Os historiadores no precisam aliar-se obstinadamente a Clifford Geertz ou Pierre Bour-dieu, nem a Northrop Frye ou Jacques Derrida.

    Embora existam muitas diferenas no s dentro dos modelos antropolgicos e literrios, mas tambm entre eles, uma tendncia fundamental de ambos parece atualmente fas-cinar os historiadores da cultura: o uso da linguagem como metfora. Aes simblicas como sublevaes ou massacres de gatos so configuradas como textos a serem lidos ou lin-guagens a serem decodificadas. Em sua crtica de Darnton, Chartier chama a ateno para os problemas gerados pelo "uso metafrico do vocabulrio da lingstica": esse uso eli-mina a diferena entre aes simblicas e textos escritos, define as formas simblicas de um modo to amplo que nada fica excludo e tende a considerar os smbolos como fixos em seu significado39. Contudo, embora essas advertncias certamente sejam levadas em conta, o uso da linguagem co-mo metfora ou modelo j deu provas de ser inegavelmen-te significativo e, diria eu, crtico para a formulao de

    39. Chartier, "Text, Symbols, and Frenchness", p. 690.

  • 22 A NVA HISTRIA CULTURAL

    uma abordagem cultural da histria. Em resumo, a analo-gia lingstica estabelece a representao como um proble-ma que os historiadores no podem mais evitar.

    Tanto na histria da arte quanto na crtica literria, a representao j h muito tempo reconhecida como o pro-blema central da disciplina: o que faz um quadro ou um romance, e como que o faz? Qual a relao entre o qua-dro ou o romance e o mundo que ele pretende represen-tar? A nova histria cultural faz o mesmo tipo de pergun-tas; antes, porm, ela deve estabelecer os objetos de estudo histrico como semelhantes aos da literatura e da arte. Um exemplo dessa tentativa pode ser encontrado na Parte II, no ensaio "Corpos, Detalhes e a Narrativa Humanitria" (captulo 7), de Thomas Laqueur, no qual se mostra que os relatrios de autopsias constituem uma especie de cno-ne literrio.

    Tentei fazer algo semelhante no primeiro captulo de meu recente livro sobre a Revoluo Francesa, quando pos-tulei a abordagem dos "diferentes pronunciamentos dos po-lticos revolucionrios... como se constitussem um nico texto"40. O nico fundamento de tal postulado era sua fe-cundidade potencial para a anlise e a explicao, e nessas bases que ele deve permanecer de p ou ruir. Meu objetivo no era reduzir o discurso revolucionrio a um sistema es-tvel de significado (o reflexo da comunidade, por exem-plo), mas, antes, mostrar como a linguagem poltica podia ser usada retoricamente para criar um senso de comunida-de e, ao mesmo tempo, estabelecer novos campos de luta social, poltica e cultural ou seja, simultaneamente tor-nar possvel a unidade e a diferena. O ponto principal da tentativa era examinar de que maneira a prtica lings-

    40. Hunt, Politics, Culture, and Class, p. 25.

    APRESENTAO 23

    tica podia ser um instrumento ativo de poder (ou at mes-mo constitu-lo), em vez de simplesmente refletir a realida-de social. Quando os guardas nacionais perguntavam: "Voc est com a nao?", no estavam simplesmente tentando identificar seus amigos em tempos tempestuosos; estavam, na verdade, tentando criar um senso de comunidade nacio-nal e, ao mesmo tempo, estabelecendo novas maneiras de oposio a esse senso de comunidade. As palavras no refletiam apenas a realidade social e poltica; eram instru-mentos de transformao da realidade.

    Mary Ryan aborda um aspecto semelhante em seu ensaio "A Parada Norte-americana: Representaes da Ordem Social do Sculo XIX" (captulo 5). Esse ensaio evidencia nitidamente o tema da unidade-e-diferena. As paradas criavam um senso de comunidade (democracia pluralista) nas cidades norte-americanas exatamente por expressarem importantes linhas de diviso social e de gnero*. Ryan mostra quanto pode ser crtica uma com-preenso histrica do ritual, ao demonstrar como a fun-o da parada se modificou com o passar do tempo: en-quanto nas dcadas de 1820, 1830 e 1840 o desfile das diferenas sob uma bandeira unificadora de orgulho c-vico servia para fomentar a unidade cvica, depois da me-tade do sculo a parada foi transformada num festival tnico que enfatizava mais exclusivamente as diferenciao. Ryan tambm salienta o papel do gnero nessas formaes de identidade cvica, e, como Desan em seu ensaio sobre Davis e Thompson, lembra-nos de que o gnero foi uma das mais crticas configuraes de diferenciao na cultura e na socie-

    * Em ingls, o substantivo gender refere-se, informalmente, diviso em mas-culino ou feminino; sexo. E com esse sentido que a palavra "gnero" foi utiliza-da nesta traduo. (N.T.)

  • 24 A NOVA HISTORIA CULTURAL

    dade. Sem alguma discusso do gnero, nenhum relato de unidade e diferena culturais pode estar completo.

    A importncia do gnero, porm, extrapola sua posio inegavelmente central na vida social e cultural; os estudos da histria das mulheres, nas dcadas de 1960 e 1970, e a n-fase mais recente sobre a diferenciao dos gneros tiveram um importante papel no desenvolvimento dos mtodos da histria da cultura em geral. Em particular nos Estados Uni-dos (e talvez exclusivamente nesse pas), a histria das mu-lheres e os estudos de gnero passaram a ocupar o primeiro plano da nova histria cultural. Natalie Davis, por exemplo, apia-se nas distines entre homens e mulheres para escla-recer os mecanismos dos primrdios da cultura moderna. A obra de Carroll Smith-Rosenberg tambm ilustrativa das maneiras pelas quais a histria das mulheres ou do gnero pode antecipar a histria da cultura como um estilo de in-vestigao e escrita. Nos ensaios reunidos no livro Disorderly Conduct, por exemplo, Smith-Rosenberg aplica tanto o esti-lo de anlise antropolgico quanto o literrio, abrangendo desde a obra de Mary Douglas at a de Roland Barthes. As-sim ela descreve seu projeto: "Ao remontar s diferenas entre os construtos mticos de homens e mulheres do sculo XIX, procurei recriar o modo como o gnero canalizou o impac-to da transformao social e a experincia e o exerccio do poder. A dialtica entre linguagem como espelho social e lin-guagem como agente social constituiu o ncleo da minha anlise"41. Aqui, o gnero, enquanto sistema de representa-o cultural a um s tempo social, literrio e lingstico, alvo de uma considerao especial.

    As implicaes metodolgicas do estudo do gnero fo-ram mais solidamente explicadas por Joan Wallach Scott

    41. Carroll Smith-Rosenberg, Disorderly Conduct: Visions of Gender in Vic-torian America (Nova Iorque, 1985), p. 45.

    APRESENTAO 25

    em sua coletnea de ensaios Gender and the Politics ofHis-tory (que inclui crticas de E. P. Thompson e Gareth Sted-man Jones, entre outros)42. A influncia de Scott deve-se particularmente ao fato de ela associar a histria do gnero anlise do discurso. Na obra de Joan Scott, Carroll Smith-Rosenberg e Natalie Zemon Davis, pode-se observar clara-mente a crescente influncia das tcnicas literrias de leitu-ra e das teorias literrias. O mais recente livro de Natalie Davis, Fiction in the Archives, remete o aspecto "ficcional" dos documentos para o centro da anlise. Em vez de ler car-tas de indulto como fontes que refletem normas sociais con-temporneas, seu enfoque volta-se para "o modo como as pessoas do sculo XVI contavam histrias..., o que acredi-tavam ser uma boa histria, como explicavam o motivo e como, atravs da narrativa, conferiam sentido ao inespera-do e davam coerncia experincia imediata"43.

    Os ensaios de Roger Chartier e Thomas Laqueur, na Parte II deste livro, so exemplos notveis da tendncia pa-ra o literrio. Os leitores encontraro no ensaio de Char-tier, "Textos, Impresso, Leituras", uma boa introduo a seu importante ltimo livro, The Cultural Uses ofPrint in Early Modem France. Ningum fez mais que Chartier para colocar a histria do livro no fluxo principal da histria da cultura. Em The Cultural Uses ofPrint, Chartier reitera sua convico de que "a cultura no se situa acima e abaixo das relaes econmicas e sociais, nem pode ser alinhada com elas"44. Todas as prticas, sejam econmicas ou culturais, dependem das representaes utilizadas pelos indivduos para darem sentido a seu mundo.

    42. Joan Wallach Scott, Gender and the Politics of History (Nova Iorque, 1988). 43. Natalie Zemon Davis, Fiction in the Archives: Pardon tales and Their Tellers

    in Sixteenth-Century France (Stanford, Calif., 1987), p. 4. 44. Roger Chartier, The Cultural Uses ofPrint, traduzido por Lydia G. Co-

    chrane (Princeton, N.J., 1987), p. 11.

  • 26 A NOVA HISTORIA CULTURAL

    O ensaio de Laqueur, "Corpos, Detalhes e a Narrativa Humanitria", demonstra o potencial das novas tcnicas li-terrias na histria cultural para o enriquecimento de te-mas mais tradicionais da histria social. O autor argumen-ta que o humanitarismo relacionou-se, em parte, com o de-senvolvimento de uma constelao de formas narrativas o romance realista, o inqurito e o histrico clnico , que criavam um sentimento de veracidade e afinidade atravs do detalhe narrativo. Ao focalizar as tcnicas narrativas dos relatrios de autpsia, Laqueur no pretende evitar as ques-tes tradicionais de classe e do poder, nem retirar o huma-nitarismo dos domnios da histria social; pelo contrrio, pretende expandir a histria social para nela incluir a so-ciologia da forma narrativa.

    O ltimo ensaio, "Vendo a Cultura numa Sala para um Prncipe Renascentista" (captulo 8), de Randolph Starn, faz-nos retroceder no tempo e avanar rumo a novas questes sobre as tcnicas da histria cultural. Embora o ensaio de Starn revele a influncia da teoria literria em sua anlise dos afrescos quatrocentistas de Mantegna, tambm nos le-va para os domnios do "ver" em oposio ao "ler". Aqui, a analogia lingstica deixa de ter primazia. Em vez disso, Starn apresenta novas formas de ver, que incluem o que ele chama de relance, olhar calculado e olhar perscrutador. Desse modo, Starn no s capaz de mostrar a relevncia da do-cumentao artstico-histrica para a histria cultural, mas tambm, e de modo mais surpreendente, de dar nova for-ma aos termos do prprio debate artstico-histrico. Ele his-toriciza o processo de ver ao mostrar que at mesmo as for-mas possuem contedo histrico. Essa abordagem extre-mamente excitante, pois leva a histria cultural para alm do estgio da assimilao de insights de outras disciplinas e para uma posio de reformular, por sua vez, as discipli-nas limtrofes.

    APRESENTAO 27

    Todos os ensaios da Parte II ocupam-se essencialmente da mecnica da representao. Esse interesse encerra, quase necessariamente, uma reflexo simultnea sobre os mto-dos da histria num momento em que novas tcnicas de anlise comeam a ser usadas. Mtodos talvez seja um ter-mo estreito demais num contexto como este, pois medi-da que os historiadores aprendem a analisar as representa-es de seus universos a partir de seus temas, inevitavelmente comeam a refletir sobre a natureza de seus prprios esfor-os para representar a histria; afinal, a prtica da histria um processo de criao de texto e de "ver", ou seja, de dar forma aos temas. Os historiadores da cultura, particu-larmente, so forados a se tornar mais conscientes das con-seqncias de suas opes formais e literrias, das quais ge-ralmente no so conscientes. A narrativa mestra, ou cdi-gos de unidade ou diferena; a escolha de alegorias, analo-gias ou tropos; as estruturas de narrativa tudo isso tem conseqncias de peso para a escrita da histria.

    Na dcada de 1960 deu-se grande nfase identificao das tendncias polticas de um autor, tentativa de situar-se como historiador num mundo poltico e social mais am-plo. As questes so agora mais sutis, mas no menos im-portantes. Os historiadores esto se conscientizando cada vez mais de que suas escolhas supostamente objetivas de tc-nicas narrativas e formas de anlise tambm tm implica-es sociais e polticas. Em que consiste este captulo intro-dutrio, por exemplo? Ensaios sobre a situao da discipli-na freqentemente tm uma forma cannica prpria: pri-meiro uma narrativa sobre a ascenso de novos tipos de his-toria, depois um longo momento dedicado explorao dos problemas colocados por novos tipos de histria e, final-mente, ou uma queixa sobre os males das novas prticas, ou uma celebrao da potencial superao de todos os obs-tculos. Meu enredo muito diferente do de Carr: onde

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    ele via o avano pico da histria social e econmica, com o herico historiador avanando de mos dadas com as foras do progresso, descrevo o eterno romance, a busca sem fim, o irnico recuar por um territrio j supostamente percor-rido. Por implicao, a histria foi aqui tratada como um ramo da esttica, no como a criada da teoria social45.

    Nem sempre a reflexo sobre tais questes agradvel para os historiadores. Como Nancy Partner afirmou recen-temente sobre a escrita da histria, "a epistemologia de mo-delo de linguagem" (designao por ela adotada) foi "con-trabandeada dos departamentos de lingstica e filosofia pelos crticos literrios e metacrticos ou crticos descompromis-sados, e lanada como granadas contra os desprevenidos de-partamentos de histria"46. Os produtos dessa exploso no iro entrosar-se harmoniosamente, como se pr-planejados, dada a inexistncia de um mtodo consensualmente aceito. Como afirmou Clifford Geertz em seu ensaio "Blurred Gen-res" ("Estilos confusos"), cujo ttulo indicativo, creio, da ambigidade que ele sentiu acerca da situao: "A analogia do texto agora adotada pelos cientistas sociais constitui, em alguns aspectos, a mais ampla das recentes refiguraes da teoria social, a mais ousada e a menos adequadamente de-senvolvida"47.

    No momento, como mostra este livro, a nfase na his-tria cultural incide sobre o exame minucioso de textos,

    45. As implicaes dessa estetizao da histria so muito importantes, mas complexas demais para serem desenvolvidas num ensaio desta dimenso. Para uma discusso mais ampla, mas de forma alguma definitiva, ver, de minha autoria, "His-tory Beyond Social Theory", a ser publicado numa coletnea organizada por David Carroll para a Columbia University Press.

    46. Nancy F. Partner, "Making Up Lost Time: Writing on the Writing of History", Speculum 61 (1986): 90-117; citao, p. 95.

    47. Clifford Geertz, "Blurred Genres: The Refiguration of Social Thought", em Local Knowledge: Further Essays in Interpretive Anthropology (Nova Iorque 1983), pp. 19-35; citao, p. 30.

    APRESENTAO 29

    imagens e aes e sobre a abertura de esprito diante da-quilo que ser revelado por esses exames, muito mais do que sobre a elaborao de novas narrativas mestras ou de teorias sociais que substituam o reducionismo materialista do marxismo e da escola dos Annales. (Estaremos caminhan-do na direo de um final "cmico", literariamente falan-do? Um final que promete a reconciliao de todas as con-tradies e tenses, maneira pluralista mais de acordo com os historiadores norte-americanos?) Os historiadores que tra-balham com a cultura no devem deixar-se desanimar pela diversidade terica, pois acabamos de entrar numa nova e extraordinria fase em que as outras cincias humanas (incluindo-se a, em especial, os estudos literrios, mas tam-bm a antropologia e a sociologia) esto nos redescobrin-do. O prprio uso do termo novo historicismo nos estudos literrios, por exemplo, revelador desse desenvolvimen-to. A nfase sobre a representao na literatura, na histria da arte, na antropologia e na sociologia tem levado um n-mero cada vez maior de nossos equivalentes a se preocupar com as redes histricas nas quais seus objetos de estudo so apanhados. Tudo leva a crer que, em breve, outro E. H. Carr vai anunciar que quanto mais culturais se tornarem os estudos histricos, e quanto mais histricos se tornarem os estudos culturais, tanto melhor para ambos.