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GISLEI MARTINS DE SOUZA INCURSÕES DE FRONTEIRA: AS CONTRADIÇÕES DA MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA NO SERTÃO MATO- GROSSENSE SEGUNDO O VISCONDE DE TAUNAY Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Instituto de Linguagens - IL Cuiabá 2011

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GISLEI MARTINS DE SOUZA

INCURSÕES DE FRONTEIRA: AS CONTRADIÇÕES DA

MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA NO SERTÃO MATO-

GROSSENSE SEGUNDO O VISCONDE DE TAUNAY

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Instituto de Linguagens - IL

Cuiabá 2011

GISLEI MARTINS DE SOUZA

INCURSÕES DE FRONTEIRA: AS CONTRADIÇÕES DA

MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA NO SERTÃO MATO-

GROSSENSE SEGUNDO O VISCONDE DE TAUNAY

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.

Área de concentração: Estudos Literários

Orientadora: Profª Drª Franceli Aparecida da Silva Mello

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Instituto de Linguagens - IL

Cuiabá 2011

Ficha catalográfica elaborada por Simone Pereira Rocha CRB1 – 1906.

Souza, Gislei Martins de. S729i Incursões de fronteira : as contradições da modernização brasileira no sertão mato-grossense segundo o Visconde de Taunay / Gislei Martins de Souza. – Cuiabá : [s.n.], 2011. 131 f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) – Uni- versidade Federal de Mato Grosso, 2011. Orientadora: Profª. Drª. Franceli Aparecida da Silva Mello. 1. Visconde de Taunay. 2. Inocência. 3. A cidade de ouro e das ruínas. I. Autor. II. Título. III. Cuiabá – Universidade Fe- deral de Mato Grosso. CDU 82.09

DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Israel e Cristina, amor e carinho diamante.

AGRADECIMENTOS

A Deus, luz e sombra.

À Professora Franceli Aparecida da Silva Mello, pela orientação e

companheirismo inquestionáveis.

Às Professoras Rhina Landos Martinez André e Sheila Dias Maciel, pela

interlocução perspicaz.

À Professora Olga Maria Castrillon Mendes (UNEMAT), pela solidariedade

intelectual demonstrada na leitura dos meus primeiros manuscritos sobre a literatura

do Visconde de Taunay.

Aos meus irmãos Geverson, Giseli e Geicielly.

À minha sobrinha Thaline, florzinha de doçura.

À minha prima Poliana e sua filha maravilhosa Kayene, por fazerem parte.

Às amigas de sempre: Cleide (UNEMAT), Lucy (UFMT) e Regiane

(UNEMAT).

À estagiária do IHGMT, Sukita, pela disposição em me ajudar a fotografar os

escritos políticos de Taunay publicados na Revista do IHGB.

Aos funcionários dos guichês das rodoviárias de Pontes e Lacerda e Cuiabá,

pela prosa nos momentos de espera.

A CAPES/FAPEMAT, pela concessão da bolsa de estudo que muito

contribuiu para o desenvolvimento da minha pesquisa.

Quase todo o mundo tinha medo do sertão: sem saberem nem o que o sertão é. Sertanejos sabidos sábios. Mas o povo dali era duro, por demais (João Guimarães Rosa, Manuelzão).

O Brasil, país tão marítimo, foi ter na imagem dos sertões algo de sua identidade mais antiga e perdida, interiorizada entre selvas, cerrados e caatingas, antes da colonização européia e do início da história escrita (Francisco Foot Hardman, “Tróia de Taipa: canudos e os irracionais”).

RESUMO

MARTINS-SOUZA, Gislei. Incursões de fronteira: as contradições da modernização

brasileira no sertão mato-grossense segundo o Visconde de Taunay.

Este trabalho investiga como os textos Inocência (1872) e A Cidade do Ouro e

das Ruínas (1891), do Visconde de Taunay, encenam as vicissitudes oriundas do

processo de modernização realizado no Brasil do século XIX. Para tanto, dialoga

com as contribuições teóricas de Hardman (1988), Faoro (1992), Schwarz (1992),

Sevcenko (2003), Maretti (2006), Castrillon-Mendes (2007), dentre outros, que

tratam do modo como o discurso sobre a modernidade entrava em choque com a

realidade brasileira do período. Discute-se como a escritura de Taunay produziu

uma imagem do interior brasileiro capaz de deslocar o imaginário construído sobre o

sertão à época. Com isso, foi possível a este escritor repensar o Brasil do século XIX

a partir de um olhar voltado para o interior, de modo a inserir Mato Grosso no

contexto histórico nacional. Propõe-se que a escrita sobre o Mato Grosso revelou a

necessidade de se fazer a releitura dos fragmentos do passado, colocando em

xeque os enfrentamentos sociais surgidos no projeto de individuação nacional, que

corresponde ao novo tempo da modernidade. Coloca-se em pauta o modo como o

recurso memorialístico configurou uma forma de resistência às redes de poder

instituídas no presente. Sendo assim, a elaboração de uma história para Mato

Grosso revelou como o silêncio da memória buscou apagar as tensões inscritas na

dinâmica de desenvolvimento do Brasil.

Palavras-chave: Visconde de Taunay, Inocência, A cidade do ouro e das ruínas,

sertão mato-grossense, memória.

ABSTRACT

MARTINS-SOUZA, Gislei. Border Incursions: the contradictions of Brazilian

modernization in the backwoods of Mato Grosso according the Visconde de Taunay.

This work investigates how the texts Inocência (1872) and A Cidade do Ouro e

das Ruínas (1891), by Visconde de Taunay, discuss contradictions from

modernization process occurred in Brazil of the 19th century. To this end, dialogues

with the theoretical contributions of Hardman (1988), Faoro (1992), Schwarz (1992),

Sevcenko (2003), Maretti (2006), Castrillon-Mendes (2007), among others, deals

with how the discourse on modernity entered into confrontation with Brazilian reality.

Discusses how the Taunay literature produced an image of the Brazilian hinterland

able to transform the imaginary prepared on the backwoods at the time. With this, it

was possible to this writer rethink the Brazil of the 19th century from a focused look

to the hinterland, so insert Mato Grosso in national historical context. It is proposed

that writing about Mato Grosso revealed the need to make the rereading of fragments

of the past, putting in question the social confrontations occurring in project national

individuation, which corresponds to the new time of modernity. Discusses how the

device of memory configured a form of resistance to power imposed networks in the

present. Thus, the elaboration of a history to Mato Grosso revealed how the silence

of memory sought to delete the tensions registered on dynamic development of

Brazil.

Keywords: Visconde de Taunay, Inocência, A cidade do ouro e das ruínas,

backwoods of Mato Grosso, memory.

SUMÁRIO

Dedicatória iv

Agradecimentos v

Resumo vi

Abstract vii

Considerações preliminares 01

1 ITINERÁRIOS INICIAIS DE LEITURA 07

1.1 Trajetórias da crítica sobre a produção literária do Visconde de

Taunay

08

2 LIMITES, FRONTEIRAS OU UMA CARTOGRAFIA DO SERTÃO

CHAMADO BRUTO?

36

2.1 Nação, Sertão e Fronteira: as interfaces do projeto

modernizador no século XIX e suas ressonâncias em Mato Grosso

37

2.2 De invenções: a identidade sertaneja nas fronteiras de Mato

Grosso

57

3 DE MEMÓRIA: RUÍNAS E ESPECTROS NAS TENSÕES DA

MODERNIZAÇÃO

73

3.1 Entre papéis avulsos e lembranças dispersas: as imagens de

uma memória em ruínas

74

3.2 Entre Zelosos e Caramurus: figurações à sombra da Rusga

política em Mato Grosso

93

Considerações finais 117

Referências 122

Considerações preliminares

As obras de arte têm uma espécie de “inconsciente” que não está sob o controle dos seus produtores (Terry Eagleton, “Perdas e

ganhos”).

São voltas deste mundo... As pedras encontram... (Visconde de Taunay, Inocência).

Ao fazer a leitura do romance Inocência ([1872] 1994) do Visconde de

Taunay, quando ainda cursávamos a graduação, sentimos certa inquietude em

relação à posição do narrador quanto ao cenário descrito e às personagens. Esta

mesma inquietação surgiu no momento em que tivemos contato com outro romance

deste escritor: Manuscripto de uma mulher ([1872] 1928). Neste romance, chamou-

nos a atenção o olhar de pessimismo com que a narradora, a personagem Corina,

escreve sobre como havia sido disciplinada para a vida burguesa. Não obstante,

Corina revela as contradições da natureza humana ao mesmo tempo em que critica

os descompassos da sociedade que à época ainda mantinha-se arraigada aos

hábitos dos salões cariocas. Pareceu-nos que tal olhar de inconformismo trazia em

seu cerne o fato de que Taunay estava atento às transformações históricas da

sociedade brasileira.

A ocasião de focalizar uma proposta de estudo para o ingresso no Mestrado

fez-nos buscar outras produções deste escritor, mas a dificuldade de encontrá-las à

disposição nas livrarias revelou como uma parcela da indústria da leitura havia

esquecido a importância deste escritor na reflexão sobre o Brasil do século XIX.

Conseguimos encontrar O Encilhamento ([1894] 1971) em páginas que cabiam em

pó. Como nosso itinerário de leitura sobre a produção do referido escritor ainda

estava no princípio, era-nos apreensível que a sensibilidade artística deste escritor

muito se aproximava da argúcia com que Machado de Assis abordou o

desenvolvimento social e político do Brasil. Apenas o enfoque de Taunay sobre o

que foi o encilhamento trouxe-nos a percepção de ser este escritor um dissidente do

seu tempo. O fenômeno do encilhamento era visto como um “abismo insondável [...],

a que iam convergir, em desapoderada carreira, prêsas, avassaladas, inconscientes

no repentino arroubo, as fôrças vivas do Brasil” (1971, p. 19).

- 1 -

A sutileza com que ele trazia à baila essas questões levou-nos a fazer uma

releitura do romance Inocência a partir da qual percebemos que o agenciamento do

cenário mato-grossense revelava efeitos de sentido no tocante às tensões inerentes

ao projeto de individuação nacional surgido no bojo do século XIX. A dialética

subjacente ao imaginário do sertão fez com que pensássemos como a literatura

deste escritor questionava a proposta romântica de investigar nas regiões

interioranas o símbolo da nacionalidade. Mostrava-nos, com isso, a utopia que foi as

tentativas de suplantar o atraso com projetos direcionados à construção de uma

imagem positiva de Brasil.

Entretanto, nosso entendimento sobre essas questões não veio à revelia.

Inicialmente, acreditávamos que o estudo do efeito satírico produzido pelo narrador

em Inocência daria conta da suposição de que este escritor propunha solucionar a

situação da literatura oitocentista quando assumia uma posição anti-idealista no que

tange à imagem de homogeneidade necessária para a naturalização do nacional. A

recorrência à fortuna crítica do escritor muito nos auxiliou na interpretação de que

havia questões ainda não elucidadas na literatura deste escritor.

Com suporte teórico nas atuais pesquisas de Maria Lídia Lichtscheidl Maretti

(2006) e Olga Maria Castrillon Mendes (2007), chegamos à compreensão de que a

produção deste escritor remontava aos limites do Romantismo, no momento em que

se processava uma verdadeira transição de ideias no seio da sociedade brasileira.

Situação ímpar que nos levou ao entendimento de que a literatura deste escritor

estabelecia um confronto com a tradição na medida em que produzia a imagem

transitiva da nova situação político-ideológica configurada no país, colaborando com

a definição da vida literária brasileira.

Contudo, tínhamos pela frente surpresas inusitadas. Foi decisivo nosso

momento de encontro com um livro cuja materialidade nos trazia a sensação de

estarmos no século XIX. O livro de capa avermelhada continha páginas

envelhecidas pelo tempo e algo inesperado: a assinatura de Affonso d’ Escragnolle

Taunay, o filho de Visconde de Taunay. Datado de 1923 sob o título de A Cidade do

Ouro e das Ruínas - Matto-Grosso Antiga Villa-Bella o Rio Guaporé e a sua mais

Illustre Victima, este livro constituiu-se, para nós, um achado precioso. Com base

nas considerações de Maretti (2006) e Castrillon-Mendes (2007) sobre A Cidade do

Ouro e das Ruínas, compreendemos que havia lacunas a serem desveladas na

escrita deste livro. Lacunas estas que poderiam explicar as “inclusões meio

- 2 -

indigestas” indicadas por Antonio Candido (2006, p. 629) quanto à produção de

Taunay.

Encontrávamos um lugar de dizer sobre a literatura deste escritor no que

concerne à projeção do cenário mato-grossense. Um lugar a partir do qual foi

possível pensar que o resgate da memória de Vila Bela, primeira capital do Estado,

suscitava uma crítica à nova ordem imposta pela República no momento em que se

buscava apagar a história monárquica. Com este olhar voltado para o passado e,

antes de tudo, para a região mato-grossense, Taunay procurou refletir sobre as

questões que eram postas no presente. Presente este que, por sua vez, não fazia

mais do que reproduzir as mazelas que tentava negar, com base no apogeu de um

canhestro conjunto de ideias, com o qual se acreditava salvaguardar a imagem do

Brasil aos olhos de fora. Presente que muito podia dizer dos tempos de outrora.

Este escritor procurou dar visibilidade à região mato-grossense após a sua

participação na Guerra do Paraguai, a qual possibilitou a experiência efetiva das

contradições existentes na sociedade brasileira. Esta consideração foi fulcral para o

recorte do nosso corpus de investigação, a saber, Inocência e A Cidade do Ouro e

das Ruínas. O fato de se tratar de textos que verticalizam uma reflexão sobre o Mato

Grosso muito contribuiu para a compreensão do processo de inserção do Estado na

dinâmica do cenário nacional no século XIX. Dinâmico porque trazia em seu âmbito

a presença de temporalidades históricas contraditórias entre si, mas tão familiares

na sociedade brasileira. O atraso e a modernidade coabitavam de forma congruente

no Brasil do século XIX.

Nosso trabalho preocupou-se em investigar esse lado da produção de Taunay

na tentativa de perceber a atitude crítica deste escritor, cujo mecanismo ideológico

possibilitou ultrapassar os limites delineados na estética romântica. A escolha de

Inocência ao lado de A Cidade do Ouro e das Ruínas também se norteou pela

preocupação em demonstrar que tanto o texto consagrado pela crítica literária,

quanto o considerado “menor”, por assim dizer, traziam a emergência de se construir

um novo locus de reflexão sobre a literatura brasileira. Fez-nos perceber como a

região mato-grossense estava situada no vácuo deixado pela retórica academicista

no cenário nacional.

Propor que este vazio discursivo viesse a (re)significar seus efeitos levou-nos

a considerar como o ato de interpretar certa literatura depende de juízos de valor

que são definidos historicamente. Com Terrry Eagleton (1983) pudemos entender

- 3 -

que a definição do literário deve embasar-se menos no que se considera como

qualidade inerente a determinados tipos de escrita, do que nos modos pelos quais

se interpreta um texto. O teórico destaca que

Alguns textos nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é imposta. Sob esse aspecto, a produção do texto é muito mais importante do que o seu nascimento. O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram (1983, p. 9).

Nesse sentido, o critério de literariedade está atrelado a ideologias que

determinam os juízos de valor atribuídos à literatura segundo as condições históricas

de cada época. Dessa forma, Eagleton vê como o termo valor é transitivo conforme

situações específicas, parâmetros peculiares e à luz de determinados objetivos. A

crítica pode interpretar um texto literário seguindo os mais diversos conceitos

teóricos, o que determina o modo como se avalia e/ou se atribui valor à literatura.

Isto fica evidente na proposição de Eagleton segundo a qual “Todas as obras

literárias, em outras palavras, são ‘reescritas’, mesmo que inconscientemente, pelas

sociedades que as lêem” (1983, p. 13).

Despertar os fios que interligam Inocência ao texto A Cidade do Ouro e das

Ruínas mostrou-nos como o escritor havia abordado a linha tênue que une etapas

particulares do desenvolvimento sócio-político do Brasil a partir de um olhar

direcionado para uma região inapreendida pelos intelectuais do século XIX, o Mato

Grosso. O passado desdobrou-se no presente enunciativo e vice-versa no momento

em que se (re)significavam as contingências que perpassaram o Brasil à época.

Nossa argumentação se direcionou, inicialmente, para o estudo da fortuna

crítica produzida sobre a literatura deste autor. Abordamos como Taunay esteve

envolvido no cenário público brasileiro com uma vastíssima produção literária que

sugere o gesto enciclopedista de entender a sociedade do seu tempo. Buscamos

problematizar em que medida a crítica literária clássica vai oscilar quanto ao estudo

da literatura do referido escritor. Uma crítica que tentou verticalizar a literatura deste

escritor com base em parâmetros biográficos, de gênero, delineando falhas e pontos

positivos ao mesmo tempo em que perspectivizou o caráter realista junto à tópica do

sertanismo literário. Nomes como os de Silvio Romero (1960), José Veríssimo

(1969), Lúcia Miguel Pereira (1992), Alfredo Bosi (2001), Antonio Candido (2006),

dentre outros, integram tal repertório. Trazemos ainda perspectivas críticas que

- 4 -

tendem a deslocar do lugar-comum as pesquisas sobre a produção deste escritor, a

saber, Regina Zilberman (1994), Marisa Lajolo (1996), José Maurício de Almeida

(1999), Maria Lídia Lichtscheidl Maretti (2006), Olga Maria Castrillon Mendes (2007),

dentre outros.

Em seguida, ensaiamos a investigação do romance Inocência com vistas a

entender como o escritor tensiona a definição dominante sobre o sertão. Com

suporte nos estudos de Roberto Schwarz (1992), Antonio Arnoni Prado (1993), Flora

Süssekind (1993), Francisco Foot Hardman (1998), dentre outros, percebemos como

o imaginário construído sobre o Brasil, pelos intelectuais do século XIX, entrava em

choque com a realidade social. Descompasso que constituiria a crítica formulada

pelo escritor a partir da projeção do sertão mato-grossense, agenciando como a

modernidade ficou restrita aos programas que a fomentavam. A denúncia terá como

fundamento a figuração do personagem Pereira, que aparece como o propagandista

de uma imagem positiva de Brasil. Tomamos ainda como base teórica o estudo de

Pierre Bourdieu (2009), que contribuiu para a compreensão de que Taunay

mobilizou os discursos produzidos sobre o sertão para realçar o questionamento

acerca dos mecanismos de poder que o instauram como lugar portador da

nacionalidade.

Neste mesmo capítulo, tratamos do modo pelo qual o escritor problematiza as

redes de sentido subjacentes à produção da identidade nacional. Aqui já não

prevalece a ideia de se buscar no sertão o símbolo identificador do homem

brasileiro. A própria construção do personagem Pereira como arcaico vem combater

a ordem estabelecida no projeto romântico. A invenção de um imaginário sobre a

identidade nacional revelou em Inocência a crítica ao recurso dos escritores que na

época tinham como base o modelo europeu. Somente a ambiguidade dos

personagens no romance contesta a ideia de individuação nacional. Nesse sentido,

a proposta de inventar um semióforo da nacionalidade brasileira está presente no

romance pela perspectiva alegórica do seu avesso.

Esta investigação direciona o último capítulo, no qual discutimos os efeitos

produzidos na figuração da memória de Vila Bela em A Cidade do Ouro e das

Ruínas. Estudiosos como Walter Benjamin (1994), Tzvetan Todorov (2000), Sheila

Dias Maciel (2004), Jeanne Marie Gagnebin (2006), dentre outros, são mobilizados

no sentido de pensarmos em que medida a memória de Vila Bela projeta uma crítica

ao processo de modernização idealizado no Brasil. Por trás da intenção biográfica,

- 5 -

escondeu-se o desejo de testemunhar o passado para que ele não irrompesse no

presente. O recurso aos acontecimentos esquecidos pela sociedade configurou o

gesto de resistência à nova ordem acionada pela República.

Por fim, discorremos sobre a configuração dos episódios da Rusga com

recorrência nas “memórias subterrâneas” (POLLAK, 1989) consultadas pelo escritor

na época de sua atuação na Guerra da Tríplice Aliança e as que foram constituídas

em âmbito familiar. O procedimento de recorrer às memórias silenciadas sobre a

Rusga funciona em contraponto ao arquivo oficial apagado para que não se

revelasse a barbárie cometida contra os portugueses em Mato Grosso. Significou

que Taunay procurou preencher o vazio produzido pelo silenciamento da história a

propósito da Rusga. Sendo assim, a equação de subtrair o que representasse a

autenticidade brasileira contradizia a tão sonhada modernidade.

- 6 -

CAPÍTULO I

ITINERÁRIOS INICIAIS DE LEITURA

- 7 -

1.1 Trajetórias da crítica sobre a produção literária do Visconde de

Taunay

Afinal, precisava analisar tudo isso, coisa até de patriotismo, saber que rumo ia levando o Brasil, sondar se lhe fôsse possível

[...] a base de tôda essa incrível prosperidade, buscar conhecer se, em vez do ouro tão apregoado, não havia muito pechisbeque, falaz

e perigosíssima fantasmagoria (Visconde de Taunay, O encilhamento).

O quadrado brasileiro levava em seu seio a morte e o desalento

(Visconde de Taunay, Memórias).

O estranhamento1 logo se instaura quando o leitor, em seu circuito de leitura

literária, depara-se com os excertos epigrafados acima, que se encontram nos textos

O encilhamento ([1894] 1971) e Memórias ([1948] 2004), de Alfredo d’ Escragnolle

Taunay, o Visconde de Taunay. A ironia com que o escritor dimensiona a aparente

modernização no Brasil do século XIX constitui um contraponto em relação ao olhar

de inconformismo que lança sobre os episódios relativos à Retirada da Laguna.

Ambos os fragmentos revelam uma faceta da sociedade brasileira distinta daquela

que foi construída pelos escritores românticos de seu tempo. Para além de agenciar

uma mera projeção do sertão empírico carregado de um sentido a ser revelado ou,

até mesmo, a expressão de algum fascínio amoroso, a produção literária do

Visconde de Taunay mostra a percepção dinâmica com que o escritor soube

metamorfosear o cenário brasileiro do XIX em objeto estético para a compreensão

do processo de desenvolvimento social e político do país.

Quando nos referimos a este escritor já temos internalizadas algumas

informações biográficas que foram edificadas ao longo da nossa história literária.

Sabemos, por exemplo, que o escritor foi consagrado pela produção de dois livros, a

saber, A Retirada da Laguna ([1871] 2005) e Inocência ([1872] 1994). Não podemos

perder de vista que a produção destes textos resulta da reação do escritor diante do

1 O conceito de estranhamento, postulado por Chklovski no ensaio “A arte como procedimento”, constitui um efeito produzido pelo estético capaz de libertar a percepção do homem em relação ao automatismo do mundo, o que viabiliza, nas palavras do teórico, o conhecimento de uma dimensão nova apreensível somente na/pela arte. Chklovski argumenta que “O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto” (1978, p. 45).

- 8 -

episódio referente à Retirada da Laguna e que, portanto, eles têm por alicerce as

anotações do Relatório Geral (1867), para o qual o escritor foi nomeado redator

oficial. Dentre os cargos ocupados por ele no parlamento brasileiro, destacamos as

funções de senador, como também de Presidente das até então províncias do

Paraná e de Santa Catarina. A isso acrescentamos que este escritor atuou

efetivamente na esfera pública do século XIX com projetos que, contrariando os

paradigmas do partido conservador ao qual esteve filiado, defendiam a abolição da

escravatura, o casamento civil, bem como a imigração estrangeira. Desvinculou-se

da política brasileira no momento em que foi efetivada, no seio do Brasil, a queda do

Segundo Reinado, o que acarretou o seu afastamento do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro (IHGB). Recebeu o título de Visconde poucos meses antes da

Proclamação da República.

Aos vários romances publicados pelo Visconde de Taunay, podem ser

agregados alguns contos, textos em jornais, manifestações de crítica, peças de

teatro, biografias, enveredando-se ainda na escritura memorialística com os livros A

cidade do Ouro e das Ruínas – Matto-Grosso Antiga Villa-Bella o Rio Guaporé e a

sua mais Illustre Victima ([1891] 1923) e Memórias ([1948] 2004), dentre outros. De

longa data, as produções deste autor tiveram grande repercussão no Estado de

Mato Grosso, sendo que o romance Inocência foi publicado em forma de folhetim no

jornal O Republicano entre os anos de 1897 e 1898. Alguns escritores locais

publicaram críticas a propósito da literatura de Taunay, em jornais de grande

circulação na capital Cuiabá: “Inocência – Romance por Silvio Dinarte” (1874)

lançada no jornal O Liberal por Mericano, pseudônimo do poeta mato-grossense

Antônio Gonçalves de Carvalho; “Historias Brasileiras por Silvio Dinarte” (1875)

publicado em duas séries no mesmo jornal por Mericano e Palmyro, como também

numa única série da gazeta O Porvir, datada de 1878, por escritor anônimo2. A título

2 A pesquisadora Eni Neves da Silva Rodrigues (2008) realiza um estudo em torno da crítica produzida sobre a literatura do Visconde de Taunay na segunda metade do século XIX em Mato Grosso. A autora relaciona as transformações sócio-políticas ocorridas no bojo da Província com a produção de um universo de leitura legitimador do novo contexto cultural surgido a partir da abertura da navegação no Prata. Esta pesquisa destaca como as redes de circulação da literatura/leitura (os jornais, as livrarias, as associações, dentre outras) atuaram de forma significativa na consolidação do campo literário em Mato Grosso. Neves observa que nos jornais mato-grossenses circularam críticas, que tematizaram desde os assuntos literários relacionados a outras províncias brasileiras ou mesmo da Europa até acontecimentos literários ligados a questões locais. A boa literatura era vinculada à figuração dos elementos nacionais nas críticas formuladas em Mato Grosso. Interessa-nos ainda sublinhar que a crítica produzida no Mato Grosso sobre a literatura de Taunay não se distanciava do que vinha sendo discutido em nível nacional: a fidelidade ao real, a “cor local”, o caráter pedagógico,

- 9 -

de informação sublinhamos que no Mato Grosso, em específico, o nome de Taunay

esteve vinculado a jornais de cunho liberal, apesar de muitos historiadores

atestarem, e até mesmo este escritor, a indistinção ideológica dos partidos políticos

existentes à época no Brasil. Angariou em sua carreira intelectual o feito de

colaborador na fundação da Academia Brasileira de Letras, como também foi

prestigiado como patrono do Instituto Histórico e Geográfico Mato-grossense

(IHGMT) e da cadeira nº 22 da Academia Mato-grossense de Letras.

Por apresentar uma escrita propensa ao nomadismo, porque transitiva entre

as diversas modalidades de linguagem, de onde veio a conotação de “polimórfica”3,

este escritor tem sido estudado por perspectivas críticas que oscilam entre a

censura de certos procedimentos mobilizados na sua escritura e a valoração de

traços relativos à ordem pictórica: a cor da paisagem, os costumes e modismos.

Nesse sentido, a crítica literária clássica segrega-se em quatro perspectivas

distintas, que se completam entre si, quando aborda a escritura taunayana. As

ramificações da crítica, quanto à recepção da produção de Taunay, muitas vezes

deixam de lado as relações entre o político e o literário como fator de arte para se

aterem ao estudo das supostas intenções do escritor no cenário público do Brasil do

século XIX. Como muitos pesquisadores da atualidade, propomos uma intervenção

no campo de conhecimento sobre a literatura do referido escritor, na tentativa de

deslocarmos a posição crítica que tende a explicar a obra pelo autor e vice-versa.

Elencamos a primeira delas que institui, seguindo parâmetros biográficos, o

perfil literário de Taunay. A partir de 1888 a crítica ganhou mais ênfase quanto à

produção de uma história da literatura brasileira, especialmente com Silvio Romero e

José Veríssimo. Estes historiadores da literatura lançaram mão dos pressupostos

cientificistas vigentes na época, bem como do ideário romântico nacionalista para

construírem o arcabouço teórico da produção crítica brasileira conforme o critério de

valor estético.

Em sua História da Literatura Brasileira, Romero ([1888] 1960) assinala a

dupla posição deste escritor no panorama intelectual brasileiro, que ressalta a

“contradição de espírito” entre o romancista e o político: “aquele um dos mais

brasileiristas havidos: este um dos mais estrangeiristas em plagas nacionais” (1960,

o talento descritivo, sem contar os aspectos considerados falhos. Desta forma, vemos que a formação do circuito crítico-literário em Mato Grosso revelou o desejo de integração à recém-independente nação brasileira. 3 Cf. Arthur Motta (1929) e Alcides Bezerra (1937) apud Maretti (2006, p. 51).

- 10 -

p. 1492). Partindo de um veio determinista, Romero reforça essa contradição ao

propor um estudo sobre a origem franco-brasileira do escritor. O historiador

acrescenta que a participação na Guerra da Tríplice Aliança fez com que este

escritor refinasse a percepção da natureza brasileira e, consequentemente, do

sentimento nacional, metamorfoseando o filho de estrangeiros no mais arrojado

patriota.

Outro estudioso que se debruça sobre a literatura do Visconde de Taunay,

embasado numa tendência científico-realista, é José Veríssimo ([1916] 1969), cujo

estudo focaliza certa incongruência existente em boa parte da produção deste

escritor, como nos livros O encilhamento e Como e porque me tornei kneipista

(1895), apesar do caráter versátil oriundo da “educação liberal” que o escritor

recebeu na infância. Tal incongruência, segundo Veríssimo, pode ser explicada tanto

pela “dupla origem estrangeira”4 do escritor, quanto em virtude da “esquisita

bonomia e o ingênuo ardor de propagandista que nele houve sempre e se

manifestou nas suas campanhas de imprensa e de tribuna” (1969, p. 216).

No decorrer das considerações de José Veríssimo assistimos ao aflorar da

segunda ramificação crítica sobre a produção literária de Taunay, que estabelece a

classificação dos seus textos em gêneros fechados e específicos5. Nessa mesma

linha teórica, Silvio Romero rotula somente os romances produzidos pelo escritor

fazendo a distinção, segundo o temário/conteúdo, entre os que tratam “da roça e do

sertão” e aqueles que dizem respeito “à cidade e aos salões”, dando prioridade

artística aos primeiros. Fica-nos perceptível que esse ponto de vista deixa de

abarcar o hibridismo próprio dos textos taunayanos, o que suscita a recusa de uns e

a valoração de outros segundo o critério de literariedade.

No ano de 1929, Arthur Motta também faz um verdadeiro inventário das

produções do referido escritor, de acordo com o gênero que considera pertinente

4 Observamos que a ênfase dada à ascendência francesa de Taunay fez com que muitos críticos, como José Veríssimo, chegassem ao equívoco de afirmar que este escritor teria uma “dupla origem estrangeira”. Nesse sentido, fica-nos evidente a tentativa de José Veríssimo em demonstrar como o caráter de Taunay era o de um “genuíno brasileiro” apesar “da sua procedência francesa”. Vemos, portanto, que a genealogia de Taunay torna-se um elemento contraditório a partir do qual Veríssimo procura salvaguardar a primazia do aspecto nacional, tão relevante para a sua inserção no contexto de produção crítica no Brasil do século XIX. 5 “Além da propriamente literária, romance, crítica, teatro, compreende viagens e explorações de engenheiro, relatórios técnicos, relações de guerra, estudos etnográficos, escritos políticos e sociais, questões públicas, biografias, história e peças musicais” (VERÍSSIMO, 1969, p. 216-217).

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para cada uma delas6. Por conseguinte, o crítico elogia Taunay por ter transitado em

quase todos os setores da literatura brasileira, ressaltando que o mesmo teria a

“alma de genuino artista” de “complexa organisação cerebral”. Com esses

predicados, Motta ressalta que Taunay

Figura nas bellas artes como pintor e musico; nas letras, como romancista, dramaturgo, comediographo, contista, critico e historiador; foi politico de adiantado espirito liberal; preoccupou-se com estudos de ethnographia, lingüística, sciencias naturaes, artes militares, engenharia geographiaca e varios assunptos sociaes (1929, p. 55).

Outra categoria crítica, que denominamos classificativa, consiste em discorrer

sobre as falhas/rasuras na produção literária de Taunay ao mesmo tempo em que

exalta algumas de suas qualidades. Mais uma vez os nomes de Romero e Veríssimo

encabeçam o referido bloco. O primeiro autor afirma que falta para ele “a

imaginação, a poesia, a eloqüência, a graça que enchem as páginas de Alencar, a

finura, a perspicácia, a elegância e distinção no dizer, que avultam nas de Machado

de Assis” (1960, p. 1496). Já o último assevera a ausência de “coesão e

intensidade” na escritura taunayana, o que possivelmente lhe daria mais solidez e

distinção. Veríssimo impõe como tópica de arte a “dificuldade” no arranjo da

composição, o que afastaria o caráter “dispersivo”, “banal e inconseqüente” dos

textos do referido autor. Alinhado a esses fatores, Veríssimo sublinha outros:

desfalecimento de estilo, preocupação doutrinal, fraqueza e ineficiência psicológica.

Ao lado desses historiadores da literatura, Lúcia Miguel Pereira ([1952] 1992,

p. 277) faz uma lista extensa dos “defeitos”7 que podem ser encontrados no romance

Inocência, de Taunay, sendo o único estudado por ela: “excessiva simplicidade”,

“pequena penetração psicológica”, “ausência de complexidade e mistério”,

prolixidade nas descrições. Na mesma linha de Romero, embora pela via

psicológica, Miguel-Pereira compara Taunay com Machado de Assis na tentativa de

mostrar a complexidade interior deste em detrimento daquele.

6 Motta elenca os seguintes gêneros: romances, contos e narrativas, narrativas de campanha, viagens e descrições da natureza brasileira, memórias, crítica literária e artística, teatro, história, coreografia e etnologia brasileiras, questões políticas e sociais, assuntos de vulgarização científica, discursos, biografias, traduções, colaboração na imprensa, composições musicais. Além disso, o autor ainda lista as diversas fontes para o estudo crítico da literatura de Taunay. 7 Não esqueçamos que o termo “defeito” é empregado pela própria Lúcia Miguel Pereira (1992, p. 276).

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Ao lado de Miguel-Pereira, tem lugar de destaque a crítica de Alfredo Bosi

([1970] 2001, p. 145), que avalia em que medida na abertura do romance Inocência

o escritor pende ao nível de “descritor” de modo a resvalar “para o convencional ou

para a aridez didática”. Bosi aponta ainda como os romances urbanos de Taunay

decaem para a categoria de subliteratura francesa, e como exemplo cita O

encilhamento e No declínio (1898).

Em Antonio Candido ([1959] 2006) a mediania constitui qualitativo do próprio

Taunay que, segundo o crítico, permanece vivo graças ao idílio sertanejo de

Inocência. Candido parece compactuar com Miguel-Pereira no que tange à via

psicológica, visto sugerir que a recordação na escritura taunayana não atinge os

“poços da introspecção” de modo significativo. Nesse sentido, a produção deste

autor configuraria um longo diário numa literatura de parca documentação pessoal.

Quanto à questão dos problemas sociais, Candido avalia que eles nem sempre são

elaborados de forma conveniente, em quase todos os romances de Taunay. Para

validar esta perspectiva, Candido menciona o romance Mocidade de Trajano (1871)

que, segundo ele, tende a tematizar a problemática social de modo a “parecer

inclusões meio indigestas” (2006, p. 629b).

Afrânio Coutinho ([1955-59] 1970) também se detém na observação de que

Taunay, no romance Inocência, por exemplo, muitas vezes se perde quando procura

descrever a natureza. Isso se explica, nas palavras do crítico, pela fidelidade com

que o escritor busca representar a vida imediata.

Essa mesma crítica que outrora tangenciava as “falhas” da literatura de

Taunay, de modo paradoxal, realiza uma avaliação dos elementos positivos da sua

composição. Comecemos por Arthur Motta, que chega a mencionar alguns “críticos

competentes”, que teriam considerado a composição do livro A Retirada da Laguna

como superior à Retirada dos dez-mil ou Anabase, de Xenophonte. Ressalta a rara

eloquência de A Retirada da Laguna que, no dizer de Motta, teria firmado a

reputação literária deste escritor. Para realçar os predicados de Taunay, Motta

menciona vários críticos, entre eles José Veríssimo, que não deixaram de enaltecer

este escritor pela composição da narrativa sobre a Guerra da Tríplice Aliança. O

crítico considera que ele teria sido influenciado por escritores como José de Alencar

e Joaquim Manuel de Macedo, o que ficaria patente nos livros Inocência e Mocidade

de Trajano. O crítico não deixa de contemplar no seu estudo boa parte dos textos de

Taunay, fazendo comentários a respeito do temário de cada um. Ao fazer uma

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pequena biografia do referido escritor, Motta observa que as propostas deste escritor

eram a tal ponto compatíveis com o ideário republicano, que ele teria facilmente se

filiado a este regime senão fosse a sua admiração por Dom Pedro II.

Passemos à crítica de Silvio Romero (1960) que, apesar de algumas

ressalvas, coloca o autor de Inocência em degrau mais elevado que Machado de

Assis, tendo em vista que ele teria sabido figurar o sentimento da paisagem com a

acuidade necessária para a afirmação da nacionalidade. O mesmo acontece no

estudo de José Veríssimo (1969), para quem as impressões diretas da paisagem e

costumes locais dariam o tom realista necessário para o estudo do país. Em Taunay

sobrepujaria a abertura ao novo que, sob a égide de certo “materialismo literário”,

conforme expressão de Veríssimo, teria possibilitado ao romancista

[...] escrever o primeiro romance realista [no caso Inocência], no exato sentido do vocábulo, da vida brasileira num dos seus aspectos mais curiosos, um romance resumando a realidade, quase sem esforço de imaginação, nem literatura, mas que a emoção humana da tragédia rústica, de uma simplicidade clássica, idealiza nobremente (VERÍSSIMO, 1969, p. 237).

Diante disso, a posição realista de Veríssimo no estudo do romance Inocência

mostra-nos o colapso do ideário romântico da crítica literária brasileira, o qual já

havia sido discutido por Machado de Assis em 1873, no texto “Notícia da atual

literatura brasileira – Instinto de Nacionalidade”. Propondo demonstrar o caráter

realista da literatura taunayana, Veríssimo enfatiza a ausência dos “arrebiques e

enfeites” com que os romancistas da época procuravam obliterar o conhecimento da

realidade brasileira. Com isso, este escritor, no argumento do crítico, teria criado

“com rara simplicidade de meios, língua chã e até comum, estilo natural de quase

nenhum lavor literário, composição sóbria, desartificiosa, quase ingênua, e,

relativamente à então vigente, original e nova, saía uma obra-prima” (VERÍSSIMO,

1969, p. 238). Os aspectos políticos, sociais e morais teriam ganhado destaque na

figuração realista do Brasil do século XIX, tão cara à crítica de Veríssimo. Dessa

forma, o romance A Mocidade de Trajano teria angariado o lugar de “sátira quer aos

nossos costumes políticos, quer a práticas devotas, desusadas na nossa ficção”

(VERÍSSIMO, 1969, p. 237).

Esse procedimento elogioso também é utilizado por Lúcia Miguel Pereira

(1992) que considera Inocência o melhor romance do escritor no âmbito da literatura

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brasileira. A autora mostra que Inocência seria o único romance de Taunay, e quiçá

de toda a literatura brasileira, que passaria em cenário campestre. O argumento da

autora termina por desconsiderar os demais textos do escritor, tanto aqueles que

têm como mote principal a experiência de guerra no interior do Brasil, quanto os que

passam em cenário urbano.

Miguel-Pereira ainda lista as tão agraciadas qualidades do romance

Inocência: o “sentido do pitoresco”, a “naturalidade dos diálogos”, o aproveitamento

de valores secundários (cenário natural), a figuração da língua rústica em seu

funcionamento vivo e rico de expressões, bem como a coesão entre as personagens

e o seu meio. A autora, realçando a importância da língua na composição do

romance, chega a afirmar que os valores do sertanejo, no caso o rústico e atrasado,

seriam os mesmos que ainda prevalecem no interior de Minas e que resistem à

passagem do tempo. Ressaltamos que Miguel-Pereira pretende salvaguardar a

literatura taunayana chamando a atenção daqueles que elevam a fidelidade ao

primeiro plano da literatura. Segundo a ensaísta, “A fidelidade pode ser uma

qualidade, mas torna-se secundária quando o romance consegue realizar-se

inteiramente, isto é, criar o seu mundo próprio, que se prende ao real pela essência

humana das personagens” (MIGUEL-PEREIRA, 1992, p. 279).

Na crítica feita por Alfredo Bosi (2001), o nome de Taunay aparece junto com

o de Alencar, mas ganhando um sentido diferente do que foi proposto por Silvio

Romero e Lúcia Miguel Pereira. Agora, a literatura deste escritor adquire uma

posição mais confortável em relação ao nome de Alencar, tendo em vista que

naquele escritor o viajante teria um maior senso de realidade, por isso seria mais

“tangível e mediano” do que no romancista indianista. Bosi ainda exalta Taunay pelo

fato de haver figurado a natureza com menos idealidade que os românticos da

época, sendo que isso daria à sua composição as formas do “realismo mitigado”. A

projeção dos caracteres referentes às personagens constituiria, de acordo com Bosi,

um fator que propiciou a grande aceitação do romance Inocência pelo público.

José Aderaldo Castello ([1999] 2004) também sublinha as intenções de

fidelidade à paisagem, aos tipos e fatos como meio da literatura taunayana alcançar

a aura realista. Mais uma vez o adjetivo “descritor” é aplicado ao Visconde de

Taunay, mas aqui esse aspecto subjaz

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[...] à beleza dos quadros compostos. Observador dos nossos costumes, tipos humanos e circunstâncias de vida sob efeito de estruturas ainda rigidamente patriarcalistas, deixou alguns livros nos quais se disseminam os componentes básicos do seu famoso romance – Inocência (CASTELLO, 2004, p. 242).

Diferentemente dos críticos que elogiam a fidelidade com que Taunay matiza

os quadros da natureza, vimos que Coutinho (1970) não acredita ser este o principal

mérito do escritor. O que fascina Coutinho na literatura deste escritor refere-se à

recepção por parte do público leitor, tendo em vista a grande popularidade adquirida

por romances como Inocência. Taunay ficou conhecido não apenas no Brasil pelas

diversas publicações em folhetins e reedições na forma livresca do romance

Inocência, mas principalmente por este ter sido traduzido em vários países do

mundo. Esta popularidade se explicaria por diversos fatores que são apontados pelo

crítico, a saber, a história de amor temperada à moda romântica, como também as

descrições realistas da paisagem e dos costumes sertanejos, temário até então novo

na literatura brasileira.

Além do viés crítico classificativo, delineamos um quarto bloco que apresenta

o sertanismo como fulcro da literatura de Taunay. Para darmos continuidade à linha

de pensamento proposta por Castello não seguiremos a cronologia das críticas, tal

qual fizemos anteriormente. No estudo de Castello percebemos certo deslocamento

em relação à análise dos textos de Taunay, quando sugere que no romance

Inocência haveria uma sintonia tão profunda das sugestões plásticas do universo

sertanejo capaz de convertê-lo em “fato real” na tradição oral. O desfecho trágico da

narrativa, no dizer do autor, adviria da estrutura reacionária “que se autodefende de

maneira a quase neutralizar emocionalmente o comportamento dos protagonistas”

(CASTELLO, 2004, p. 244). Aqui a memória visual ganha uma dimensão

testemunhal dos acontecimentos vivenciados por ele, quando da sua experiência de

guerra, e que são reconstituídos em Inocência.

Ao lado de Castello, temos Alfredo Bosi (2001, p. 144) que, em sua primeira

fase crítica, retoma os conceitos já cunhados por Silvio Romero e José Veríssimo

com o objetivo de realçar as condições mobilizadas por Taunay “para dar ao

regionalismo romântico a sua versão mais sóbria”. Novamente Inocência apresenta-

se como foco de estudo dos costumes sertanejos que, nas palavras do crítico,

possibilitariam a maior verossimilhança deste romance.

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Nelson Werneck Sodré ([1938] 2002) também não se isenta de incluir

Inocência na linhagem da literatura sertanista. O autor situa o sertanismo na

reviravolta da crise processada no âmbito do indianismo romântico como a forma

encontrada por Taunay de elaborar um novo sentido à nacionalidade tão cara para a

inserção do Brasil no comboio dos países modernos. Era preciso definir uma

identidade, mas a figuração do autóctone impregnada pelos paradigmas europeus

não dava conta do significado natural do brasileiro. O litoral, que importava em

grande leva os costumes europeus, nas palavras de Sodré, não conseguia ser

representativo da essência brasileira. Teria aparecido assim o sertanejo como figura

emblemática dos traços nacionais, porque não contaminada pelas influências

externas. Concluímos que, no pensamento de Sodré, Taunay seria o escritor que

resolveria, via ficção, o impasse relativo à invenção de uma identidade nacional

necessária para o ingresso do Brasil na categoria de Estado-nação. Daí Sodré

imputar a imortalidade do romance Inocência.

Já Antonio Candido (2006a) situa Taunay na transição do estilo romântico

para o realista, mas afirma que prefere mantê-lo no Romantismo, pois esse escritor,

segundo o crítico, teria fomentado questões relacionadas ao nacionalismo, de modo

a balancear os temas acionados nas etapas anteriores da literatura brasileira.

Candido atesta que

Poucos terão efetuado levantamento tão cabal do país quanto Alfredo de Taunay que, na ficção e no documentário, só fez descrever as suas cidades e campos, a natureza e o homem, preocupado em registrar, depor, interpretar. Este pendor se acentua com a idade, levando-o a escrever recordações da sua experiência de guerra, política e administração, e, no romance, ao estudo social d’O Encilhamento (2006a, p. 612).

Aliado a esse veio que resvala para o documentário, o referido escritor

apresentaria, segundo Candido, uma sensibilidade que foi depurada pela cultura da

qual fez parte. Tal sinfonia de predicados comporia o traço geral da personalidade

literária de Taunay, cujo refinamento estético mobiliza o caráter dramático de

algumas de suas produções, como Inocência, por exemplo. Ele foi o escritor que,

segundo o crítico, teria deslocado o modo de apreender a natureza no século XIX.

Esta, por sua vez, não seria mais encarada sob a égide da contemplação, tendo em

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vista a atitude de enfrentamento que Taunay teve perante ela em virtude da sua

experiência de guerra e sertão.

Quanto ao gesto de relacionar a produção deste escritor com outros autores

da literatura brasileira, temos Candido que, diferentemente de historiadores como

Romero e Veríssimo, faz uma analogia do romance Inocência com um texto

posterior ao seu tempo. Para Candido, o tom de ouverture que existe no primeiro

capítulo de Inocência glosaria o gesto telúrico que preforma certos movimentos d’”A

TERRA” e d’”O HOMEM”, em Os sertões (1902), de Euclides da Cunha.

Alceu Amoroso Lima (1966a) também faz uma analogia entre a escrita de

Taunay e a de Euclides da Cunha, levando em consideração que, se o primeiro

traça uma página imortal de dor e heroísmo vinculada à “tragédia da consciência”

nacional, o último também perspectiviza essa mesma nacionalidade por meio da

“tragédia da terra”. Este crítico também não deixa de apontar algumas

características da literatura do Visconde de Taunay: fixação escrupulosa do meio,

das peripécias e dos costumes que se faz de forma simples e elegante, bem como a

facilidade de composição.

No estudo de Irene A. Machado (1997) também vigora a perspectiva crítica

que tende a compreender o romance Inocência por meio da tópica referente ao

sertanismo literário. Para realçar o efeito do sertanismo em Inocência, a autora

chega a propor que a figuração do espaço do sertão brasileiro neste romance

mostraria como a vida do sertanejo, em pleno século XIX, ainda era norteada por

valores medievais introduzidos pelo colonizador português. Machado ressalta que o

aparato documental constitui uma tópica da literatura de Taunay, tendo em vista a

elaboração estética do registro plástico da paisagem e da vida brasileira. Vemos que

a autora atribui uma acepção crítica ao romance Inocência, partindo do pressuposto

de que este teria focalizado a estrutura colonial do Brasil rural e arcaico, onde ainda

prevaleciam os costumes instaurados pelos portugueses.

Neste ponto, salientamos como a crítica produzida sobre a literatura de

Taunay tende a retomar alguns aspectos já elencados em estudos anteriores.

Temos como exemplo o trabalho de Dino Preti ([1972] 1977) que, apesar de delinear

um recorte distinto, recorre aos seguintes elementos apontados pela crítica

precedente: a influência da estética realista no romance Inocência, não obstante a

sua estrutura apresentar algumas características românticas; o caráter documental

de grande parte da produção literária de Taunay; a formação intelectual deste

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escritor; a experiência realizada pelo escritor no interior do país, dentre outros. Preti

verticaliza o regionalismo com base no recurso estilístico empregado por Taunay na

elaboração dos níveis de fala dos diálogos em Inocência. O autor ressalta que

Taunay teria temido a incompreensão de sua obra por parte do público, tendo em

vista a recorrência aos hábitos linguísticos desenvolvidos no interior do país.

Este argumento realça ainda mais a perspectiva de Preti, que vai defender

como este literato foi inovador ao trazer à baila o impasse, existente no Brasil, entre

a língua culta (narrador) e a língua falada (personagens). Essa consideração permite

a Preti equiparar Taunay ao nível dos escritores pós-modernistas, que, segundo ele,

também problematizaram essa mesma tensão. O crítico ainda destaca que o

regionalismo matizou um tom pitoresco às personagens, de modo a revelar a

condição social da comunidade sertaneja. No argumento de Preti, os arcaísmos

presentes nas falas das personagens mostrariam o nível regional de uma linguagem

que não sofreu as influências da imigração.

Dessa forma, o autor destaca alguns exemplos de regionalismo: o vocabulário

típico, as expressões locais, as frases-feitas e os provérbios, as estruturas sintáticas

típicas, as deformações de pronúncia ou o emprego local dos tempos verbais, as

estruturas redundantes e as regências particulares, o “truncamento frásico”, o

emprego dos pronomes de tratamento, o registro dos elementos emotivos presentes

na fala, o recurso metafórico, as variações fonológicas, a transcrição de certos

fonemas, dentre outros. A leitura proposta por Preti torna-se bastante significativa na

medida em que sublinha como a literatura de Taunay produziu um conhecimento

linguístico relevante para a compreensão do caráter dinâmico da língua brasileira.

Além disso, o autor enfatiza a importância da produção deste literato num momento

em que os escritores primavam pela pureza linguística no julgamento de uma obra

literária.

Num quadro epistemológico composto por diversificadas formas de recepção,

delineamos as quatro principais tendências críticas que abordam a literatura do

Visconde de Taunay. Tais gêneros de leitura revelam a mobilidade dos sentidos

atribuídos à escritura taunayana no decorrer da história literária brasileira. Trata-se

de abordagens que oscilam entre a consagração de obras, como Inocência e A

Retirada da Laguna, e a menção en passant de textos pouco estudados pela crítica

literária cristalizada. Perspectivas que se mantêm arraigadas ao idealismo de ver,

nos textos de Taunay, certa fidelidade em relação aos fatos narrados, com a qual foi

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possível enquadrá-los no formato estético do realismo literário. São leituras que se

entrecruzam ao mesmo tempo em que se distanciam entre si, quando acionam o

projeto literário de Taunay como parte constitutiva de um momento histórico de

transição capaz de glosar a plasticidade da memória na construção imaginária do

Brasil do século XIX.

Não desprezamos a importância dessa produção crítica para o

aprofundamento do saber que, até então, ficou esquecido nas páginas da literatura

de Taunay. Saber que veio à tona travestido em máscaras nacionalistas, realistas,

românticas, etc., mas que trouxeram uma significativa contribuição para a história

das ideias no Brasil. Isso porque as perspectivas críticas elencadas acima

recuperaram, sob olhares diversos, e levando em consideração as condições

históricas de produção nas quais elas se inserem, a heterogeneidade constitutiva da

literatura do referido escritor. Uma literatura que somente permite a construção de

nuances críticas distintas, porque ela mesma insurge, em seu caráter heteróclito,

como experiência estética das transformações do complexo político-cultural do Brasil

do século XIX. Nela irrompe, a nosso ver, o sertão mato-grossense como cenário

das contradições inerentes ao processo constitutivo da modernidade no país. Por

isso, nosso objetivo principal norteia-se em inquirir como o dispositivo taunayano

plasma, quanto ao imaginário de Mato Grosso, as tensões inscritas na dinâmica

temporal da modernidade, e que permeia a lógica de alastramento territorial do

século XIX.

Assistimos ainda a manifestação de um campo de pesquisa que buscou

novos horizontes para refletir sobre a literatura do Visconde de Taunay. Dentre tais

estudos, destacamos a pesquisa de José Maurício de Almeida ([1981] 1999), que

propõe pensar a produção deste escritor seguindo o prisma do regionalismo literário.

A princípio, o autor faz a distinção do que seja o sertanismo e o regionalismo, de

modo a considerar o primeiro como sendo referente aos lugares distantes no tempo

e espaço, o interior, onde vigora uma cultura que mantém resquícios da desolação;

já o último diz respeito stricto sensu aos elementos que diferenciam uma região da

outra ou da totalidade do país, procurando afirmar os valores locais no plano

nacional.

O autor faz a ressalva de que o regionalismo literário propriamente dito não se

configurou no âmbito do Romantismo brasileiro. Entretanto, como o nacionalismo

sempre esteve em primeiro plano nesse momento histórico de construção de uma

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identidade nacional, poderia ser localizada, segundo Almeida, certa tendência

regionalista na maré de crise em que caiu a tópica romântica. Isso se deve ao fato

de que, pela necessidade de individuação nacional, os escritores românticos teriam

sido levados a particularizar o regional elevando-o à escala universal, processo este

iniciado por Franklin Távora.

Almeida não discorda da proposição de Antonio Candido no tocante à

permanência da idealização romântica em contraste com a fidelidade ao dado

observável. O mesmo acontece em relação ao tom de ouverture, também apontado

por Candido quanto ao primeiro capítulo do romance Inocência, que, nas palavras

de Almeida, situa o leitor no que tange ao ambiente social da ação. Almeida,

portanto, admite que o paralelo entre os dois romances, Inocência e Os Sertões, é

válido na medida em que agencia a tênue linha de continuidade que une textos

díspares e distantes no tempo.

Interessa-nos, da leitura de Almeida, o modo com que relaciona os referidos

textos literários, desnudando questões referentes ao tom épico que não pode ser

encontrado no romance Inocência. Outra analogia apropriada, para Almeida, diz

respeito à consideração de que a cena do incêndio, presente em Inocência, não tem

o matiz sublimado da que foi figurada por José de Alencar no romance O Sertanejo

(1875). O valor documental da referida cena em Inocência mostra, nas palavras do

crítico, como Taunay pertence a uma geração distinta daquela do seu tempo, porque

contemporânea da crise romântica.

Prossegue Almeida no agenciamento do efeito de sentido produzido nas

epígrafes que estão situadas no início de cada capítulo do romance Inocência. Tal

proposta de estudo não havia sido perscrutada de forma tão intensa como a que

inaugura Almeida. O ensaísta considera que Taunay glosa uma crítica dos textos

clássicos epigrafados por meio do procedimento de colocá-los ao nível das cenas

relativas à vida sertaneja. Vemos, com base nos apontamentos feitos por Almeida,

que os estudos sobre a literatura de Taunay vão sendo arejados à luz de novas

perspectivas de leitura, que trazem à baila a materialidade mesma dos textos em

seus efeitos de sentido.

Outro estudo que inova quanto à percepção da literatura taunayana é a leitura

de Marisa Lajolo (1996), que põe em relevo o jogo de vozes dramatizado tanto na

narrativa, quanto pela posição das epígrafes, incluindo também as notas de rodapé.

Na trilha aberta por Preti, Lajolo também sugere que

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Se as epígrafes elevam o livro, ao transformá-lo em interlocutor do que há de mais canônico na tradição literária ocidental, algumas das muitas notas de rodapé traduzem para o público leitor do romance [...] a linguagem desescolarizada e regional de algumas personagens. Tais procedimentos sugerem que Taunay se distanciava, tanto enquanto narrador, como enquanto autor, da linguagem de seus personagens, e creditava a seus leitores o mesmo distanciamento, sinal de superioridade – ao menos de alteridade lingüística e social dos circuitos previstos para produção e circulação do métier literário (LAJOLO, 1996, p. 117).

No desfilar de personagens que enunciam sua distância em relação ao

mundo das letras, a autora vê ainda, em contracena, questões relativas à oralidade

sertaneja juntamente com a figuração de personagens estrangeiras e seus

respectivos sotaques. A disposição das epígrafes e rodapés na página, bem como a

baliza, feita em itálico, das formas linguísticas estrangeiras e sertanejas denotam,

segundo Lajolo, que o narrador do romance teve contato com as diversas práticas

de linguagem existentes no Brasil do século XIX. Tal jogo polifônico, como mostra a

autora, sugere o funcionamento das estratégias empregadas por ele na sedução de

público leitor. Estratégias estas que pressupõem como os protocolos da leitura

romanesca em Taunay estão mais difundidos do que nos romances de Alencar, por

exemplo, os quais supõem um imaginário de leitor ainda iniciante, expressão que

tomamos emprestada de Lajolo (1996, p. 113).

Outra estudiosa que faz a leitura do romance Inocência sob um viés distinto

daquele proposto tradicionalmente pela crítica é Regina Zilberman (1994). Para esta

autora, no romance Inocência o escritor encenaria o processo de transformação

histórica do sertão bruto em civilização por meio da intervenção externa dos

viajantes expedicionários a serviço da ciência e do Estado, no caso, Cirino e Meyer,

que rompem o equilíbrio da natureza, de modo a acelerar a derrocada do mundo

idílico pelo qual são seduzidos. Refletindo sobre a associação da personagem

feminina, Inocência, e o meio natural em que vive, Zilberman considera que

A narrativa suporta dois tipos de tensão. A primeira dá conta de uma circunstância histórica – o avanço do mundo moderno ocasiona a alteração do cenário original, belo, porém intrinsecamente frágil; a segunda, de uma questão ideológica – este contexto primordial funda-se sobre a opressão e enclausuramento da mulher, circunstância que, no âmbito das relações sociais, reproduz a primitividade do ambiente. Por esta razão, essas tensões não se

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contradizem, mas se complementam; e a solução da primeira repercute sobre a segunda, levando a concluir que a modernização facilitará a emancipação feminina. Todavia, a interferência pode ser lida de duas maneiras: de um lado, é válido pensar que, se a modernização acarreta a dissolução da naturalidade original, em compensação a mulher supera os constrangimentos e preconceitos que a imobilizam socialmente; de outro, é possível inverter o raciocínio: o meio progride, a mulher se libera; entretanto, o ambiente natural é prejudicado e sua beleza primitiva, perdida (ZILBERMAN, p. 103).

Na leitura de Zilberman vemos que a condição da mulher é alinhada ao

avanço dos valores modernos, que incidirão na destruição da natureza, do mesmo

modo que o fim trágico da personagem Inocência. Pertinente, a visão desta autora

arregimenta a intersecção do histórico com o ficcional, mesmo que este não seja

dado explicitamente. Mostra-nos Zilberman como o programa literário empreendido

por Taunay para se pensar o Brasil do século XIX representou uma tomada de

posição diferente da que foi iniciada no Romantismo brasileiro, segundo a qual era

necessário manter as estruturas primitivas, a saber, os elementos fundacionais da

nacionalidade necessários para figurar a identidade do país. Assim, a autora não vê

conservadorismo no projeto estético-político deste escritor na medida em que

defende o ideal modernizador, “ainda que ao custo da transformação da natureza,

aprazível aos olhos de quem a contempla, mas de conseqüências desagradáveis

para quem experimenta os efeitos de seu primitivismo” (ZILBERMAN, 1996, p. 104).

Apresentamos o veio crítico com que Zilberman investiga o romance Inocência como

sendo a transformação do universo natural por meio da abertura à modernidade,

mas no decorrer da nossa proposta de estudo veremos que a destruição da

natureza aparece enviesada por imagens de fantasmagoria que mostram as

contingências por que passou o Brasil na sua tentativa de modernização forçada.

Se Zilberman traça o perfil modernizador de Taunay, o mesmo não acontece

com Francisco Alembert (2001), que realiza um estudo de A Retirada da Laguna

(1871) buscando mostrar a intersecção entre literatura e política, que resultaria

numa posição conservadora do romancista. Alembert sugere, inicialmente, que a

narrativa de A Retirada da Laguna apresenta um suposto cunho memorialístico, o

que pode ser contestado pela pesquisa realizada por Olga Maria Castrillon-Mendes

(2007), por exemplo, que, como veremos mais adiante, perspectiviza o

procedimento com que Taunay realiza a mescla entre memória e paisagem na

composição do respectivo livro. Apesar dessa aparente projeção da memória,

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Alembert não deixa de registrar a plasticidade da projeção dos quadros da natureza

e do homem sertanejo, que Taunay realiza à procura da ordem civilizada. Daí vem à

figuração do impasse barbárie e civilização, como refere Alembert:

A barbárie, o livro nos diz, está solta lá fora, nos sertões, nas fronteiras, pronta para atacar a civilização que demora a se formar. Esse livro é principalmente um convite à construção da nacionalidade e um aviso de que esta mesma construção está em perigo constante. Sua verdadeira função é problematizar sutilmente os impasses da formação da nacionalidade e expor o ponto de vista do homem “civilizado” das terras brasileiras (primeiro para o público europeu, depois para o brasileiro) (ALEMBERT, 2001, p. 219, grifo nosso).

Assim, o referido autor aponta que a tópica da viagem representa um mero

passeio da civilização, por meio do qual se pode ver que as benesses da guerra

ficaram em segundo plano, em detrimento do desejo científico. É somente pela

condição de viajante explorador que se afirmaria a existência de um posicionamento

político por parte do referido escritor. Com isso, percebemos que Alembert não leva

em conta os debates promovidos por Taunay no tocante às contradições da

sociedade brasileira, tendo em vista a sua afirmação de que o termo “político” estaria

sendo empregado de modo forçado em relação a este escritor. O autor segue

afirmando que Taunay anteciparia a visão do sertanejo construída por Euclides da

Cunha em Os Sertões (1902). Isso se deve ao fato de que a personagem do guia

Lopes seria um símbolo do caráter brasileiro, pois, nas palavras de Alembert, o

homem sertanejo, ao revelar o conhecimento da região desconhecida para os

expedicionários, possui um amor à terra que poderia ser transformado em amor ao

Império. Com isso, Alembert mostra que, se o projeto deste escritor tendia para um

veio civilizatório, isso só seria possível com a permanência do atraso. O ponto fulcral

da conclusão de Alembert a esse respeito fica sintetizado no fragmento abaixo:

O sonho ilustrado de Taunay sabe que sem os Lopes do sertão não há país. No entanto, quer nos mostrar que apenas com eles, “desprotegidos” e abandonados pela razão vigilante, nenhum país “civilizado” poderia tampouco existir (ALEMBERT, 2001, p. 225).

Nesse mesmo viés de leitura da produção literária do Visconde de Taunay

podemos inserir as considerações desenvolvidas por Silvia Carla Brito Fonseca

(2001), para quem os textos deste escritor, mais que desenhar a exuberância da

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natureza, como no indianismo romântico, ou mesmo no cientificismo oitocentista,

privilegiaria a manutenção dos valores monárquicos. A autora argumenta que a

posição de Taunay no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi a de definir o

caráter do país com base no projeto político do Estado Imperial, guiado pelo

conservadorismo da Restauração monárquica europeia. A partir desse pressuposto,

a autora não realiza um estudo da literatura propriamente dita deste escritor, o que

foi por ela enunciado, detendo-se apenas em desconsiderar o estético para ficar na

afirmação do controle do território nacional pelo Estado, lastreado pelo escritor na

produção de estudos científicos, como também na difusão de ideais civilizatórios.

Dentre aqueles que investigam os escritos políticos do escritor de Inocência,

situamos José Luís Jobim (2005), que propõe refletir sobre as ideias de Taunay e

Machado de Assis quanto à nacionalização. Segundo Jobim, a discussão que

Taunay levanta na tribuna sobre a naturalização de estrangeiros norteia-se pelo

nacionalismo de cidadania, o que levaria o país a atingir o desenvolvimento. Para

Jobim, a proposta de Taunay seria a de que “esses grupos de estrangeiros, sendo

nacionalizados, passariam a sentir-se parte mais ativa da construção do Brasil”

(JOBIM, 2005, p. 14). Já Machado de Assis (1888), concordando com o projeto de

Taunay nas palavras de Jobim, considerou que os estrangeiros trabalhariam para o

desenvolvimento do país, mas estes não poderiam ter os mesmos direitos que os

brasileiros natos. Naturalizar os asiáticos, por exemplo, no ponto de vista de

Machado de Assis, consistiria num ônus para a imigração. Fica-nos manifesto a

relevante conclusão a que chega Jobim ao mostrar que para a construção da

nacionalidade foi necessário ao país lançar mão de procedimentos excludentes para

os que não se imaginavam pertencentes ao segmento nacional.

Seguindo a perspectiva de avaliar a literatura de Taunay com base na

figuração do político encontramos o estudo, de cunho histórico, de Naira de Almeida

Nascimento (2008), para quem a contradição inerente à figura deste escritor, que foi

sugerida por Silvio Romero, diz respeito ao seu desencanto frente a um projeto

sonhado de Brasil, cuja fundamentação estava centrada no sertanejo. A autora

tangencia sua leitura próxima àquela que muitos críticos fazem a propósito do livro

de Euclides da Cunha, Os Sertões, na medida em que supõe o deslocamento

realizado pelo escritor até Mato Grosso como forma de eleger um novo modelo de

nacionalidade, no caso o sertanejo.

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Concentrando-se na análise de A Retirada da Laguna, a autora faz referência

ao estudo de Peter Beattie (1991), segundo o qual o enaltecimento de Taunay para

com o nacionalismo da personagem do guia Lopes constitui uma crítica às elites

urbanas que na época não estavam engajadas na Guerra do Paraguai. Entretanto, o

ponto de vista da autora mostra que a escolha do sertanejo como base para a

construção da nacionalidade é falível, devido ao seu caráter irracional e iletrado.

O mesmo acontece no conto “Juca o Tropeiro”, publicado em 1874 na

coletânea Histórias Brasileiras, que, segundo Nascimento, ao trazer a figura do

tropeiro Juca Ventura de modo pitoresco, termina por rebaixar o modelo eleito como

símbolo nacional. Pelo fato de esta personagem integrar o corpo da guarda nacional,

que participaria na Guerra do Paraguai, a autora também acredita que Taunay fez

uma crítica à organização militar, bem como ao seu modo de recrutar os sujeitos

para lutarem pelo país. Crítica que também caberia à crença de que a instituição

armada conseguiria levar o país a alcançar a modernização em curto prazo. Torna-

se interessante elencarmos que a dedicatória do livro A Retirada da Laguna,

direcionada a Dom Pedro II, já precipitaria a desilusão de Taunay quanto ao modo

de atuação do Império. Nesse sentido, Nascimento destaca a mudança na

percepção do escritor ao ver que o amor à nação foi substituído pela ambição

pessoal, que, a nosso ver, encontra-se na síntese do romance O Encilhamento.

Nesse ponto parece-nos importante sublinhar que a posição contraditória de

Taunay no cenário político do século XIX é explicada pelos críticos tanto no que

tange à sua dupla origem, quanto no que diz respeito ao modo como contesta a

sociedade da qual faz parte. Apropriamo-nos das considerações de Terry Eagleton

(2005) acerca da projeção do intelectual, crítico de arte, no desenrolar da história

das ideias. Segundo o teórico, o intelectual nunca teve um lugar na sociedade

propriamente definido desde o momento em que começou os estudos sobre arte.

Com isso, Eagleton avalia o papel do intelectual clássico que discutia assuntos

comuns, mas utilizava um modo especializado de refletir sobre o seu campo de

estudo, o que muitas vezes não foi compreendido por aqueles que tinham a

concepção de arte ligada ao cotidiano. Na expressão de Eagleton, foi somente com

o modernismo que o literário começou a se desvencilhar do prosaico, levando os

intelectuais a buscarem “o tipo de linguagem específica na qual questões mais

gerais e mais fundamentais da humanidade pudessem ser levantadas” (2005, p.

118).

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Eagleton delineia alguns momentos históricos nos quais o intelectual teve que

se agregar a algum tipo de disciplina, por assim dizer, para que pudesse tratar de

assuntos relacionados à arte. Num primeiro momento, o intelectual esteve ligado à

teologia, que acoplava diversas áreas, como a ética, a política, a estética, a

metafísica, dentre outras. Este também se uniu ao campo do conhecimento

filosófico. No século XIX, com o surgimento das ciências naturais, que detinham o

paradigma do conhecimento humano, o intelectual passa a fazer parte desta área,

detendo saberes que extrapolavam o mundo físico.

Neste mesmo século, surgiu o assim chamado homem de letras, “cuja tarefa

era mover-se entre certo número de campos do conhecimento especializado

julgando-os de um ponto de vista humanista, amplamente moral e socialmente

responsável” (EAGLETON, 2005, p. 119). A figura do intelectual envolvido com

assuntos sociais, buscando aqui e acolá resolver os conflitos da sociedade, que

remonta à República de Platão e atinge o auge com o Iluminismo francês, adquire,

no século XIX, alto grau de especialização, com jargão próprio a lhe dar respaldo

para produzir novas metalinguagens (o século XIX também vê nascer a Antropologia

e a Sociologia).

O fim do século XIX registra ainda uma nova situação para o intelectual, que

agora é impelido às Humanidades, campo este que se transformou em espólio da

sociedade. Se, por um lado, nessa área o intelectual tinha condições para ter uma

perspectiva distanciada da sociedade, o que possibilitou um conhecimento que não

estava tão disponível para os envolvidos com interesses de outra ordem, por outro,

este não era levado em consideração quando se tratava de resolver as questões

reais. Nesse sentido, o intelectual passa a ser um sujeito inutilizável pela sociedade

pequeno-burguesa; porém as Humanidades puderam alavancar conhecimentos de

toda ordem, de modo a registrar com maior acuidade a crise da modernidade (crise

da filosofia, moral, sociologia, etc.).

O quadro delineado por Terry Eagleton permite-nos lançar um novo olhar

sobre a contradição, ora mencionada, que paira sobre a figura do intelectual

Visconde de Taunay. Pelo pequeno histórico que fizemos a propósito de sua

atuação na sociedade brasileira, bem como o aporte desenvolvido pelos estudos de

crítica literária, percebemos que o escritor está localizado num momento de

transição das ideias, no qual insurgem novas formas de lidar com as questões

relativas ao conhecimento do seu tempo. Não se havia consolidado no Brasil um

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projeto de estudo que viabilizasse o conhecimento científico do país recém-

“descoberto”, o que fez com que ficasse a cargo da literatura “O desafio de

representar a realidade natural e cultural quase totalmente desconhecida [o que]

estimulou a imaginação e ao mesmo tempo levou-a a atuar como sucedâneo e

complemento do conhecimento científico, aqui ainda incipiente” (PEDROSA, 2000,

p. 290).

No Brasil do século XIX o intelectual era tido como o idealizador de uma

nação utópica necessária para a entrada do país no ciclo dos grandes Estados

modernos, bem como enquanto um agenciador de estratégias ficcionais para a

formação de público leitor, até então escasso no país devido à política obscurantista

que remonta à época do domínio português. Como afirma Marisa Lajolo (1996, p.

109), “Privada, assim, da base técnica que viabiliza a modernidade, a cultura literária

que é parte da cultura escrita, tem um começo pouco auspicioso na Terra de Santa

Cruz”. O intelectual brasileiro teve um início canhestro para desenvolver as suas

atividades de reflexão social. Quando não estava encarregado de educar, digamos

assim, um público leitor analfabeto à base de uma dieta de leitura folhetinesca, cujo

escopo estava na disseminação de costumes e comportamentos, tinha o dever de

manter a coesão social por meio de valores patrióticos. Entretanto, esta mesma

função era desconsiderada quando se tratava de colocar em xeque as proposições

que levantava sobre a realidade.

As inúmeras produções de Taunay que caminham pelas mais diversas

modalidades de escrita demonstram esse não-lugar, ou melhor, o “entre-lugar”8 do

intelectual na segunda metade do século XIX. “Entre-lugar” porque estava sempre

no entremeio dos diferentes ramos do conhecimento humano para que pudesse ter

o seu trabalho reconhecido enquanto posição crítica diante da sociedade, de modo a

não ser apenas aquele que se filiou a esta ou aquela entidade política e/ou literária.

Por esse motivo, vemos este escritor buscando suporte na política para

problematizar questões que no âmbito literário ficavam à margem da sociedade.

Ampliam-se os conhecimentos sobre a realidade no campo das Humanidades: não

esqueçamos que Taunay fez o curso de Humanidades e foi catedrático na Escola

Militar em 1871, mas estes saberes terminam por se obscurecerem, já que os

projetos voltados para o desenvolvimento da sociedade acabaram por não se

8 Termo cunhado por Silviano Santiago (1991, p. 49-50).

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concretizar, o que explica o olhar de pessimismo deste escritor em suas Memórias, e

em muitos outros textos.

Disso resulta o fato de vermos este escritor se escondendo sob vários

pseudônimos para publicar seus textos, como também os olhares esguios que são

lançados sobre ele quanto à sua origem. Além dessas posições, temos ainda

aquelas que associam a sua figura como um difusor de valores civilizatórios que

apagam a existência dos grupos sociais menos favorecidos, como o sertanejo, bem

como associam a sua produção ao conservadorismo do Império. Assim, muitas

vezes, a literatura de Taunay, enquanto produtora de conhecimentos que contribuem

para a solução de questões relacionadas à realidade brasileira, é silenciada por

esses discursos que não apreendem o papel do intelectual nesse momento transitivo

que foi a segunda metade do século XIX.

Retomando nosso itinerário de leitura feito sobre a crítica da literatura de

Taunay, podemos verificar também uma maior fluência dos trabalhos elaborados

sobre o referido escritor, como podemos perceber nos anais do XI Congresso

Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC)

realizado no ano de 2008. Averiguamos, por exemplo, pesquisadores como João

Luis Pereira Ourique estudando como certos intelectuais utilizam-se do romance

Inocência para projetá-lo como símbolo da identidade sul-mato-grossense, tendo em

vista o critério de fidelidade que julgam haver neste livro, apesar da distância que o

separa da atual situação do Estado.

Outra categoria de crítica suscitada neste evento, a que foi perscrutada por

Kátia Aily Franco de Camargo, tende a comparar as imagens que foram construídas

pelo escritor sobre o Brasil com as que eram elaboradas em periódicos franceses do

século XIX. Tendência típica tendo em vista a comemoração do ano da França no

Brasil. Ainda no tocante à imagética construída pelo referido literato, encontramos,

nos anais do evento acima mencionado, o trabalho de Norma Wimmer, que discorre

sobre a relação existente entre os desenhos produzidos pelo escritor durante a

Expedição ao Mato Grosso e a reelaboração que faz nos textos literários. O

argumento da autora aponta para um modo de representar a natureza, por parte

deste escritor, que margeia a interpretação do Brasil sob o viés de um suposto olhar

europeu.

- 29 -

Nosso constructo teórico não deixa de registrar as pesquisas9 recentes que

trazem à luz uma boa parcela da produção ficcional de Taunay, que, até então, foi

relegada ao segundo plano pelo crivo da crítica literária brasileira. Maria Lídia

Lichtscheidl Maretti (2006), por exemplo, propõe investigar a literatura deste escritor

num gesto de arquivista que inventaria o trânsito pelos diversos textos do escritor e,

em especial, naqueles deixados à margem pela tradição literária brasileira. Segundo

Maretti (2006), foram criadas, no Brasil, cercanias epistemológicas que, no objetivo

de organizar a história da literatura do país, promoveram critérios de

seleção/ordenação10 capazes de controlar e/ou especificar o que integraria ou não o

cânone literário.

Quanto a isso, Maretti (2006) ainda argumenta que a historiografia e a crítica

literária têm excluído da produção ficcional de Taunay os textos que não respondem

aos critérios de valoração e periodização oriundos do que seja reservado ao

canônico. Para a autora, os textos deste escritor, por constituírem a base de estudo

para profissionais que não têm o literário como foco exclusivo, acabam sendo

considerados somente pelo seu “valor documental”, sobretudo no que tange aos

dados históricos que eles fornecem. Daí também uma parte dos críticos julgá-los “de

menor qualidade, por não responderem de modo satisfatório aos critérios de unidade

e organicidade que regem a composição e que colaboram na definição de

literariedade” (MARETTI, 2006, p. 120).

Posicionando-se a contrapelo da crítica literária já cristalizada, Maretti

analisou a reelaboração estética da imagem de nação presente na escrita

memorialística de Taunay. A autora assinala, e aí, acreditamos, já resolvendo a

questão, que o caráter transitivo da produção taunayana não está na dualidade

Romantismo/Realismo, mas no imaginário do país em transição para a

modernidade, que começou a partir da guerra contra o Paraguai. Nesse sentido, os

projetos políticos que foram idealizados pelo escritor na vida pública comporiam, nas

palavras de Maretti, uma imagem modernizada do Brasil, que não encontrou

respaldo no desenrolar da história11. Sendo assim, é possível à autora localizar o

9 Citamos as relevantes pesquisas de Maria Lídia Lichtscheidl MARETTI (2006), Olga Maria CASTRILLON-MENDES (2007), como também de Sheila Dias MACIEL (2008). 10 Sobre os procedimentos de ordenação do discurso é interessante a leitura de A ordem do discurso de Michel Foucault (1996). 11 Dentre os projetos políticos propostos pelo Visconde de Taunay, Maretti (2006) menciona a abolição da escravatura, o casamento civil, bem como os voltados para a instalação dos imigrantes europeus no Brasil.

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nome deste literato inscrito em diversas listas que vão desde menções à sua vida

artística e cultural até a sua atuação política no país. Tais listas estendem-se para

além da época vivida pelo escritor ao encabeçarem notas sobre cinema, poesia,

crítica, etc. Da suposição de que Taunay foi um dissidente do seu tempo, Maretti

propõe o estudo das Memórias deste escritor no que concerne à nostalgia das

propostas acionadas para a construção de um Brasil monárquico, que, na verdade,

acabaram por ser frustradas no contexto político-social da época. A pesquisadora

nos chama a atenção para que vejamos a posição de Taunay

[...] sob o signo da participação atuante no momento decisivo da história brasileira que foi o da guerra contra o Paraguai. Isto teria determinado a configuração de uma imagem de nação que supõe, por exemplo, a interiorização do olhar nacionalista para além (ou aquém?) dos estreitos limites litorâneos tradicionais (MARETTI, 2006, p. 70).

Da profusão de imagens criadas a partir da linha dos viajantes das

expedições científicas que pesquisam as regiões desconhecidas do país, foi

possível a este escritor, segundo Maretti, encenar, no processo mesmo de escrita,

os movimentos erráticos da memória que não viabilizaram a reconstrução de sua

identidade. O recurso à memória revela o modo enciclopedista pelo qual o escritor

procurou reconstruir as imagens da nacionalidade, que se desmancharam em pó

com a Guerra do Paraguai.

Dentre os demais estudos de Maretti (2008), muito nos auxiliam as

considerações que a autora faz sobre a tessitura híbrida da literatura deste escritor,

que, subscrevendo-se no formato consagrado pela burguesia da época, o folhetim,

mostra os diversos modos pelos quais o escritor representou as futilidades das

práticas sociais da sociedade brasileira. Esse mesmo veio crítico foi estudado por

Maretti (2004) com base na leitura do romance A mocidade de Trajano (1871), bem

como da comédia Por um triz coronel! (1880). Esses textos, como refere Maretti, são

representativos das práticas políticas do século XIX, que, muitas vezes, foram

silenciadas pela história oficial. Vemos, com isso, que Taunay transitou pelas mais

variadas formas de inventariar a sociedade do seu tempo, de modo a lançar mão de

estratégias que abalaram o discurso das elites intelectuais que, travestido por

valores de ordem senhorial, inevitavelmente levaria à condição agônica do país e ao

consequente atraso.

- 31 -

Com base na leitura de Maretti, que rastreia as marcas de caráter transitivo

passíveis de reconstruírem um imaginário de nação moderna, podemos ver a

existência de fissuras na literatura deste escritor que ainda não foram desveladas

pelo mecanismo crítico literário. Se existe a maquinaria de uma imagem

modernizada de Brasil na escritura taunayana, o itinerário de leitura que fizemos

observou que há, paradoxalmente, a encenação das vicissitudes por que passou o

país no período das modernizações processadas no século XIX. Nosso trabalho

propõe percorrer as fissuras que deixam expostas, na superfície da linguagem, a

crítica feita pelo escritor às inadequações da modernidade num país atrasado e

periférico, mas que desejava entrar em compasso com as grandes metrópoles

europeias por meio da implantação de ideias que, muitas vezes, deixavam à mostra

a realidade patriarcal e escravocrata subjacente ao Brasil do século XIX.

Tais considerações encaminham-nos ao estudo elaborado por Olga Maria

Castrillon Mendes (2007), cuja proposta volta-se à imagética fabricada pelo escritor

para a região mato-grossense no que se refere ao conhecimento do Brasil

interiorano que, durante a Guerra do Paraguai, contribuiu para o escritor

compreender a posição de Mato Grosso no cenário nacional e internacional. Por

meio dos liames entre memória e história, a pesquisadora delineia como a tópica

referente à tradição de viagem atravessa o conjunto dos textos produzidos por

Taunay, de modo a construir imagens pictóricas do homem, como também da terra

brasileira num momento histórico em que urgia a produção de uma identidade

nacional.

Para Castrillon-Mendes, a literatura deste escritor mobilizou o surgimento de

novos estilos na medida em que houve um processo de transformação do escritor

pelo exercício da escrita memorialística. Nesse sentido, a autora resolve a questão

da transitividade, já apontada por outros estudiosos da literatura taunayana, ao

sublinhar como o escritor sobrepuja os procedimentos retóricos e artísticos de sua

época no momento em que eleva a tradição sertaneja à categoria estética,

superando Macedo e Alencar. E mais, Castrillon-Mendes acrescenta que ele,

Ao tomar contato com o interior de Mato Grosso, faz-se um (d)escritor de paisagem, compondo uma imagem da região que irá representar, juntamente com outras imagens construídas pela Monarquia brasileira, a vontade consciente de definir a idéia de um Brasil homogêneo, mesmo que essa unidade figurasse como

- 32 -

uma utopia nacional (CASTRILLON-MENDES, 2007, p. 22, grifo nosso).

Percebemos que a estudiosa verticaliza a produção de Taunay sobre o Mato

Grosso a partir de uma perspectiva que apaga a heterogeneidade constitutiva das

imagens fabricadas pelo escritor em âmbito nacional. Torna-se necessário

observarmos que esta heterogeneidade de imagens construídas para se pensar o

interior do Brasil, ao invés de produzir um efeito de coesão, vai, pelo contrário,

realçar a importância de se buscar na diversidade brasileira o sentido da

nacionalidade. Interessa-nos, da leitura realizada por Castrillon-Mendes, a ideia de

que o exercício do olhar foi imprescindível para a produção literária de Taunay na

medida em que permitiu ao escritor mobilizar mecanismos que, articulando arte e

ciência, possibilitaram a redescoberta de um Brasil até então desconhecido.

Nas palavras de Castrillon-Mendes, as imagens pictóricas elaboradas pelo

autor de Inocência, além de contribuírem para a inserção de Mato Grosso na história

do país, ainda engendraram, juntamente com outras imagens, o processo

civilizatório imaginado à época pelo escritor. O mote da viagem projeta-se como

inventário que, segundo a autora, seria capaz de vincular um amplo arquivo de

imagens reveladoras de um sentido outro para o Brasil a partir do seu interior:

Como viajante que escreve sobre Mato Grosso, reinventa o acontecimento histórico, colocando-o no centro das discussões políticas e culturais do período, imprimindo um novo olhar sobre os embates dialéticos do ser índio ou ser branco, brasileiro ou europeu e, principalmente, de natureza (CASTRILLON-MENDES, 2007, p. 191).

Prosseguindo, Castrillon-Mendes argumenta que a narrativa de viagem,

alinhada ao processo de individuação nacional, permitiu ao escritor amalgamar uma

imagem do Brasil interiorano, que deslocou o conceito construído historicamente

sobre o sertão como lugar ignoto, projetado no limiar da civilização. Em outros

profícuos trabalhos sobre a produção de Taunay (2008a; 2008b; 2008c; 2010),

Castrillon-Mendes ressalta a importância da viagem ao Mato Grosso, na Campanha

da Cordilheira, para o refinamento do exercício artístico do escritor. A autora

relaciona a visão de mundo romântica deste escritor à tradição clássica que advém

de sua formação familiar. Daí a concepção neoclássica enquanto recuperação do

- 33 -

ideal greco-latino revelar novos sentidos em Taunay, quando de sua recriação

estética:

Assim, a concepção neoclássica de Taunay está ligada não mais à arte rígida dos antigos protótipos, porém à “reconstrução” deles; a arte não como intuição do mundo, mas um “estado de recolhimento e reflexão”, como vista por Giulio Carlo Argan (2008a, p. 233).

Por conseguinte, Castrillon-Mendes traça o perfil missionário da empreitada

feita pelo escritor, cujo escopo estava em contribuir para a manutenção dos ideais

monárquicos. O que fez dele um escritor representante de um período de mudanças

históricas e rupturas ideológicas, que foram sentidas, de modo sensível e ao mesmo

tempo crítico, em sua vasta produção literária. Por esse motivo, a autora sublinha

como Taunay conseguiu trazer a região mato-grossense acoplada ao complexo

cultural do país no que tange à necessidade de enunciar sobre o outro distante e

desconhecido, mas também passível de constituir uma das facetas do Brasil do

século XIX. Nessa mesma linha, Castillon-Mendes (2010) perfila a imagética de

Taunay ao lado da produção de Humboldt, outro pintor de quadros que compõe a

paisagística brasileira. Com esse estudo, vemos em que medida a produção deste

escritor está filiada a tradições diversas, o que possibilita encenar imagens que

ganham o efeito de um quadro do Brasil em constante devir, tal qual os movimentos

da viagem.

Os escritos de Taunay dão-nos a medida de um programa de literatura que é

uma excursão política de Brasil, visto revelar uma visão de mundo que se transforma

no transcorrer mesmo dessa viagem. Quem nos possibilita essa chave de leitura, a

que iremos seguir, é Castrillon-Mendes que assinala como no momento da

passagem da Monarquia à República o olhar do viajante-político Taunay se

metamorfoseia na medida em que começa a avaliar as consequências da política

imperial. Na procura por documentos e/ou textos que expressassem a história

política do Brasil, o escritor exercitava “a compreensão de todo o período político já

vivido, com o olhar da maturidade e das experiências vivenciadas” (CASTRILLON-

MENDES, 2008a, p. 230).

Na esteira dessas pesquisadoras que sublinham a glosa entre memória e

história na literatura deste autor, investigamos os gestos de leitura subjacentes na

construção da memória de Mato Grosso em meio ao cenário da modernização

- 34 -

maquinada no seio do Brasil do século XIX. Destacamos que os textos selecionados

como corpus de investigação para este trabalho, A Cidade do Ouro e das Ruínas

(1891) e Inocência (1872), abordam etapas específicas da história sócio-política do

Brasil a partir de um olhar voltado para o interior, Mato Grosso. O primeiro, publicado

um ano após a Proclamação da República, compreende o fim do Primeiro Reinado

(1822-1831), bem como os primórdios da Regência (1831-1840) no país, iluminando

alguns flashes relativos à participação de Taunay no cargo de relator oficial durante

a Guerra do Paraguai. Esses momentos foram marcados, de acordo com Alceu

Amoroso Lima (1966, p. 861b), por diversas lutas pela independência, nas quais

fervilhava a anarquia conforme o gesto de resistência em relação ao imperialismo

em gestação no país. Já o segundo, produzido dois anos após a Guerra do

Paraguai, abarca os anos de 1860 a 1863, período referente ao apogeu do Segundo

Reinado (1840-1889).

Será, portanto, imprescindível o entendimento de que o escritor, ao voltar seu

olhar para tais momentos históricos, esboçou a necessidade de se conhecer o Brasil

para além de suas fronteiras litorâneas. De um lado, se este conhecimento tivesse

integrado o projeto de alastramento territorial, talvez não levasse o país na maré

catastrófica da guerra. De outro, se a Monarquia não conseguiu concretizar o sonho

da modernização, a República, ao apregoar a emergência do progresso rápido, não

se distanciou dos projetos já acionados pelo modelo político que tentava negar.

Assim, a escrita sobre o Mato Grosso agencia a necessidade de se propor a

releitura dos fragmentos de um passado cujo histórico revela as frustrações da

modernização, para só assim poder conduzir o país ao desenvolvimento das

condições do progresso tão aclamado.

- 35 -

CAPÍTULO II

LIMITES, FRONTEIRAS OU UMA CARTOGRAFIA DO

SERTÃO CHAMADO BRUTO?

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2.1 Nação, Sertão e Fronteira: as interfaces do projeto modernizador no

século XIX e suas ressonâncias em Mato Grosso

O povo, como legítimo animal de carga, não tinha que protestar contra a cangalha que lhe punham ao lombo. [...] O Brasil precisava

dêsse holocausto a fim de poder gozar as vantagens da nova organização política (Visconde de Taunay, O encilhamento).

Tinha muito que mostrar; tinha tudo para se exibir e ser admirada como nação contemporânea. Manchas, é claro, havia: mas qual povo, em sã consciência, não as tinha, escondidas, em seu passado ou

presente? (Francisco Foot Hardman, Trem-fantasma...).

Pelo exposto no capítulo anterior fica-nos evidente que foram muitos os

estudiosos (ROMERO, 1960; COUTINHO, 1970; PRETI, 1977; MIGUEL-PEREIRA,

1992; ZILBERMAN, 1994; LAJOLO, 1996; MACHADO, 1997; ALMEIDA, 1999;

BOSI, 2001; ALEMBERT, 2001; SODRÉ, 2002; CASTELLO, 2004; CANDIDO,

2006b; MARETTI, 2006; CASTRILLON-MENDES, 2007; NASCIMENTO, 2008) a

verticalizarem uma investigação sobre a tópica sertaneja na literatura do Visconde

de Taunay. Propomos pensar a respeito daquilo que particulariza e individualiza o

sertão no romance Inocência ([1872] 1994), do referido escritor, no processo

histórico de expansão do ideário moderno no século XIX. Acreditamos que Taunay

agencia a emergência de um novo discurso sobre o sertão, no qual Mato Grosso

insurge enredado por diversas temporalidades históricas dissonantes, mas

coetâneas entre si quando se trata de projetar as condições da modernidade no

século XIX. Focalizamos, nesse caso, os discursos que são construídos sobre o

sertão no romance Inocência, nos quais o geográfico e o histórico se encontram

para a compreensão do Brasil como país de desenvolvimento (social, econômico e

político) desigual em virtude das adversidades sociais deste período.

Para que possamos compreender a literatura do Visconde de Taunay faz-se

mister atentarmo-nos para o contexto histórico no qual ela se insere. Com a

Independência do Brasil, conforme o estudo de Adalmir Leonídio (2001), a “questão

nacional” entrou em pauta como forma de o Estado Imperial garantir a unidade

territorial. Entretanto, como assinala o autor, a Independência não conseguiu a tão

aclamada unidade de todos os cidadãos no que tange ao respeito dos direitos

humanos, acima dos conceitos de classe, raça e, sobretudo, fortuna.

- 37 -

Segundo Ilmar Rohloff de Mattos (1989, p. 164), o acontecimento da Guerra

do Paraguai permitiu ao habitante ativo do Império uma compreensão da sequência

de mudanças que estava em curso no Brasil. O autor mostra que a construção do

Estado imperial se alicerçou no processo de formação da classe senhorial, requisito

necessário para assegurar a ordem e difundir a civilização. O paradigma da

civilidade tinha como escopo assegurar o primado da razão e do progresso, bem

como o espírito de associação e expansão do domínio sobre o país na tentativa de

integrá-lo sob o estabelecimento da ordem.

A procura por esta unidade fez do século XIX no Brasil um período marcado

por conflitos de toda ordem, os quais demandavam a imposição de um novo

conjunto de ideias capazes de nortear os requisitos de um país moderno. No plano

político (VOLPATO, 1993; ALMEIDA, 1999; SEVCENKO, 2003; LAJOLO &

ZILBERMAN, 2006), esse influxo propagou-se com o fim da invasão paraguaia ao

sul do Mato Grosso (1864-1870), momento em que

[...] assistimos ao desenlace de uma seqüência de movimentos concatenados com ela e interligados entre si, que promoveram, num lance único [...] a derrocada da estrutura senhorial do Império e a irrupção da jovem república de feições burguesas: a queda do Gabinete Zacarias (1868), o manifesto Reforma ou Revolução (1868), o advento e a difusão do novo ideário democrático-científico europeu (modernismo de 1870), a fundação do partido republicano (1870), a agitação abolicionista (1879-1888), a abolição (1888), a república (1889) e o encilhamento (1891) (SEVCENKO, 2003, p. 62).

No plano ideológico (LEITE, 1983; OLIVEIRA, 1990; SCHWARZ, 1992;

PRADO, 1993; SÜSSEKIND, 1993; ALMEIDA, 1999; SEVCENKO, 2003; LAJOLO &

ZILBERMAN 2006), as ideias estéticas e filosóficas vindas da Europa eram

incorporadas ao pensamento brasileiro12 com o objetivo de acompanhar o

progresso, “versão prática do conceito homólogo de civilização – se transforma na

obsessão coletiva da nova burguesia” (SEVCENKO, 2003, 41-42). Esse programa

iniciado desde o Romantismo ganhou força com a proclamação da República, mas

não foi forte o suficiente, como desejavam os republicanos, para iniciar o país no rol

das nações modernas.

12 Retomaremos mais adiante as considerações que Roberto Schwarz (1992, p. 24) apresenta sobre o emprego “fora de lugar” das ideias europeias na realidade brasileira que, segundo o autor, “envolvia as relações de produção e parasitismo no país, a nossa dependência econômica e seu par, a hegemonia intelectual da Europa, revolucionada pelo Capital”.

- 38 -

Nesse momento a busca pela nacionalidade torna-se o paradigma seguido à

risca pelo programa político em voga no Brasil. A literatura não ficou de fora. Desde

o século XVIII, como aborda Lúcia Lippi de Oliveira (1990), as principais teorias do

progresso eram formuladas com uma atenção especial aos relatos dos viajantes.

Partindo destes relatos, a imaginação ilustrada entrou em contato com culturas

distintas das do mundo ocidental, e disso temos como exemplo a Carta de Pero Vaz

de Caminha. Os supostos selvagens da América, de acordo com a referida autora,

foram eleitos os representantes contemporâneos dos estágios anteriores da

humanidade. Onde estava a nação? Este era o questionamento que muitas nações

fizeram para poderem encontrar a identidade que as definisse. Nação que não

poderia ser situada nos centros eivados com a cultura europeia, no caso do Brasil.

Parte-se de uma vontade de verdade orientada pelo “desejo de afirmar o

direito de cada povo de definir sua própria constituição política, moral e cultural

(PEDROSA, 2000, p. 283). O próprio sentido da expressão nacionalidade foi sendo

deslocado como importante fator político e cultural. É o que nos mostra Célia

Pedrosa (2000) quando destaca que o significado primitivo de nacionalidade era

definido como o lugar de nascimento de um indivíduo, mas que no século XVII

espraiou-se para o sentido de origem e descendência comuns a vários indivíduos.

Com o apogeu da Revolução Francesa, a nacionalidade institui-se como adjetivo de

todo povo soberano, cuja organização, independentemente de unidade étnica,

estava em torno de um Estado que teria a posse de determinado território. A junção

dos três significados funcionou para definir o dispositivo da nacionalidade a partir do

século XIX.

Este projeto de individuação nacional é entendido (OLIVEIRA, 1990;

SÜSSEKIND, 1993; ALBUQUERQUE JR, 2006) como um processo de construção

de origens comuns e corresponde ao novo tempo da modernidade, no qual os

sujeitos são disciplinados para fazer parte do todo social. A necessidade de ter uma

nação fez com que os sujeitos superassem as vinculações localistas para se

identificarem com um espaço territorial delimitado por fronteiras construídas

historicamente. Sabemos com Oliveira (1990, p. 57) que o investimento na

construção da nacionalidade circunscreveu-se ao debate das elites intelectuais, o

que resultou na pintura do “geográfico” como “parte do imaginário culto do Brasil”.

Nessa esteira, surge uma necessidade de domesticar a natureza, pois esta em seu

- 39 -

caráter ameaçador poderia “esmagar o homem que se pretendia civilizado nos

trópicos” (OLIVEIRA, 1990, p. 57).

Segundo Dante Moreira Leite (1983, p. 176), a “celebração da natureza”

constituiria o procedimento base para a construção de uma imagem positiva do

Brasil. A literatura, nesse sentido, teve papel imprescindível para demarcar a

imaginação geográfica na escrita dos românticos brasileiros. Na perspectiva teórica

de Flora Süssekind (1993, p. 457), coube à literatura

[...] delimitar, a seu modo, o território do Império, cumprindo, dessa maneira, via ficção, a exigência tão repetida no Brasil do Oitocentos, de “mapas bons e exatos” para que se pudessem conhecer melhor as “cousas da pátria”. Para que, à falta de um sentimento espontâneo de nacionalidade, coisa que as rebeliões provinciais deixavam patente, se fortalecesse cartográfica, literária ou paisagisticamente a idéia de uma comunidade imaginária delimitada nacionalmente.

Apontava-se o interior no mapa, seguia-se a cartografia rumo ao sertão. Era

na paisagem dos interiores intocados que se buscava a cultura originária

representante do país. Só assim seria possível superar a debilidade da cultura

brasileira graças à valoração da natureza (OLIVEIRA, 1998, p. 2).

Com a Guerra do Paraguai, Mato Grosso estreou no cenário destes sertões

desconhecidos, muito, muito distantes do litoral. Urgia a necessidade de se

conhecer o Brasil. A Expedição Langsdorff (CASTRILLON-MENDES, 2007;

AMBRIZZI, 2008) já havia iniciado este empreendimento enciclopédico de mapear e

registrar as regiões desconhecidas.

Mais do que idealizar a natureza também desconhecida do interior, como

forma de encontrar aquilo que representasse a nacionalidade brasileira, acreditamos

que o romance Inocência interpenetra o geográfico e o histórico de tal modo que traz

à superfície da linguagem as fraturas inerentes a este projeto de conhecimento do

país. Fraturas estas que são encenadas na formulação dos diversos imaginários

sobre o sertão em Inocência.

Como ponto de partida para nossa discussão, mobilizamos a cena do primeiro

capítulo do romance intitulado “O Sertão e o Sertanejo”:

Corta extensa e quase despovoada zona da parte sul-oriental da vastíssima província de Mato Grosso a estrada que da Vila de Sant'Ana do Paranaíba vai ter ao sitio abandonado de Camapuã.

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Desde aquela povoação, assente próximo ao vértice do ângulo em que confinam os territórios de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso até ao Rio Sucuriú, afluente do majestoso Paraná, isto é, no desenvolvimento de muitas dezenas de léguas, anda-se comodamente, de habitação em habitação, mais ou menos chegadas umas às outras, rareiam, porém, depois as casas, mais e mais, e caminham-se largas horas, dias inteiros sem se ver morada nem gente até ao retiro de João Pereira, guarda avançada daquelas solidões, homem chão e hospitaleiro, que acolhe com carinho o viajante desses alongados páramos, oferece-lhe momentâneo agasalho e o provê da matalotagem precisa para alcançar os campos de Miranda e Pequiri, ou da Vacaria e Nioac, no Baixo Paraguai. / Ali começa o sertão chamado bruto (TAUNAY, 1994, p. 17, grifo nosso).

A primeira imagem que temos ao ler a cena inicial de Inocência diz respeito

ao olhar onipotente do narrador que perspectiviza, de modo tridimensional, a estrada

que atravessa a “vastíssima província de Mato Grosso”. Temos o vazio na imensidão

até a chegada... ao território abandonado. De um ponto elevado, o narrador delimita

o elo de contato entre os quatro territórios que formam a base central do país: São

Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Este ponto nada mais é do que a Vila de

Sant’Ana do Paranaíba, sendo desta povoação que o narrador embrenha-se no

vazio do sertão. Adentra-se mais e mais. Dezenas de léguas, as habitações

rareadas, dias inteiros, largas horas são demarcadas nesta descrição para mostrar

que o vazio torna-se perceptível. Vazio do que dantes nunca se havia conhecido ou

daquilo que foi esquecido sem a menor vontade de se conhecer?

Despontam coordenadas geográficas que afastam a possibilidade de a cena

corresponder apenas a mais um mito fundador na história da literatura brasileira

(SANT’ANNA,1979; BOSI, 1992; JOBIM, 1997; ALMEIDA, 1999; CHAUÍ, 2001), o

qual foi tão recorrente na escrita romântica de José de Alencar. A delimitação

geográfica, fundamental para o conhecimento empírico do Brasil, constitui a base

sobre a qual os demais elementos constituintes da nação encontram apoio.

Ampliando essa discussão trazemos a pesquisa de Mônica Velloso (1988) que

discorre sobre a vinculação da literatura às ideias positivistas (ciência) que, no final

do XIX, fomentou a crítica a propósito do Romantismo em favor da estética

naturalista. Tal procedimento ancorava o pressuposto de que a literatura teria maior

legitimidade se partisse do ideário cientificista proveniente dos ares europeus:

Para conhecer o Brasil, era necessário dominar um instrumental de análise que passasse pelo crivo da cientificidade. Munido deste

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aparato, nosso intelectual teria melhores condições de apreender a nacionalidade, diagnosticando seus males e propondo terapias (VELLOSO, 1988, p. 242).

Contudo, no desenrolar narrativo em Inocência visualizamos a substituição da

perspectiva científica por outra que traz a plasticidade da natureza sertaneja, o que

agencia um ponto de partida outro para compreender o sertão. O efeito cartográfico

produzido pela descrição científica do narrador mostra-nos um sertão sendo

colocado em nível histórico, no qual é possível arregimentar fronteiras que o

legitimam como sendo parte constitutiva do país. Como discorre Pierre Bourdieu

(2009b, p. 116, grifo nosso), o discurso regionalista configura-se pelo seu caráter

performativo que objetiva “impor como legítima uma nova definição das fronteiras

e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada – e, como tal,

desconhecida – contra a definição dominante, portanto, reconhecida como

legítima, que a ignora”. O grifo torna-se válido, pois veremos que o narrador vai

justamente transitar em torno das fissuras subjacentes à definição dominante sobre

o conceito de sertão.

São estas coordenadas que permitem ao narrador encontrar uma terceira

margem no vértice do sertão: o retiro de João Pereira. Pausa. Abre-se parágrafo

para exprimir que nesta localidade “começa o sertão chamado bruto”. Aqui se institui

o paradoxo no termo “sertão”, tendo em vista que o conceito de “bruto” em sua raiz

latina significa: pesadão, moleirão, bronco, acanhado. Na acepção dicionarizada

encontramos diversos significados para a palavra “bruto”: irracional, grosseiro, rude,

tosco, tal qual sai da natureza, animal irracional, violento, aquilo que não foi

trabalhado. É possível que o narrador fale deste sertão acanhado porque escondido

nos confins do Brasil? Ou do sertão que ainda não foi lapidado pelo espírito

civilizatório? Ou mesmo do sertão silenciado porque deixado à revelia do vazio? Do

sertão que é preciso enunciar para poder controlar seus poderes e perigos?

A epígrafe que abre o capítulo “O Sertão e o Sertanejo” estabelece uma

conexão profunda com a definição do “sertão chamado bruto”:

Todos vós bem sentis a ação secreta Da natureza em seu governo eterno; E de ínfimas camadas subterrâneas Da vida o indício à superfície emerge.

Goethe, Fausto, 2ª parte (apud TAUNAY, 1994, p. 17).

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Com a epígrafe retirada de Goethe, percebemos que o narrador figura a

natureza como independente do mundo social na medida em que ainda não está

sujeita ao controle político-administrativo do Estado. Eterno e subterrâneo aparecem

de modo ambivalente justamente para tensionar o imaginário paradisíaco da

natureza. A vida nasce do subterrâneo, diz-nos a epígrafe. Se pensarmos no

imaginário diabólico do Brasil-Natureza, construído desde Anchieta até Guimarães

Rosa (CHAUÍ, 2001, p. 66), veremos que o caráter da nação brasileira também está

no profundo do caos subterrâneo, daquilo que está dilacerado e condenado ao

sofrimento eterno. O narrador constitui, portanto, a própria Musa que deseja cantar

aquilo cuja existência está soterrada, porque insurge apenas como presença vazia.

Tais apontamentos permitem-nos delinear como se formulou historicamente o

sentido da palavra “sertão”. Quanto a isso recorremos a Janaína Amado (1995) para

quem o “sertão”, pelo viés do pensamento social, constitui uma categoria de

compreensão do Brasil, inicialmente, na condição colonial e, após o século XIX,

como nação. E mais: Amado acrescenta que o vocábulo “sertão” foi empregado

pelos portugueses desde o século XIV, “para referir-se a áreas situadas dentro de

Portugal, porém distantes de Lisboa” (1995, p. 4).

Amado mostra que a categoria “sertão” a partir do século XV foi empregada

“para nomear espaços vastos, interiores, situados dentro das possessões recém-

conquistadas ou contíguas a elas, sobre os quais pouco ou nada sabiam” (1995, p.

4). De origem medieval, na Renascença a palavra “sertão” designava regiões

ignotas, impassíveis ao poderio da Coroa Portuguesa. Tópica construída ao longo

da colonização que, segundo Amado, foi bastante difundida entre as autoridades do

Império português no Brasil:

De forma simplificada, pode-se afirmar, portanto, que, às vésperas da independência, “sertão” ou “certão”, usada tanto no singular quanto no plural, constituía no Brasil noção difundida, carregada de significados. De modo geral, denotava “terras sem fé, lei ou rei”, áreas extensas afastadas do litoral, de natureza ainda indomada, habitadas por índios “selvagens” e animais bravios, sobre as quais as autoridades portuguesas, leigas ou religiosas, detinham pouca informação e controle insuficiente (AMADO, 1995, p. 6).

De acordo com este ponto de vista, a autora postula que no Brasil Colonial

“sertão” dimensionava os “espaços amplos, longínquos, desconhecidos, desabitados

ou pouco habitados” em oposição ao “litoral”. Este, por sua vez, não dizia respeito

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apenas à extensão física junto ao mar, mas principalmente ao “espaço conhecido,

delimitado, colonizado ou em processo de colonização, habitado por outros povos

(índios, negros), mas dominado pelos brancos, um espaço da cristandade, da

cultura e da civilização” (AMADO, 1995, p. 7). Sendo as faces constitutivas da

mesma moeda, tais categorias foram elaboradas concomitantemente, de modo que

sem o referente “litoral” esvaziar-se-ia o sentido de “sertão”.

A categoria “sertão” foi assimilada pelos colonos interditados pelo Império,

segundo uma acepção libertária e próspera. De acordo com o estudo de Amado, o

imaginário negativo de “sertão” foi aos poucos sendo desconstruído pelo projeto

nacional de alastramento do domínio português, restando como significado último o

de “interior”. A investigação de Amado é bastante significativa visto nos auxiliar na

interpretação da geografia desenhada pelo narrador de Inocência para focalizar a

região sertaneja. Geografia que mostra como a distância em relação à Corte no Rio

de Janeiro atuou como fator de atraso para o Estado de Mato Grosso. Nesse

sentido, a ênfase dada pelo narrador à distância da região mato-grossense sugere-

nos um dos efeitos construídos para a configuração do sertão no romance

Inocência. Outro efeito pode ser visto na projeção da natureza:

Ora é a perspectiva dos cerrados, não desses cerrados de arbustos raquíticos, enfezados e retorcidos de São Paulo e Minas Gerais, mas de garbosas e elevadas árvores que, se bem não tomem, todas, o corpo de que são capazes à beira das águas correntes ou regadas pela linfa dos córregos, contudo ensombram com folhuda rama o terreno que lhes fica em derredor e mostram na casca lisa a força da seiva que as alimenta; ora são campos a perder de vista, cobertos de macega alta e alourada, ou de viridente e mimosa grama, toda salpicada de silvestres flores; ora sucessões de luxuriantes capões, tão regulares e simétricos em sua disposição que surpreendem e embelezam os olhos; ora, enfim, charnecas meio apauladas, meio secas, onde nasce o altivo buriti e o gravata entrança o seu tapume espinhoso.

Nesses campos, tão diversos pelo matiz das cores, o capim crescido e ressecado pelo ardor do sol transforma-se em vicejante tapete de relva, quando não lavra o incêndio que algum tropeiro, por acaso ou mero desenfado, ateia com uma faúlha do seu isqueiro.

Minando à surda na touceira, queda a vívida centelha. Corra daí a instantes qualquer aragem, por débil que seja, e levanta-se a língua de fogo esguia e trêmula, como que a contemplar medrosa e vacilante os espaços imensos que se alongam diante dela. Soprem então as auras com mais força, e de mil pontos, a um tempo, rebentam sôfregas labaredas que se enroscam umas nas outras, de súbito se dividem, deslizam, lambem vastas superfícies, despedem ao céu rolos de negrejante fumo e voam,

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roncando pelos matagais de tabocas e taquaras, até esbarrarem de encontro a alguma margem de rio que não possam transpor, caso não as tanja para além o vento, ajudando com valente fôlego a larga obra de destruição.

Acalmado aquele ímpeto por falta de alimento, fica tudo debaixo de espessa camada de cinzas. O fogo, detido em pontos, aqui, ali, a consumir com mais lentidão algum estorvo, vai aos poucos morrendo até se extinguir de todo, deixando como sinal da avassaladora passagem o alvacento lençol, que lhe foi seguindo os velozes passos.

[...] Por toda a parte melancolia; de todos os lados tétricas perspectivas. (TAUNAY, 1994, p. 18-19).

De início, o narrador situa-nos dentro da natureza mato-grossense,

enumerando aqui e acolá os tipos de árvores encontradas, as formas melindrosas,

os desenhos etc., com um verdadeiro arsenal de adjetivos (“garbosas”, “elevadas”,

“folhuda”, “força”, “altivo”) que completam uma paisagem luxuriante. A observação

científica, por assim dizer, cede lugar a uma perspectiva do sertão como topos do

paraíso que, ao contrário das propostas de muitos escritores românticos, não tende

a uma imagem mítica fundadora do Brasil.

Reportamo-nos a Oliveira (1998), que dispõe sobre as três perspectivas

construídas historicamente a propósito do tema “sertão”. A primeira se expressa com

o Romantismo, que vê o sertão como paraíso, onde tudo é perfeito e bom. A

segunda perspectiva, que tem como representante Euclides da Cunha, associa o

sertão ao inferno, como sendo uma região destemperada na qual o fatalismo é

inevitável. Por último, o sertão passa a ser visto como purgatório, lugar de travessia

na máxima de Guimarães Rosa. No fragmento acima mencionado de Inocência

temos, a priori, a imagem da vastidão territorial do país sendo superada pelo

discurso referente à grandeza dos seus recursos naturais, os quais denotam o

caráter heteróclito do sertão13.

Quanto a isso, recorremos a Ángel Rama (2001), para quem a unidade da

América Latina foi na verdade apenas um projeto imaginado por um grupo de

intelectuais. Para o autor, “Sob essa unidade, real como projeto, real quanto às

bases de sustentação, desdobra-se uma interior diversidade que é a definição mais

precisa do continente” (2001, p.281). Essa perspectiva pode ser relacionada com o

gesto do narrador ao substituir aos poucos a imagem indivisa e paradisíaca do

13 A imprecisão da paisagem ora de uma forma, ora de outra, traz-nos esta imagem da heterogeneidade constitutiva do sertão retomada na frase “Ao que, este mundo é muito misturado...” (2006, p. 221) de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas.

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sertão por outra na qual ele está associado ao inferno, o vário. Numa glosa entre os

três elementos – terra, fogo e ar, o narrador constrói uma imagem de destruição ao

imaginário do sertão. O fogo, elemento produzido pela intervenção humana na

natureza, vai se espraiando com a interferência do vento. Este recurso imagético

sugere o aniquilamento da visão positiva da natureza, como forma de renascer das

próprias cinzas, como o pássaro de Fênix, uma perspectiva outra para se pensar o

Brasil.

A necessidade de construir novas formas de refletir sobre a sociedade

brasileira pode ser explicada, ainda, pelo contexto histórico da Guerra do Paraguai.

Sabemos que Inocência foi escrito depois desta empreitada bélica, a qual interferiu

de modo ambíguo na dinâmica da história do Brasil. A pesquisadora Castrillon-

Mendes (2007, p. 129), por exemplo, assevera que, se objetivamos estudar as obras

de Taunay, escritas nas décadas de 70 e 80 do XIX, faz-se mister não perder de

vista que são resultantes da experiência do escritor no episódio referente à Retirada

da Laguna e que, portanto, têm por alicerce as anotações do Relatório Geral.

Como bem assinala Maria Lídia Lichtscheidl Maretti, e aí, acreditamos, já

resolvendo a questão, o caráter transitivo da produção literária de Taunay não está

na dualidade Romantismo/Realismo, mas numa certa imagem de nação, cujo signo

maior, segundo a autora, incide na condição larvar do inseto formica leo observado

pelo escritor durante a sua participação na Guerra. Para a autora, a figuração deste

inseto nas Memórias ([1948] 2004) traz à tona a condição “em que se encontra o

país neste momento histórico de transição para a modernidade, de que a guerra

representa uma fase” (2006, p. 147). Se a guerra da Tríplice Aliança propicia o

discurso transitivo, Maretti acredita que os romances que mais claramente

evidenciam a experiência adquirida nas viagens feitas pelo escritor durante a guerra

são A Mocidade de Trajano (1871) e Inocência (1872).

Alguns pesquisadores (IANNI, 1992; CARVALHO, 2007) entendem que a

Guerra do Paraguai foi um poderoso fator para o envolvimento político do povo no

imaginário de coletividade, o que fortaleceu o projeto de construção de uma

identidade nacional. A Guerra, assim como a língua de fogo do romance Inocência,

constituiu um símbolo da destruição do projeto civilizatório proposto pelo Império à

região mato-grossense. Isto se deve ao fato de a Guerra ter impedido a navegação

no Prata e, consequentemente, o livre comércio na Província mato-grossense

(VOLPATO, 1993). Após o conflito, o que restou foi a imagem de desalento: “de

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todos os lados tétricas perspectivas”. A fratura maior exposta pela guerra mostrou-

nos que a ideia nacional não passou de um sonho. Sonho este que na verdade era

um pesadelo, do qual pudemos ver os contrastes inerentes à organização das

instituições brasileiras, bem como as mazelas oriundas do cativeiro, que à época

tanto impedia a formação de um exército de cidadãos.

O idealismo referente ao pressuposto de uma nação homogênea necessária

ao país depois da guerra é substituído pela imagem putrefata da morte:

Nessas aflitas paragens, não mais se ouve o piar da esquiva perdiz, tão freqüente antes do incêndio. Só de vez em quando ecoa o arrastado guincho de algum gavião, que paira lá em cima ou bordeja ao chegar-se à terra, a fim de agarrar um ou outro réptil chamuscado do fogo que lavrou.

Rompe também o silêncio o grasnido do caracará, que aos pulos procura insetos e cobrinhas ou, junto ao solo, segue o vôo dos urubus, cujos negrejantes bandos, guiados pelo fino olfato, buscam a carniça putrefata.

É o caracará comensal do urubu. De parceria se atira, quando urgido pela fome, à rês morta e, intrometido como é, a custo de alguma bicada do pouco amável conviva, belisca do seu lado no imundo repasto.

Se passa o caracará à vista do gavião, precipita-se este sobre ele com vôo firme, dá-lhe com a ponta da asa, atordoa-o, atormenta-o só pelo gosto de lhe mostrar a incontestada superioridade.

Nada, com efeito, o mete em brios (TAUNAY, 1994, p. 19, grifo nosso).

O processo de deterioração da natureza torna-se bastante proveitoso para os

animais carniceiros. Aqui o sertão aparece marcado pela imagem trágica do instinto

de sobrevivência. Instinto este que o narrador encena mediante o realce feito à

figura do caracará como sendo um animal dependente dos restos da carniça alheia.

A cena trágica ganha status cômico no momento em que o narrador ironiza o

caracará como “intrometido”, a quem nada “o mete em brios”. A referida cena pode

ser interpretada como uma metáfora das relações sociais no Brasil, a partir das

quais encontramos o favor, ao lado da selvagem “lei do mais forte”, como

mecanismo a possibilitar meios de subsistência ao branco pobre.

Diante de tais palavras, trazemos a proposição de Roberto Schwarz (1992) a

respeito das relações de poder que no Brasil foram condicionadas ao mecanismo do

favor. A ideologia liberal, de cunho retórico em nosso país, conforme argumenta

Schwarz, coexistiu com o escravismo, a ponto de fazer do favor uma prática de

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dependência marcada nas relações entre a classe dominante e a classe majoritária

no Brasil, a dos homens livres e pobres. “O favor é a nossa mediação quase

universal” (1992, p. 16), assevera Schwarz ao expor que, diferentemente da

escravidão, que tinha como alicerce a sujeição pela força, a lógica do favor

maquiava os modos de dominação pelo intermédio ideológico nas relações sociais.

O estudo de Schwarz permite-nos pensar como Taunay abriu as fendas pelas

quais foi possível contemplar as contradições ideológicas no Brasil do século XIX. O

papel exercido pelo gavião, ao demonstrar a sua superioridade, agencia que o

funcionamento do poder em nosso país não ocorreu a partir de embates efetivos

entre os grupos sociais existentes. Isso porque a tópica da liberdade não passava de

uma estratégia ideológica que desejava apassivar os conflitos mediante uma retórica

idealizadora da imagem de Brasil indiviso e singular, no qual homem e natureza

conviviam em harmonia celestial. Somente com a existência da liberdade seria

possível àqueles sobre os quais o poder é exercido uma atitude de resistência.

Dessa forma, a presença do gavião atua como propulsor da imagem de

dependência ainda existente no Brasil, pois sugere que o caracará, apesar de

favorecido pelo urubu, não deve esquecer a sua posição de assujeitado nas

relações sociais.

A relação de favor entre o caracará e o urubu encena ainda o mecanismo das

relações de poder num país que desejava a todo custo alinhar-se às grandes nações

modernas, mas não escondia as marcas do Brasil arcaico que insistiam em

demonstrar sua força. A Guerra contra o Paraguai mostrou um pouco dos contrastes

que existiam no discurso moderno sobre o país no século XIX. Fez-nos ver que a

busca pela modernidade ficou restrita ao aparato retórico dos intelectuais

oitocentistas ou, mesmo, na imagem ilusória da locomotiva figurada no sertão em

Inocência:

Quem viaja atento às impressões íntimas, estremece, mau grado seu, ao ouvir nesse momento de saudades o tanger de um sino muito, muito ao longe, ou o silvar distante de uma locomotiva impossível. São insetos ocultos na macega que trazem essa ilusão, por tal modo viva e perfeita, que a imaginação, embora desabusada e prevenida, ergue o vôo e lá vai por estes mundos afora a doudejar e a criar mil fantasias (TAUNAY, 1994, p. 21, grifo nosso).

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Pela imagem da distância referente ao tanger do sino, bem como dessa

locomotiva impossível, apenas arquitetada ilusoriamente pela própria natureza,

vemos que o narrador põe em relevo a distância entre o projeto modernizador da

nação e o universo sertanejo. Segundo Süssekind (1993), há no Brasil oitocentista

um interesse dos letrados locais pelos mais diversos relatos de viagem pelo país

não apenas sob o signo da descoberta de uma origem, mas como forma de panfletar

uma imagem positiva de Brasil ao “olhar de fora”. Nestes sertões nos quais a

civilização ainda não chegou, só podemos apreender a quimera da modernidade, diz

o narrador.

Francisco Foot Hardman (1988b) investiga a modernidade como fenômeno da

era do espetáculo, cuja síntese encontra-se nas grandes exposições universais das

quais o Brasil participou como forma de entrar na categoria dos países civilizados.

Para o referido autor, tal investimento foi encabeçado por Dom Pedro II, que

procurou dar visibilidade para o Brasil ao promover exposições em suas diversas

regiões. O autor sinaliza algumas das tentativas de sincronizar as regiões mais

atrasadas do país com o movimento universal do maquinismo como, por exemplo, a

construção da ferrovia Madeira-Mamoré (1907-1912).

Ora, essas palavras possibilitam-nos retomar a assertiva de Hardman

segundo a qual a retórica dominante necessitava “auto-iludir-se para tornar seus

ouvintes ainda mais receptivos ao ensaio geral de ilusões” (1988a, p. 23). Resulta

disso o empenho de engenheiros, anarquistas e literatos em emoldurar a suposta

barbárie no discurso progressista da civilização:

Era preciso recobrir a vertigem do vazio com imagens e palavras. Com discursos que recortassem os sertões de ferrovias. A representação do país moderno dessa forma se constituía. Já era possível se exibir in totum e nos detalhes. Até as fraturas estavam expostas (HARDMAN, 1988a, p. 28).

É somente como discurso retórico que a modernidade poderia ser imaginada

no sertão mato-grossense. Torna-se interessante contrapormos a esta imagem

ilusória da modernidade o discurso que circunscreve o sertão como lugar de

misérias. A partir deste momento poderemos visualizar o movimento dialético que

está na base do conceito de sertão em Inocência. Atentar-nos-emos aos efeitos

produzidos sobre o sertão na fala da personagem Pereira, o cômico e ao mesmo

tempo conservador pai de Inocência:

- 49 -

[...] Deus Nosso Senhor Jesus Cristo tem olhado para mim, e me julgo bem amparado, sobretudo quando me lembro do despotismo de misérias, que vai por estas terras fora... Cruzes! nem falar nisto é bom... Diga-me porém uma coisa: vosmecê para onde se atira? (TAUNAY, 1994, p. 27, grifo nosso).

─ Homem, conforme. Gente doente é mato; mas também

mofina como ela só (TAUNAY, 1994, p. 29). ─ Aí vem gente... Estou ouvindo passos de animal montado...

sem dúvida é algum podre engorovinhado de doença. Isto de moléstias, não faltam no mundo. Também há tanta maldade, que não pudera ser por menos (TAUNAY, 1994, p. 88, grifo nosso).

A tópica do sertão como lugar doente, condenado a misérias de toda sorte,

anacrônico, se pensarmos no positivismo científico em voga na época, lança para

segundo plano o fascínio da modernidade trazido pela imagem da locomotiva. O

efeito fatalista produzido por esta imagem do sertão denota uma posição crítica anti-

idealista investida na figura do narrador de Inocência. O escritor também traz à baila

o temário do encanto por mecanismos modernos no conto “Pobre Menino!”,

publicado em 1901. Neste conto, o narrador, ao projetar figuras de fantasmagoria

sobre a situação trágica vivida pelo pobre menino Alberto, mostra a descrença

quanto ao ideal modernizador num país de estabilidade tão precária. O efeito de

progresso materializado na imagem da locomotiva em movimento é retardado dentro

do conto, pois a doença figura o elemento que entravaria a evolução.

Como neste conto, temos em Inocência uma imagem negativa

arregimentando o sertão como doente. “Pouca saúde e muita saúva, os males do

Brasil são” é a proposição repetida em várias passagens do romance Macunaíma,

escrito por Mário de Andrade em 1928, que arregimenta o imaginário do Brasil

segundo o qual as doenças e a formiga saúva existentes em nosso país sobrepujam

o discurso progressista da época. Escrever sobre o sertão encena a forma

encontrada por Taunay para enunciar que as regiões afastadas do litoral precisavam

ser (re)conhecidas mediante um projeto moderno de integração nacional para além

da retórica academicista. Se este (re)conhecimento tivesse sido efetivado de modo

satisfatório talvez não teria encaminhado o país ao fim catastrófico da Guerra do

Paraguai14.

14 Lembremos que a expedição Langsdorff é caracterizada por Taunay como uma “malaventurada tentativa scientifica”. Cf. TAUNAY, 1923, p. 23. Em relação à Guerra encontramos diversas

- 50 -

Notamos, assim, que o imaginário primordial do sertão vai oscilar no decorrer

da narrativa. Cabe aqui apresentarmos o diálogo entre Pereira e Meyer a propósito

de certa imagem de Brasil:

─ Salta! – atalhou Pereira exultando de prazer – Então viva cá o nosso Brasil. Nele ninguém se lembra até de ter fome. Quando nada se tenha que comer, vai-se ao mato, e fura-se mel de jataí e manduri, ou chupa-se miolo de macaubeira. Isto é cá por estas bandas, porque nas cidades, basta estender a mão, logo chovem esmolas... Assim é que entendo uma terra... o mais é desgraça e consumição.... (TAUNAY, 1994, p. 64, grifo nosso).

Como sugerem as estudiosas Lúcia Miguel-Pereira (1992) e Irene A.

Machado (1997), a personagem principal do romance Inocência é menos a

personagem homônima ou Cirino do que Pereira. Nesse caso, o itinerário do

narrador se completa quando ele estabelece um contraponto em relação ao

posicionamento de Pereira no objetivo de revelar o atraso do país. Descobrimos,

deste modo, que o fio condutor da história está nesta personagem à qual o narrador

se vincula. Sendo assim, agenciamos que Pereira direciona seu discurso ao alemão

Meyer, o que nos permite apreender aquilo que Süssekind denomina como

propaganda de Brasil alinhada ao programa estético-ideológico romântico de

“abrasileiramento – paisagístico, idiomático, temático – apaixonado e obrigatório”

(1993, p. 455), que, contraposto ao histórico de rebeliões provinciais do período

regencial e do começo do Segundo Reinado, promove a imagem de país colorido e

multiforme.

Os intelectuais do século XIX guiados por um espírito ilustrado (LEITE, 1983;

LIPPI, 1990; PRADO, 1993; SÜSSEKIND, 1993; JOBIM, 1997; SEVCENKO, 2003;

BASTIDE apud ARÊAS 2006) também acreditavam que os problemas nacionais

poderiam ser sanados com a panaceia de acoplar uma imagem positiva de Brasil às

ideias importadas da Europa. Para pensarmos como o Brasil é imaginado por

Pereira sob o fio condutor do pensamento das elites intelectuais brasileiras, muito

nos auxilia o estudo de Antonio Arnoni Prado (1993, p. 599), cujo argumento

discorre sobre em que medida a metáfora da pátria produzida no romantismo e

passagens nas quais a ideia central pode ser sintetizada nesta proposição: “Daí a eventualidade infalivelmente próxima de uma retirada a executar-se, sem dados de antemão estudados, e sob condições em que as tentativas só podiam conduzir a um desastre; e isto com a deplorável conseqüência de atrair novamente para o território brasileiro, a ocupação do Paraguai, acompanhada de todos os horrores” Cf. TAUNAY, 2005, p. 60.

- 51 -

perpetuada além das fronteiras do segundo reinado ilustrou uma aparente

homogeneidade atribuída a um país em vias de ruir, mas conivente com as

imposições do progresso. Daí, segundo Prado, o duplo papel atribuído à literatura

brasileira na figuração dos valores em jogo:

[...] estimulada pela abertura da vida intelectual ao clima renovador presente no ritmo moderno das cidades, alinhou-se como instrumento à disposição das elites na busca desse projeto nacional que só podia avançar de passo acertado com o ideário cosmopolita dos novos tempos, pressuposto agora indispensável à legitimação da República como expressão política de um Brasil moderno, soberano e independente (PRADO, 1993, p. 599).

Com base na proposição de Prado, destacamos o descompasso existente

entre a imagem putrefata da natureza sertaneja e a propaganda civilizatória

mobilizada no discurso do sertanejo Pereira. Discurso este que, como vimos, está

afinado com a mentalidade dos intelectuais brasileiros do século XIX sobre o

imaginário positivo do Brasil. Temos, assim, configurada a denúncia da condição

anacrônica do país e o malogro da tentativa de suplantar o atraso com propostas

direcionadas à panfletagem de uma imagem utópica capaz de salvaguardar a

sublevação do universo sertanejo. Relacionamos a reflexão da pesquisadora Maretti

(2006, p. 152) segundo a qual, “no caso de Taunay, a recordação existe no seu

registro porque um mundo ruiu – o da monarquia – e a nostalgia surge para

preencher o vazio e recompor as possibilidades de resistência ao futuro”. Sendo que

não há o recurso à reminiscência em Inocência, consideramos que também o

escritor neste romance expõe que, se o mundo da monarquia estava ruindo, a

modernidade também está num horizonte impossível, como a imagem da locomotiva

apresentada no capítulo “O Sertão e o Sertanejo”.

Como propõe Aderaldo Castello (2004), o romance Inocência, mais do que

indicar os costumes predominantes no sertão, aborda as circunstâncias e

impressões do Brasil como uma sociedade fechada, ainda enraizada na lógica do

patriarcalismo. Esta proposição nos permite ver que a personagem Pereira irrompe

como representante do mecanismo de poder que norteou as práticas políticas no

Brasil do século XIX15. Isto pode ser observado no desconcerto entre o discurso

positivo sobre o país e o processo produtivo fundamentado na exploração da terra 15 Terry Eagleton (2001, p. 268) define o político como uma forma de organizar “conjuntamente [a] vida social, e as relações de poder que isso implica”.

- 52 -

por meio do trabalho escravo, como podemos observar no enunciado que Pereira

direciona a Cirino:

─ Agora – anunciou o mineiro saindo da mesa – vou dar um giro pela minha roça, onde estão na capina três negros cangueiros, um dois quais é o meu fazendeiro; depois hei de visitar uns conhecidos meus, avisando-os da sua chegada doutor (TAUNAY, 1994, p. 65).

A presença da escravidão em Inocência atesta que a nódoa do atraso não

havia sido removida do histórico da sociedade brasileira. A personagem Pereira, ao

ser configurada como um senhor de escravos, sugere-nos em que medida a

modernidade chegou ao Brasil de forma contraditória, pois não conseguiu apagar o

antigo sistema das relações de trabalho em nome da ideologia liberal. Se o Império

quis encobrir a questão escravista mediante a ideia de que os escravos tinham

afeição pelos seus senhores e vice-versa, notamos que Taunay vai justamente

tensionar esta tópica ao figurar a persistência do cativeiro até mesmo nos confins

mais recônditos do Brasil, como o sertão mato-grossense. Isto fica mais evidente

quando levamos em consideração que o romance Inocência foi traduzido para o

francês em 1896, o que demonstra como o escritor realizou um movimento contrário

à proposta panfletária do Império. A propaganda do Brasil como nação moderna e

indivisa em Inocência termina por revelar o seu atraso em nível de escuridão

medieval no momento em que trabalha com os discursos construídos sobre o sertão.

O procedimento de glosar diferentes discursos sobre o sertão estabelece um

contraponto à ideia de nação homogênea. O atraso do país está associado ao

caráter heterogêneo da sociedade brasileira, como pondera Oliveira:

O Estado responsável pela expansão do capitalismo é também o responsável por uma cidadania que não alcançou a todos. A heterogeneidade social resulta não só do atraso, mas principalmente do sucesso na implantação de um modelo de capitalismo excludente. A cidadania incompleta e a crise na capacidade de governar do Estado completam assim este quebra-cabeça insano (1990, p. 65).

Essas considerações reafirmam nosso pressuposto de que Taunay procura

deslocar a situação da prosa ficcional oitocentista, tendo em vista que Inocência

desarticula-se do projeto literário romântico quando não idealiza a tessitura de uma

imagem de homogeneidade, que se supõe necessária para a construção e

- 53 -

naturalização da subjetividade nacional16. Acreditamos, assim, que no romance

Inocência o escritor questiona o conceito de sertão proposto pela literatura romântica

do seu tempo, bem como as relações de poder que o instauram como lugar portador

da nacionalidade.

Para complementar nossa linha de raciocínio recorremos a José Maurício

Gomes de Almeida (1999), que estuda o surgimento da temática referente ao sertão.

Mostra-nos o referido autor que o conceito de sertão ascendeu no momento em que

a tópica indianista começou a se esgotar. Com o grande influxo das modernas ideias

filosóficas e estéticas provenientes da Europa, o idealismo romântico foi deixado de

lado, o que tornou inviável a mitificação do índio no Brasil. Tornava-se necessário

“buscar outros símbolos, de existência mais palpável, em que se p[udessem]

cristalizar os anseios ainda atuantes de afirmação nacional” (ALMEIDA, 1999, p. 39).

Para tanto, elegeu-se o sertanismo como fenômeno adequado para solucionar o

problema da autenticidade cultural em nosso país.

O motivo desta escolha, como apreende Almeida, deveu-se ao fato de o

sertão ser uma região ainda não contaminada, digamos assim, pela penetração da

influência estrangeira. Desta forma, para que os valores tradicionais fossem

preservados, iniciou-se o processo de erradicação dos focos de alastramento dos

novos princípios e valores do litoral. Almeida situa o escritor José de Alencar como

um dos ícones desta nova forma de imaginar a nacionalidade brasileira. Em José de

Alencar realiza-se a síntese do pressuposto de que o progresso seria a ponta-de-

lança que destruiria as tradições.

Sendo assim, as ideias de sertão e região se entrecruzavam no objetivo de

trazer nova luz aos impasses oriundos do anseio pela autenticidade nacional.

Enquanto o conceito de sertão referia-se aos lugares interioranos, distantes do

litoral, a região dizia respeito à arte de enfatizar os elementos que diferenciavam

cada local específico. Almeida afirma que não existe regionalismo propriamente dito

na literatura romântica, visto que a preocupação nacional sobrepujava a regional.

Entretanto, é no período de crise ideológica do Romantismo, na década de 70, que o

crítico localiza o surgimento da individuação regional, com Franklin Távora. Com 16 Formular uma subjetividade unificada ao ideal de nação significou não só uma tentativa de comprovar o caráter tipicamente brasileiro da literatura, como também o modo pelo qual a estética romântica conseguiu, em sua propensão historicizante, “aglutinar as sociedades em mundos, comunidades, nações, raças que têm antes culturas do que civilizações, que secretam uma individualidade peculiar, uma identidade, não de cada indivíduo, mas do grupo específico, diferenciado de quaisquer outros” (GUINSBURG, 1993, p. 15).

- 54 -

isso, na medida em que certas produções românticas começam a afirmar o universal

mediante o agenciamento de tipos regionais é que Almeida as considera, lato sensu,

regionalistas. Desponta na literatura brasileira José de Alencar, que enfatiza os

elementos regionais de modo elevado na tentativa de construir o novo mito do

nacional: o sertanejo.

O processo que descrevemos a respeito do surgimento da tópica regionalista

no Romantismo brasileiro contribui para pensarmos como Taunay ao mobilizar

diversos discursos sobre o sertão na escrita do romance Inocência abala a ideia de

individuação nacional mediante a figuração do cenário mato-grossense.

Encontramos no estudo de Almeida o regionalismo como um procedimento que

homogeneiza os valores de cada região no objetivo de promover a nacionalidade.

Acreditamos que nesse quadro podemos inscrever os apontamentos de Bourdieu

(2009b, p. 114) sobre o conceito de região que conduz ao princípio de divisão:

A regio e as suas fronteiras (fines) não passam do vestígio apagado do acto de autoridade que consiste em circunscrever a região, o território (que também se diz fines), em impor a definição (outro sentido de finis) legítima, conhecida e reconhecida, das fronteiras e do território, em suma, o princípio da di-visão legítima do mundo social.

Assim, definir uma região configura-se como um gesto político com o qual a

autoridade se impõe por meio do poder simbólico que, de acordo com Bourdieu,

constitui um “poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade

daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”

(2009a, p. 8). O poder simbólico tem a capacidade de construir a realidade no bojo

da luta entre as diferentes classes para a delimitação do mundo social. Durval Muniz

de Albuquerque Jr (2006) parece concordar com Bourdieu quando assinala que a

região se define pelas relações de poder entre grupos sociais distintos. Torna-se

papel do Estado legitimar ou não os recortes espaciais instituídos na emergência

das lutas sociais.

Com suporte nessas considerações avançamos no entendimento de que no

romance Inocência, Taunay procura figurar Mato Grosso como produto das lutas a

respeito da fixação histórico-espacial desta região. Ao mobilizar os discursos que

agenciam o sertão (como sendo ora um território distante do litoral, ora um lugar de

misérias, ou mesmo quando sublima uma imagem positiva de Brasil, ou traz uma

- 55 -

perspectiva científica do sertão), Taunay está procurando uma solução ficcional para

os enfrentamentos sociais surgidos no século XIX e que buscaram olhar as regiões

do país investigando nelas as insígnias da nacionalidade. O próprio modo como o

narrador figura as personagens do romance, como abordaremos no próximo

capítulo, afasta a possibilidade de estar se afirmando um tipo regional que pudesse

simbolizar as aspirações nacionalistas.

Desta forma, acreditamos que o romance Inocência traz à baila os jogos de

poder envolvidos na construção imagética do interior do país, a região mato-

grossense, como também a atuação dos intelectuais nessa trama, a saber, o

discurso positivo ao mesmo tempo que negativo enunciado pela personagem

Pereira. A glosa dos vários discursos sobre o sertão faz com que Taunay lance as

bases para uma nova definição das fronteiras do Brasil, propondo-se dar a

(re)conhecer a região mato-grossense contra a retórica dominante que a instituiu

sob lastros distintos. Este (re)conhecimento da região mato-grossense começou a

ser trilhado a partir da Guerra do Paraguai, a qual mostrou que o caminho era árduo

como aquele percorrido pelo burro de José, ajudante de Meyer:

Em silêncio e na ordem indicada, caminhava a tropinha: o burro carregado na frente, logo atrás o inábil recoveiro; em seguida, fechando a marcha, o viajante encarapitado na magra cavalgadura.

Houve momento em que, depois de algumas pauladas de incitamento, pareceu querer o cargueiro protestar contra o tratamento que tão fora de hora recebia, e, fincando os pés na areia, resolutamente parou.

[...] Pareceu o animal compreender o alcance moral da vitória que

acabara de colher e prestes enveredou pela trilha com alento novo e até desusada celeridade (TAUNAY, 1994, p. 47-48).

Ao lado dessa cena colocamos a epígrafe de abertura desta parte inicial do

nosso trabalho na qual percebemos a ironia com que o fenômeno do encilhamento

foi tratado pelo escritor. Fenômeno este que muito contribui para compreendermos

que as tentativas de instituir uma definição sobre o Estado de Mato Grosso

colocaram uma carga que atrapalhou o seu desenvolvimento regional. A assertiva

de Machado de Assis também se faz válida neste contexto na medida em que

propõe a reflexão de que a independência da literatura brasileira “não tem Sete de

Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para

sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão

- 56 -

para ela até perfazê-la de todo” ([1873] 1959, p. 2). A proposição machadiana pode

muito bem ser justaposta à história da modernidade no Brasil do século XIX.

Significa que o coeficiente moderno seria aplicado ao nosso país no momento em

que fosse agenciada uma política de dizer sobre este sertão silenciado pela retórica

dominante. Caso contrário, as manchas continuam a denunciar o caráter anacrônico

que sustenta o conhecimento do nosso país.

2.2 De invenções: a identidade sertaneja nas fronteiras de Mato Grosso

Nada sei, sou sertanejo; os senhores que estudaram nos livros é que sabem (Visconde de Taunay, A Retirada da Laguna).

O aspecto da fronteira que demandávamos a todos surpreendeu (Idem, Ibidem).

Com a Independência do Brasil urgia encontrar parâmetros eficazes para a

construção de uma identidade que desligasse o país dos laços mantidos com a

antiga “mãe pátria”, Portugal. O empreendimento não consistia apenas em definir

uma identidade, mas principalmente a própria história da literatura. Regina

Zilberman (1999, p. 26) argumenta que “a história da literatura consolidava-se em

conformidade com a estética romântica, e essa apoiava-se na noção de cor local”.

Concomitante, neste caso, foi a tentativa de inventariar uma história literária e a

expressão política “do país novo em folha, recém-saído da segregação colonial,

desejoso de firmar identidade e de festejar-se a si mesmo” (SCHWARZ, 1999, p.

151).

Entretanto, o mecanismo político de construção identitária não foi pacífico, já

que era possível verificar, como apresenta Zilberman (1999), diversos termos

indicativos da identidade nacional no século XIX, a saber, cor local, espírito nacional,

instinto nacional, dentre outros. O próprio sintagma “identidade nacional”, no estudo

da autora em questão, veio à tona somente na crítica literária posterior ao

movimento romântico brasileiro. De acordo com a estudiosa, na estética romântica a

palavra “identidade” referia-se, de início, aos conceitos de “similaridade”,

“igualdade”, “semelhança”, para, em um segundo momento, ser concebida como

estando relacionada à “diferença”, ao que individualiza e particulariza cada nação.

- 57 -

Ora, essas considerações nos encaminham ao pensamento de Zilberman (1999, p.

27), que afirma:

“Identidade nacional” talvez tenha constituído o elemento de ligação entre as necessidades ideológicas do país emergente e o material com que lidavam os historiadores. O termo amplia o sentido da cor local, porque não apenas traduz a capacidade que a literatura tem de representar o mundo natural, peculiar a um certo espaço geográfico, mas também dá conta da relação entre esse espaço particular e o país em que ele se tornou.

Vemos, com isso, que a problemática da identidade esteve no bojo do

pensamento romântico brasileiro, bem como na política de construção de uma

história literária, até então em falta no país principiante na vida moderna. José Luis

Jobim (2006), consoante com o estudo de Zilberman, propõe que o projeto de

individuação local passou pelo crivo da representação identitária do brasileiro tanto

quanto do Brasil. O teórico faz referência ao ponto de vista de Gumbrecht segundo o

qual o empreendimento de produzir uma identidade advém de coletivismos

reprimidos, cuja emergência ocorre em momentos de derrotas e repressões. Apesar

de Jobim não colocar em pauta a Guerra do Paraguai, acreditamos que ela

constituiu um elemento propulsor para a busca de uma identidade para o brasileiro.

Outro ingrediente para o quesito construção identitária realizou-se com a ampla

abertura para o ideário liberal no Brasil, que convivia em descompasso com o

mecanismo escravagista. Eis o resultado: modernidade de ideias em dissonância

com a repressão.

Ao colocar em xeque a identidade como algo construído historicamente,

Jobim refuta a ilusão de que o sujeito pode interferir neste processo. A produção

identitária é mediada por redes de sentido que atuam no processo sócio-histórico de

subjetivação. Vejamos duas vertentes sinalizadas por Jobim (2006, p. 191) na

formulação da identidade para a organização do Estado-nacional:

Se o que predomina em determinado Estado-nação é uma concepção de identidade nacional como pertença a um conjunto de cidadãos que optam politicamente por permanecerem juntos, apesar de eventuais diferenças lingüísticas, religiosas e raciais, sob um governo escolhido por eles, em um território delimitado e sob normas legitimadas pela representatividade dos legisladores em relação aos cidadãos, teremos um resultado. Se o que predomina é uma concepção de nacionalismo como identidade herdada, [...] teremos outro resultado, pois esta perspectiva conduz à crença de que,

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independente da vontade do indivíduo, ele já adquire, ao nascer, o espírito ou a alma do povo a que pertence.

No primeiro caso, temos a chave iluminista da cidadania democrática, que

instaura a identidade como o engajamento social do povo no Estado-nação,

verticalizado por Hans Kohn (1951 apud JOBIM, 2006) como nacionalismo cívico. Já

no segundo, a identidade baseia-se no conceito de espírito do povo herdado de uma

suposta “mãe pátria”. No Brasil, conforme argumenta Jobim, a ideia de uma

identidade atrelada a certo espírito do povo foi bastante receptiva, porém a ideologia

igualitária entrava em choque com a realidade de escravidão vigente até o fim do

século XIX.

Esses apontamentos nos fazem mobilizar o estudo de Manoel Luís Salgado

Guimarães (1988), que discorre sobre como o empreendimento de delimitar o Brasil,

seguindo os paradigmas da civilização no Novo Mundo, norteou-se pelo imaginário

de definir o “outro” em relação a esse Brasil. Esse “outro”, como argumenta

Guimarães, era definido com base na triagem das diferentes formas de organizar o

Estado, como também no parâmetro de civilidade que deixava à margem os que não

podiam pertencer a este projeto: negros, pobres, índios e alguns imigrantes. O

projeto civilizatório proposto por Pedro II primava pelos postulados de von Martius,

um naturalista europeu que, em 1847, publica na Revista do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro (IHGB) uma monografia que delimita o aporte necessário para

a construção da identidade no Brasil. Guimarães assevera que a ideia orientadora

do trabalho de von Martius concentrava-se na mescla das três raças (o índio, o

negro e o branco), o que permitiria a elaboração do mito referente à democracia

racial de um povo mestiço17.

Como vimos, no século XIX, o sertão foi configurado como locus da

nacionalidade, pois nele era possível apreender a imagem de um Brasil ainda não

contaminado pelas influências externas. Para não nos alongarmos, este imaginário

do sertanejo como força telúrica da nacionalidade, no Romantismo brasileiro, pode

ser exemplificado a partir do romance O Sertanejo, escrito por José de Alencar em

1875: nele o autor projeta um novo semióforo para o país recém-independente

mediante a construção mítico-popular do novo herói representante da nacionalidade.

17 Eli Napoleão de Lima (2001, p. 94), ao estudar a intersecção da produção literária de Euclides da Cunha com o Estado Novo, faz a ressalva de que o projeto civilizatório proposto por Dom Pedro II com aporte na tese de von Martius esteve no bojo da política estado-novista.

- 59 -

A personagem Arnaldo converge para a ascensão do tipo social privilegiado para

simbolizar o sertão, o vaqueiro. O procedimento de mitificação desta personagem

sugere o modo com que a narrativa vai construir a imagem heróica do vaqueiro:

[...] No mesmo dia de nascido, apareceu com ele [um relicário] e não se viu entrar em casa viva alma, nem a criancinha saiu da minha rede. Só quando eu acordei, ainda assim como sonhando, senti um cheiro de incenso e vi uma alvura que me cegou. Havia de jurar que eram asas de anjo. Quando olhei para o pequenino ele estava rindo-se e a brincar com o relicário, como se já tivesse juízo para entender (ALENCAR, 1973, p. 190).

A conversa de Justa, a mãe do vaqueiro Arnaldo, com Flor, sua pretendente,

mostra-nos o efeito mítico sendo projetado desde o nascimento da personagem,

com a aparição misteriosa do relicário. Vemos, com isso, que a figura do vaqueiro

ganha uma dimensão idealizada, o que denota a grandeza do homem do sertão na

representação da nacionalidade brasileira.

Tal conjunto de ideias encaminha-nos ao eixo propulsor da nossa

investigação a respeito da identidade sertaneja configurada em Inocência, do

Visconde de Taunay. Estudiosos como Alceu Amoroso Lima (1966a), Regina

Zilberman (1994), José Mauricio de Almeida (1999) e Nelson Werneck Sodré (2002)

mostraram, embora por via distinta da nossa, em que medida Taunay buscou

resolver as contradições relativas à invenção de uma identidade para o Brasil. Para

tanto, o escritor teve de assumir uma posição contrária da que foi tomada pelos

escritores do seu tempo (Zilberman, 1994; Almeida, 1999). Essa consideração

permite-nos retomar a assertiva de Alceu Amoroso Lima (1966a) segundo a qual o

escritor, no livro A Retirada da Laguna, teria traçado a ideia de que a nacionalidade

esteve ligada à consciência da “tragédia” decorrente da tentativa de definir um lugar

para o Brasil no conjunto das nações modernas. Veremos que a perspectiva sobre o

sertanejo no romance em questão não comunga do imaginário mítico-popular em

voga no século XIX. O mesmo acontece no momento que a perspectiva

homogeneizadora de um tipo exemplar para a pedagogia da nacionalidade perde

espaço às figuras heteróclitas que surgem no sertão, a saber, o viajante. Para tanto,

mobilizamos a cena inicial do romance em que se configura o encontro entre Cirino

e Pereira:

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Homem já de alguma idade [Pereira], o recém-chegado era gordo, de compleição sangüínea, rosto expressivo e franco. Trajava à mineira e parecia, como realmente era, morador daquela localidade.

─ Olá, patrício, exclamou ele conchegando a cavalgadura à da pessoa a quem interpelava, então se vai botando para Camapuã?

Olhou o nosso cavaleiro com desconfiança e sobranceria para quem o interrogava tão sem-cerimônia e meio enviesado respondeu:

─ Talvez sim... talvez não... Mas a que vem a pergunta? ─ Ah! desculpe-me, replicou o outro rindo-se, nem sequer o

saudei... Sou mesmo um estabanado... Deus esteja convosco. Isto sempre me acontece... A minha língua fica às vezes tão doida que se põe logo a bater-me nos dentes... que é um Deus nos acuda e... não há que avisar: água vai! Olhe, por vezes já me tem vindo dano, mas que quer? É sestro antigo... Não que eu seja malcriado, Deus de tal me defenda, abrenúncio; mas pega-me tal comichão de falar que vou logo, sem tirte nem guarte, dando à taramela...

A volubilidade com que foram ditas estas palavras causou certo espanto ao mancebo e o levou a novamente encarar o inopinado companheiro, desta feita com mais demora e ar menos altivo.

Notou então a fisionomia alegre e bonachã do tagarela e, com ar de simpatia, correspondeu ao comunicativo sorriso daquele que, à força, queria travar conversação (TAUNAY, 1994, p. 25, grifo nosso).

Temos, a princípio, uma descrição bastante peculiar de Pereira a partir da

qual o narrador realça a expressividade fisionômica desta personagem para, em

seguida, apontá-la como legítimo morador da região mato-grossense. O espanto de

Cirino, candidato ao amor da filha do sertanejo, é corroborado com o desfilar de

palavras com que Pereira interpela o rapaz. O misto de assertivas, lançado à revelia

pelo pai de Inocência, sugere a construção imaginária que o sertanejo faz de si

mesmo. Tal imagem encontra ressonância na personagem emblemática do romance

Dom Quixote, escrito em duas partes (1605-1615) pelo espanhol Miguel de

Cervantes, cuja alusão na epígrafe que abre o segundo capítulo complementa o

sentido de Pereira: “Comigo, respondeu Sancho, meu primeiro movimento é logo tal

comichão de falar que não posso deixar de desembuchar o que me vem à boca”

(apud TAUNAY, 1994, p. 24). O procedimento empregado pelo narrador ao glosar a

construção de sua personagem com outra da literatura canônica, antes de configurar

um exercício de admiração, conforme a expressão de Süssekind (1993), que

encenaria via epígrafe a sintonia com a metrópole europeia, leva-nos a pensar que

Inocência subverte o sentido dos clássicos para construir a identidade sertaneja.

- 61 -

Essa recorrência a imagens alheias com as quais o narrador constrói a

identidade do sertanejo pode ser explicada com base na leitura de Ettore Finazzi-

Agró (1991, p. 52) que, em certo ponto da introdução do seu trabalho, indaga:

“Como é possível, aliás, reconstruir um percurso (fazer um sentido) dentro duma

dimensão que não tem vias certas, que se apresenta sulcada por sendas infinitas e

labirínticas que se perdem no nada?”. Com base neste questionamento, o autor

desenvolve o argumento segundo o qual a Alteridade é entendida como a voz do

silêncio, que ocupa, por assim dizer, um não-lugar, “algures” como quer o teórico,

onde não é possível definir sua concretização espaço-temporal, porque se encontra

repleto de imagens ambíguas e/ou figuras difíceis de reconstruir o sentido próprio.

Para Finazzi-Agrò, a construção da identidade nacional teve por princípio o

sentimento de falta que fez com que o Brasil suportasse um conjunto de imagens

impostas pela cultura europeia, tendo de acomodar-se numa Alteridade fabricada

pelo exterior como sinônimo da (não) identidade:

Condição paradoxal, esta, pela qual só insinuando-se nas imagens "emprestadas" pelos europeus, só recorrendo à língua literária deles, os intelectuais do Novo Mundo podem reconhecer e nomear a sua especificidade que, sendo, todavia, adquirida dentro da visão ou da imaginação alheias, cessa, ipso facto, de ser uma especificidade (FINAZZI-AGRÒ, 1991, p. 55).

A identidade nacional esteve alinhavada ao lugar do exótico, pois a Alteridade

era vista como uma grande feira de Diversidade que exporia em suas vitrines, para

usar a expressão de Finazzi-Agrò, objets féeriques na anônima periferia do Idêntico.

Assim, todos os sujeitos da marginalia – prostitutas, bêbados, sertanejos – eram

postos no domínio do Outro. O referencial dos escritores brasileiros na construção

da identidade nacional, conforme sugere o autor, teve suporte no modelo europeu

sem conseguir enraizar-se num tempo e espaço próprios18. Como mostra o autor, a

identidade nacional estaria ligada à sombra de um grande remorso que abriria

18 Temos, como exemplo, a personificação da personagem Iracema no romance homônimo, escrito por José de Alencar em 1865, que mescla os caracteres de uma verdadeira dama civilizada com os elementos da cultura indígena brasileira: “Iracema saiu do banho: o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas da garra, as flechas de seu arco e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste. / A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru de palha matizado, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão” (ALENCAR, 2004, p. 14).

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margem para a “consciência do ‘roubo’ ideológico perpetrado em detrimento da

cultura européia, mas também tentativa de exorcizar a perda de imagem, de

justificar, consigo mesmo, a sua arrogância iconoclasta” (FINAZZI-AGRÒ, 1991, p.

57).

O autor vai mostrar que o efeito parodístico foi um dos recursos empregados

por Mário de Andrade no texto Macunaíma como uma forma antropofágica de

incorporar o modelo europeu anulando-o dentro de si para exorcizar a perda

identitária. Finazzi-Agrò (1991, p. 59) afirma que “só parodiando a Alteridade em que

foi relegada, apenas repropondo-se ironicamente como ‘algures’”, seria possível

exprimir a identidade nacional. Acreditamos que o procedimento do narrador em

Inocência é diferente daquele que foi empregado por Mário de Andrade, mas o efeito

parece ser o mesmo. Observamos que a posição irônica do narrador quanto às

personagens do romance em estudo permite-nos compreender a identidade do

sertanejo como uma construção dada pelo desejo burlesco de se espelhar no Outro.

Nesse sentido, entendemos que Taunay ironiza o mecanismo dos escritores

românticos que buscaram produzir suas personagens com base na citação do Outro

distante no além-mar, mas tão próximo daquilo que se objetivava ser.

Da mesma forma que Sancho Pança aparece ao lado de Dom Quixote para

ironizar o mundo da cavalaria, Pereira transforma-se por sua projeção ambígua

numa personagem cuja comicidade abala o sentido rústico do mundo sertanejo:

[...] Olhe, Sr. Cirino, vou dizer-lhe uma coisa, que talvez lhe pareça embromação: às vezes dou um pulo até a vila só para bater língua com o major, porque com esta gente daqui não se tira partido: escurraçada e arisca que é um Deus nos acuda! Então, como lhe ia contando, galopeio até lá, e pego numa mapiagem que me enche as medidas. Não há... (TAUNAY, 1994, p. 29, grifo nosso)

Enfiava Pereira todas estas frases com surpreendedora rapidez, ao passo que Meyer o contemplava estático, à espera que a torrente de palavras lhe desse tempo e ocasião de exprimir algum vocábulo de agradecimento.

Só, porém, minutos depois, e a custo, é que ele pronunciou um áspero e retumbante:

─ Obrigado! E acrescentou em seguida: ─ Mas o senhor fala que nem cachoeira. E não cansa? ─ Qual! – replicou o mineiro com ufania. – A gente da minha

terra é de seu natural calada; eu, não; mesmo porque fui criado em povoados de muita civilidade... (TAUNAY, 1994, p. 62, grifo nosso).

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Ambos os fragmentos sugerem que a linguagem aparece como elemento a

produzir um efeito de distinção entre o sertanejo e a civilidade. Ironicamente, no

segundo excerto, o narrador projeta o estranhamento de Meyer em relação à

torrente de palavras lançada por Pereira. Percebemos ainda que Pereira assume um

posicionamento que silencia o elemento sertanejo ao afirmar sua pertença à

civilização. Negativa que nos leva a questionar em que medida a modernidade está

presente na esfera citadina, já que Pereira faz parte dela.

Nas palavras de Janaína Amado (1995) o “sertão” projeta-se como o espaço

da alteridade, o que permite à autora propor o seguinte questionamento: “Que outro,

porém, senão o próprio eu invertido, deformado, estilhaçado? A partir da construção

de alteridades, durante os processos de colonização, os europeus erigiram e

refinaram as próprias identidades” (AMADO, p. 07). Perspectiva ambivalente: o

Outro com o qual Pereira é identificado, Sancho Pança, também ironiza o Outro

baseado no modelo europeu que foi projetado pelos escritores românticos para

significar a identidade brasileira. A proposta de desmascarar o caráter rústico do

sertanejo vai revelar o arcaísmo de ideias que pairava no país em relação à

produção identitária. Dessa forma, a figuração do sertanejo tensiona o discurso

modernizador proposto pelos intelectuais do século XIX de forma inadequada à

realidade brasileira.

Daí a nossa ideia de que é na figura do atrasado, Pereira, que encontramos a

síntese da ideologia proposta pelas elites brasileiras para se pensar o interior do

país no século XIX. Acoplamos a essa questão uma assertiva do narrador sobre as

aflições de Pereira:

Se, de um lado, criara involuntária admiração por Meyer e, rodeando-o, em sua imaginação, do prestígio de uma beleza irresistível, via aumentar o receio em abrigar tão perigoso sedutor; do outro, sentia as mãos presas pelas obrigações imperiosas da hospitalidade, a qual, com a recomendação expressa de seu irmão mais velho, assumia caráter quase sagrado. Juntem-se a isso os preconceitos sobre o recato doméstico, a responsabilidade de vedar o santuário da família aos olhos de todos, o amor extremoso à filha, em quem não depositava, contudo, como mulher que era, confiança alguma, as suposições ideadas acerca da impressão que naturalmente aquele estrangeiro produzira no coração de Inocência, já que pertencendo ela a outrem, e as colisões que previu para manter inabalável a sua palavra de honra, palavra dada em dois sentidos agora antagônicos – um

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mundo enfim de cogitações e de terrores. E tudo isso revolvendo-se na cabeça de Pereira, refletia-se com sombrios traços de inquietação em seu rosto habitualmente tão jovial (TAUNAY, 1994, p. 70, grifo nosso).

À medida que as suspeitas sobre as intenções do inocente

Meyer iam tomando vulto exagerado, nascia ilimitada confiança naquele outro homem que lhe era também desconhecido e que a princípio lhe causara tanta prevenção quanto o segundo.

É que as dificuldades e colisões da vida, quando se agravam, tão fundo nos incutem a necessidade do apoio das simpatias e dos conselhos de outrem, que qualquer aliado nos serve, embora de muito mais proveito fora bem pensada reserva e menos confiança em auxiliares externos (TAUNAY, 1994, p. 72, grifo nosso).

Pelo procedimento da agudeza o narrador, em lentes de longo alcance,

penetra nos “sentimentos que sobressaltam o mineiro”, desconstruindo, de soslaio,

todo o aparato ideológico referente ao seu atraso. Notamos que o narrador tensiona

a mentalidade de Pereira quando mescla a descrição de seus medos e os amplifica

ironicamente pelo discurso indireto livre. Para complementar essa perspectiva

trazemos a hipótese de Castrillon-Mendes (2007), que argumenta sobre o modo

como o narrador, pelo “jogo” das epígrafes em Inocência, ironiza as situações dos

textos clássicos ao vertê-las na linguagem do sertanejo. Segundo a pesquisadora,

“O efeito não é só do ponto de referência erudita, mas de ruptura entre a tradição e o

popular, de modo a quebrar o tom sentimental do romance, estratégia que será

ampla e, mais profundamente, explorada por Machado de Assis” (2007, p. 42).

Fazendo um levantamento histórico sobre o conceito de ironia, D. C. Muecke

(1995) afirma que foi no final do século XVIII e meados do XIX que o termo agregou

novos significados em relação aos conceitos antigos. Com a voga do Romantismo,

“ironólogos” como Friedrich Schlegel, August Wilhelm, Ludwing Tieck e Karl Solger

foram os primeiros a lançarem mão do conceito de “ironia romântica”, cujo primeiro

estágio consistia em considerá-la “em termos não de alguém ser irônico, mas de

alguém ser a vítima de ironia, mudando assim a atenção do ativo para o passivo”

(1995, p. 35). Friedrich Schlegel, nas palavras de Muecke, foi um dos primeiros

estudiosos a ver que não apenas o destino, mas também a própria natureza humana

constituiria algo paradoxal, dialético e, portanto, irônico. Dessa forma, a “ironia

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romântica” arregimenta o homem na condição de vítima tanto das contradições do

destino, quanto da sua própria natureza ambígua19.

O conceito de “ironia romântica” ilumina nosso estudo na medida em que nos

permite destacar não apenas a posição irônica do narrador, como também da sua

vítima privilegiada, a personagem Pereira e seus costumes. O discurso irônico do

narrador, portanto, tensiona a figura do sertanejo não sob o prisma da modernidade,

pois desconfia dela, mas para mostrar o atraso da intelectualidade brasileira, cuja

ideologia, e aqui tomamos a expressão de Arnoni Prado (1993, p. 612, grifo nosso),

“costurou um vazio de consciência em que a realidade transformada em

sonho, só nos unia enquanto metáfora”. Ao lado disso, o recurso irônico do

narrador para com Pereira é reforçado pelo desfilar de provérbios populares

pronunciados pela personagem no decorrer da narrativa20. Tais aforismos encenam

o modo como ele, assim como Sancho Pança em relação à vida cavaleiresca de

Dom Quixote, está sujeito às ilusões do mundo sertanejo21. O provérbio que vai

demonstrar a contradição fulcral da personagem Pereira alude o seguinte: “[...] Por

acaso sou cobra de duas cabeças que não veja!...” (TAUNAY, 1994, p. 81).

Com o referido provérbio o efeito irônico alcança um grau elevado na medida

em que todas as suspeitas de Pereira em relação a Meyer não passam de um

engano das aparências. A semelhança entre Pereira e Sancho Pança torna-se cada

vez mais perceptível, pois ambos significam o pensamento cotidiano que busca

explicar a realidade em termos do conhecimento assumido como verdadeiro, como

sugere Alfred Schütz (2002) quanto à personagem quixotesca22. Com isso, temos

montada uma verdadeira comédie d’erreurs que amplia o efeito cômico pelas

diversas passagens em que Pereira afirma o orgulho de ter na sua casa a presença

de “ilustres e incontestáveis sabichões”, bem como ao garantir que gosta de “lidar 19 No caso de Pereira, por exemplo, temos a ambiguidade da personagem, que atua na produção do efeito irônico, como também as contradições a que o destino o levou. O próprio narrador ainda vem destacar o fatalismo do sertanejo: “Vê tudo aquilo o sertanejo com olhar carregado de sono. Caem-lhe pesadas as pálpebras; bem se lembra de que por ali podem rastejar venenosas alimárias, mas é fatalista; confia no destino e, sem mais preocupação, adormece com serenidade” (TAUNAY, 1996, p. 21, grifo nosso). 20 Destacamos alguns provérbios enunciados por Pereira: “[...] cai-me a sopa no mel; sim, senhor, vem mesmo ao pintar... a talhe de foice” (TAUNAY, 1994, p. 28); “[...] Eu cá sou assim: pão, pão, queijo queijo” (p. 57); “[...] Este calunga não me bota areia nos olhos”; “[...] ninguém mete prego sem estopa; mas com sertanejos... não se brinca” (p. 71); “[...] Fia-te na Virgem e não corras, verás o tombo que levas!”; “[...] zás-trás que darás” (p. 79). 21 Não esqueçamos que Sancho Pança também domina um referencial de provérbios. 22 Alfred Schütz (2002) investiga em que medida o romance de Cervantes sistematiza o problema das múltiplas realidades, com base na teoria de William James, mostrando que as aventuras de Dom Quixote são variações do modo como experimentamos a realidade.

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com pessoas de qualidade e instrução”, porém não compreende as colocações do

naturalista Meyer23. Ao lado disso, elencamos também as armadilhas montadas por

Cirino para se livrar de Pereira e nas quais o pai de Inocência cai sem a menor

desconfiança. Além de Pereira, acreditamos que Cirino também constitui o fulcro

deste projeto de formulação de uma identidade sertaneja que está presente no

romance pela via alegórica do seu avesso:

Toda a sua ciência assentava alicerces no tal Chernoviz. Também era o inseparável vade-mécum, seu livro de ouro; Homero à cabeceira de Alexandre. Noite e dia o manuseava; noite e dia o consultava à sombra das árvores ou junto ao leito dos enfermos. [...]

Conhecia Cirino o seu exemplar de cor e salteado; abria-o com segurança nos trechos que desejava e graças a ele formava um fundo de instrução real e até certo ponto exata, a que unira o estudo natural das utilíssimas e ainda pouco aproveitadas ervinhas do campo.

[...] Curandeiro, simples curandeiro, ia por toda parte granjeando

o tratamento de doutor, que gradualmente lhe foi parecendo, a si próprio, título inerente à sua pessoa e a que tinha incontestável direito.

Bem-formado era o coração daquele moço, [...] entretanto no íntimo do caráter se lhe haviam insensivelmente enraizado certos hábitos de orgulho, repassado de tal ou qual charlatanismo, oriundo não só da flagrante insuficiência científica, como da roda em que sempre vivera.

Afastava-se em todo caso, ainda assim com os seus defeitos, do comum dos médicos ambulantes do sertão, tipos que se encontram freqüentemente naquelas paragens, eivado de todos os atributos da mais crassa ignorância, mas rodeados de regalias completamente excepcionais (TAUNAY, 1994, p. 33-34, grifo nosso).

Assim como um verdadeiro Dom Quixote, Cirino realiza seu exercício de

médico alicerçado na leitura “científica” de Chernoviz, o qual, segundo o narrador, é

cheio de erros e lacunas, mas muito útil no sertão pela força que tem de evangelho

na voz do povo e nas superstições. Essa descrição revela bem a face dos 23 Vejamos um desses momentos: “– O Sr. não cura? perguntou Pereira a Meyer. – No senhor. Sou doutor em filosofia pela universidade de Iena, onde... – Isso é nome de bicho? atalhou o mineiro. – Nô senhor. É uma cidade. – Ninguém diria... Pois, Sr. Maia – continuou Pereira apontando para Cirino – ali está um com quem moléstias não brincam. – Ah! – rouquejou o alemão abrindo ainda mais os olhos – Estimo muito conhecê-lo como notabilidade... Nestes lugares aqui é muito raro...” (TAUNAY, 1994, p. 59).

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intelectuais românticos que realizaram uma verdadeira pesquisa no passado de

lendas e manuscritos (OLIVEIRA, 1990; SÜSSEKIND, 1993), sobretudo os dos

primeiros tempos da colonização portuguesa, que pudessem dar uma dimensão

originária ao Brasil e que ao mesmo tempo silenciasse os conflitos do processo

colonizador e do presente. Com esse veio de charlatanismo formulado na figura de

Cirino, Taunay permite mostrar, pelo discurso incisivo do narrador, que a

modernidade chegou ao Brasil às avessas, sem passar por um projeto que fosse

verdadeiramente planejado numa base real.

Nesse sentido, a construção de uma identidade nacional para um país

preocupado em ser moderno revela como o romance problematiza o seu caráter

utópico quando agencia a figura dúbia de Cirino. Esta personagem, por sua vez,

nada mais é do que um charlatão que se utiliza de um suposto título de doutor para

tirar proveito da fatalidade alheia, como realça o narrador em diversos momentos. O

status social transforma-se no mecanismo de exploração dos pobres e doentes, mas

principalmente de Pereira, que se sente agraciado com a presença de “notória

intelectualidade” em sua residência. O engodo leva-nos a propor, na esteira de

Alfredo Bosi (1982, p. 440), que “A sociedade levantou um muro entre as classes,

mas esse muro tem as suas fendas. É possível às vezes passar de um lado para

outro, não precisamente pelo trabalho, mas cultivando e explorando as relações

‘naturais’”.

Por esse motivo, a contradição entre a máscara de médico e o charlatão que

se esconde por trás dela contribui para compreendermos como o valor e a posição

social de Cirino atuam enquanto fator de coerção social24. A dialética que está no

âmago da figura de Cirino afasta a possibilidade de o viajante ser configurado como

tipo eleito para a projeção da identidade nacional. Renato Ortiz (1996), ao abordar a

relação entre a viagem e a cultura popular, define o viajante como um intermediário

que coloca em comunicação culturas distintas. Contudo, a personagem Cirino,

sendo configurado como um viajante dos sertões, mostra-nos o lado contraditório do

movimento de se conhecer o país mediante expedições de toda ordem proposto no

século XIX. Isso pode ser explicado com base na ideia de que Cirino, ao invés de

possibilitar o diálogo entre o universo sertanejo e a vida moderna da cidade, apenas

aproveita-se da condição precária em que vive o homem do sertão. Sugere, com

24 Destacamos que o narrador, ao transpor os pensamentos de Inocência sobre o motivo que a levou a se apaixonar por Cirino, afirma maledicente: “A muito obriga a gratidão” (TAUNAY, 1994, p. 76).

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isso, o lado arcaico do ideário moderno no Brasil que não conseguiu efetivar-se até

mesmo nos centros urbanos.

Outra personagem configurada no romance é o naturalista alemão Meyer que

se caracteriza como o viajante cujo objetivo de conhecer a natureza brasileira

apenas esconde o pressuposto de explorá-la. O modo burlesco com que o narrador

apresenta Meyer denota como o conhecimento científico adquire um sentido

ambíguo:

Quem estava montado e cavalgava todo encurvado sobre o selim, com as pernas muito estiradas e abertas, parecia entregue a profunda cogitação. Devia ser homem bastante alto e esguio e, como o observamos, apesar da hora adiantada da noite, com olhos de romancista, diremos desde já que tinha rosto redondo, juvenil, olhos gázeos, esbugalhados, nariz pequeno e arrebitado, barbas compridas, escorrido bigode e cabelos muito louros. O seu traje era o comum em viagem: grandes botas, paletó de alpaca em extremo folgado, e chapéu-do-chile desabado. Trazia, entretanto, a tiracolo, umas quatro ou cinco caixinhas de lunetas ou quaisquer outros instrumentos especiais, e na mão segurava um pau fino e roliço, preso a uma sacola de fina gaze cor-de-rosa (TAUNAY, 1994, p. 46, grifo nosso).

A presença de Meyer surpreende não só os habitantes do sertão, como

também o próprio narrador, apesar de sua posição enunciar certo distanciamento

em relação à linguagem desescolarizada das personagens e dos seus costumes

sertanejos, como observamos no estudo de Dino Preti (1977) e de Marisa Lajolo

(1996). Torna-se interessante vermos que a descrição de Meyer feita pelo narrador

aproxima essa personagem da figura quixotesca do cavaleiro andante. O narrador

delineia a personagem à semelhança do teatro circense: pernas alongadas, cabelos

alourados, olhos grandes, sem contar o traje bastante atípico. Realçado pelos “olhos

de romancista”, o naturalista estabelece a visão que se tinha dos escritores à época.

A perspectiva grotesca com a qual o narrador projeta o naturalista agencia em que

medida a diferença está associada ao absurdo e obsoleto, como o sertanejo

esquecido nos confins do sertão. Essa questão pode ser realçada pelo olhar que

Cirino lança sobre o naturalista:

Na verdade, digna de reparo era aquela figura à luz da bruxuleante vela de sebo; compridas pernas, corpo pequeno, braços muito longos e cabelos quase brancos, de tão louros que eram.

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─ Será algum bruxo? – perguntou a meia voz Cirino a Pereira.

─ Qual! – respondeu o mineiro com sinceridade – um homem tão bonito, tão bem limpo! (TAUNAY, 1994, p. 50, grifo nosso).

Diante dela, e depois de tirar do nariz os óculos, colocou-se logo Meyer, ou antes acocorou-se e, em relação ao tronco, tão compridas eram-lhes as pernas, que, inclinado por sobre a água, lhe ficava a cabeça à altura dos joelhos.

Levou a ablução uns largos minutos e foi com os cabelos grudados ao casco e escorrendo água que ele se levantou, justamente quando entrava Pereira.

Nesse momento, assumira o tipo daquele homem proporções do mais pasmoso grotesco; entretanto, tão vária a apreciação de cada um, tão caprichoso o julgamento individual, que o mineiro, acercando-se de Cirino, disse baixinho:

─ Vosmecê já reparou, amigo, como este estranja é figura bonita? Tão arvo! e que olhos que tem!... As mulheres hão de perder a cachola por causa deste bicharrão... Então, Sr. Maia, continuou interpelando em voz alta o seu espécime de beleza masculina, que tal passou aqui a noite? (TAUNAY, 1994, p. 57-58, grifo nosso).

A intervenção feita pelo narrador em relação ao naturalista sugere como a

ambiguidade está no âmbito da imagem do estrangeiro, cuja caracterização traz

elementos que se aproximam da figura do clown. Agencia-se, com isso, a crítica ao

positivismo científico da época, que creditava à ciência o trabalho de encaminhar o

país em direção ao progresso. Este ponto de vista torna-se bastante interessante se

pensarmos que as suspeitas de Pereira a respeito de Meyer não passam de um

engano das aparências, o que desconstrói o pressuposto positivista de que a

verdade pode ser percebida a partir da observação material do objeto. Sendo assim,

o narrador mais uma vez tematiza o modo como o ideário moderno no Brasil do

século XIX aparece travestido em incongruências de toda sorte como na figura

“estapafúrdia” de Meyer, com a qual Pereira sente-se ofendido, pois “aqueles

cuidados de prevenção meramente científica” revelavam apenas uma “faceirice

feminil”.

Com Marshall Berman (1986) sabemos que a modernidade trata da busca

pelo novo em um ambiente de aventura, poder e transformação. Segundo o teórico,

a experiência moderna anula as fronteiras geográficas, ideológicas e étnicas. No

Brasil do século XIX, como dissemos, o mecanismo do favor alinhado à prática do

cativeiro atesta a dissonância entre o desejo de progresso e a realidade social

existente. O modo como o narrador configura as personagens do romance,

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elencadas até o momento, ironiza a ideia de se promover a homogeneidade social

com base no imaginário de Estado-nação. Da suposição de que a modernidade

requer o apagamento de fronteiras, compreendemos que a solução ficcional

encontrada pelo narrador configura-se no entendimento de que somente aceitando

as diferenças culturais presentes em nosso país seria possível alçá-lo ao nível das

grandes nações.

Neste caso, os elementos acionados pelo narrador na projeção de Inocência

produzem a alegoria de um Brasil desejoso de entrar para a modernidade, mas que

se mantém arraigado à perspectiva do atraso promovida pelo mecanismo de poder

vigente. Vejamos o discurso de Pereira que promove a imagem de Inocência:

Nem o senhor imagina... Às vezes, aquela criança tem lembranças e perguntas que me fazem embatucar... Aqui, havia um livro de horas da minha defunta avó... Pois não é que um belo dia ela me pediu que lhe ensinasse a ler?... Que idéia!... Ainda há pouco tempo me disse que quisera ter nascido princesa... Eu lhe retruquei: E sabe você o que é ser princesa? Sei, me secundou ela com toda a clareza, é uma moca muito boa, muito bonita, que tem uma coroa de diamantes na cabeça, muitos lavrados no pescoço e que manda nos homens... Fiquei meio tonto e se o senhor visse os modos que tem com os bichinhos?!... Parece que está falando com eles e que os entende... Uma bicharia, em chegando ao pé de Nocência, fica mansa que nem ovelhinha parida de fresco... Se fosse agora a contar-lhe histórias dessa rapariga, seria um não acabar nunca... Entremos, que é melhor... (TAUNAY, 1994, p. 42, grifo nosso).

Neste fragmento, temos o ponto de vista de que a emancipação feminina

convergiria na ampliação das fronteiras do universo da leitura25. Por esse motivo, o

olhar de Pereira projeta a filha Inocência com uma série de adjetivos que a

caracterizam como “feiticeira”, “traste”, dentre outros. Diante disso, podemos

acrescentar o pensamento de Roger Chartier (1990), que discorre sobre as

25 Torna-se interessante trazermos à baila a proposta de Carla Cristine Francisco (2010), que investiga no romance Inocência algumas marcas de caráter polifônico no que tange à configuração da personagem homônima. A autora propõe que as personagens do romance assumem posições ideológicas distintas em relação ao espaço da mulher na sociedade do século XIX. Tal confluência de vozes promove o embate discursivo a respeito da temática fulcral que, no dizer de Francisco, norteia o romance: a emancipação feminina. Para definir o eixo propulsor do romance, a autora elenca as posições ideológicas assumidas pelas personagens: o olhar científico sobre as relações de gênero (Meyer e o narrador), as ideias reformistas (Cirino e Inocência), bem como a posição patriarcal (Pereira e Cesário). Esta estudiosa entende que, se há um processo de delimitação da voz feminina realizado pelas personagens masculinas na literatura do século XIX, em Inocência tal cerceamento não se concretiza, pois a personagem homônima vai transitar entre os diversos universos ideológicos conforme a sua necessidade.

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condições culturais do Estado moderno que teve como escopo o desenvolvimento

da escrita. Conforme destaca Chartier, houve três rupturas que modificaram a

maneira de o Estado arregimentar seu poder. A primeira diz respeito à passagem da

declaração oral para a fixação da escrita, enquanto a seguinte refere-se ao

desenvolvimento das chancelarias em detrimento do recurso notário e, por último, a

transição do manuscrito para o texto impresso. O advento da escrita e dos meios de

leitura viabilizou a consolidação do Estado Moderno, bem como favoreceu o início

de novas formas de relacionamento entre as pessoas26. Depreendemos assim o

papel imprescindível da leitura na construção do Estado Moderno, o qual é

configurado no romance Inocência com a projeção de sua heroína homônima.

Por meio de Inocência o narrador evidencia que a modernidade ainda não foi

plausível ao Brasil do século XIX, tendo em vista a ausência de estratégias que

difundissem o universo da leitura. Nesse sentido, a construção de uma identidade

para o Brasil seria também inviável na medida em que a emancipação da leitura não

conseguiu abranger o país como um todo, o que promoveria o estado de direito e a

soberania do povo. Inocência procura resistir à condição de atraso imposta por

Pereira, mas a convivência de práticas sociais obsoletas com o mais contundente

aparato ideológico inviabiliza o desenvolvimento do paradigma moderno.

Nesse sentido, entendemos que o gesto irônico do narrador em relação ao pai

de Inocência traz à tona as fissuras do projeto modernizador promovido no século

XIX, mostrando o fracasso da tentativa de encobrir a antinomia ideológica que se

alastrava pelo país. Ao mobilizarmos o modo pelo qual o narrador dimensiona as

personagens do romance pudemos ver como Taunay denunciou as redes de sentido

que atuaram nas propostas de construir uma identidade para o Brasil. Tal discussão

mostrou-nos que o conhecimento do Outro esteve aquém do projeto moderno em

nosso país. Acreditamos que o romance agencia a necessidade de o lugar do Outro

ser pronunciado esteticamente. Isso será possível no momento em que se

interiorizar um olhar para além das fronteiras que demarcam o conhecimento já

instituído sobre o Brasil. Sendo assim, a trama discursiva construída em Inocência

ironiza o algures no qual se encontra a percepção da identidade nacional.

26 De acordo com o estudo de Elizabeth Madureira Siqueira (2000), no Estado de Mato Grosso, a partir de 1870, as entidades culturais desta região consideravam que a expansão do universo da leitura e da escrita, ao lado dos estabelecimentos escolares que se multiplicavam no espaço regional, expressava o desejo de fomentar os ideias modernos no cenário sertanejo.

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CAPÍTULO III

DE MEMÓRIA: RUÍNAS E ESPECTROS NAS TENSÕES DA

MODERNIZAÇÃO

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3.1 Entre papéis avulsos e lembranças dispersas: as imagens de uma

memória em ruínas

No obstante, tenemos que conservar viva la memoria del

passado: no para pedir una reparación por el daño sufrido sino para estar alerta frente a situaciones nuevas y sin embargo análogas (Tzvetan Todorov, Los abusos de la memoria).

Ouvir o apelo do passado significa também estar atento a

esse apelo de felicidade e, portanto, de transformação do presente, mesmo quando ele parece estar sufocado e ressoar de

maneira quase inaudível (Jeanne Marie Gagnebin, Lembrar, escrever, esquecer).

A primeira versão de A Cidade do Ouro e das Ruínas foi publicada no ano de

1891 sob o título de “A Cidade de Matto-Grosso, o Rio Guaporé e a sua mais Ilustre

Vítima” pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), mais

especificamente no tomo 5427. De acordo com o prefácio feito pelo filho do escritor,

Affonso d’ Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay pôs-se a escrever a segunda

versão de A Cidade do Ouro e das Ruínas, que continha aproximadamente trinta e

um capítulos, concomitante à elaboração de suas Memórias ([1948] 2004). Contudo,

afirma o prefácio que da segunda versão só restaram os cinco capítulos publicados,

juntamente com a primeira parte, pelo filho de Taunay, que deu ao livro o título atual.

Essas considerações nos levam a retomar o estudo de Maria Lídia

Lichtscheidl Maretti (2006), que ressalta o papel da instituição familiar no processo

de manutenção da memória deste escritor. Segundo Maretti, o filho Affonso é quem

trabalhará intensamente sobre a memória de Taunay ao empreender a classificação

de textos por gênero, lançar publicações inéditas e, ainda, revisar e censurar as

produções do escritor. Além disso, na perspectiva de Maretti, Affonso agiu sobre a

memória do pai ao realizar o procedimento de higienização que retira dos textos

impurezas de caráter contextual a ponto de adulterá-los.

Nessa atividade de reorganização do arquivo literário de Taunay, o prefácio

de A Cidade do Ouro e das Ruínas, elaborado como dissemos por Affonso, formata

27 Tais referências podem ser encontradas em Castrillon-Mendes (2007) e Maretti (2006). Consultamos, in loco, a Revista do IHGB na Academia Mato-grossense de Letras, sediada em Cuiabá – MT.

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uma moldura de escrita que produz um efeito agônico para a composição desse

livro, porque escrito à beira da morte28. A escrita realizada na iminência da morte

processa uma tentativa de Taunay de impor suas lembranças contra o

esquecimento. Esta observação leva-nos à ideia de que reconstruir o passado de

Mato Grosso constitui a tópica propulsora da escrita de A Cidade do Ouro e das

Ruínas – Matto-Grosso Antiga Villa-Bella o Rio Guaporé e a sua mais Illustre Victima

(1923), mas quais são os efeitos de sentido agenciados na proposta de recuperação

desse passado no cenário histórico-ideológico dos primórdios da República? O

estudo desse texto permite-nos elucidar em que medida o programa literário do

Visconde de Taunay revelou as contingências da modernização processada no

âmbito do Brasil em meados do século XIX.

Deter-nos-emos, aqui, no estudo de duas pulsões que movem a narrativa de

A Cidade do Ouro e das Ruínas (1923), do Visconde de Taunay, no trato da história

referente ao Mato Grosso: a biográfica e a memorialística. Pesquisadoras como

Maria Lídia Lichtscheidl Maretti (2006), Olga Maria Castrillon-Mendes (2007) e Sheila

Dias Maciel (2008) têm mostrado a relevância de discutir a literatura deste escritor

pelo viés de suas facetas memorialísticas. Maciel, por exemplo, traz à baila algumas

tópicas relacionadas ao conceito de confissão que perpassam os textos de Taunay.

Uma delas circunda em torno da ideia de método quanto à procura pela veracidade

dos fatos, que, no entanto, não congrega a ideologia positivista difundida no Brasil

do XIX.

Partindo do pressuposto de que há um profundo liame entre memória e

história na literatura do referido autor, propomos investigar os gestos de leitura

subjacentes na construção da memória referente à cidade de Vila Bela (no momento

de sua decadência em relação ao ciclo aurífero) a partir de seus efeitos na escrita do

referido texto literário. Trazemos uma das principais cenas em que o narrador, o

próprio Alfredo d’Escragnolle Taunay, declara:

Razoes de ordem mui particular pessoalmente me prendiam, e ainda hoje me prendem, a essa desolada parte de Matto-Grosso e ao moribundo povoado de Villa-Bela, antes, muito antes, até de fazer parte da celebre e infeliz expedição que foi ter áquella provincia e na sua faixa meridional, bem distante,

28 Informa-nos o prefácio: “Cessado o trabalho sobre Matto Grosso não o retomou mais. Ao falecer, pouca cousa se encontrou no seu archivo referente a esta monographia; infelizmente muitissimo menos do que já preparara” (TAUNAY, 1923, p. 7).

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portanto, da larga zona do norte, se moveu e tanto soffrimento curtiu, como martyr de mal pensados calculos de guerra.

Datam estas razoes da minha infancia, quando meu pai, Felix Emilio Taunay, barão de Taunay, constantemente me fallava desses lugares, testemunhas de um desastre, cuja recordação não mais se lhe apagára do espirito e nem se quer conseguira do tempo a esperada attenuação.

E, incidentemente, levado pela mysteriosa seducção dos lugares muito e muito apartados, no centro de terras longinquas e nas brumas de distancias immensas, me fallava elle nessa Villa-Bela, no palacio em ruinas dos antigos e omnipotentes capitães-generaes, nos frescos que o adornavam, nos paineis que encerrava, reproduzindo trechos inteiros de cartas do audacioso e tão chorado viajante (TAUNAY, 1923, p. 13-14, grifo nosso).

Inserido numa moldura de escrita memorialística, o narrador se posiciona

como o próprio autor, ou vice-versa, tendo em vista que seu discurso referenda

flashes de sua experiência como relator na Guerra da Tríplice Aliança (1864-1869),

bem como da recorrência às lembranças sobre o Mato Grosso Colonial contadas em

sua infância pelo pai, Felix Emilio Taunay, e que, por sua vez, são frutos das viagens

feitas pelo tio Amado Adriano Taunay nessa região. O recurso à escrita

memorialística, nesse texto, projeta uma narrativa construída como num jogo de

espelhos, em que a memória do narrador homodiegético espelha cenas da

reminiscência do pai que, por sua vez, refletem a memória do irmão, morto nas

águas do Rio Guaporé. O procedimento de enunciar fatos ocorridos em âmbito

pessoal mostra que o narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas encena aquilo

que Lejeune (2008, p. 30) denomina como pacto autobiográfico com o leitor, pois

aquele se declara idêntico ao autor, arregimentando o espaço em que este deverá

interpretar a narrativa.

De início, vemos que o narrador enumera uma série de adjetivos

(“moribundo”; “bem distante”; “lugares muito e muito apartados”; “terras longinquas e

nas brumas de distancias immensas”) que projeta uma imagem de abandono e

desolação para a cidade de Vila Bela e, por extensão, para a Província de Mato

Grosso. Esta imagem não aparece vinculada ao passado de Vila Bela e/ou Mato

Grosso, mas sim ao presente enunciativo que faz com que o narrador entrelace

lembranças da época em que participou da Guerra do Paraguai. Com isso, o

narrador glosa três movimentos distintos na projeção de Mato Grosso, mas que se

aproximam por meio da plasticidade da memória: a decadência de Vila Bela, o

desastre que foi a Guerra do Paraguai, bem como a distância dessa Província em

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relação ao centro urbano, o Rio de Janeiro. O modo negativo com que o narrador

constrói a imagem de Mato Grosso no cenário nacional, antes de constituir uma

espécie de aversão, denota o abandono a que foi legada esta região em virtude dos

descompassos históricos da modernização brasileira29. Tal imagem de abandono

está atrelada às recordações do tio Amado Adriano Taunay, morto nas águas

caudalosas do rio Guaporé:

E agora interrompo o que vou dizendo, para tornar ou procurar tornar bem sensível ao leitor, quanta alegria suave e repassada de melancolica meiguice, quanto entretenimento indizivel a muitas horas do dia lento e pesado, é para mim reconstituir a historia e a vida de todos aquelles lugares, tão longe, tão longe de nós! Para isto concorreram notas esparsas, velhas, amarelladas pelo tempo, que dormiram 24 annos nas minhas gavetas, colhidas em épocas da juventude, notas escassas truncadas, completadas pela memoria, ás vezes de súbito, outras em inssomnias que me faziam viajar até ao fundo de Matto-Grosso e que hoje tiram do estudo e da consulta confirmação em muitas minudencias que são como que outras tantas surpresas (TAUNAY, 1923, p. 158-159, grifo nosso).

Neste fragmento, destacamos que o narrador de A Cidade do Ouro e das

Ruínas busca dar um sentido às lembranças dispersas na memória ao reagrupá-las

a uma série de “papéis avulsos”, ou melhor, de textos, relatórios, dados estatísticos,

que constituem um arquivo sobre Mato Grosso, bem como relatos de viajantes e as

histórias contadas pelo negro Cardoso Guaporé quando da estada do escritor nos

Morros, em virtude da Guerra contra o Paraguai30. O recurso a lembranças diversas

29 Fundada em 1751, Vila Bela foi de grande interesse para Portugal devido à presença de riquezas minerais, a saber, o ouro, no entorno do Rio Guaporé, o que fez com que a Coroa fomentasse a política de povoamento desta região, de modo a impedir a invasão espanhola. Contudo, a fixação dos marcos do poder do Estado-nacional não garantiu a prosperidade da região, tendo em vista a necessidade de essa ocupação ter sido mais planejada por meio do conhecimento do território físico-geográfico. Os investimentos feitos pela Coroa em infra-estrutura e incentivos fiscais não foram suficientes para atrair habitantes a uma região situada fora da rota de comércio e presa de moléstias de toda sorte (SENA, 2006). 30 Tematicamente a narrativa está estruturada da seguinte forma: Marquês de Pombal e o objetivo de ramificar o território brasileiro, Amado Adriano Taunay, vinda da família Taunay para o Brasil na época dos desastres de Napoleão Bonaparte, residência na Cascatinha da Tijuca, a “malaventurada tentativa scientifica” da Expedição Langsdorff, a loucura de Langsdorff e o interesse da Rússia por Mato Grosso, a Carta de Riedel e os poemas dos irmãos de Adriano Taunay, Cardoso Guaporé fala sobre o tio Adriano e sobre a Rusga, a invasão do Paraguai e os feitos heróicos de João de Oliveira Mello, a fundação de Vila Bela em 1751, a transferência da Capital para Cuiabá, os presidentes da Vila Bela colonial, a decadência de Vila Bela, a narrativa de Oliveira Mello, a narrativa de Castelnau, os

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sugere-nos como o narrador se posiciona na condição de um participante que ouviu

as histórias contadas na infância e recuperadas pela memória.

Trazemos, nesse ponto, a discussão proposta por Márcio Seligmann-Silva

(2003; 2009) a propósito da literatura de testemunho para mostrarmos como a

posição do narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas configura o efeito retórico do

testemunho. De acordo com Seligmann-Silva, o vocábulo “testemunho”, em latim,

tem seu significado relacionado a duas outras palavras: testis e superstes. Enquanto

a primeira refere-se ao depoimento de um terceiro em um processo, a última diz

respeito ao “sobrevivente”, a pessoa que atravessou uma provação. O testemunho

no caso do sobrevivente, superstes, encena a subjetividade da testemunha que

tenta apresentar o real, o que escapa ao simbólico, de forma objetiva, mas cuja

apresentação passa pela impossibilidade mesma de relatar as experiências por que

atravessou. Nas palavras de Seligmann-Silva, “O testemunho está submetido ao

double bind de sua simultânea necessidade e impossibilidade” (2009, p. 131).

Seguindo estas considerações, parece-nos plausível ressaltar a posição

ambivalente do narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas, ao tratar da história de

destruição que atravessou a Província de Mato Grosso. Ambivalente na medida em

que é submetida ao duplo movimento daquele que ouviu (testis) as histórias

contadas pelo tio Amado Adriano Taunay, como também do que experienciou

(superstes) a catástrofe da Guerra do Paraguai. Ambos os momentos históricos

revelam as duas tentativas de modernização do país, que foram frustradas em seu

processo. A primeira diz respeito ao povoamento desordenado, enquanto a última

refere-se às consequências da expansão capitalista sobre as sociedades

tradicionais, cuja trama levou o Brasil a iniciar a Guerra contra a República do

Paraguai (VOLPATO, 1993; SEVCENKO, 2003).

Retomando o procedimento de mesclar diversas histórias, vemos que o

narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas produz um mosaico narrativo em que as

peças são interligadas pelos fios da memória, conforme a leitura de Olga Maria

Castrillon-Mendes (2007, p. 150). Ainda sob a perspectiva da mencionada

pesquisadora, esse texto pode ser entendido sob um duplo prisma agenciado na

relatos de Ferreira Moutinho, os relatos do tio e de Cardoso Guaporé versus o texto de João Severiano da Fonseca, a capital Cuiabá, a sepultura de Ricardo Franco, a Rusga política, o progresso devido à extração do ouro, a modernização de Casalvasco.

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recuperação dos fatos: tanto como síntese do esforço de auto-conhecimento, quanto

de conhecimento do outro. Assim como Sherazade, em As Mil e uma noites, o

narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas faz interpenetrar diversas narrativas no

objetivo de afastar a morte da memória de uma cidade em ruínas, bem como da

própria personagem que se deseja biografar, Amado Adriano Taunay.

Nesse sentido, há um princípio constelacional31 na literatura do Visconde de

Taunay que denota a força da memória ao construir uma teia incessantemente

entrelaçada, utilizando-nos das palavras de Alba Olmi (1996, p. 32), com as histórias

narradas das mais diversas formas. Isso pode ser visto nos deslizamentos

discursivos, nas passagens relativas à Guerra do Paraguai, encenados na

multiplicidade de seus textos, bem como na referência que faz de suas diversas

produções em âmbito literário. Temos como exemplo a menção às Narrativas

Militares no conjunto de cenas de A Cidade do Ouro e das Ruínas e que, segundo o

autor, foram menosprezadas pelo público.

Encaminhamos nossas considerações para a segunda pulsão que move a

narrativa de A Cidade de Ouro e das Ruínas, a biográfica. Recorremos à definição

de Lejeune (2008, p. 36) segundo a qual o texto biográfico tem uma base referencial

na medida em que fornece dados a respeito de uma “realidade” externa que se

pretende semelhante à verdadeira. Vejamos como o narrador do texto literário em

estudo se posiciona quanto ao biografado, Amado Adriano:

E agora consintam os leitores que eu avoque a mim, por obrigatoria e reverente herança, a dor dos meus e continue a fallar do mallogrado mancebo, com a certeza de que encontrarão interesse no que vão ler e que aliás nos reporta á longínqua localidade, motivo desta despretenciosa memoria e termo daquella existencia tão agitada e promisssora (TAUNAY, 1923, p. 27, grifo nosso).

E agora mais se augmenta a minha emoção – e assim

consiga eu passal-la ao leitor – pois illustre viajante vai reportar-se ao ente, que inspirou tudo quanto tenho até agora escripto, como que na obsessão de um compromisso triste e grave que eu tinha de desempenhar (TAUNAY, 1923, p. 89-90, grifo nosso).

31 Luiz Costa Lima (2002, p. 335) intitula como princípio constelacional o recurso empregado por Machado de Assis na escrita de suas crônicas: “Por princípio constelacional entendemos a conexão de blocos proposicionais diversos, que, entretanto, se interligam por um motivo comum”.

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A estratégia de solicitar a autorização do suposto leitor para prosseguir com a

narrativa produz um efeito referencial, estabelecido pelo narrador, que confere

àquele certa autoridade em relação às cenas que ainda serão projetadas. Se essa

atitude ficcional, de um lado, estabelece certa cumplicidade entre narrador e sujeito-

leitor, como pretendia a literatura romântica, segundo os estudos de Lajolo e

Zilberman (1998), de outro, aponta para um gesto tutelar do narrador, que delineia a

cena memorialística em que deverá ser lido o texto. Contudo, o narrador revela o

embuste existente por trás desta atitude tutelar, pois o que se pretendia como

“despretenciosa memoria” acaba revelando as mazelas oriundas da política de

alastramento territorial no Brasil.

Com base nessas considerações torna-se pertinente recorrermos ao

pensamento de Tzvetan Todorov (2000), segundo o qual a recuperação do passado

pode ser lida de maneira exemplar:

El uso ejemplar, por el contrario, permite utilizar el pasado con vistas al presente, aprovechar la lecciones de las injusticias sufridas para luchar contra las que se producen hoy día, y separarse del yo para ir hacia el otro (TODOROV, 2000, p. 32).

Como refere Todorov o uso exemplar da memória permite ao homem refletir

sobre o seu próprio presente. Característica relativa ao texto de Memórias, como

destaca Sheila Dias Maciel, a busca por recordações consiste em “evocar pessoas e

acontecimentos que sejam representativos para um momento posterior, do qual este

eu-narrador escreve” (2004, p. 9). Diante de tais palavras, temos na narrativa

memorialística um retorno ao passado na tentativa de compreender o presente

vivido. Quanto a isso, Maciel parece concordar com Todorov (2000) quando propõe

uma relação entre o texto de Memórias e a historiografia, na medida em que ambos

“buscam por meio da narração de fatos importantes, um certo caráter de

exemplaridade que supere o inevitável esquecimento que incidirá sobre os fatos

comuns” (MACIEL, 2004, p. 9).

Na linha desses estudiosos da escrita memorialística, Jeanne Marie Gagnebin

(2006) mostra-nos a importância da rememoração como uma forma de agir sobre o

presente. A autora, fazendo referência a uma série de trabalhos (Benjamin; Ricœur;

Nietzsche; Freud; Adorno), mostra-nos que “a memória vive essa tensão entre a

presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado

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desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua

irrupção em um presente evanescente” (2006, p. 44). Com isso, notamos que a

reconstrução do passado configura o uso exemplar da memória na medida em que

permite que este passado insurja no presente como forma de reflexão.

Numa tentativa de amenizar as cores da história32, o narrador de A Cidade do

Ouro e das Ruínas parece dissimular que foi inspirado por um compromisso com a

imagem do ilustre familiar, o qual constituiria o tema central da narrativa. O que ele

revela, em seu procedimento digressivo, é o uso exemplar da memória, que busca

compreender o caos do presente, a República, a partir das suas raízes longínquas,

no tempo e na história, que interligam Mato Grosso à história do Brasil. Possibilita a

esse pretendido leitor ampliar o repertório de leitura que tem como escopo a junção

entre história e memória, o que desloca os protocolos firmados na/pela literatura

romântica quanto à idealização de um passado mítico a-histórico, que se supõe

necessário para a construção e naturalização da ideia de nação moderna.

O estudo de Marilena Chauí (2001, p. 9) sobre a construção histórico-cultural

que institui o Brasil como “terra abençoada” mostra como a literatura romântica

buscou uma “solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não

encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade”. Pensamento

semelhante tem Antonio Candido, que aborda a pintura do local como uma

estratégia romântica para firmar a imagem de “um Brasil colorido e multiforme, que a

criação artística sobrepõe à realidade geográfica e social” (2006c, p. 101).

Diferentemente dos românticos, que propunham mesclar o mítico à natureza

idealizada, na narrativa de Taunay a projeção do espaço geográfico mato-grossense

perspectiviza a alteridade daquele que vai significar de forma exemplar a situação de

crise em que vivia o país, “quando agonizavam as concepções até então dominantes

e um novo conjunto de idéias e valores passa a se impor” (ALMEIDA, 1999, p. 79).

A citação de Píndaro na narrativa é bastante emblemática, pois foi utilizada

pelo narrador para figurar o tio Amado Adriano Taunay: “‘Felizes os que morrem

moços’, diz Pindaro, ‘porque sempre serão lembrados’” (PINDARO apud TAUNAY, 32

Recorremos à leitura de Lídia Maretti (2006) que disserta sobre o livro A Cidade do Ouro e das Ruínas, do Visconde de Taunay, com base na “alegoria lobatiana da história” denominada “Regra do Azul”. Essa, por sua vez, sugere como “a história pode se valer do que Taunay chamaria de ‘diluições das cores’, ou seja, de uma amenização da intensidade cromática dos fatos que relata, para ser facilmente assimilada pelo homem” (MARETTI, 2006, p. 181). Para a estudiosa, a memória de Taunay ao reconstruir a história de Vila Bela oscilou entre “a nostalgia de poder manter o tom cromático azulado e a frustração diante das impossibilidades por vezes reveladas” (2006, p. 182).

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1923, p. 14). A nosso ver, a condição do herói biografado é extensiva à situação

agônica da cidade de Vila Bela como metáfora das vicissitudes do progresso perante

a morte. Os ímpetos de modernização pelos quais o Brasil passou, no desenrolar da

história, paradoxalmente acarretaram os entraves para sua entrada nas trilhas da

modernidade. Da mesma maneira que o tio morto será lembrado por sua capacidade

intelectual e espírito aventureiro, também a imagem de Vila Bela entrará para a

história dos que tinham, como Amado, um futuro brilhante, mas ficaram condenados

à decadência, ou, como diz o autor, “a viver vida de mortos”. Podemos ver esta

relação entre a cidade de Vila Bela e a personagem biografada como alegoria do

destino do Brasil em seu processo de modernização: um país rico e jovem com

imensas riquezas naturais, mas que não eram suficientes para promover o seu

desenvolvimento.

Como afirma Castrillon-Mendes (2007), Taunay propôs pensar o Brasil a partir

de um olhar voltado para o interior, o que nos leva a acreditar que a projeção da

região mato-grossense em A Cidade do Ouro e das Ruínas será fulcral para a trama

das tensões referentes à modernização no XIX. Trata-se de ver a região, de acordo

com Durval Muniz de Albuquerque Jr. (2006), como uma espacialidade sujeita às

oscilações do movimento de destruição/construção, o que contestaria a imagem de

eternidade proposta pela literatura romântica. A noção de região não diz respeito

apenas a um recorte espaço-territorial dado, pois é uma construção histórica na qual

perpassam, segundo Albuquerque Jr., “recortes espaciais que surgem dos

enfrentamentos que se dão entre os diferentes grupos sociais, no interior da nação”

(2006, p. 25). As cenas produzidas quanto ao declínio de Vila Bela trazem a região

de Mato Grosso como âmbito do embate hegemônico referente ao processo

constitutivo do ideário modernizador em nosso país:

Ao passo que se tratava de incutir mais força moral mesmo, do que aperceber de defesa effectiva a extensissima divisa, recebia a cidade de Villa-Bella, depois Matto-Grosso, fundada expressamente para capital de toda aquella afastada e larga zona, incremento material expresso em obras, cujas ruinas causam intensa melancolia aos raros que a visitam hoje e, scientes das cousas do passado, ainda encontram, naquelles outr’ora florescentes páramos, vestigios eloquentes de extinctas grandezas, que jamais voltarão (TAUNAY, 1923, p. 11, grifo nosso).

[...] e, no meio de toda essa desolação, um povo

abastardado, presa de molestias periodicas e vivendo em dura

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miseria, que nem parece mais sentir. Entretanto, cousa curiosa, as telhas não envelhecem nem criam musgo com o tempo e ficam cada vez mais vermelhas (TAUNAY, 1923, p. 67, grifo nosso).

No primeiro fragmento, destacamos que há um visível vinculo afetivo com o

objeto narrado, que contribui para desconstruir a imagem negativa de Mato Grosso.

Contudo, este procedimento não desemboca na perspectiva paradisíaca da natureza

na medida em que a imagem do progresso, agenciada no primeiro capítulo com a

ascensão da imagem de Pombal, é retardada aos poucos pela projeção de figuras

de fantasmagoria, que arrebatam os “vestígios eloqüentes de extinctas grandezas,

que jamais voltarão”. Como ponto estratégico de observação das “possessões

hespanholas” que contínuos motivos davam de inquietação à Coroa portuguesa, de

acordo com Taunay, Vila Bela foi fundada em 1751 pelo Marquês de Pombal, o qual

é reverenciado pelo autor no primeiro capítulo de A Cidade do Ouro e das Ruínas. A

escolha dessa localidade, Pouso Alegre, se deu à revelia dos caprichos do Marquês

de Pombal, que, segundo Taunay, ficou encantado com a paisagem e não atentou

para a insalubridade da região. Assim como a “malaventurada tentativa scientifica”

da Expedição Langsdorff, a ascensão de Vila Bela acabou com o fim da extração do

ouro.

Já no segundo excerto, vemos que a imagem do atraso recai sobre o povo

que, como a cidade, sofre pela vida de duras moléstias. Povo este formado,

segundo os dados colhidos pelo escritor, em sua maioria por negros destinados a

ficarem às margens da vida social no Brasil. Vemos que o narrador problematiza a

questão do cativeiro, mas desvia o discurso quando focaliza as telhas ainda

vermelhas em meio à decadência do povo negro lançado sempre ao segundo plano

da história. Este desvio discursivo constitui uma forma de o narrador ironizar, de

soslaio, as contradições do seu tempo. Desvios que projetam uma narrativa escrita

em filigrana33, tendo em vista que a discussão sobre as tensões do seu tempo não

aflora explicitamente na superfície da linguagem. É a imagem do romancista

proposta por Roberto Schwarz (1992, p. 25) que, sentado à escrivaninha num ponto

qualquer do Brasil, encena como pode as “questões da história mundial; e que não

as trata, se as tratar diretamente”.

33 Termo empregado por Antonio Candido acerca da escrita de Machado de Assis. Cf: CANDIDO, 1970.

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Conforme sublinha Sevcenko (2003), o novo paradigma financeiro surgido

nos primórdios da República exigia a remodelação dos hábitos sociais e dos

cuidados pessoais. Daí a necessidade de alinhar-se ao ritmo e aos padrões da Belle

Époque (1889-1922) a partir do projeto de moldar a cidade, que, para se efetivar,

norteou-se por quatro princípios fundamentais: condenação dos hábitos e costumes

ligados pela memória à sociedade tradicional; negação da cultura popular; expulsão

dos grupos populares dos centros; cosmopolitismo agressivo que ressoa na

arquitetura e na moda. Momento ímpar na escrita de A Cidade do Ouro e das

Ruínas constitui a encenação, num processo único, das questões referentes ao

cosmopolitismo exacerbado, cujos ecos encontram-se, principalmente quanto à

temática da escravidão, na história que interpela o Brasil colonial até o republicano:

Entre parenthesis, quantos soffrimentos quantas miserias tocavam nessas explotações nessas avidas e penosas pesquizas do ouro aos infelizes escravos, sobretudo nos dias de tão terrivel carencia dos mais simples meios de subsistencia, expostos a todos os rigores do tempo e sujeitos á cruel disciplina que não afrouxava em seus rigores! Que medonho drama esse da escravisação; que encadeamento de dores e angustias! Só hoje é que o olhar da humanidade póde penetrar em tenebrosos arcanos e levar, na sua embora inutil compaixão, um preito de commovido sentimento a milhões e milhões de infimos e desconhecidos martyres!

Quando achados em quilombos, mandava a Ordem régia de 7 de março de 1741 que em uma das espaduas dos pobres fugidos se puzesse a marca F, pela primeira vez, cortando-se-lhes sem mais processo, uma orelha em caso de reincidencia! (TAUNAY, 1923, p. 142, grifo nosso).

O corte abrupto do ato de narrar, realizado para trazer à baila o problema da

escravidão, sugere o veio altamente ético-político da literatura de Taunay. Isso

porque o narrador realiza um verdadeiro trabalho de luto, para usar a expressão de

Jeanne Marie Gagnebin (2006, p. 45), quando denega que a memória da escravidão

caia no esquecimento. Dar visibilidade a esse povo silenciado pelos programas

românticos (e expulsos da cidade cosmopolita) constitui um dos liames que

perpassa o projeto literário deste autor. Povo este que, nas palavras de Süssekind

(1993), seria tematizado ocasionalmente apenas sob o disfarce da metáfora

amorosa, como em Senhora (1875), de José de Alencar, ou sob a retórica senhorial

da doçura.

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Conforme sugere Schwarz (1992), as ideias advindas do liberalismo europeu

eram incorporadas ao pensamento brasileiro de forma incompatível com a realidade

de escravismo que mantinha a economia latifundiária de exportação no Brasil. E

acrescenta:

Vimos o Brasil, bastião da escravatura, envergonhado diante delas – as idéias mais adiantadas do planeta, ou quase, pois o socialismo já vinha à ordem do dia – e rancoroso, pois não serviam para nada. Mas eram adotadas também com orgulho, de forma ornamental, como prova de modernidade e distinção (SCHWARZ, 1992, p. 22, grifo nosso).

Modernidade e escravidão constituíam tópicas que se chocavam na

construção da unidade nacional tão visada tanto pelos militantes da Independência

(1822), quanto pelos defensores da República, a qual se concretizou um ano após a

abolição da escravatura.

Trazemos, nesse ponto, o trabalho proposto por Ângela Mendes de Almeida

(1997), que investiga a violência presente na sociedade brasileira em sua relação

com as raízes antigas da cordialidade à época da escravidão. A autora argumenta

que a escravidão, que constituiu a base da propriedade agroexportadora, foi fator

preponderante para a consolidação da desigualdade no Brasil. Como vimos, existia

o paradigma da doçura, que apagava o histórico de violência e exploração

subjacente à escravidão. A modernização fez crer que o país seria salvo de suas

mazelas coloniais, a saber, a escravidão. Almeida traz as considerações de Sérgio

Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, sobre a definição do brasileiro como

“homem cordial”. O homem cordial é aquele que coaduna com a violência desde que

ela não atinja algum comparte seu. O homem cordial constitui o contrário do homem

polido, o qual teve seu caráter civilizado no limiar da passagem do Antigo Regime

para a modernidade burguesa, o que não aconteceu, nas palavras de Almeida, na

vida social brasileira.

Ao trazer a temática da escravidão o narrador de A Cidade do Ouro e das

Ruínas revela a face bárbara do mundo civilizado por meio do horror diante de fatos

que relampejam na memória, mas que a escrita procura ordenar, dar testemunho

para que não volte a acontecer. A imagem da violência cometida contra os escravos

vem acompanhada da referência à legislação que rege os atos bárbaros contra os

escravos. Recordar os acontecimentos que dizem respeito ao regime escravocrata

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agencia a forma encontrada pelo narrador para buscar respostas para os

descompassos da modernização em voga no novecentos. Mostra-nos que a

auscultação desses fragmentos perdidos na memória possibilita uma nova

perspectiva sobre a história, que agora se volta para os restos, para aqueles que

foram legados ao esquecimento, como o escravo e o sertanejo, por exemplo.

Estes apontamentos encaminham-nos para a definição de história formulada

por Walter Benjamin (1994b, p. 224), segundo a qual “A verdadeira imagem do

passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja

irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”. Sob este prisma,

acreditamos que o narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas configura a imagem

benjaminiana do “trapeiro”34, para quem a história deve ser construída como uma

experiência efetiva, que inscreve os fragmentos da memória conforme as suas

irrupções no momento de recordação. Vejamos uma cena bastante peculiar em que

o narrador taunayano interrompe a narrativa da invasão dos paraguaios na cidade

de Corumbá, salientando a perplexidade e angústia do povo que não tinha como

escapar da emboscada:

Houve episodios, cuja lembrança, ainda annos depois, suscitava mil commentarios e despertava gostosas gargalhadas. Um individuo, entre outros, que se apavorára demais, imaginou disfarçar-se em mulher, e nesse intuito metteu-se em saias e corpete, ao passo que esplendida e negrejante barba lhe cahia sobre enormes seios de embrulho. Outro agarrou nervosamente num grande ananaz, andou com elle o dia inteiro sem saber o que levava e só á noute é que pôde, com esforço – contava elle proprio – abrir os dedos convulsos e todos feridos (TAUNAY, 1923, p. 56).

Esta cena um tanto quanto cômica mostra-nos como o trabalho de escrita dos

fragmentos dispersos na memória mobiliza acontecimentos considerados menores e

que são silenciados pela história oficial. A angústia quanto à proximidade da morte,

ao ser relembrada em uma perspectiva cômica, acaba por tensionar a perspectiva

da história oficial, que geralmente se volta para os grandes feitos heróicos, a história

dos vencedores. Além disso, o olhar cômico provoca um distanciamento que

representa a atitude do povo em relação à Guerra, visto que este por não ver

motivos para tal empreitada política queria apenas salvar a si próprio.

34 Benjamin (1975) afirma que da mesma forma que o trapeiro, o poeta, segundo Baudelaire, constitui-se como sujeito que escreve a partir daquilo que coleciona, retira, seleciona no lixo deixado pela grande cidade.

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A narrativa de A Cidade do Ouro e das Ruínas faz um movimento contrário

quando projeta a imagem trágica dos destroços resultantes da Guerra do Paraguai

que, como consequência da modernização, condenaria a região mato-grossense ao

atraso. Isso porque, como mostra Luiza Rios Ricci Volpato (1994), quando os

paraguaios invadiram Mato Grosso, em 1864, a navegação no Prata foi bloqueada, o

que impediu o contato da Província com as demais regiões do Império35. Da mesma

forma que a Guerra do Paraguai, podemos ver o fenecimento de Vila Bela como

uma alegoria das políticas de modernização que não conseguiram promover o

desenvolvimento necessário para conduzir o país nas trilhas da modernidade.

Quanto a isso, a leitura de Raymundo Faoro (1992) torna-se bastante

significativa na medida em que pensa as distinções entre modernização e

modernidade. Esta pode ser entendida, nas palavras do teórico, tanto no processo

constitutivo do Estado de direito e da cidadania quanto no de fortalecimento de uma

sociedade democrática. Consiste num movimento que abrange a sociedade como

um todo, abarcando todas as esferas sociais (política, econômica, cultural, etc.),

como também todas as classes e grupos. Já a modernização, segundo Faoro, pelo

seu caráter voluntarista, aborda a sociedade “por meio de um grupo condutor, que,

privilegiando-se, privilegia os setores dominantes” (1992, p. 08). No Brasil, a

modernização encontra, na sua primeira versão histórica, a modernidade

amadurecida em virtude das inovações trazidas pela transferência da Corte

portuguesa para o Rio de Janeiro.

O período que abarca o século XIX compreende uma série de modernizações

encarrilhadas umas nas outras. Faoro afirma que o projeto de modernizar o país por

meio da disseminação das estradas de ferro não resultou favorável e, como todas as

modernizações, deixou apenas espectros, as cidades mortas, como mostra Taunay

quanto à Vila Bela, e a tentativa de ramificar o interior aos centros cosmopolitas via

Pombal. Para Faoro, as modernizações assumem perfil definido no XIX, momento

em que o engajamento do Brasil numa guerra continental, a julgar pelos

precedentes, seria somente uma turnê nas fronteiras do Sul, cuja vitória deprimente

da “infeliz expedição”, como afirma Taunay no texto literário em estudo, depois de

35 No ano de 1857 foi liberada pela primeira vez a navegação no Prata, o que trouxe novo desenvolvimento para Mato Grosso. A abertura da navegação no Prata também estimulou, segundo Volpato (1998), a imigração estrangeira para o trabalho na Província.

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quatro anos inglórios, mostrara a fraqueza e o atraso do país. Guerra esta que,

segundo o literato, apenas produziu “as scenas mais contristadoras na povoação,

tão florescente até essa época fatal, de Albuquerque” (TAUNAY, 1923, p. 55).

A imposição da República Ditatorial, conivente com as modernizações porque

coercitiva e repressiva, tinha em seu programa os ideais do Liberalismo, que teria

uma presença permanente na história brasileira, entroncando-se com a base

pombalina. O povo, mantido às margens desse processo, padecia e quedava

bestializado, na expressão de Aristides Lobo recuperada no livro de José Murilo de

Carvalho (1987). Faoro sintetiza alguns dos destroços das modernizações no Brasil:

[...] as modernizações, que se desenvolvem entre saltos, espasmos e surtos, deixam, na cauda, um cortejo de espectros e malogros. Seus êxitos são os êxitos da modernização, que viriam sem esta, ou que esta perturbou. Seus malogros são só delas: os campos calcinados do café, as ruínas do Encilhamento, ruína oficial e que foi oficialmente paga, os subprodutos da favelização com a modernização urbana, a militarização política legada por 37, e, em 64, o símbolo maior: o fantasma das usinas atômicas (1992, p. 17).

A tessitura da história de Mato Grosso elaborada por Taunay pelo viés

memorialístico-biográfico fossiliza, para usar as palavras de Faoro, um cemitério de

projetos, ilusões e espectros das inadequações surgidas no seio de um país nos

limites do dilaceramento, que propôs uma modernidade restrita apenas ao aparato

retórico da intelectualidade. O recurso à memória mostra como o escritor estudou o

passado recôndito e silenciado do interior na tentativa de ensinar a geração do

novecentos a refletir melhor sobre o presente, já que “muito disposta, como aliás

todas as outras no evolucionar da humanidade, a esquecer e a ser ingrata”

(TAUNAY, 1923, p. 49).

Somente a memória poderá recuperar os manuscritos históricos, roídos pelo

“dente do tempo”, de uma cidade também histórica e aniquilada pelo tempo. Daí o

olhar nostálgico que o narrador lança para as ruínas de Vila Bela, cujo processo

mnemônico permite-lhe regressar a “lugares tão desolados e perdidos”, que na

verdade nunca visitou:

Nessa Camara, freqüentada muitíssimo mais pelos morcegos do que por vereadores, se acha ainda grande parte dos archivos da Capitania do Cuyabá e Matto-Grosso, mas tudo perdido, estragado, roido pelo dente do tempo, dos cupins e dos ratos.

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Os manuscriptos, já nos disséra Castelnau, cabem em pó, mal se toca nas pastas que os guardam, colladas pela humanidade e cobertas de bolor que viceja com força de cogumelo em plena exuberancia (TAUNAY, 1923, p. 99, grifo nosso).

[...] via eu, na confirmação de muitos sentimentos de meu pai em relação ao irmão Adriano, reapparecer aquellas pinturas a fresco e manifestaçoes artisticas, que no fundo dos sertões haviam merecido lisongeiro reparo critico de quem percorrera o mundo inteiro á pesquiza e na contemplação do bello (TAUNAY, 1923, p. 48).

[...] o olhar synthetico do viajante que busca reconstituir periodos da historia, vendo preciosos rastos nas menores indicações, já uma pedra lavrada, já truncada inscripção, já um desenho ou um simples arabesco, senão até rudimentares rabiscos mais ou menos artisticos nas suas combinações e entrelaçamentos (TAUNAY, 1923, p. 83, grifo nosso).

No primeiro fragmento, vemos a imagem dos detritos que restaram de Vila

Bela com o fim da economia aurífera, bem como do mau povoamento incentivado

apenas para garantir os domínios desse território. Torna-se interessante

percebermos como o narrador procura recolher os restos deixados pela humanidade

para poder construir uma narrativa que seja exemplo da crise que atravessa o

histórico de formação do Brasil. Em sua terceira tese sobre o conceito da história,

Walter Benjamin (1994b) discute a importância de os olhos da humanidade estarem

voltados ao passado para que consiga exorcizar a sua irrupção no presente. Nas

palavras do filósofo, “nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido

para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se

totalmente do seu passado” (1994b, p. 223). Com isso, vemos que, para libertar-se

das mazelas trazidas pela modernização, o Brasil precisa auscultar o passado em

suas insurgências no presente, revisitando-o de maneira que possa dominá-lo em

sua totalidade. Somente assim poderá afastar os fantasmas do presente, de modo a

trazer uma nova concepção de história voltada para esses fragmentos deixados

perdidos entre papéis avulsos, cheios de bolor e repletos de história.

Trata-se de olhar para o passado com os olhos do viajante que rastreia

objetos obsoletos, procurando neles o sentido da sua jornada. Este retorno ao

passado por meio de um olhar que se lança para as ruínas – o esquecido e envolto

pelo silêncio – configura uma forma de resistência aos jogos de poder postos no

presente. Sabemos, com Lúcia Lippi de Oliveira (1989), que com o fim do regime

monárquico houve um grande trabalho em torno da produção de um novo universo

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simbólico legitimador da memória republicana. Revoluções, como a proposta

republicana, buscam criar a imagem de uma nova vida social e política como forma

de recuperar a base que possa legitimá-la em instituições estáveis e aceitas. A

autora sugere que o retorno a um passado remoto constitui a estratégia encontrada

para mobilizar o novo apregoado. No Brasil, entretanto, o passado lembrava a

Monarquia, tornando-se difícil para a República construir sua memória. Nesse

sentido, o narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas, ao resgatar a memória de

Vila Bela em seu histórico de destruição, encena um gesto de resistência à nova

ordem histórica que a República tenta impor quando procura apagar os rastros do

passado monárquico. Passado este repleto de objetos obsoletos que dizem sobre o

acúmulo de ruínas resultante das modernizações encetadas no Brasil.

Ao atentarmo-nos para o contexto histórico-ideológico em que foi escrita A

Cidade do Ouro e das Ruínas observamos que encenar a decadência de Vila Bela

não foi uma tópica escolhida à revelia pelo escritor. Ora, essas palavras nos trazem

o pensamento de Todorov (2000) segundo o qual a memória é um processo seletivo,

cujas informações servem para orientar o uso que se faz do passado. Jô Gondar

(2000) também nos fala da importância do esquecimento na constituição da

memória, tendo em vista que

[...] admitir a relação de forças entre memória e esquecimento implica admitir o quanto essa grande abstração chamada “identidade” é ficcional, o quanto ela implicou numa escolha política – ou “orgulhosa” –, o quanto ela se deve aos nossos interesses práticos. Não podemos falar de memória, articulando-a à identidade, sem inseri-la num afrontamento de forças e sem levarmos em conta que a memória é, antes de mais nada, um instrumento de poder (p. 37, grifo nosso).

Com esses apontamentos, a autora nos leva a pensar como a manutenção da

memória requer a interdição do que macularia a imagem ou a representação que se

deseja preservar. A perspectiva teórica de Jô Gondar é relevante na medida em que

mostra como a sociedade esquece-se dos elementos passíveis de revelar sua

alteridade, projetando a memória que ela pretende fornecer sobre si mesma. Dessa

forma, a memória construída sobre as ruínas de Vila Bela revela que o gesto político

de Taunay não deixa esquecer os percalços da modernização brasileira, como

também impede que a República silencie o passado que muito pode dizer sobre ela.

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Embasados nesta perspectiva, vejamos o sentido fantasmagórico do qual o narrador

lança mão para criar a imagem de Vila Bela:

De todas aquelas indicações de Oliveira Mello desaparecera aquelle toque de impressões vivas, muitas de feição artística, transmittidas por meu tio Adriano e corroboradas pelas minhas conversas com Cardoso Guaporé. [...] Onde os frescos e as pinturas das muralhas, os paineis? Onde o cáes? Onde o éco das festas de outr’ora? Onde as igrejas com riquezas que ainda deviam existir e as muitas alfaias citadas, como eu ouvira, nos confins de Matto-Grosso? Porventura tudo se havia aluido, arrazado e reduzido a pó informe, sem mais possibilidade de reconstrucção; tudo se desmoronára, deixando que as lendas e a imaginação do povo se incombissem de guardar tradições, que por certo hão de ser engrandecidas e exageradas, ao passarem de geração em geração?

Verdade é que fallava um militar com seus habitos de concisão e seccura [...]. Contára laconicamente aquillo que lhe parecera dever dizer como mais prompta resposta á minha indagação e não procurára perguntar ás ruinas que o cercavam a historia do passado, estudando nellas cousas que naturalmente pouco importam ao mundo, entregue todo a interesses de momentos, no torvelinho das paixões pessoaes e egoisticas que o haviam pungentemente combalido, atirando-o, a elle, verdadeiro heroe de uma epopea de humanitária abnegação, em um recanto de cidade a esboroar-se e a viver vida de mortos!... (TAUNAY, 1923, p. 71).

Neste fragmento, o autor assinala a diferença de perspectiva com que Oliveira

de Mello, um militar que atuou na Guerra do Paraguai, discorre sobre Vila Bela, sem

as “impressões vivas”, próprias dos artistas, que foram transmitidas pelo tio Amado

Adriano ao pai Felix Emilio e corroboradas pelas conversas tidas com Cardoso

Guaporé. A memória, glosada na escritura, ganha status de verdade, sendo capaz

de religar o sujeito, segundo Olmi (2006), a um passado do qual deriva a capacidade

de narrar, de recriar um mundo distante. O que parece estar por trás do comentário

feito pelo narrador quanto ao modo de narrar de Oliveira Mello é que escapou aos

militares a percepção de que o projeto de expansão capitalista idealizado não levou

em consideração a realidade do Brasil. São as ruínas, ou melhor, o conhecimento

dos fatores que as erigiram que melhor podem explicar a história subjacente aos

conflitos estabelecidos na zona de fronteira. Nelas e a partir delas é que será

possível reconstruir um passado de ascensão em declive pela mancha histórica do

atraso difundida com a modernização.

Cabe, aqui, retomarmos a quinta tese de Walter Benjamin sobre o conceito de

história: “A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa

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fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é

reconhecido” (1994b, p. 224). O reconhecimento do passado constitui o momento

em que conseguimos identificar uma memória remota diante de um acontecimento

vivido no presente, como que num lapso. A entrada do ideário cosmopolita no Brasil,

como também do capital estrangeiro, sugere a irrupção do passado de Vila Bela no

momento presente da República. Somente o colapso que foi o Encilhamento dá bem

uma mostra deste ímpeto do passado sobre o presente.

Retomando o fragmento, percebemos que o narrador indaga sobre aquilo que

a memória oficial deixou à mercê do conhecimento oral. A escrita, como já dissemos

acima, aparece como rastro capaz de perpetuar a história de Vila Bela como um

acúmulo de destroços resultante da catástrofe da modernização. O estudo feito por

Walter Benjamin sobre o quadro Ângelus Novus, de Paul Klee, ajuda-nos a refletir

sobre a imagem de destruição em A Cidade do Ouro e das Ruínas:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (1994b, p. 226, grifo nosso).

Acreditamos que seja com o mesmo olhar de espanto do anjo no quadro de

Klee que o narrador taunayano indaga sobre o fim de Vila Bela. Ao mesmo tempo

parece necessária a sua destruição para que o passado dessa cidade não se

perpetue. Para que a história de Vila Bela não ressurja de suas próprias cinzas,

deformada e formada sob a legenda dionisíaca, através dos destroços que lhe

restam. O progresso, termo surgido no seio da modernidade, na perspectiva de

Benjamin (1994b), seria o que impossibilitaria o anjo de reaver esse passado. Isso

porque “A idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia

de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo” (BENJAMIN, 1994b, p.

229). O progresso, ao visar apenas o futuro, tem em vista o presente como

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insubstancial e o passado como imperfeito. Tal noção refuta o papel da memória e,

consequentemente, do passado na história da humanidade, pois prevê o tempo

como algo vazio. A mudança se dará com a retomada desse passado no momento

em que ele insurge no presente, de modo a romper com a sua cadeia linear. Eis o

que faz o narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas quando reflete sobre a

catástrofe que foi a tentativa de modernização de Vila Bela.

O auge da Belle Époque, conforme demonstra Nicolau Sevcenko (2003),

sintetizou esse processo de reconstrução da cidade do Rio de Janeiro através do

vazio, isto é, do apagamento de tudo o que lembrava o passado. Era preciso

remodelar os hábitos sociais seguindo os paradigmas do ideário financeiro nascido

com a República. Outro quesito norteava-se pela ampliação do comércio interno na

esteira do modelo europeu. Regenerar constituía o mote principal do movimento de

“destruição da velha cidade, para complementar a dissolução da velha sociedade

imperial, e de montagem da nova estrutura urbana” (SEVCENKO, 2003, p. 43).

Somente assim a população brasileira poderia aniquilar a alcunha de preguiçosa que

lhe era atribuída pelos estrangeiros. Na medida em que o tempo era visto como fator

de produção e acumulação de capital, a sociedade rural e os grupos subalternos

ficavam à margem desse processo de apartheid ocorrido no Brasil.

Se a ideia de nação homogênea, como mostra Manoel Luís Salgado

Guimarães (1988), não foi possível à época da criação do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, devido à existência do trabalho escravo e das populações

indígenas, também será inviável na Belle Époque na medida em que os intelectuais

estavam voltados para o fluxo cultural europeu como a tábua de salvação, “capaz de

selar de uma vez a sorte de um passado obscuro e vazio de possibilidades, e de

abrir um mundo novo, liberal, democrático, progressista, abundante e de

perspectivas ilimitadas, como ele se prometia” (SEVCENKO, 2003, p. 97).

Taunay responde a essas questões do seu tempo quando liberta o anjo do

passado para que ele possa construir um novo futuro, aquele que nunca esqueça os

tempos de outrora. Um anjo capaz de agrupar os restolhos e fazê-los falar de um

tempo que não seja homogêneo, mas plural como o é a sociedade brasileira. Assim,

a projeção das ruínas de Vila Bela também figura as transformações, os saltos e

retrocessos pelos quais o Brasil passou no desenrolar da história, deixando

expostas as fraturas decorrentes do projeto modernizante, que frustrou quaisquer

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tentativas de processar, no seio da sociedade, um devir capaz de abarcar todo o

povo na realização de um Estado Nacional de direito e cidadania.

3.2 Entre Zelosos e Caramurus: figurações à sombra da Rusga política

em Mato Grosso

Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim, como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura (Walter Benjamin, “Sobre o conceito da história”).

Um único e decisivo fio perpassa imutável por essa cadeia

fantasmática: o da barbárie sempre reproduzida, o das ruínas prematuras (Francisco Foot Hardman, Trem Fantasma...).

Neste ponto, recordamos Octávio Ianni (1992, p. 8), que pondera como a

ocorrência de rupturas estruturais na sociedade brasileira, a saber, a Guerra do

Paraguai e/ou a Proclamação da República em 1888/1889, levou a nação brasileira

ao questionamento do presente, ao mesmo tempo em que o próprio passado seria

repensado na busca por inovações e descontinuidades. Desse modo, o teórico

considera que, até mesmo quando se almeja o futuro, a nação é posta novamente a

refletir o passado, seja no sentido de arregimentá-lo ao presente, seja no de

transformá-lo em possibilidade de um devir outro.

Partindo dessa perspectiva, glosamos algumas indagações: Por que se torna

tão significativa a escrita contra as artimanhas do esquecimento/morte? Qual o

sentido da elaboração de uma história para Mato Grosso que, até então, ocupava

um vácuo na historiografia geral? Que relações são postas entre o contexto imediato

(as circunstâncias de enunciação narrativa) e o contexto amplo (situação histórico-

ideológica da República)? Na busca de respostas a essas e outras questões

suscitadas no decorrer do nosso trabalho, trazemos à baila um excerto de A Cidade

do Ouro e das Ruínas, no qual o escritor trata da Rusga:

A ausência de portuguezes é bastante notável em todos os povoados de Matto-Grosso, que foi, comtudo, uma das capitanias mais estudadas, mais bem guarnecidas e mais zeladas pela corôa lusitana. A essa falta, ainda hoje bem sensivel, se ligam penosas

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recordações de uma especie de Saint Barthélemy tramada com todo o sigillo apezar de enormes distancias e executada simultameamente e com o mais diabolico calculo em quasi todas as localidades daquella provincia.

Com effeito, em Cuyabá, nas trevas da noute e á primeira badalada das doze horas dada pelos sinos ao findar o dia 30 de maio de 1834, levantou-se possessa de inexplicavel furia parte da população e, aos brados de mata bicudo, começou a trucidar sem dó nem piedade infelizes e imbelles portuguezes, excitada pelos boatos de que por elles fora chamado D. Pedro I e de que em todos os pontos do Imperio se procedia a igual morticínio! (TAUNAY, 1923, p. 102-103, grifo nosso).

A propósito da disposição da narrativa no formato do livro, sublinhamos que a

história sobre a Rusga em Mato Grosso ocupa os sete capítulos finais referentes à

primeira parte deste (XVI ao XXII), que funcionam como um artefato isolado em

relação ao seu conjunto total. No excerto citado acima, vemos que o narrador

heterodiegético inicia seu relato no sentido de mostrar que a falta de portugueses

em Mato Grosso, na situação enunciativa, está ligada ao episódio da Rusga. Essa

ausência, que constitui o sujeito da oração, aparecerá como uma figura emblemática

de todo o desenrolar narrativo. Ausência que o narrador enfatiza em termos de

indiferença do povo mato-grossense em relação aos empreendimentos promovidos

por Portugal36.

Cabe destacarmos a proposição de Raymundo Faoro (1994) segundo a qual

o desligamento com Portugal foi uma estratégia para que as relações comerciais do

Brasil pudessem ser difundidas rumo aos países iniciados no Capitalismo. Isso não

aconteceria se o país ficasse restrito ao mercado português. Sabemos, com Ernesto

Cerveira de Sena (2006), que Mato Grosso aderiu com facilidade ao rompimento em

relação a Portugal, o que fomentou, no seio da Província, a disputa política entre

dois partidos pela posse do governo, o que desencadeou a Rusga37. O processo de

povoamento de Mato Grosso, nas palavras de Sena, tinha como objetivo garantir o

usufruto do vasto território conquistado pela Coroa, sendo a ocupação realizada dois

anos antes da assinatura do Tratado de Tordesilhas, o qual garantia o direito da

Espanha sobre a região.

36 O emprego repetitivo do advérbio mais aumenta o tom dramático no que diz respeito à falta de portugueses. 37 Os embates políticos ocorreram entre o partido da Sociedade dos Zelosos da Independência, que aderiu à separação de Portugal, e o da Sociedade Filantrópica de Mato Grosso, o qual era composto em sua maioria por portugueses integrantes da antiga elite conservadora de Mato Grosso.

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Muitos historiadores (CARVALHO, 1981; FAORO, 1992 e 1994; VOLPATO,

1993; SIQUEIRA, 2000; SEVCENKO, 2003) afirmam que a instalação da Corte no

Rio de Janeiro promoveu reformas sociais que se alastraram em todas as províncias

através da atuação dos Presidentes. A estabilidade do governo, na perspectiva de

José Murilo de Carvalho (1981), foi garantida pela elite portuguesa existente na

época da Independência brasileira. Seria objetivo da Corte potencializar a atuação

dos presidentes nas províncias, como também os conflitos pelo poder no sentido de

estender sua autoridade sob o território. Assim, Mato Grosso aparece, desde a

Independência, como uma região que demonstrava um forte potencial para

instabilizar a ordem conquistada, o que se agravou com a Guerra da Tríplice

Aliança.

Quanto a esse fator de vulnerabilidade, vemos que o narrador taunayano

encena a crise de ordem política e social suscitada pela Rusga em virtude da

Independência. Situação construída, ficcionalmente, por um olhar de pessimismo e

horror perante recordações que interligam a história mato-grossense ao processo de

formação da cultura ocidental. Assim, pelo viés da memória, o narrador produz o

efeito de disparidade entre o local e o universal, quando relaciona os

acontecimentos da Rusga ao massacre de Saint Barthélemy38.

Desde o descobrimento, as imagens histórico-culturais construídas para o

Brasil eram importadas de além-mar sob um imaginário paradoxal: de um lado,

figurava o elemento fulcral para a elaboração mítica do símbolo “Oriente”, da “terra

abençoada”, nos termos de Marilena Chauí (2001); de outro, o Novo Mundo era

produzido a partir do dilaceramento geográfico entre o litoral e o sertão

(Deus/Diabo). A tese dos dois brasis (NÍSIA LIMA apud LIMA, 2004, p. 78) entrava

em cena no século XIX. Nessa perspectiva, o Estado de Mato Grosso integraria o

sertão, tendo em vista sua posição geográfica no que tange ao centro urbano do

país, o litoral.

Após a proclamação da República, segundo Sevcenko (2003), o Brasil viveu o

auge da Belle Époque pela consagração da hegemonia dos paradigmas europeus,

que criou uma burguesia local à moda francesa. Por um viés distinto dos rusguentos,

o Brasil republicano (CARVALHO, 1987, p. 21) também deu as costas à pátria

38 A noite do Saint Barthélemy (1572) refere-se às lutas entre católicos e protestantes ocorridas na França à época da Reforma Protestante. Houve um grande massacre que vitimou mais de cem mil protestantes. Subjaz a esse evento a disputa entre os partidos políticos “que usavam a religião como pano de fundo para encobrir outros interesses” (NETTO apud MORBIDELLI, 2007, p. 3).

- 96 -

portuguesa, procurando uma tradição que lhe guiasse rumo ao progresso/civilização:

a cultura francesa foi a eleita.

Retomamos aqui nossas considerações acerca da disparidade entre o local e

o universal, que sublinhamos quanto à escritura taunayana. De um lado, a analogia

entre a noite de Saint Barthélemy, que data de 1572, e a Rusga, ocorrida em 1834,

produz um anacronismo temporal que sublinha a mentalidade atrasada dos

promotores do massacre em Mato Grosso. Isso acentua que, além de os políticos

mato-grossenses imitarem o pior do mundo civilizado, em nome da emancipação

política do país, fazia-o retrocedendo mais de dois séculos na história. De outro,

parece-nos plausível considerar que o narrador, ao encenar os episódios da Rusga,

comparando-os em nível universal com o massacre de Saint Barthélemy, ironiza

todo o aparato da cultura cosmopolita que vinha da França para o Brasil na época

da República.

A cultura francesa que, por sua vez, estaria no escol do mundo civilizado,

porque entrelaçada às grandes benesses do capitalismo, é ironizada, de soslaio, ao

ser posta em paridade com esse lugar de “enormes distancias”, ou melhor, o sertão

mato-grossense, cujo formato, como vimos, estava atrelado à imagem do ignoto

constitutiva do atraso capaz de lançá-lo ao limiar da história. A oposição entre sertão

versus civilização dissolve-se juntamente com o imaginário de progresso que as

elites da República construíram para o país na tentativa de sintonizarem “o

tradicional descompasso entre essas sociedades em conformidade com a rapidez

dos mais modernos transatlânticos” (SEVCENKO, 2006, p. 40).

Elaborar a cena da Rusga em nível universal revelou que o país era

equiparado às nações civilizadas apenas em relação à escuridão do pensamento

político. Seria, portanto, por meio do sertão que Taunay figuraria o atraso em que

submergia o Brasil em seu histórico de formação, mesmo após o transplante de

ideias inovadoras com as quais os republicanos supunham salvar a nação. A leitura

de Roberto Schwarz (1999, p. 153) nos esclarece sobre as discrepâncias da

instalação de ideias não condizentes com a realidade do Brasil no XIX:

[...] por um longo período a prosperidade material e os avanços culturais do país deveram-se ao florescimento de formas sociais que se haviam tornado a execração do mundo civilizado. As ambivalências que essa constelação inglória causava valem um estudo sistemático. A fixação no atraso ou no “defeito” social da nação entretanto limita o foco, em espírito moralista: faz supor que o

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século 19 tenha sido a história da Liberdade e de seus contratempos no país, e não a do Capital, que não tinha objeções absolutas à escravidão, a qual havia abolido nalgumas partes, e suscitado noutras. Deste ângulo, a cena brasileira lançava uma luz reveladora sobre as noções metropolitanas e canônicas de civilização, progresso, cultura, liberalismo etc., que aqui conviviam em harmonia meio absurda com o trabalho forçado e uma espécie de “apartheid”, contrariando o essencial do que prometiam.

Ao invés de emoldurar uma imagem positiva e de credibilidade necessária

para a entrada do país nas trilhas da modernidade, Taunay traz as raízes do

processo de má formação das instituições sócio-políticas ligadas às transigências do

poder patriarcal no Mato Grosso, em sentido estrito, e, de modo amplo, no Brasil.

Retomando o dispositivo deste escritor, vemos que o evento sobre a Rusga,

apresentado em forma de sumário no segundo parágrafo, acentua o horror em

presença da chacina, o que produz um efeito grotesco capaz de projetar a cena à

categoria dramática. O recurso a certas construções enunciativas constitui uma

técnica folhetinesca que aumenta a ambivalência entre o local e o universal por meio

do jogo sinestésico tangenciado pelo sombrio, o qual estabelece a atmosfera de

tensão vivida na época: “tramada com todo o sigillo”; “diabolico calculo”; “possessa

de inexplicavel furia”; “brados”; “nas trevas da noute”; “trucidar sem dó”, etc.

Interessa-nos também a compreensão do gesto enciclopédico com que o

narrador trata dos assuntos locais:

Com razão diz o Sr. Ferreira Moutinho, que hoje todo o filho de Matto-Grosso falla nessa carnificina com vexame e esquivança, tendo-se dado sumisso quase total aos documentos e inqueritos que a Ella se referem, o que é de sentir, pois ainda não foi estudada, nem poderá mais sel-o devidamente, tão singular e sangrenta conspiração contra inermes e confiantes cohabitantes dessa longinqua região (TAUNAY, 1923, p. 103, grifo nosso). Quando estive, em 1866, na villa de Miranda, procurei colher informações seguras a respeito desses factos e com difficuldade soube, que todos os doze portuguezes que lá havia foram, naquelle nefasto 30 de maio, barbaramente assassinados, alli ao primeiro toque do meio dia (TAUNAY, 1923, p. 106, grifo nosso).

A respeito do movimento sanguinario de 30 de maio e dos factos que o prepararam ainda hoje é difficil formar juizo seguro e dar a cada qual a odienta parte que imparcialmente lhe deve pertencer perante a historia.

Compulsei o que pude encontrar em documentos ineditos, interroguei varias pessoas de Matto-Grosso e aparentadas com algumas das figuras mais salientes daquelle

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estupendo drama e cheguei á conclusão que ainda agora ha duas correntes de opinião, ambas, aliás, possuídas de retrahimentos e intenso vexame; uma tendendo a descarregar da memoria de João Popinio a mais pesada carga de imediata responsabilidade, que a outra procura por todos modos aggravar (TAUNAY, 1923, p. 112, grifo nosso).

Por um lado, em A Cidade do Ouro e das Ruínas, a condição da escrita está

supostamente baseada no sofrimento pela perda do tio, o que permite ao narrador

encontrar a possibilidade de escuta a partir da narrativa sobre as ruínas de Vila Bela,

bem como sobre os episódios da Rusga em Mato Grosso. Por outro, no momento

em que Taunay percebe o esfacelamento total da Monarquia constitucional no

Brasil, em decorrência da proclamação da República, sente a necessidade de

escrever contra o esquecimento. Contudo, as fissuras dessa escrita sugerem menos

certa posição conservadora assumida pelo escritor em defesa monárquica

(HARDMAN, 1988; ALEMBERT, 2001; FONSECA, 2001; SEVCENKO, 2006), do

que uma tentativa de problematizar sobre o modo como as mazelas do passado

resultaram no caos trazido pela República39.

Verificamos, no primeiro fragmento, que o narrador mescla a própria voz com

a de Ferreira Moutinho, agenciando uma construção híbrida para abarcar as cenas

da Rusga. Vemos que a tópica tematizada diz respeito ao constrangimento do povo

mato-grossense pelo massacre dos portugueses (sinal de barbárie?). Com isso, o

narrador complementa aludindo ao modo como o sentido de pertencimento à nação

está internalizado em âmbito mato-grossense no momento da enunciação.

Conforme José Murilo de Carvalho (2007, p. 77), o conceito de pátria

permaneceu ambíguo, até mesmo depois da independência, devido ao fato de ser

usado para denotar tanto o sentimento de nacionalidade, quanto o de integração à

província. Nesse sentido, a província de Mato Grosso metaforiza a própria mãe

pátria, na qual os sujeitos, agora filhos, compartilham do sentimento de vínculo

coletivo em torno do imaginário de nação. É a voz do povo que se levanta, junto com

a do narrador, para repudiar a atitude desumana para com os portugueses, o que

39 Maretti (2006, p. 69) foi uma das primeiras estudiosas a apreender que, apesar de Taunay estar vinculado à monarquia em virtude da sua admiração por D. Pedro II, o que contribuiu para afirmar o lado conservador de seu amplo projeto para o Brasil, a sua atuação política não coincide com a do partido ao qual esteve filiado. Segundo a autora, os conflitos entre ele e seus pares demonstram um posicionamento voltado mais para princípios nacionalistas, do que propriamente partidários. Daí seu projeto político apresentar certo caráter liberal, que configura a contradição em que muitos caem ao interpretarem sua produção literária como conservadora.

- 99 -

realça outro patamar, no presente da enunciação, aos sujeitos que agora comungam

de um imaginário de companheirismo profundo e horizontal, conceito relativo à

invenção da nação40.

Paradoxalmente, o narrador acaba por ironizar esse mesmo sentimento

nacional quando sugere que somente repudiando o horror do morticínio nascerão as

bases para a construção nacional; porém, esta ainda não seria possível na medida

em que a xenofobia aos portugueses alastrou-se até o momento presente, a

República. Figurar o passado longínquo de Mato Grosso torna-se, desse modo, um

desafio lançado contra o sistema político do país, que vestiu a máscara republicana,

mas manteve os resquícios do período colonial e monárquico, os quais também

foram determinados pelas relações externas. O processo de silenciamento,

resultante desse mesmo horror, constitui-se pela queima/apagamento de arquivos

interditados, porque referentes à carnificina. Se o narrador mostra que a Rusga não

poderá ser estudada nos devidos termos, o trabalho em si de projetar os

acontecimentos a ela referentes configura um gesto de resistência quanto ao

silenciamento que se deseja instaurar.

No segundo e terceiro excertos, o narrador assume o discurso homodiegético

posicionando-se como uma personagem da narrativa que busca subverter esse

silenciamento ao instrumentalizar as “memórias subterrâneas”, com as quais

manteve contato durante a experiência na Guerra da Tríplice Aliança. Com Michael

Pollak (1989) sabemos que os silêncios, o não-dito, são passíveis de irromperem por

meio de redes de sociabilidade afetiva e/ou política. As lembranças que são

repassadas de geração em geração em seu trabalho de subversão no silêncio, longe

de conduzirem ao esquecimento, agenciam “a resistência que uma sociedade civil

impotente opõe ao excesso de discursos oficiais” (POLLAK, 1989, p. 05).

Como sublinhou Pollak, esse silêncio que, por sua vez, é constitutivo das

“memórias subterrâneas”, pode aflorar em momentos de crise e contradições. A

experiência na Guerra contra o Paraguai, neste caso, constituiu um momento de

crise vivido pelo escritor que engendrou muitas de suas produções. Em A Cidade do

Ouro e das Ruínas, sob uma perspectiva agora homodiegética, o narrador encena a

história sobre a Rusga, dentre outras, entrevendo as diversas “memórias

subterrâneas” consultadas durante a Retirada da Laguna, bem como as constituídas

40 Considerações que tomam como ponto de partida o estudo de Benedict Anderson (2008) no livro Comunidades imaginadas.

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no seio familiar com os relatos encontrados em documentos oficiais. O mecanismo

de maturação dessas “memórias subterrâneas”, como elemento funcional da

composição literária, é lapidar na medida em que funciona em contraposição ao

arquivo oficial acerca do 30 de maio, como também ao silêncio imposto. São elas

que propiciam ao narrador dilatar o trauma no ato mesmo da escrita, o qual

referencia o sentimento de horror disseminado em muitas passagens do livro.

Com suporte teórico em diversos autores (LEITE, 1983; LIPPI, 1990; PRADO,

1993; SÜSSEKIND, 1993; JOBIM, 1997; SEVCENKO, 2003; BASTIDE apud ARÊAS

2006), podemos ver que a imposição do referido silêncio, acerca dos conflitos

sociais ocorridos no bojo da sociedade brasileira do século XIX, ressoou na tarefa a

que os intelectuais da época arrogavam para si: criar uma imagem positiva do país,

necessária a sua integração ao mundo moderno. Mato Grosso não ficou atrás. De

acordo com Franceli Aparecida da Silva Mello (2008), os intelectuais mato-

grossenses também empreenderam o dever de reestruturar a sociedade local por

meio da produção de uma imagem positiva capaz de alinhar o Estado ao grau de

progresso em que já se encontrava o litoral brasileiro.

O artifício de trazer à baila as “memórias subterrâneas” vem justamente

dramatizar as fraturas subjacentes à aparente modernização que se inventou para o

Mato Grosso, e (por que não?) ao Brasil. O último excerto, do dispositivo literário ora

em estudo, sublinha o gesto do narrador homodiegético em contrapor as histórias

sobre a Rusga para que possa construir a sua própria narração sob o critério de

verdade, porque perspectiviza a auscultação das “memórias subterrâneas”. Estas,

por sua vez, têm papel fundamental na projeção de um imaginário de sujeito-leitor

que realizará um legítimo trabalho de tecelã, como Penélope à espera de Ulisses,

para entrelaçar os fios da tessitura narrativa. Vemos ainda que a postura crítica do

narrador revela-se quando este efetua uma pausa no tempo cronológico, elevando a

própria voz em primeiro plano, como no momento em que menciona a conclusão a

que chegou quanto às duas correntes de opiniões sobre um dos responsáveis pelo

morticínio.

O narrador homodiegético atua também como um genealogista, aquele para

quem a história não tende a uma evolução, mas é produzida em/por suas

descontinuidades no sentido de “manter aquilo que foi na dispersão que lhe é

própria” (FOUCAULT apud FINAZZI-AGRÓ, 1999, p. 9). A origem, segundo Ettore

Finazzi-Agrò (1999), existe apenas como ficção ou mito, pois consiste num artefato

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tecido por meio de um conjunto de eventos que desembocaria em “origens plurais”.

Como vemos, o narrador taunayano procura construir, a partir do vazio, uma das

origens que convergiu para o motim republicano: tanto no sentido de quem escreve

voltado ao inverso do mundo civilizado, quanto porque vasculha o passado na falta

que se produz pelo apagamento de documentos sobre a Rusga. É o que nos chama

a atenção a seguinte proposição de Finazzi-Agrò (1999, p. 10-11):

Paradoxo interessante este de construir uma história a partir de uma lacuna, de um vazio histórico, mas paradoxo que acaba por fazer sentido no momento em que consideramos a possibilidade — que é obrigação para um país colonial — de instituir um discurso e de seguir um percurso não na direção da homogeneidade e da unidade, mas no da heterogeneidade e da diferença, [...] considerando os eventos na sua dispersão, na sua singularidade e na sua irredutibilidade ao Uno da metafísica historicista.

Gesto paradoxal que resulta na posição ambígua do narrador taunayano, pois

mantém certa distância em relação à narrativa ao mesmo tempo em que hibridiza

seu discurso com as histórias que ouviu durante sua experiência de guerra. Tal

estratégia ficcional encena a necessidade de interiorizar essas vozes heteróclitas

como tentativa de revelar as múltiplas identidades que decorrem da formação

cultural heterogênea existente no Brasil. Esse procedimento dissipa a

homogeneidade tão cara à constituição da identidade nacional empreendida, via

ficção, pelos intelectuais do XIX.

Avançamos, aqui, no entendimento de que a região sertaneja, Mato Grosso, a

que contém os elementos capazes de significar a pluralidade referida, ficou

condenada ao esquecimento desde os primórdios do Primeiro Reinado, como o

escritor ironiza em A Cidade do Ouro e das Ruínas. A não incorporação da região ao

conjunto do país, no que tange ao desenvolvimento da cidadania, fez dela uma

alegoria do abandono, que atravessava o percurso da modernização brasileira,

construída por Taunay a partir das ruínas de Vila Bela. Os paradigmas do Brasil

moderno, que Raymundo Faoro (1992) situa no momento da transferência da Corte

portuguesa para o Rio de Janeiro, eram seguidos à risca pela República, mas sob a

mesma linha contraditória das outras fases políticas: não levavam em conta as

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peculiaridades de uma sociedade que propunha esconder nos becos41, às margens

da cidadania que “continuava a ser uma ficção” (IANNI, 1992, p. 33).

Na busca pelo tempo silenciado (perdido?) em meio a documentos

encobertos sobre a história da Rusga, o narrador tematiza certa sessão secreta, na

qual participaram Patricio Manso e D. Ignez Ferreira da Silva como atores principais:

Contou-me o visconde de Beaurepaire Rohan, chegado a Cuyabá dez annos depois, em 1844, que apezar de todas as precauções do mystério, ainda bem presente estavam á lembrança de todos o horror e a vergonha de semelhante carniceria, ruidosamente festejada na noute de 31 de maio com fogos de artificio e luminarias geraes. Uma desgraçada senhora, casada com portuguez viu-se obrigada pelas vociferações da populaça em delirio, que ameaçava a vida dos filhinhos, a illuminar a casa, quando o cadaver do marido ainda estava estirado em cima da mesa! [...] Adiante e em breve tornaremos a encontrar essa heroína! (TAUNAY, 1923, p. 104-105).

De que tratou nessa sessão secreta? Não teria Ella relação

com a presença de Patricio Manso? Conviria esclarecer esta duvida, pois ahi se intercala episodio altamente commovedor e dramático, testemunhado pelo publico que assistia ás sessoes da Camara dos deputados. Logo que o deputado Manso prestou juramento, ergueu-se um grito vibrante e sinistro: “Assassino! Assassino!” E todos viram na galeria uma mulher de pé, empunhando numa das mãos roupas ensanguentadas e com a outra apontando para o representante de Matto-Grosso.

Era D. Ignez Ferreira da Silva! Imagine-se o alvoroço... Patricio Manso sahiu logo todo

conturbado do recinto, mas foi perseguido pela vingadora senhora cercada de muito povo e durante bastante tempo não pôde sahir á rua, repetindo no Rio de Janeiro o homizio a que fôra obrigado, largos mezes antes, na cidade de Goyaz (TAUNAY, 1923, p. 108).

O narrador situa-se no presente da narração para desvelar os fatos que

antecederam a sessão secreta, a qual responsabilizaria os culpados do massacre de

30 de maio. Depreendemos, novamente, a insistência na projeção de uma imagem

de horror, que remete ao mistério/sigilo dos fatos, realçado pelo jogo de luzes entre

a “noute” e os “fogos de artificio e luminarias geraes”. No primeiro excerto, o

narrador projeta uma imagem de fragilidade para a personagem Ignez Ferreira da

Silva, quando ela sofre os ataques dos rusguentos. Porém, notamos a conversão

41 Lembremos do processo de remodelação dos hábitos sociais efetuado no Rio de Janeiro, na fase da Belle Èpoque, e que supunha encaminhar o país rumo ao progresso. O que, na verdade, só fez mostrar as fraturas de um projeto de renovação que se realizou apenas na superfície da sociedade brasileira (SEVCENKO, 2003; LAJOLO & ZILBERMAN, 2006).

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dessa imagem tanto quando se anuncia que o fato será contado nas devidas

proporções em outro episódio, quanto no momento em que a personagem Ignez se

levanta em defesa da causa portuguesa.

A posição em prol dos portugueses não significa que o narrador tente

panfletar um retorno aos tempos de dependência a que o Brasil manteve-se atrelado

por mais de trezentos anos. Subjaz ao conflito contra os portugueses o mal-estar em

torno do caráter imitativo da vida cultural brasileira, que buscou, a todo custo, copiar

modelos vindos de além-mar na tentativa de adaptá-los à realidade local. Roberto

Schwarz (1978, p. 30) observa que na história brasileira houve um “sentimento de

contradição entre a realidade nacional e o prestígio ideológico dos países que nos

servem de modelo”. O desejo ininterrupto pelo novo (mudança), segundo o crítico,

não abriu espaço para uma produção intelectual amadurecida no Brasil. O mal-estar

ora referido constitui algo que vem sendo reatualizado na cultura brasileira como

forma de superar o histórico de formação do Estado-nacional num país, no qual

coexistiam formas antigas com o mais atualizado mecanismo dos princípios

burgueses. Para que este mal-estar deixe de rondar a sociedade brasileira Schwarz

acredita que não seja necessário subtrair o que é considerado externo:

Em síntese, desde o século passado existe entre as pessoas educadas do Brasil [...] o sentimento de viverem entre instituições e idéias que são copiadas do estrangeiro e não refletem a realidade local. Contudo, não basta renunciar ao empréstimo para pensar e viver de modo mais autêntico (SCHWARZ, 1978, p. 38-39, grifo nosso).

Com base nas considerações de Schwarz, vemos que a cena na qual o

narrador se posiciona contra o massacre rusguento mostra como A Cidade do Ouro

e das Ruínas destaca a necessidade de reconhecer que esta perspectiva de

aversão ao que vem de fora não pode mais servir de parâmetro indicador da

nacionalidade, pois impossibilita um entendimento mais amplo da cultura brasileira.

Nesse sentido, entendemos que a personagem Ignez Pereira insurge no levante

como metáfora do projeto político defendido na tribuna pelo escritor, o qual vem de

encontro à contradição subjacente ao critério de nacionalidade fincado na operação

de subtrair aquilo que não fosse autêntico ao país: A nacionalização ou grande

naturalização e naturalização tácita (1886). Este projeto, conforme pudemos ver em

José Luis Jobim (2005, p. 14), caminha na direção de um nacionalismo de

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cidadania, cujo objetivo seria incorporar os estrangeiros ao recém-constituído

Estado-nação como uma opção para o seu desenvolvimento.

Nas palavras de Maretti (2006), no romance Mocidade de Trajano os

preconceitos xenofóbicos, tão bem delineados em A Cidade do Ouro e das Ruínas e

que evidenciam como esta tópica perpassa a produção literária de Taunay, ganham

uma dimensão caricata no que tange à proposta de Trajano em mudar o seu nome

para um que fosse “mais brasileiro”. Atitude sofrida pelo próprio escritor, mas que é

tensionada, no referido romance, por meio do efeito irrisório. Diferentemente, o

narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas, seja pela necessidade de projetar mais

dramaticidade aos fatos da Rusga, seja porque a xenofobia atuou na República

como gesto político, lança uma série de adjetivos que denotam o horror pela

violência cometida, ao mesmo tempo em que toma para si a causa dos portugueses.

Violência esta que, nas palavras de Michel Löwy (s/d), representa o modo como o

processo civilizador teve de mobilizá-la para conduzir o avanço dos grandes

impérios econômicos. Quanto a isso, relacionamos os episódios da Rusga com os

que dizem respeito à Retirada da Laguna, mais especificamente como fica exposto

na proposição de Francisco Alembert:

Mas a Guerra também foi a maior ameaça à “fantasia da civilização” que a elite imperial brasileira cultivou desde o Segundo Reinado. A retirada é um documento do perigo pelo qual esse sonho passou. A par dos interesses econômicos no comércio e domínio do Prata, bem como da necessidade de criar estabilidade política e especialmente no Rio Grande do Sul, inventou-se uma guerra para realizar o sonho da hegemonia brasileira, não apenas para o resto da América do Sul, mas também para que o próprio Brasil pudesse internalizar definitivamente seu desejo civilizador, plástico e simpático porém autoritário e antidemocrático (ALEMBERT, 2001, p. 227, grifo nosso).

Ora, essas palavras permitem-nos demonstrar que, da mesma forma que a

Guerra do Paraguai foi um sintoma de barbárie, como escritor trata em Retirada da

Laguna, a Rusga também partilhou dessa mesma síndrome, a qual constituiu mais

um percalço resultante da modernização do país. Castrillon-Mendes (2007, p. 70),

cuja proposta de estudo volta-se à imagética fabricada por Taunay para a região

mato-grossense, mostra em que medida esse escritor constrói a cena da guerra do

Paraguai, enfatizando a ausência de um planejamento estratégico por parte dos

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líderes despreparados para tal empreitada, como também em virtude do cólera que

arrasava a Província e, principalmente, pelo desconhecimento da região.

O projeto modernizante que o escritor teria proposto para o Brasil não incluía

em sua pauta o massacre de determinados grupos sociais. Nesse sentido, como

aponta Alembert, as entradas que o Brasil realizou em nível moderno pelo impulso

ao capitalismo, desde suas raízes distantes no tempo, passaram por um processo

de digestão da barbárie, cujo refluxo revelou os destroços de um país construído em

negativo.

Fica-nos presente a imagem referente à revolta de Ignez que, acompanhada

da multidão, persegue o dirigente Patricio Manso. O gesto da personagem nos

permite retomar a primeira epígrafe do nosso trabalho no sentido de mostrarmos

que, como pensou Walter Benjamin (1994b), a escritura taunayana busca

compreender a história a partir dos que estão nas adjacências da sociedade; por

isso vemos que o seu olhar está sempre voltado para Mato Grosso. Segundo a

perspectiva de Benjamin, o patrimônio cultural resulta da exploração referente ao

trabalho de diversas pessoas, que acabam sendo apagadas desse processo. A

barbárie não constituiria apenas o avesso da civilização, mas seria o seu

pressuposto na construção dos elementos culturais. Benjamin, deste modo, coloca a

barbárie como algo próprio da civilização, de modo a refutar a velha dicotomia que

se inscreve na definição destes conceitos. Daí a história constituir-se como

sinônimo da barbárie, bem como da exploração das classes oprimidas:

Em nenhum documento impresso encontrei o nome daquelles presos e deportados, pretendidos fautores unicos e responsaveis de tantos crimes, cuja autoria devia, entretando, caber a muitos outros. Ferreira Moutinho, á pagina 175 do seu livro, diz que “os omitte por conveniência”; mas pude saber quaes eram: 1.º José Alves Ribeiro, conhecido por Juca Costa, pois a principio se assignára José Alves da Costa Ribeiro; 2.º José Jacintho de Carvalho; 3.º Braz Pereira Mendes; 4.º Bento Francisco de Camargo, e 5.º o Dr. Paschoal Domingues de Miranda, nada menos juiz da capital (TAUNAY, 1923, p. 116).

Cahiu a acção da justiça, embora sempre frôxa e parcial, com

alguma severidade mais sobre a gente do povo, simples sequazes e broncos soldados, sendo não poucos destes condemnados a carrinho perpetuo nos presidios militares de Miranda e Coimbra e varios paizanos degradados para o districto do norte e enviados á cadêa da cidade de Matto-Grosso, que, afinal, arrombaram, matando o carcereiro e fugindo para Casalvasco e dahi para a Bolivia (TAUNAY, 1923, p. 118).

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Ambos os fragmentos encenam a pausa pela qual o narrador homodiegético

favorece o tempo do discurso, buscando descortinar o processo de composição

realizado a partir da fragmentação/desconstrução de documentos para apresentar

sua visão de Brasil. Vimos que as lembranças silenciadas sobre a Rusga fazem

parte de uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil mato-grossense.

Taunay traz à baila as memórias subterrâneas contrapostas à memória coletiva

organizada, cuja função resume, conforme sugere Pollak (1989), a imagem que uma

sociedade majoritária ou o Estado desejam transmitir e impor. Ao mencionar as

informações sobre a Rusga que foram silenciadas pela memória oficial, o narrador

agencia a história ao avesso da imagem positiva de progresso formulada pelos

intelectuais do XIX, que apenas mostrou as fraturas de uma literatura ligada à

ideologia elitista.

Em A Cidade do Ouro e das Ruínas, o narrador sugere, num primeiro

momento, a atenção dada pelos estadistas portugueses à região mato-grossense.

Porém, assistimos a um processo de corrosão dessa imagem efetuado pelo

imaginário do abandono que se produz ao longo da narrativa. As ruínas de Vila Bela,

como monumento cultural, alegorizam a imagem do descaso a que foi relegado o

Mato Grosso no projeto modernizador brasileiro, proposto sempre de cima para

baixo. Retomar a história de Mato Grosso em suas descontinuidades significa

exorcizar a concepção de história como progresso, interrogando essas mesmas

ruínas para que não destruam a própria sociedade.

Valendo-nos do estudo feito por Julio Ramos (2008) sobre o romance

Facundo (1845), de Sarmiento, compreendemos que a necessidade de conhecer a

região da barbárie, irrepresentável para a ciência e para os documentos oficiais,

constitui uma forma de ouvir o outro, sua voz, como forma de restaurar o projeto

modernizador. Julio Ramos sublinha que Facundo encena a tentativa de ordenar a

desordem que perpassava Buenos Aires em virtude da catástrofe do caudilhismo.

Para tanto, tornava-se imprescindível trazer a voz do outro, que foi inicialmente

ignorada pela tradição do projeto modernizador, cujas raízes estavam atreladas ao

saber europeu. Apesar da distância temporal que separa a publicação de Facundo

do dispositivo taunayano, podemos sublinhar que ambos têm em comum a busca

pela figuração da alteridade, cuja exclusão do saber havia causado as contingências

do presente.

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Ao voltarmo-nos para o segundo fragmento citado de A Cidade do Ouro e das

Ruínas, consideramos que o desejo do narrador de procurar a verdade sobre os

fatos da Rusga acaba por atribuir a barbárie aos membros da elite política mato-

grossense, que não fizeram valer a justiça. O que ressoou no contra-ataque bárbaro

com que os presos assassinaram o carcereiro do presídio sediado na cidade de Vila

Bela. Nessa linha de reflexão, acionamos Alexandre Fernandez Vaz (2004, p. 45)

que, recorrendo a pensadores como Walter Benjamin e Theodor Adorno, considera

a presença do sofrimento (somático, corporal) como pano de fundo à barbárie

subsistente no meio social. O narrador taunayano constrói um discurso vitimizador

em relação aos prisioneiros eleitos à revelia da justiça, denotando em que medida a

civilização burguesa institucionaliza a barbárie, que antes lhe parecia estranha, mas

agora tão familiar, quando se trata de defender os próprios interesses42. Com isso,

encaminhamo-nos à cena na qual o narrador assume a posição heterodiegética para

explicitar com mais detalhes os acontecimentos referentes ao 30 de maio:

Chegou, afinal, o dia aprazado e correu relativamente calmo. Antes, porém, das 11 horas da noute, duas columnas de

soldados, commandadas pelo tenente Sebastião Rodrigues da Costa e o ajudante Eusébio Luiz de Brito, dirigiram-se ao quartel dos municipaes permamentes e, obtendo, sem resistencia, a chave do deposito de cartuchame, distribuíram-no aos muitos desordeiros que os tinham vindo acompanhando, a pedirem em altos brados pólvora e balas.

Ficaram tres peças de artilharia assestadas defronte do quartel.

Então, no silencio já interrompido da noute pelo vozear cada vez mais crescente e estrepito de gente a pé e a Cavallo, soou a terrível primeira badalada das 12 horas.

Rompeu logo o clamor das cornetas e o rufar dos tambores, dando signal de fogo, a que se juntou o angustioso som dos sinos a tocar rebate, e em todos os quarteirões da cidade começaram a matança e o saque! Sinistra hora, momento horrivel, em que, de repente e no fundo do seu palacio presidencial como que se iluminou a consciência de João Popinio!...

No meio da medonha confusão que ia pelas ruas, correu elle fardado a varios pontos, onde o tiroteio se mostrava mais intenso, seguido de varias autoridades e clamando que não matassem. Encontrou o corneta-mór Pamplona a dar voz de fogo e o prendeu; andou de um lado para outro, exclamando “meu Deus! Meu Deus!” e, afinal, como salvadora inspiração e recurso ultimo buscou a

42 Recordemos (SENA, 2006) que a fundação de Vila Bela se deu como tentativa de assegurar a posse da região por parte da Coroa Portuguesa, bem como em virtude da existência do ouro. Após a sua ocupação não houve um planejamento adequado para amparar a população, como também no sentido de desenvolver a região, que ficou estagnada quando acabou a extração do ouro. Eis aí a presença da alegoria das ruínas.

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residencia do bispo D. José Antonio dos Reis a imploral-o que interviesse em pessoa naquella horrorosa conjunctura. E, de facto, logo sahiu o venerando prelado, com um grande cruxifixo na mão, rodeado de padres de tochas em punho, a impetrarem todos compaixão e misericordia para as desgraçadas victimas e a darem vivas á Lei, á Religião e ao Senhor D. Pedro II!...

Que scena dramática! Que terriveis instantes! (TAUNAY, 1923, p. 124-125).

Antes dessa cena o narrador apresenta os segmentos retrospectivos

referentes aos acontecimentos ocorridos quatro meses antes da Rusga, nos quais

os adotivos (portugueses) tiveram de fugir para as matas na tentativa de não serem

torturados pelos proponentes da revolta. Se considerarmos que a narrativa já havia

desenvolvido episódios posteriores ao dia em que aconteceu a Rusga, veremos que

o excerto acima citado produz um efeito de regresso ao que foi dito, reiterando o

alcance da história. A atmosfera de calmaria/silêncio é rompida pelo artifício

sinestésico que mescla brados, rufar de tambor e, ainda, o som de sinos que se

alastra por todas as partes, realçando a imagem de horror perante os fatos. O

narrador enfatiza, por meio de uma breve pausa, o sinistro da cena, na qual João

Popinio insurge para salvaguardar a Província do massacre.

No capítulo XVII, o narrador já havia criticado João Popinio Caldas, que teria

assumido a administração justamente para acalmar os ânimos da Sociedade dos

Zelosos da Independência, a qual legislava contra os portugueses que mantinham

as rédeas do poder. Popinio Caldas, que antes fazia parte da antiga nata política

cuiabana, Sociedade Filantrópica de Mato Grosso, agora integra o grupo dos

zelosos, mas sem obstar a matança volta-se contra os próprios companheiros. A

tópica da vulnerabilidade é, nesse caso, simbólica: performatiza a mise en scène do

sistema político brasileiro marcado tanto pelas oscilações no poder quanto pelos

objetivos contraditórios em relação às necessidades da sociedade brasileira. Além

disso, a vulnerabilidade figurada pelo caráter de Popinio Caldas reflete as

contingências históricas decorrentes da instabilidade do pensamento político

brasileiro que, por sua vez, tem ressonância no acontecimento da proclamação da

República.

Figurar a impotência da tríade “fé, lei e rei” frente à revolta do povo constitui

uma estratégia empregada pelo narrador para mostrar como tal critério é

incompatível com a realidade de desordem em que subjazia a Província de Mato

Grosso. Quanto a esse processo de declínio da instituição sagrada, trazemos a

- 109 -

concepção de Benedict Anderson (2008), que entende as nações como artefatos

culturais elaborados historicamente com base no conceito de “comunidades

imaginadas”. Para tanto, foi necessária, nas palavras de Anderson, a decadência

das comunidades sagradas, cuja função norteava a instituição das linhagens, bem

como da língua sacra como aparato cultural das nações.

O esfacelamento do sagrado foi possível graças às mudanças que

irromperam na sociedade da época, dentre as quais citamos o surgimento do

impresso, o jornal e o romance. Assim, como mostra Lucia Lippi de Oliveira (1990, p.

44) na paráfrase que faz de Rouanet, a história passa a traçar as bases da nação

justificada pelo direito histórico em detrimento do divino. Na esteira desses estudos,

embora por outro viés, Roger Chartier (1990) assevera que o Estado Moderno se

caracteriza por dois pontos: a instauração progressiva da fiscalidade pública e de

uma ordem garantida pelo poder de comando do soberano.

Essas considerações iluminam nosso estudo na medida em que o narrador de

A Cidade do Ouro e das Ruínas encena a necessidade da substituição da ordem do

sagrado por uma nova, a histórica. O narrador nos chama a atenção para o fato de

que somente trazendo a historicidade imprescindível ao pensamento político

brasileiro é que se pode compreender a crise do presente. A queda do sagrado em

detrimento do histórico torna-se mais intensa na figura do “venerando prelado”, um

tanto burlesca, tentando acalmar os ânimos da população, juntamente com os

padres. Isso permite ao narrador desconstruir o mecanismo político, que acreditava

estar atuando em função da formação do Estado-nação. Uma nação construída sob

conflitos de toda ordem. Por essa via, o narrador delineia um novo modo de pensar

o passado do Brasil: não mais sob o paradigma mítico/religioso, mas a partir de uma

reflexão que traga as descontinuidades históricas daquilo que falta para a

construção da nação.

Propomos ainda, com base no fragmento acima mencionado, que o narrador

dimensiona a condição de barbárie ao projeto da Rusga. Tratando da teoria do

direito natural elaborada pelos colonizadores com suporte na tradição bíblica, Chauí

(2001) aponta que, no imaginário do navegante conquistador os índios, por não

serem tidos como sujeitos de direito, são naturalmente subordinados à escravidão

voluntária, porque “sem fé, sem rei, sem lei”. Vemos, assim, que essa tópica,

trabalhada pelo narrador taunayano, ressalta como os conflitos desencadeados pela

Rusga são frutos do descaso por parte do sistema político da Regência, cujo projeto

- 110 -

versava apenas sobre a ampliação das fronteiras do território, gerando formas

sociais que contradiziam os ideais da civilidade, tão cara à elite branca e culta.

Interessa-nos ainda atentar, no excerto que citamos do nosso corpus, para a

mudança do efeito rítmico que se produz no tratamento dado à narração dos

acontecimentos do 30 de maio. Os cinco primeiros parágrafos são mais curtos, como

também entrecortados por breves períodos sintáticos sinalizados por exclamações,

o que torna a narrativa mais lenta, de modo a sugerir o agônico da cena. Já no

último parágrafo, que é mais longo, temos o inverso: há um corte abrupto dessa

lentidão que lança o clímax da narrativa para o momento em que Popinio Caldas

estava nas ruas tentando controlar a desordem. Como que num gesto lenitivo por

finalizar essa cena o narrador abruptamente exclama aliviado, mas ainda com

horror: “Que scena dramática! Que terríveis instantes!”.

A narrativa, ao produzir esse efeito rítmico, insere o narrador taunayano numa

moldura de escrita que remete à tradição oral dos contadores de histórias.

Recorremos a Walter Benjamin (1994a) que, em suas considerações sobre a obra

de Nicolai Leskov, reflete sobre como a arte de narrar, que antecede a literatura

escrita, constituiu-se numa forma de o homem conhecer tanto a si mesmo quanto o

mundo circundante, fornecendo interpretações que abarcavam a existência como

um todo. Narrar configurava o gesto de comunicar uma experiência vivida, cuja

inscrição na memória conferia credibilidade à história. Tanto aqueles que contam

quanto os que escutam as histórias são capazes de narrar. Porém, como assinala

Benjamin, com o advento das forças produtivas, que ampliaram as técnicas da

produção e a reprodução seriada, a arte de narrar entrou em colapso.

Segundo o teórico, a faculdade de intercambiar histórias definhou pelo fato de

que as experiências ficaram à margem do novo sistema de comunicação pautado na

informação. A era industrial, marco do surgimento da burguesia, trouxe formas

diferentes de comunicação: o jornal e o romance. Com isso, a figura do narrador foi

substituída pela do romancista, o sujeito isolado da sua comunidade. Em A Cidade

do Ouro e das Ruínas o narrador apela para a figura do narrador viajante, aquele

cujas histórias, experienciadas tanto na audição, quanto na leitura, foram

armazenadas na memória e agora são relatadas por meio da escrita.

O viajante, por não pertencer ao espaço visitado, tem condições de ver os

fatos com uma perspectiva distanciada. Dessa forma, o narrador internaliza as

contradições da realidade, o que resulta na posição ambivalente com que trata dos

- 111 -

acontecimentos rusguentos. Essa configuração do narrador taunayano como

narrador viajante pode ser vista na mise en abyme que a narrativa projeta na

montagem das cenas sobre a Rusga. O procedimento de desdobrar a história da

Rusga no sentido de lançá-la num caleidoscópio infindo de pretéritos intercala os

gestos daquele que narra, reformula o narrado e narra novamente na tentativa de

afastar o esquecimento. Agencia, assim, a presença ausente do narrador viajante

pelo processo mesmo da escrita que retrabalha fragmentos, em meio a uma

convulsão de papéis e vozes, para transformá-los em peças símiles, que modificam

somente o olhar daquele cuja imagem está projetada virtualmente. A partir desse

mecanismo é possível dar continuidade à narrativa mesclada de histórias

descontínuas que estão relacionadas (ou não) com a principal:

Que tremendo alvorecer, o de 31 de maio! Pavoroso era o aspecto da cidade, espalhadas por todas as

ruas as mais tremendas provas da sanha dos assassinos e da ferocidade dos saqueadores.

Quantos cadáveres mutilados, quanto sangue, quanta casa sem mais janellas nem portas, com as paredes crivadas de balas!

Quanta riqueza, quantos symbolos do trabalho e da economia atirados pelas calçadas, destrolados, picados a machado, a rolarem pelo pó e pelo lodo, a excitarem a cobiça do povilhéo e de mulheres e crianças, que ás pressas e em ignóbil faina e lucta buscavam reunir e apanhar mil objectos, e trastes e fazendas, com a mais nojenta rapacidade!

Na manhã seguinte, apresentava João Popinio feição diversa da habitual arrogancia e sobranceria, depois da terrivel noute passada em claro e a tomar conselhos de uns e de outros, que chamava junto a si. Estava abatido, desfigurado; parecia, comtudo, pactuar ainda com os criminosos, porquanto, entre as providencias que julgou dever dar, nomeou aquelle tenenete Sebastião Rodrigues da Costa commandante da guarnição e Eusebio Luiz de Brito seu ajudante de ordem e consentiu nas indignas luminárias, que na noute desse dia, 31, iluminaram com lúgubres clarões a cidade de Cuyabá, ao passo que de todos os lados ecoavam os gritos de Viva o 30 de maio!

E nas passeatas figurava uma bandeira que depois foi levada a varias localidades, algumas distantes, toda vermelha e com a seguinte quadrinha em letras brancas:

“Embarca, bicudo, embarca, Embarca, canalha vil, Que os brasileiros não querem Bicudos no seu Brasil!” É esta quadrinha mais uma prova de que o pensamento muito

primordial da conspiração não fora de certo aquillo que depois tão funestamente se realisou (TAUNAY, 1923, p. 126-127).

- 112 -

Deparamo-nos, no início desse fragmento, com uma exclamação do narrador

que perspectiviza sua imagem dentro da cena, como se ele ora passeasse por entre

os destroços de modo a fotografá-los, ora estivesse com lentes de longo alcance

capazes de ultrapassar as barreiras do tempo/espaço no intuito de presentificá-los

aos olhos do leitor. Trata-se de uma pausa no tempo da história que permite ao

narrador divagar em meio às ruínas da civilidade, as quais são figuradas pelo povo

denegrindo o patrimônio que, como sublinhamos em Benjamin (1994b), traz um

símbolo da barbárie. Essa, por sua vez, provém do escol da elite política que

disputava entre si o poder de governar a Província de Mato Grosso, incitando o povo

a participar das atrocidades cometidas.

Prossegue o narrador mais ou menos da mesma forma enumerando adjetivos

que denotam um efeito de fatalidade à cena. São centelhas de um tempo passado

que, ao serem presentificadas, revelam em negativo a situação dos primórdios da

República. Gesto que não mais configura um olhar nostálgico, mas o espanto frente

a um tempo que passa modificando somente a aparência do espaço, pois os sujeitos

que nele habitam carregam em sua essência as marcas da barbárie de outrora. É o

“próprio” do humano sendo substituído por “mil objectos, e trastes e fazendas” que

ganham o primeiro plano da cena num mundo fragmentado, onde se perde e se

busca algo para preencher a falta, o vazio de sentido ou, até mesmo, da

homogeneidade necessária para a afirmação da utopia nacional.

Do sublime das grandes questões debatidas ao grotesco da cena de

depredação, por um corte abrupto o narrador salta para a manhã seguinte ao 31 de

maio esboçando o retrato de Popinio Caldas, agora abatido em virtude dos

acontecimentos alusivos à Rusga. Porém esse abatimento é dissimulado pelo jogo

de aparências com que o narrador apresenta o embuste por meio do qual Popinio

almejaria isentar-se da participação no morticínio.

Outro traço importante que podemos sublinhar diz respeito ao efeito retórico

com que o narrador imputa à elite política local a responsabilidade pelos fatos

cometidos43. Efeito este altamente sofisticado porque fundamentado em documentos

diversos, bem como nos relatos daqueles que presenciaram os acontecimentos,

43 Poderíamos dizer que o narrador de A Cidade do Ouro e Das Ruínas estabelece uma relação quanto à estratégia empregada pelo narrador machadiano, Bentinho, na acusação de sua mulher Capitu, muito bem estudada por Silviano Santiago no ensaio intitulado “Retórica da Verossimilhança”, de 1978.

- 113 -

sendo testemunhas autorizadas para reconstruir os fatos segundo o critério de

verossimilhança. Sem contar que o próprio narrador se posiciona como aquele que

vivenciou os fatos quando participa da cena focalizando até mesmo os “lúgubres

clarões” que iluminaram a cidade de Cuiabá à época. Gesto quase inquisitorial e que

revela os males de uma sociedade cujos caminhos para a modernidade estavam

sempre em vias de se perfazerem, como num labirinto sem fim.

Será esse mesmo narrador, agora uma personagem que rememora

vividamente a informação dada por Aquilino do Amaral, quem avista a bandeira dos

que participaram da Rusga em suas cores vermelha e branca. De um lado, o

vermelho liga-se historicamente aos ideais revolucionários e, de outro, a cor branca

remete ao futuro, ao sentido da luta pela mudança. Essas cores filiam-se às

insígnias da Revolução Francesa, cujo ideário era motivado, nas palavras de Chauí

(2001, p. 62), pelas lutas políticas por liberdade, igualdade e fraternidade. Outro

estudioso que disserta a respeito das configurações da Revolução Francesa é

Adalmir Leonídio (2001, p. 22), para quem o conceito de soberania nacional na

França esteve ligado à soberania popular, conforme mostra o artigo terceiro da

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão Francesa. Mostra-nos o autor que

a legitimidade do poder popular francês não passava de uma ficção, cujos efeitos,

“positivos” e duradouros, conseguiram diluir a hierarquia social a ponto de criar um

imaginário de igualdade entre os homens, cujo alcance suplantava as divergências

sócio-políticas.

Trazer em primeiro plano as cores da bandeira representante da Rusga

sintetiza o procedimento do narrador taunayano que tensiona o imaginário libertário

representado pela revolta, pois nela não prevaleceram os ideais do povo, mas sim

de uma parte da elite política mato-grossense que estava fora do controle da

Província. Foram os paradigmas da Revolução Francesa que arejaram as ideias

republicanas no Brasil a partir das quais se afirmava a nacionalidade capaz de

encarrilhar o país no baluarte do progresso. Lembremos, com Carvalho (1987), que

nem mesmo o republicanismo conseguiu expandir a cidadania política entre todos os

setores da sociedade brasileira. Com suporte no pressuposto de Aristides Lobo, que

sublinha a bestialidade do povo diante da proclamação republicana, Carvalho afirma:

Nossa República [...] consolidou-se sobre um mínimo de participação eleitoral, sobre a exclusão do envolvimento popular no

- 114 -

governo. Consolidou-se sobre a vitória da ideologia liberal pré-democrática, darwinista, reforçadora do poder oligárquico (1987, p. 161).

Se a Revolução Francesa teve ressonâncias na proclamação da República no

Brasil, a figuração do caudilhismo da Rusga tangencia a farsa que foi a participação

do povo no sistema político, seja no Império, seja na República. Percebemos, com

isso, que o registro da quadrinha popular abala ainda mais a hipótese de que o

movimento rusguento baseou-se nos sentimentos de igualdade, liberdade e

fraternidade entre os habitantes da Província.

No que diz respeito ao registro da quadrinha, trazemos os apontamentos de

Antonio Candido, que faz um estudo do romance O cortiço (1890), de Aluísio de

Azevedo, em uma relação com L’Assommoir, de Emile Zola, no objetivo de mostrar

como o escritor brasileiro desloca a temática do livro francês quando se empenha

em interpretar a situação histórica do Brasil. Nas palavras de Candido, Aluísio de

Azevedo reuniu em uma única obra os elementos que Zola dispersou no seu projeto

literário. Interessa-nos do estudo de Candido a análise feita do ditado popular

humorístico dos três pês, que circulou na cidade do Rio de Janeiro no final do século

XIX, o qual apregoava: “Para Português, Negro e Burro, três pês: pão para comer,

pano para vestir, pau para trabalhar”. Segundo Candido, o teor xenófobo deste dito

popular permite o acesso ao universo das relações humanas existentes em O

cortiço. Nele o crítico vê a síntese do mecanismo de constituição da riqueza

individual no Brasil, que assume, em O cortiço, a forma da exploração do nacional

pelo estrangeiro. O português se nivelaria ao escravo que “trabalhava como um

burro”, mas enquanto este, depois de ser liberto, continuava no substrato da

sociedade, aquele conseguia acumular dinheiro e subir até a escala da elite dirigente

do país, a qual ainda guardava os resquícios do período colonial. João Romão, o

português que era zombado por sua ascendência em O Cortiço, é quem consegue

ascender socialmente pela exploração do trabalho.

Tanto o texto do Visconde de Taunay quanto o de Aluísio de Azevedo foram

publicados na década de 1890. Ambos problematizam a questão da presença

portuguesa no Brasil. Enquanto em O cortiço ressalta-se a ascensão social do

português por meio da exploração social, em contrapartida, A Cidade do Ouro e das

Ruínas realça a revolta dos brasileiros em relação a esta mesma exploração. No

momento em que o narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas projeta o dito

- 115 -

popular contra os portugueses colocado como estandarte da bandeira representante

da Rusga, mostra-nos como este movimento transformou-se no símbolo da barbárie

no Mato Grosso. O tom maledicente da quadrinha denota que a barbárie cometida

com os portugueses foi resultado da luta pelo poder político na Província mato-

grossense.

A leitura dos episódios referentes ao movimento rusguento em Mato Grosso

revela-nos como a ambivalência do narrador de A Cidade do Ouro e das Ruínas –

que ora assume a perspectiva homodiegética, ora a heterodiegética – projeta no

cenário mato-grossense as questões que agitavam o Brasil do século XIX,

constituindo-se em crítica incisiva ao novo modelo político anunciado pela

República. Um narrador cujo norte não está nas influências das tradições do seu

tempo, mas no desvelamento do silêncio imposto aos acontecimentos ocasionados

pela Rusga. A Cidade do Ouro e das Ruínas, nesse sentido, configurou uma forma

de resistência à vulnerabilidade dos grupos políticos no Brasil, que promoveram uma

aparente modernidade a um país cujo vazio histórico foi produzido pelo silêncio da

memória.

- 116 -

Considerações Finais

Para poder morrer Desarmo as armadilhas

Me estendo entre as paredes Derruídas

(Hilda Hilst, A obscena senhora D).

A violência, como a morte, tem a última das palavras, o silêncio

(Paulo Sérgio Pinheiro, Morte e Progresso).

A epígrafe inicial de Hilda Hilst realça as questões suscitadas no decorrer do

nosso trabalho acerca dos textos Inocência e A Cidade do Ouro e das Ruínas, do

Visconde de Taunay, tornando perceptível a atitude política com que este escritor

problematizou a região mato-grossense no contexto histórico do Brasil do século

XIX. Trata-se de um gesto que promoveu uma constante luta contra o esquecimento,

mesmo que, para isso, fosse necessário fazer com que a escrita se desdobrasse por

entre escombros à maneira de uma serpentina. O empenho em buscar, nas

situações legadas ao anonimato da história, o sentido para compreender o país

permitiu que esta luta fosse também contra a repetição do horror, o retorno à

barbárie. Esta, por sua vez, diz respeito menos a um retorno ao mundo antigo, do

que à voga do progresso que, no Brasil à época, deixou lastros de catástrofes

político-sociais sem precedentes.

Sustentamos que a literatura do Visconde de Taunay, como de outros

romancistas do século XIX, esteve ligada ao ritmo e ao sentido das transformações

históricas da sociedade de seu tempo. Isto pode ser explicado pelo gesto

testemunhal com que o escritor trabalha questões postas no presente. Três destas

nortearam o recorte de nossa pesquisa: a projeção do sertão como locus da

nacionalidade, a identidade brasileira e o silenciamento da história na tentativa de se

legitimar a imagem de um país em plena modernização. Trata-se de um gesto

altamente político por parte deste escritor, tendo em vista a necessidade de enunciar

sobre aquilo que o discurso oficial deixa à mercê do esquecimento.

Tal impossibilidade de esquecer fatos significativos da história brasileira e,

concomitantemente, a tentativa de resgatar a memória sócio-política do sertão mato-

grossense resultaram na elaboração simbólica do contexto de modernização como

- 117 -

atitude de resistência ao anonimato de uma sociedade que propugnava o

capitalismo.

Vimos como Taunay participou ativamente das discussões a respeito do

contexto sócio-político do Brasil no século XIX, o que lhe possibilitou fazer da arte

literária a materialidade capaz de viabilizar o significado das tensões do seu tempo.

Isso porque como pondera Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2006), um

historiador que discute as relações entre literatura e sociedade, as obras de arte

repercutem de modo incisivo no social, visto serem máquinas produtoras de sentido.

Desse modo, “Elas funcionam proliferando o real, ultrapassando sua naturalização.

São produtoras de uma dada sensibilidade e instauradoras de uma dada forma de

ver e dizer a realidade. São máquinas históricas de saber” (ALBUQUERQUE

JÚNIOR, 2006, p. 30).

Acreditando, portanto, nessa capacidade de a literatura significar o não-dito, o

silenciado e esquecido pela história, é que pudemos nos posicionar de um modo

distinto daquele que a crítica clássica havia proposto sobre a literatura de Taunay.

Ao lado de estudiosas como Maretti (2006) e Castrillon-Mendes (2007)

presenciamos, na atual história das ideias, o aparecimento de um campo de

pesquisa posicionado a contrapelo daquilo que fosse reservado ao canônico.

Investigações que tentam construir uma história literária a partir do vácuo deixado

pela historiografia brasileira, como também procuram, por meio de novos conceitos e

teorias, uma terceira margem para essa literatura que, como o rio de Heráclito,

produz-se nas margens de um olhar outro sobre o Brasil, por isso ser relegada à

margem.

Com base na leitura de Inocência apreendemos as redes de poder que

sustentaram a busca pela identidade nacional no interior do Brasil. Diante disso,

acrescentamos a consideração de Stella Bresciani (1998, p. 29) que, no estudo da

obra de Oliveira Viana, demonstra em que medida “A imagem de um país

desencontrado consigo mesmo vem carregada de forte apelo emocional em sua

busca de identidade”. A própria imagem do sertanejo Pereira, o pai da personagem

Inocência, constitui um sintoma de que o projeto de individuação nacional no século

XIX, que corresponderia ao novo tempo da modernidade, já não era capaz de

responder à necessidade de desenvolver o país. Mostrou-nos, com isso, como o

nacionalismo romântico, que consistia na descrição das regiões do país, começava

a sair de cena no que se refere ao conhecimento da realidade brasileira. O tom

- 118 -

irônico produzido pelo narrador em relação à personagem Pereira completa uma

faceta do Brasil moderno, que, nas palavras de Octávio Ianni, tem algo de

caricatural:

Primeiro, caricatura resultante da imitação apressada de outras realidades ou configurações históricas, freqüentemente implicadas em idéias, conceitos, explicações, teorias. Segundo, caricatura tornada ainda mais grotesca porque superpõe conceitos e temas a realidades nacionais múltiplas, antigas e recentes, nas quais se mesclam os “ciclos” e as épocas da história brasileira, como em um insólito caleidoscópio de realidades e imitações (1992, p. 46).

A apropriação do sertanejo, a partir da perspectiva irônica do narrador,

buscou compreender como a invenção de uma identidade nacional, no/para o Brasil,

norteou-se pelo sentimento de falta. A recorrência às personagens clássicas Dom

Quixote e Sancho Pança, cujas matrizes culturais remontam ao início da Idade

Moderna, na projeção das figuras do sertão vêm tensionar o modo como o Brasil

teve de aceitar uma série de imagens impostas pela cultura europeia para significar

a tão sonhada identidade. Esta, por sua vez, era suposta como tábua de salvação

para que o país fosse aceito no rol das nações civilizadas.

O trabalho de boa parcela da literatura romântica foi o de produzir imagens de

um Brasil harmonioso, exótico e abençoado. Diferentemente, o romance Inocência,

ao trazer as imagens heteróclitas do sertão, revelou o assombro perante a

sociedade brasileira que ainda não tinha consciência interna, pois primava em fazer

vislumbrar o exterior. Assim, os discursos sobre o sertão produzidos em Inocência

trazem a necessidade de se repensar uma definição das fronteiras do país,

propondo-se (re)conhecer a região mato-grossense contra a retórica dominante.

A modernidade, surgida apenas como efeito retórico no século XIX, ganha

com a configuração de Pereira um sentido que remonta à época dos

deslumbramentos fantasmagóricos desencadeados na Idade Moderna pelos

engenhos e moinhos de vento, como no romance Dom Quixote. Não é por acaso

que Pereira sente-se indignado com os artefatos arrojados do entomólogo Meyer.

Objetivamos ainda, neste trabalho, apreender quais os procedimentos

agenciados na projeção da Rusga mato-grossense em A Cidade do Ouro e das

Ruínas, de Taunay. A nosso ver, a luta entre os rusguentos teve ressonância na

situação configurada pelo início da República no Brasil, tendo em vista que a escrita

- 119 -

do referido texto nos direcionou a esse momento histórico crucial. O incentivo ao

povoamento de Mato Grosso trouxe consigo a necessidade de se construir uma

capital para a província, que mais tarde seria chamada de Vila Bela da Santíssima

Trindade (SENA, 2006). A construção de Vila Bela produziu o efeito do domínio

político-militar do Brasil moderno. Contudo, já deixava em sua base a marca de uma

cidade envelhecida, mas que não passou pelos desgastes do tempo. O efeito, aqui,

sintetiza-se no conceito de “modernidade arcaica” referido por Roberto Vecchi (1998,

p. 112) no que se refere ao estudo das funções da loucura em Lima Barreto

Da mesma forma que o Segundo Reinado primou por construir uma imagem

moderna de Brasil, a República que chegava ambicionava remover os indícios do

atraso resultante da organização política de outrora. Era preciso produzir uma

história que não lembrasse a Monarquia. Nesse sentido, vemos que o intuito de

elaborar uma imagem moderna de Brasil esteve relacionado com a emergência da

ideia de nação sempre alicerçada em reinventar a história. Querendo apagar as

mazelas do passado, vimos que a República pretendia destruir a face da história e

da memória brasileira, que não deixava de lembrar a sua própria ideologia de

mudança social com base na coação e na febre europeizada da política feita pelo

capital importado.

As contradições oriundas do interior constituíram a base com que o escritor

procurou significar os percalços por que passou a sociedade brasileira desde o

Segundo Reinado até o período republicano. Em A Cidade do Ouro e das Ruínas a

projeção da história de Vila Bela, e respectivamente de Mato Grosso, mostrou-nos

como as iniciativas civilizacionais da humanidade deixaram resquícios de violências

ideológicas de toda sorte, devido ao choque de temporalidades históricas

dissonantes (moderno/atraso, antigo/novo, passado/presente, sertão/litoral etc.).

Seguindo certa “retórica da verossimilhança”, o narrador de A Cidade do Ouro

e das Ruínas trabalha como um verdadeiro genealogista, que procura nos restos de

um tempo relegado ao silêncio o sentido que possa preencher o não-lugar da nação

brasileira. Reagrupar os fragmentos deste passado significou mostrar,

benjaminianamente, como a voga do progresso no Brasil remontou à barbárie que

tentava negar. Ao trazer uma reflexão sobre os episódios da Rusga em Mato

Grosso, Taunay evidenciou de que forma os ideais da emancipação política do

Brasil eram incorporados sob a linha tênue que intercalou a modernidade com o

apartheid social. Olhar para o futuro no horizonte do progresso, fez com que o

- 120 -

escritor desvelasse o modo pelo qual o saber sobre o Outro em nosso país margeou

os ecos do não-dito, para que não se manchasse a imagem de Brasil em total

desenvolvimento político e social. Depreendemos disso a assertiva de Paulo Sérgio

Pinheiro (1998, p. 17) segundo a qual “Da terrível impossibilidade de conviver com a

diferença emerge a violência. Raramente tenta-se inverter o olhar e entender a

irracionalidade do olhar que exclui, tortura, mata”. Sendo assim, somente mediante a

inversão do olhar e a escuta da voz do outro se poderia encaminhar o país nas

trilhas da modernidade, (re)inserindo a memória de Mato Grosso na história

brasileira a partir da conciliação entre passado e presente.

- 121 -

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