indesejáveis súditos do eixo ou laboriosos · pdf fileindesejáveis...

16
INDESEJÁVEIS "SÚDITOS DO EIXO" OU LABORIOSOS TRABALHADORES ALEMÃES? UMA REFLEXÃO SOBRE A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA FRENTE AOS ALEMÃES A PARTIR DO ESTADO NOVO NO PARANÁ. Márcio José Pereira (História UFPR) Palavras-chave: Alemães, indesejabilidade e Paraná O presente ensaio tem como objetivo principal debater questões que perpassam sobre a indesejabilidade em relação ao indivíduo de origem estrangeira no Paraná. Em um primeiro momento buscaremos contextualizar o panorama nacional em relação a imigração e as mudanças legais sobre o controle de imigrantes e seu estabelecimento. Logo adiante refletiremos sobre o caráter transitório e paradigmático desses indivíduos com ascendência estrangeira, procuraremos debater sobre sua condição hora estabelecida e hora outsider. Desejamos ainda, pensar como esses indivíduos foram expostos a situações de vergonha, de ódio e repugnância, uma vez que sua existência em meio a sociedade brasileira passava por um momento de contestação. A ênfase desse ensaio se dará especialmente aos indivíduos de origem germânica, serão analisados documentos oriundos da extinta Delegacia de Ordem Política e Social, disponíveis no Arquivo Público do Paraná. Para alcançar os objetivos acima propostos tomaremos como alicerce teórico as reflexões de Hannah Arendt sobre as políticas raciais e a indesejabilidade, trataremos do caráter paradigmático do sujeito imigrante a partir das considerações de Eugene Enriquez, suas discussões sobre o outro e o caráter transitório do estrangeiro; por fim, buscaremos os apontamentos de Norbert Elias, sobre o comportamento e controle das pulsões, pensando esses sentimentos reativos e como a vergonha e o ódio podem ser elementos importantes nesses momentos de conjuntura política conturbada e como o medo pode ser incutido e utilizado como elemento de controle. O grupo germânico paranaense De “altivos filhos da Alemanha” a “quinta colunas” subversivos. Desde sua chegada ao Paraná em 1829, as primeiras famílias instaladas em Rio Negro tinham em seu favor o discurso político vigente no período, que além de fortalecer a imigração através do estabelecimento de políticas de compra de lotes, ainda tinha apoio intelectual, uma vez

Upload: lenga

Post on 20-Mar-2018

228 views

Category:

Documents


7 download

TRANSCRIPT

INDESEJÁVEIS "SÚDITOS DO EIXO" OU LABORIOSOS TRABALHADORES ALEMÃES?

UMA REFLEXÃO SOBRE A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA

FRENTE AOS ALEMÃES A PARTIR DO ESTADO NOVO NO PARANÁ.

Márcio José Pereira (História – UFPR)

Palavras-chave: Alemães, indesejabilidade e Paraná

O presente ensaio tem como objetivo principal debater questões que perpassam sobre a

indesejabilidade em relação ao indivíduo de origem estrangeira no Paraná. Em um primeiro

momento buscaremos contextualizar o panorama nacional em relação a imigração e as mudanças

legais sobre o controle de imigrantes e seu estabelecimento. Logo adiante refletiremos sobre o

caráter transitório e paradigmático desses indivíduos com ascendência estrangeira, procuraremos

debater sobre sua condição hora estabelecida e hora outsider. Desejamos ainda, pensar como

esses indivíduos foram expostos a situações de vergonha, de ódio e repugnância, uma vez que sua

existência em meio a sociedade brasileira passava por um momento de contestação.

A ênfase desse ensaio se dará especialmente aos indivíduos de origem germânica, serão

analisados documentos oriundos da extinta Delegacia de Ordem Política e Social, disponíveis no

Arquivo Público do Paraná. Para alcançar os objetivos acima propostos tomaremos como alicerce

teórico as reflexões de Hannah Arendt sobre as políticas raciais e a indesejabilidade, trataremos

do caráter paradigmático do sujeito imigrante a partir das considerações de Eugene Enriquez,

suas discussões sobre o outro e o caráter transitório do estrangeiro; por fim, buscaremos os

apontamentos de Norbert Elias, sobre o comportamento e controle das pulsões, pensando esses

sentimentos reativos e como a vergonha e o ódio podem ser elementos importantes nesses

momentos de conjuntura política conturbada e como o medo pode ser incutido e utilizado como

elemento de controle.

O grupo germânico paranaense – De “altivos filhos da Alemanha” a “quinta colunas”

subversivos.

Desde sua chegada ao Paraná em 1829, as primeiras famílias instaladas em Rio Negro

tinham em seu favor o discurso político vigente no período, que além de fortalecer a imigração

através do estabelecimento de políticas de compra de lotes, ainda tinha apoio intelectual, uma vez

2

que o debate sobre a necessidade de embranquecimento da população brasileira estava em alta. O

processo de importação de brancos europeus contava com figuras destacadas como o Visconde de

Abrantes, que além de defender a imigração de elementos europeus, dirigiu-se a Alemanha1 para

tratar pessoalmente do assunto.

O Visconde de Abrantes, importante parlamentar brasileiro, fazia questão de ressaltar as

vantagens da imigração teuta em relação aos outros povos, argumentando que todos os Estados

da Confederação Germânica estavam aptos a fornecer agricultores e artífices de primeira

qualidade e que mereciam maior notoriedade os imigrantes oriundos de portos europeus em que o

Brasil possuía maior fluxo comercial, como Hamburgo, Bremem e Antuérpia.

Em 1846, proferiu em Berlim um discurso inflamado louvaminhando a força e o labor

germânico, defendia uma correta prática imigracional, com definições de terras, preparação do

ambiente para receber esses colonos, inclusive com escolas para ensinar o vernáculo e preparar os

colonos as práticas agrícolas características do Brasil. Seu discurso era apoiado por outros

intelectuais, como Augusto de Carvalho2, Tavares Bastos3 e J. C. Menezes e Souza4, que em seus

discursos abordavam a imigração europeia como instrumento de civilização, desconsiderando

completamente a grande população negra, julgando-os incapazes de agir por iniciativa própria,

creditando aos negros a certeza de fracassarem como pequenos proprietários.

Lacerda alega que o branqueamento da raça era visualizado como um processo seletivo de

miscigenação que, dentro de certo tempo – aproximadamente três gerações – produziria uma

população de fenótipo branco. “Sendo assim, os imigrantes tinham um papel adicional a exercer:

contribuir para o branqueamento e, ao mesmo tempo, submergir na cultura brasileira através

de um processo de assimilação” (grifo nosso) (LACERDA, 1911, p. 29 apud SEYFERTH, 1996,

p. 52).

O discurso teórico sustentou-se bem até a virada do século, uma vez que as ações de

recepção e de aculturação desses imigrantes propostas por Lacerda e Abrantes não chegaram a

sair do papel. No início do XIX, intelectuais ligados ao IHGB começaram a chamar a atenção das

1 Recordamos que a Alemanha foi unificada em 1871, logo a utilização da nomenclatura Alemanha para pensar os

espaços germânicos até então separados trata-se de uma necessidade de caráter instrumental. 2 CARVALHO, Augusto. Estudo sobre a colonização e emigração para o Brasil. Porto: Typographia do Comércio,

1874. 3 TAVARES BASTOS, A. C. Os males do presente e as esperanças do futuro – Estudos Brasileiros. São Paulo: Cia

Editora Nacional, 1976. 4 MENEZES E SOUZA, J. C. Theses sobre a colonização do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875.

3

autoridades para a formação de quistos étnicos no sul do Brasil. Encenavam a possibilidade de

uma ação depreciativa por parte dessas colônias em relação a soberania nacional.

Marion Brepohl5 (1993, p. 68) alerta que, para Romero, a concentração de alemães nos

estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul apresenta um duplo perigo, referindo-se o

primeiro ao crescimento desequilibrado entre esta e as outras regiões, dadas as características

intrínsecas desse povo; e o segundo ao risco de se perder a unidade linguística, uma vez que o

idioma alemão era costumeiramente utilizado entre aquelas populações.

Assim, Romero realiza uma série de protestos em seus discursos, denunciando a perda do

sul para os alemães e argumentando o que, para ele, seria uma nova ideia de formação da raça

brasileira, sendo esta constituída da mistura do português (luso-brasileiro) com o índio e o negro.

Silva Rocha (1918, p. 313 apud SEYFERTH, 1996, p. 54)6 atribui ao governo imperial o

enquistamento das colônias do sul, pois em sua visão os indivíduos estrangeiros civilizados não

deveriam ficar isolados, mas conviver no meio de indivíduos “sem civilização” para que

pudessem aprender com os europeus ao mesmo tempo em que estes pudessem absorver a cultura

nacional.

Em 1907 e 1913 ocorrem tentativas legais de avaliar, classificar e expulsar estrangeiros do

país. A partir desse momento, o modelo de hierarquização proposto em meados de 1850, pautado

na capacidade de branqueamento e produção, é substituído pela hierarquização através da maior

capacidade de assimilar-se à ”cultura brasileira“. Ramos (1996, p. 81) aventa que os mecanismos

de seleção dos imigrantes tiveram um papel de reforço e reprodução da hierarquia entre

populações, característico da sociedade brasileira. Esses mecanismos de seleção, que propiciavam

o aumento da população branca, objetivavam reduzir os riscos de um questionamento da ordem

racial vigente por meio da violência dos não brancos. Não obstante, para que esse resultado

5 Em sua tese de doutorado defendida em 1993, especialmente no capítulo segundo – “O imigrante alemão pela

intelectualidade brasileira” – Brepohl faz uma análise das imagens construídas acerca do imigrante alemão na

literatura e nas obras de cientistas sociais brasileiros, procurando – como enfatiza– “desvendar aspectos da identidade

coletiva tanto dos segmentos designados como luso-brasileiros, quanto daqueles designados como teuto-brasileiros,

identidades construídas no momento em que diversas disputas por significações deram conta de confirmar alteridades

e convicções de ordem cultural e política” (1993, p. 59). Chama-nos a atenção sua preocupação em entender como o

alemão e seus descendentes, antes portadores de um ethos destinado ao progresso, passaram a ser revalorados pela

intelectualidade literária e política brasileira. 6 Obra citada por SEYFERTH: SILVA ROCHA, J. História da Colonização no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa

Nacional, 1918.

4

pudesse ser alcançado era necessário que os imigrantes brancos não representassem, eles

mesmos, uma ameaça à “ordem constituída”.

A 5a Região Militar (Paraná e Santa Catarina) foi encarregada por levantar

minuciosamente a situação das colonias estrangeiras no Brasil, deveriam verificar o

posicionamento geográfico, a quantidade de famílias e seu grau de sociabilidade. Imediatamente

após a efetivação do Estado Novo, o relatório completo foi entregue nas mãos do presidente

Vargas e nele se encontravam as bases formais para o Plano de Nacionalização que seria

instaurado no ano posterior.

Até então o Paraná contava com uma ampla quantidade de imigrantes e descendentes de

origem variada, muitos deles estavam inseridos na sociedade e ocupavam vagas importantes no

comércio, possuiam larga influencia nas industrias, não só pela detenção da tecnologia, mas pela

grande quantidade de capital acumulado.

No caso dos alemães, além do prestigio financeiro, estavam organizados em suas

comunidades afetivas, sendo as principais a igreja luterana, os clubes recreativos e o círculo do

NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei - Partido Nacional Socialista dos

Trabalhadores Alemães) existente no Paraná até 1938. É muito importante nesse momento

destacar que nem todo individuo de origem germânica estava vinculado a esses três elementos,

nem todos são luteranos, participantes de eventos em clubes, menos ainda se afiliaram ou

colaboraram com o Partido Nazista no Paraná. É fato que, a alcunha "nazista“ recaiu sobre todos

os alemães e descendentes após a declaração oficial de guerra ao Eixo, independentemente de

terem tido qualquer relação com o Partido ou não.

Em Curitiba por ocasião da visita do dirigivel Hindemburg e da inauguração do Deustch

Schule, o interventor Manoel Ribas proferiu um discurso enaltecendo a imigração alemã e sua

importancia para o desenvolvimento do estado do Paraná, disseu que graças da ajuda "da altiva

Alemanha, cujos filhos laboriosos e honestos, aqui radicados, constroem comnosco a grandeza

sempre crescente do Paraná" [sic] (GAZETA DO POVO, 02/12/1936, p. 6). Da mesma forma,

mostrou-se grato por fixarem seu retrato entre o de Vargas e Hitler no salão nobre da Deustche

Schule na ocasião de sua inauguração (SOUZA, 2002, p.115) 7.

7 A Estrada do Poente: Escola Alemã/Colégio Progresso(Curitiba 1930 – 1942)

5

Ribas também reconhecia a influência que esses imigrantes possuíam no comércio e na

sociedade; sabia que detinham grande parte dos estabelecimentos comerciais da cidade e que

dominavam alguns setores da prestação de serviço. Entretanto, nada disso foi motivo de dúvida

durante a repressão aos imigrantes considerados perigosos pelo Estado Novo.

Com a efetivação do Decreto-Lei 383, de 18 de abril de 1938, todos os partidos políticos

foram colocados na ilegalidade, entre eles o NSDAP, logo os alemães ligados ou não ao partido

sofreram com a exclusão do círculo nazista ou com a incorreta associação de seus nomes ao

nazismo. Independente das inúmeras investidas do Consulado Alemão contra as medidas

coercitivas contra alemães, o plano de erradicar a influência estrangeira no país não cessou.

Na constituição outorgada em 10/11/1937, existem mais de trinta situações que envolvem

estrangeiros e imigrantes, dentre as quais ressaltamos as que consideramos mais relevantes para

esse ensaio: no Artigo 122, a Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no

país o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, contudo mantém as seguintes

restrições: a) tentar submeter o território da Nação ou parte dele à soberania de Estado

estrangeiro; b) tentar, com auxílio ou subsídio de Estado estrangeiro ou organização de caráter

internacional, contra a unidade da Nação, procurando desmembrar o território sujeito a sua

soberania; d) tentar, com auxílio ou subsídio de Estado estrangeiro ou organização de caráter

internacional, a mudança da ordem política ou social estabelecida na Constituição.

A limitação da atuação de imigrantes é tratada no Artigo 150, no qual consta que só

poderão exercer profissões liberais os brasileiros natos e os naturalizados que tenham prestado

serviço militar no Brasil, excetuados os casos de exercício legítimo na data da Constituição e os

de reciprocidade internacional admitidos em lei. Somente aos brasileiros natos será permitida a

revalidação de diplomas profissionais expedidos por institutos estrangeiros de ensino.

Gradativamente esse clima de perseguição e a lógica de suspeição foram aumentando,

passado o período de neutralidade e com a efetiva adesão do Brasil ao lado dos Aliados em 1942,

as denúncias tornaram parte do cotidiano, o imigrante, seus descendentes e aqueles considerados

estrangeiros foram alocados em um mesmo grupo cujas alcunhas passavam por ‘alienígenas’,

‘eixistas’, ‘quinta-colunas’, etc. A efetiva perseguição deu-se a partir da declaração de guerra, os

relatórios aumentaram potencialmente e as denúncias não cessavam, o que será discutido a seguir

é justamente sobre essa figura paradigmática do estrangeiro e como essa perseguição perpassa

6

questões como a indesejabilidade, da inveja, do medo, da vergonha e da repugnância frente a

presença desses indivíduos de origem alemã no Paraná.

Indesejáveis, nazistas, quinta-colunas e imigrantes subversivos.

Ao analisar o período de 1937 até o término da Segunda Guerra Mundial em 1945

podemos alegar que a repressão aos imigrantes passou por fases distintas e uma das justificativas

mais utilizadas para validar a perseguição tratava-se de garantir a soberania e a segurança

nacional. Independente da justificativa utilizada pelo Estado, desejamos nesse ponto discutir as

formas que essa repressão foram sentidas pelo grupo germânico, entender como a rejeição

tornou-se nítida e foi experimentada no cotidiano, bem como, buscar entender esses sentimentos

que afloram nesses momentos mais críticos.

Entre as situações adversas enfrentadas por esses indivíduos de origem germânica

destacamos a delação por crimes contra a ordem pública, como falar alemão em locais públicos,

manter livros, cartas ou jornais em idioma alemão, possuir rádio transmissor, entre outros; as

denúncias seguiam inevitavelmente para um segundo momento de inquérito, onde o acusado

prestava um depoimento e permanecia mantido sob cárcere até uma contra ordem, absolvição ou

acusação formal, que levava-o a um terceiro momento a expulsão do país.

Sentir-se preterido dentro da comunidade passou a ser uma realidade para o indivíduo de

origem germânica, em alguns depoimentos obtidos por Roseli Boschilia, podemos perceber essa

dificuldade de adaptação:

Vizinhos de diferentes etnias, que antes travavam relações cordiais, agora mal se

cumprimentavam, como lembra Freya Schrappe “comecei a sentir que certas

amizades minhas evitavam me cumprimentar na rua, porque eu era casada com

um homem que estava na lista negra” E dona Olga Gioppo complementa:

“muitas famílias ficaram com as relações cortadas, porque tinha, por exemplo,

uma filha casada com italiano. De repente cortavam relações, porque não havia

mais possibilidades, eram inimigos. (BOSCHILIA, 1995, p. 7).

Essas relações rompidas por uma necessidade política, atuam diretamente no psicológico,

e tem muito mais força o fato de ser socialmente preterido, do que o fato de ser politicamente

perseguido, de acordo com Arendt:

7

Psicologicamente, a situação de não ser desejado (uma situação embaraçosa

tipicamente social) é mais difícil de suportar que a franca perseguição (uma

situação política embaraçosa) porque o orgulho pessoal está envolvido. Por

orgulho, não me refiro a nada como “orgulhar de ser negro”, judeu, branco

protestante anglo-saxão etc., mas àquele sentimento inato e natural de identidade

com o que somos pelo acaso do nascimento. O orgulho, que não compara e

desconhece os complexos de inferioridade ou de superioridade, é indispensável

para a integridade pessoal, um sentimento que se perde menos pela perseguição

do que por coagir, ou antes ser forçado a coagir, a saída de um grupo e a entrada

de outro. (ARENDT, 2004, p. 261-262)

Ter o seu direito e sua privacidade violadas eram motivo de vergonha, bem como, ser

chamado para dar explicações a polícia ou ser preso sem um motivo considerado justo. A

vergonha, de acordo com Elias, trata-se de uma exaltação especifica, espécie de ansiedade

automática, por força do hábito que ocorre em determinadas ocasiões. Basicamente, um medo de

degradação social, cair em inferioridade frente a outros sujeitos. Trata-se de um conflito dentro da

própria personalidade, onde o sujeito “[...] teme perder o amor e o respeito dos demais, a quem

atribui ou atribuiu valor”. A vergonha é o medo de transgredir as proibições sociais, quando

restrições externas foram transformadas, pela estrutura da sociedade em auto restrições. (ELIAS,

1993, p. 242)

Esse debate sobre a vergonha realizado por Elias8 pode tornar-se útil para nosso estudo de

caso quando analisarmos o motivo que leva o indivíduo de origem germânica a evitar os

comportamentos típicos e o próprio idioma, para não cair em desgraça social: “Luiz Groff, por

exemplo, garoto na época, conta que conheceu uma senhora alemã, de Joinville, que, por não

saber falar português, permaneceu sem falar uma só palavra enquanto durou a guerra”

(BOSCHILIA, 1995, p. 7). Em alguns autos é possível verificar essa lógica, quando o sujeito

alega que optou por não mais falar alemão no ambiente público e negar o pertencimento a um

determinado grupo, principalmente se o mesmo filiou-se ao NSDAP.

Os excessos ou a falta de conhecimento da polícia política resultavam em alguns erros

clássicos, uma vez que os investigadores não sabiam diferenciar quais idiomas estavam sendo

proferidos, o caso mais comum era a prisão de poloneses, que além de falarem um idioma

estrangeiro, possuíam características físicas bastante aproximadas. De acordo com o depoimento

8 (ELIAS, 1993, p. 242-248) Ao final do segundo volume do Processo Civilizador, ante de apresentar suas sugestões

para uma teoria do processo civilizador, Elias faz um debate curto, mas muito coeso, sobre os sentimentos de

vergonha e repugnância, enfatizando como esses sentimentos entraram na lista de inibidores de pulsões,

transformando-se em verdadeiros controles da ação desmedida frente a sociedade.

8

de Maria Grumnt, filha do polônes Miroslau Florecki, os poloneses embora atacados pelos

alemães durante a guerra eram genericamente taxados de eixistas ou quinta colunas, de acordo

com ela: “Eles confundiam muito os poloneses com os alemães; a minha irmã, por ser loira de

olhos azuis, era chamada de quinta coluna na rua.“ (BOSCHILIA, 1995, p. 10).

Já Raul Reinhardt destaca em suas lembranças que:

Duas velhinhas judias foram presas porque estavam falando em iídiche [...]

Então, se o policial ouvisse elas falando em iídiche, inglês, francês, holandês,

sueco, norueguês, elas iam presas do mesmo jeito. Ele não sabia a diferença

entre o alemão e qualquer língua dessas. Aí levaram as duas velhinhas para a

polícia e chamaram o genro delas [...] (BOSCHILIA, 1995, P. 11)

Outros casos evidenciados referem-se a pessoas que negaram publicamente sua ligação

com o nazismo ou qualquer vínculo com a Alemanha, alguns se dirigiam diretamente aos órgãos

de fiscalização; um caso relevante é o de Waldemar Grummt, que nasceu no Brasil e ocupa o

cargo de professor da na Faculdade de Medicina da Universidade do Paraná e é afastado de suas

funções profissionais, por ser taxado pela DOPS como subversivo, tendo permanecido 14 dias

presos, em carta ao delegado, o denunciado relata:

O simples fato de Hitler dizer que os descendentes de alemães no mundo são

alemães não faz de mim um alemão [...]. Sr. Dr. Vlafrido Piloto! Apesar do Sr.

me ter dito que eu era um alemão com manto de brasileiro, tenho a dizer que sou

brasileiro nato, reservista de 1a categoria, e não um poltrão; até a presente data

cumpri as minhas obrigações, quer diante da pátria, quer diante da sociedade, e

quer diante da minha família. Si, portanto, o passado de uma pessoa serve para

se julgar o seu futuro, creio que nada mais tenho a dizer [...]. [sic]9

Não se tratava simplesmente de se sentir envergonhado por ter ascendência alemã, mas o

simples fato de possuir um sobrenome parecido gerava a vergonha de um lado e o embaraço do

outro. O embaraço é justamente a contrapartida da vergonha, de acordo com Elias, o embaraço é

o desagrado ou a ansiedade que surgem quando outra pessoa ameaça ignorar, ou ignora

proibições da sociedade representadas pelo próprio superego da pessoa.

Vejamos o exemplo de Fernando Sudbrack, que ressalta sua brasilidade e ao mesmo

tempo pede intercessão do Presidente da República pelo seu filho detido:

Aproveito a oportunidade, de incluir uma espécie de Relatorio à respeito das

detenções a que a policia política do Paraná sujeita o meu filho Olof Alcides

Sudbrack, cuja brasilidade não quero mais exaltar, porque está acima de

9 Auto de declaração Waldemar Grummt – Prontuário 3655, top 489, fl 18-21 DOPS/PR.

9

tudo, acima de qualquer dúvida. [...] Dizer dos prejuízos que sofro com a

perseguição deste meu filho, é supérfluo. [...] Ouso interferir junto à Va. Excia.

em favor dos detidos para averiguações, que este tempo seja restringido ao

extremo, pois bem sabe Va. Excia. que cada um precisa trabalhar e produzir e

uma detenção injusta para os inocentes é um inférno. [sic] (grifo nosso)10

A repugnância, o desagrado começa a aparecer quando a zona de perigo - que agora é

dentro do self – torna as pessoas mais sensíveis as distinções que antes mal penetravam na sua

consciência. Elias exemplifica de maneira simples com a proibição gradativa de passar uma faca

a mesa com a ponta virada ao outro e de trinchar animais a mesa, ambos atos característicos

foram repelidos das cenas da vida social, por aparentar violência. (ELIAS, 1993, p. 247)

Em nosso caso, se os gestos, as condutas e a aproximação a determinados grupos podem

aumentar ou diminuir o valor do indivíduo dentro da “bolsa de valores sociais”, andar, conversar

ou conviver com alemães em nosso período de estudos poderia significar adesão a subversão ou

até mesmo descredenciamento do caráter nacionalista exigido pelo Estado Novo e pela situação

beligerante.

Pensar esses grupos distintos, desperta visões multifacetadas, notamos que no grupo

reprimido – no caso os indivíduos de origem alemã – aparecem demonstrações de repugnância

entre os mesmos, um exemplo é quando o dentista Ricardo Kempfer11 abandona o partido quando

o mesmo ainda estava ativo por não concordar com a atitude violenta frente a comunidade

judaica e simplesmente é boicotado por parte da comunidade alemã vinculada ao NSDAP, foi

obrigado a fechar seu consultório na capital e tentar a sorte no interior. Em 1942, mesmo tendo

abandonado o partido e mudado para Londrina é preso e acusado de subversivo tendo que vir a

Curitiba dar seu depoimento, o sujeito é duplamente penalizado, tanto por seus pares quanto pelos

seus persecutórios.

O “perigo alemão”12 parecia tomar forma, o sujeito não assimilado, o alemão “quinta

coluna” era motivo de preocupação incessante, todos viviam sobre um clima de suspeição e o

Estado desejava que esses medos se espalhassem por todos os cantos, que as denúncias partissem

10 Prontuário de Olof Alcides Sudbrack - Carta de Fernando Sudbrack ao presidente Getúlio Vargas solicitando ao

mesmo que intercedesse junto a DOPS/PR para retirar seu filho Olof Alcides Sudbrack da prisão. A carta original e

sua transcrição pela DOPS encontra-se na pasta individual do acusado. 11 Prontuário de Ricardo Kempfer - Arquivo Público do Paraná – Pastas Individuais 12 Para maior entendimento conceitual do termo, consultar: GERTZ, RENÉ. O perigo alemão. Porto Alegre. Editora

da UFPRS, 1991.

10

dos cidadãos e que estes estivessem cada vez mais alinhados a proposta de homogeneizar a

nação.

Ainda pensando nas dificuldades encontradas pelos indivíduos de origem alemã,

gostaríamos de enfatizar uma última situação enfrentada pelos imigrantes, a expulsão do país. De

acordo com Lená Menezes:

A expulsão dos estrangeiros considerados indesejáveis conheceu muitos

descaminhos, continuidades e descontinuidades no seu encaminhamento.

Aqueles que foram frutos dos descompassos existentes entre a defesa da ordem e

a garantia da legalidade. [...] Fluxos e refluxos marcaram, assim, conjunturas

diferenciadas, caracterizadas por diferentes graus de embates entre os setores

organizados e os segmentos excluídos, que, à margem do processo político

formal, contestavam, pela palavra ou pela ação, a ordem estabelecida.

(MENEZES, 1998, p. 186)

A expulsão era o último recurso tomado em relação ao imigrante ou descendente que era

considerado perigoso ou subversivo. Gostaríamos de destacar dois casos de expulsão de

estrangeiros no Paraná, o primeiro é o caso de Kurt Boiger, que era oriundo de Carambeí e fora

detido em Curitiba, julgado e condenado a extradição, ainda mantinha firme sua fé na vitória de

Hitler:

KURT BOIGER. Acha-se fichado nesta Delegacia há muito tempo, como um

dos chefes nazistas deste Estado. Figura, fardado como nazista, em diversas

fotografias apreendidas por esta Delegacia, inclusive uma dum grupo onde se vê

o chefe nazista no Brasil, VON COSSEL. Interrogado pela autoridade, por

ocasião de sua detenção, confirmou ainda ser adepto do nazismo. De viagem

para o Rio, via Paranaguá, portou-se de modo inconveniente, entoando, com

fervor, hinos alemães.13

Outro alemão detido em Foz do Iguaçu, Horst Udo Knoff, era desertor da marinha alemã,

fugitivo do vapor Windhuk, tentou argumentar em seu favor alegando que não fazia mais parte

dos planos de Hitler e que havia se afeiçoado a população brasileira e que os paranaenses eram

todos muito receptivos e que se voltasse a Alemanha provavelmente seria julgado como desertor

e condenado a morte. De acordo com a DOPS o mesmo estava blefando, considerando que o

mesmo vagava pela região especulando e fazendo anotações em um mapa:

Possuia em seu poder um mapa da fronteira do Paraná com a Argentina e o

Paraguay, tendo alegado que conseguira esse documento para guiar-se na

viagem de fuga para aqueles países. [...] Feito o processo de expulsão do

13 Prontuário de Kurt Boiger – Arquvio Público do Paraná – Pastas Individuais

11

território nacional. Embarcou escoltado, com destino a Paranaguá, a fim de

seguir para o Rio de Janeiro, de acordo com determinação do Ministério da

Justiça. A bordo do vapor nacional “ITAQUERA” seguiu viagem. 14

Justificadas ou não pela defesa da soberania nacional é certo que entre inquéritos, prisões,

julgamentos e expulsões, o Estado tencionou alinhar a população dentro de um projeto que visava

a erradicação do elemento estrangeiro ou sua assimilação forçada.

Sob a capa da legalidade, portanto, a expulsão manteve-se como um ato de

violência, discriminação e corrupção, possibilitando perseguições e abusos dos

mais diversos matizes: sinalização do caráter autoritário da Republica e da

exclusão lançada sobre os segmentos populares. A priorização da defesa e da

ordem, definida como missão policial, trazia implícito o emprego da violência.

[...] Numa terra que não era a deles, amargaram as consequências da total falta

de garantia que os atingia, pesando sobre a sua cabeça a possibilidade cotidiana

da expulsão [...] (MENEZES, 1998, p. 235)

Quanto ao êxito do projeto podemos alegar que pós 1945 o mesmo perdeu força e que as

relações começaram a tomar um rumo diferente, haja visto, que os processos no Paraná

diminuem, as leis e decretos contra estrangeiros são revogados e o sistema de governo autoritário

é substituído por um regime democrático.

A busca pela igualdade, a figura do imigrante como indesejável e a reação ao outro.

Ao discutir os incidentes de Little Rock, Arendt aponta questionamentos importantes

sobre a legalidade no fato do Estado impor a igualdade, para a autora quando a igualdade é

imposta por vias legais, a única tendência plausível é que os ressentimentos aumentem entre as

partes.

Mas o princípio da igualdade, [...] não é onipotente; não pode igualar

características naturais, físicas. Esse limite só é atingido quando são eliminados

os extremos das desigualdades da condição econômica e educacional, mas nessa

conjuntura surge invariavelmente um ponto crítico, bem conhecido dos

estudiosos de história: quanto mais iguais as pessoas se tornam em todos os

aspectos, e quanto mais igualdade permeia toda a textura da sociedade, mais as

diferenças provocarão ressentimento, mais evidentes se tornarão aqueles que são

visivelmente e por natureza diferentes dos outros. (ARENDT, 2004, p. 268)

Como afirma Enriquez:

14 Prontuário de Horst Udo Knoff – Arquivo Público do Paraná – Pastas Individuais

12

Pior do que o diferente é o muito semelhante. [...] O Estado-Nação não ama a

alteridade. Seu ideal, felizmente nunca atingido na totalidade, é que todos os

homens sejam semelhantes, fundidos numa massa graças à identificação mútua

(ENRIQUEZ, 1998, p. 46-47).

Para que o Estado Novo alcançasse o desejado controle total da população necessitava

manter as massas alinhadas ao governo, uma vez que igualar a sociedade como uma só raça, já

tinha se provado impossível, uma forma de obter controle é alinhar a população, e espalhar o

medo, de acordo com Elias é uma forma efetiva de alcançar o controle:

Os medos e ansiedades criados pelo homem, sejam eles medos ao que vem de

fora ou ao que está dentro de nós, finalmente mantem em seu poder até mesmo o

adulto. A vergonha, o medo da guerra e o medo de Deus, o medo que o homem

sente de si mesmo, de ser dominado pelos seus próprios impulsos afetivos, todos

eles são direta ou indiretamente induzidos nele por outras pessoas. (ELIAS,

1993, p. 270)

A necessidade de incutir medo ao outro é também uma forma de garantir o controle.

Novamente procurando uma ponte entre as preocupações de Elias e nossas preocupações

percebemos que esse provimento das ansiedades e fomento do medo ao alemão, ao subversivo

quinta colunista, são ferramentas que o Estado utilizou amplamente através dos meios de

comunicação, da propaganda oficial, da articulação da vergonha e da repugnância no cotidiano,

do aparelhamento da polícia política e a sobreposição de culpas em manter ou não uma conduta

tida como civilizada.

Essas tensões entre classes ou grupos diferentes, dão origem a uma continua ansiedade,

bem como a proibições e restrições especificas entre determinados grupos, como assevera Elias:

Elas [tensões entre grupos diferentes], também produzem seus próprios medos

específicos: medo da perda do emprego, de uma vulnerabilidade imprevisível

aos que exercem o poder, de cair abaixo do nível de subsistência, que

prevalecem nas classes mais baixas; bem como os medos de degradação social,

de redução de posses ou independência, de perda de prestígio e status, que

desempenham papel tão importante na vida das classes média e alta. [...] Medos

desse tipo desempenham um papel considerável no controle [...] grifo nosso

(ELIAS, 1993, p. 271)

Como alega Enriquez “todo encontro com o outro é semeado de obstáculos” (1998, p.

37), logo, esse embate com o diferente cresceu impulsionado pela conjuntura política, pelo clima

de beligerância e também pela ideia de homogeneização pregada pelo Estado.

13

O outro é sempre suspeito, geralmente com razão, de querer nos invadir,

introduzir-se em nosso interior, usufruir-nos, tornar-nos culpados, provocar-nos

vergonha, a dúvida, em uma palavra, de ocupar o lugar do diabólico. Sem

dúvida, sabemos que sem o outro não existimos como ser humano e social.

(ENRIQUEZ, 1998, p. 37)

Essa dificuldade em definir “os de dentro” e “os de fora”, de acordo com Enriquez

(1998, p. 38) é a grande dificuldade enfrentada pelas sociedades ao lidar com o problema da

alteridade. Na maioria dos casos, os governos desejam classificar, identificar os indivíduos e

rotula-los, quer se trata de nação, da etnia, da raça, da região ou mesmo da comunidade.

A situação do imigrante se presta a uma dupla interpretação; por um lado, seu caráter

eminentemente provisório; por outro lado, a possibilidade de se instalarem de maneira mais

duradoura. No caso do indivíduo de origem germânica, essa definição dentro/fora não estava bem

definida, o caráter paradigmático de sua existência dentro da comunidade paranaense e brasileira,

dificultava trata-los como estabelecidos ou outsiders, passam a ser vistos como causas de si

mesmo.

Para André Duarte ao refletir sobre o texto “Nós, refugiados” escrito por Arendt em

1943, tanto a situação de exílio/expulsão e a não definição de uma posição dentro do país de

acolhida, cria um sujeito apátrida que só consegue se beneficiar da lei ao descumpri-la. De acordo

com o autor:

Por certo, sempre houve quem fosse forçado ao exílio por causa de motivos

econômicos ou de suas convicções ou atividades políticas ou religiosas. Agora,

entretanto, criara-se um novo tipo de refugiado, alguém que não deixara seu país

em busca de um futuro melhor, mas que também sequer ‘sonhara ter quaisquer

opiniões políticas radicais’, quanto menos cometer quaisquer atos ilegais. Pelo

contrário, o novo apátrida traz consigo uma situação paradoxal, pois a sua

ausência de status legal só pode ser resolvida se ele cometer qualquer tipo de

infração contra a lei do país em que vive. (DUARTE, 2000, p. 44-45)

O indivíduo de origem germânica – respeitando os limites de comparação com o exemplo

dado por Duarte – encontra-se nessa situação dúbia, ao mesmo tempo que é taxado de nazista

pela sociedade ou culpado pela DOPS de cometer crimes contra a soberania nacional, procura

defender o país que o acolheu, se naturaliza e procura evitar transgredir o sistema imposto. Da

mesma forma, muitos que bradavam seu amor incondicional ao Brasil, à Vargas e a seu regime,

mantinham vivas as tradições alemãs e aguardavam ao lado do rádio para saber como Hitler se

portava diante do enfrentamento bélico. A margem de erro cabe em ambos os lados, a conjuntura

14

deseja um sujeito obediente, como assevera Lená Menezes fazendo um balanço sobre a

conjuntura nacional frente aos estrangeiros:

Profundas tensões sociais marcaram a conjuntura, ao longo da qual qualquer

tentativa de alteração das condições a favor dos excluídos encontrou a força da

resistência desencadeada a partir do poder. Num contexto amplo de contestação,

os estrangeiros assumiram um papel de destaque, maximizado pelo discurso

político devido a interesses de origens e finalidades variadas. (MENEZES, 1998,

p. 281-282)

Colocar o outro em condição de humilhação servia a dois propósitos distintos, sendo o

primeiro de ordem política, criar um álibi, um motivo para que a população se envolvesse e se

preocupasse mais em combater os estrangeiros “eixistas” do que com as medidas autoritárias

tomadas pelo governo varguista, o segundo de cunho pessoal, permitiu aos brasileiros - através

das denúncias, delações e discursos vexatórios contra os indivíduos de origem germânica – que

exteriorizassem seus sentimentos reativos como o ódio, a inveja e a repugnância ao outro

estrangeiro.

Por fim, como nos lembra Ansart: “O imaginário da humilhação histórica designa o

outro, os outros povos, as outras religiões como a fonte absoluta dos sofrimentos comuns”

(ANSART, 2005, p. 7). Se encontrava desenhado o panorama certo para que toda a culpa fosse

despejada em um inimigo comum, que no Brasil passou pelos anarquistas, pelos comunistas,

integralistas e pelos “súditos do Eixo” e estrangeiros considerados não assimiláveis como os

chineses, japoneses, sírio-libaneses, etc.

Nesse sentido, percebemos que Vargas ao mesmo tempo que alinhava a nação para lutar

contra o Eixo, mantinha um sistema que operava a culpa de maneira muito próxima aos regimes

totalitários, embora o Estado Novo tenha como característica principal o autoritarismo, operou a

culpa e a distribuiu de acordo com seu melhor entender.

Conforme destaca André Duarte:

Os regimes totalitários definem a culpa de seus inimigos não a partir de sua

conduta no mundo, mas a partir da sua certidão de nascimento, tomada como

justificativa suficiente para perseguição, internação e assassinato. Assim

procedendo, as suas vítimas são escolhidas a despeito de sua própria inocência,

destruindo-se por completo o nexo jurídico entre ação e consequência, bem

como a própria possibilidade da distinção entre culpados e inocentes, visto

que ambos têm o mesmo destino. (grifo nosso) (DUARTE, 2000, p. 46)

15

Quando essa figura paradigmática do indivíduo de origem germânica assumiu o posto de

inimigo da nação, as mesmas medidas coercitivas foram tomadas, as mesmas desculpas foram

dadas e as mesmas dificuldades foram encontradas para que os fins justificassem os meios, afinal,

como destaca Enriquez: “Acolher o estrangeiro é acolher o novo, o diferente, o exótico, é

colocar-nos em questão e dar-nos uma chance de evoluir e de continuar nossa busca de

verdade.” (ENRIQUEZ, 1998, p. 59)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANSART, Pierre. As humilhações políticas. In: MARSON, Izabel & NAXARA, Márcia (orgs).

Sobre a humilhação: sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: EDUFU, 2005.

ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

BOSCHILIA, Roseli. O cotidiano de Curitiba durante a Segunda Guerra Mundial. In: BOLETIM

Informativo da Casa Romário Martins (1995). Curitiba, Fundação Cultural de Curitiba, 23 (107).

BREPOHL, Marionilde. Alemanha, mãe-pátria distante; utopia pangermanista no sul do Brasil.

1993. 320 p. Tese de Doutorado (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas,

São Paulo.

________, Surgimento de uma cultura politizada: O Pangermanismo no Brasil. In: BRESCIANI,

Stella (org). Jogos da política: Imagens, representações e práticas. São Paulo: ANPUH Marco

Zero, 1992.

CARVALHO, Augusto. Estudo sobre a colonização e emigração para o Brasil. Porto:

Typographia do Comércio, 1874.

DUARTE, André. O pensamento a sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt.

São Paulo: Paz e Terra, 2000.

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1993. 2v.

ENRIQUEZ, Eugène. O judeu como figura paradigmática do estrangeiro. In: KOLTAI, Caterina.

O estrangeiro. São Paulo: Escuta/FAPESP, 1998.

GERTZ, René E. O perigo alemão. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1991.

MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto,

crime e expulsão na Capital Federal (1890 – 1930). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.

MENEZES E SOUZA, J. C. Theses sobre a colonização do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia

Nacional, 1875.

16

SEYFERTH, Giralda. Construindo a Nação: Hierarquias Raciais e o Papel do Racismo na

Política de Imigração e Colonização. In: MAIO, Marcos Chor & SANTOS, Ricardo Ventura

(orgs). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/CCBB, 1996.

RAMOS, Jair de Souza. Dos Males que vêm com o sangue: As representações raciais e a

categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 1920. In:

MAIO, Marcos Chor & SANTOS, Ricardo Ventura (orgs). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de

Janeiro: Editora Fiocruz/CCBB, 1996.

SOUZA, Regina M.S. A Estrada do Poente: Escola Alemã/Colégio Progresso (Curitiba 1930 –

1942). 152 p. Dissertação de Mestrado (Mestrado em História, Cultura e Poder) Universidade

Federal do Paraná, Curitiba.

TAVARES BASTOS, A. C. Os males do presente e as esperanças do futuro – Estudos

Brasileiros. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1976.