Índice - vogais.ptvogais.pt/media/pdf/9789896682453.pdf · o seu objetivo era arrancar holocausto...

21

Upload: lamtuong

Post on 25-Nov-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Índice

Prólogo ....................................................................................... 9

capítulo um · «Uma mulher destruída» .............................. 15

capítulo dois · Refazer vidas ............................................... 29

capítulo três · «Os navios da morte».................................. 61

capítulo quatro · A guerra de Gertrude ............................ 91

capítulo cinco · Missão a Lisboa ........................................ 111

capítulo seis · Crise de consciência ..................................... 141

capítulo sete · Apoio aos que partem ................................. 173

capítulo oito · Negociar com o inimigo ............................. 195

capítulo nove · Até ao fim ................................................... 213

capítulo dez · Última saída de Amesterdão........................ 233

capítulo onze · O rescaldo .................................................. 261

capítulo doze · Um ajuste de contas .................................. 293

Epílogo ........................................................................................ 317

Fontes ......................................................................................... 329

Abreviaturas ............................................................................... 340

Notas ........................................................................................... 341

Referências ................................................................................. 381

Agradecimentos ......................................................................... 382

holocausto a salvacao copy.indd 5 7/3/14 4:37 PM

Mar do Norte

N

Leeuwarden Groningen

AssenHooghalenWesterbork

Wieringen

Schoorl

IJsselmeer Zwolle BentheimIJmuiden

ZandvoortAmesterdão

Blaricum Apeldoorn DeventerHengelo

Enschede

Haia Utreque

ArnhemHoek van HollandRoterdão

Waal

Reno

Breda Vught

A L E M A N H AEindhoven

Antuérpia Maa

s

Scheldt B É L G I C A

BruxelasMaastricht

50 km0

Holanda, 1940

holocausto a salvacao copy.indd 7 7/3/14 4:37 PM

Prólogo

holocausto a salvacao copy.indd 9 7/3/14 4:37 PM

11

Numa manhã de maio de 1941, Gertrude van Tijn — judia

de meia-idade, portadora de passaporte holandês — aterrou

no aeroporto de Lisboa depois de uma viagem aventurosa

desde Amesterdão, ocupada pelos nazis.

A capital portuguesa era, na época, um sítio caracterizado por es-

tranhas incongruências e inversões de valores: uma ilha de paz num

continente em guerra, sede de governo de um Estado policial auto-

ritário que se gabava de ser o «aliado mais antigo» da Grã-Bretanha,

e polo de atração para a intriga internacional. A cidade era tam-

bém o principal porto de embarque para refugiados provenientes da

Europa sob domínio nazi, que desesperavam pela obtenção de pas-

sagens para o hemisfério ocidental.

Quem era Gertrude van Tijn e o que motivara a sua ida a Lisboa?

Fora ali numa missão de misericórdia. Embora a própria ainda

não tivesse plena consciência disso, a sua viagem era um esforço

de 11 horas para evitar um massacre. O seu objetivo era arrancar

holocausto a salvacao copy.indd 11 7/3/14 4:37 PM

Do Holocausto à Salvação

12

milhares de judeus da Holanda e das garras dos nazis. Realizou a

viagem com o beneplácito das autoridades alemãs, que, na altura,

estavam ainda dispostas a tolerar, mais do que isso, ansiosas por

encorajar, a emigração dos judeus. Em Lisboa, encontrar-se-ia com

representantes da American Jewish Joint Distribution Committee,

instituição de caridade preocupada com o destino dos judeus da

Europa. Pretendia indagar se a Joint, como era conhecida, estaria

disposta a financiar o êxodo de judeus da Europa ocupada para o ou-

tro lado do Atlântico. Parecia improvável que os nazis autorizassem

uma mulher judia, sem estatuto evidente, a realizar essa missão.

No entanto, o voo de Gertrude para Lisboa não foi uma fantasia,

mas uma bizarra realidade.

Ficou hospedada no Hotel Palácio, na zona balnear do Estoril.

Estabelecimento luxuoso, perto do casino, ninho de monarcas exila-

dos, o Palácio revestia-se de charme e mistério. Espiões dos Aliados

e do Eixo cruzavam-se no lobby com correspondentes estrangeiros

e exilados prósperos. O jornalista americano Eric Sevareid, que ali

estivera hospedado semanas antes, descreveu o bar do Palácio como

sendo o «centro da espionagem durante a Segunda Guerra Mun-

dial».1 Terá sido ali que, em meados de 1941, Ian Fleming, oficial

dos serviços de informação da Marinha britânica, conheceu Duško

Popov, nome de código: «Triciclo», um agente duplo que trabalhava

na Abwehr (serviços de informação) alemã em prol dos britânicos.

Julga-se que o Casino do Estoril terá sido a inspiração de Casino

Royale, o primeiro livro da série James Bond, de Fleming, e que

Popov terá servido de modelo para a criação do herói. Seja ou não

verdade, o Palácio sumptuoso e algo suspeito não era destino condi-

zente com uma dona de casa respeitável, de meia-idade, provenien-

te de Amesterdão.

Como foi Gertrude parar àquele ambiente surreal, encarregada

de tamanha responsabilidade? Qual foi precisamente a natureza da

holocausto a salvacao copy.indd 12 7/3/14 4:37 PM

13

Prólogo

relação que manteve com os seus contactos nazis e a comunidade

judaica na Holanda? Terá sido apenas um peão dos nazis ou terá

sido a sua viagem uma oportunidade genuína de salvar inúmeros

judeus da morte nas câmaras de gás? Como foi recebida pelos seus

interlocutores em Lisboa? Como foi encarada pelos governos dos

Estados Unidos e de outras nações a suposta disposição dos ale-

mães para permitir a saída de judeus? É um conjunto de questões

sobre as quais me debruço nestas páginas.

Porém, a missão de Gertrude a Lisboa tratou-se apenas de um

episódio numa vida atribulada que suscita questões históricas mais

abrangentes. Num contexto de ocupação e repressão inimiga, a pro-

teção da vida humana ter-se-á sobreposto a todos os outros valores?

Perante o mal absoluto do nazismo, terá havido um meio-termo

entre a resistência absoluta e a submissão abjeta? Que cedências

poderá um indivíduo achar necessário fazer para participar eficaz-

mente numa ação coletiva com fins humanitários?

A interseção entre o percurso pessoal de Gertrude e os horrores

a que sobreviveu ajuda a esclarecer essas questões históricas mais

abrangentes que marcaram a sua época. Mantém-se a dúvida mais

fundamental de todas: qual foi a moralidade que a norteou quando

confrontada com o mal absoluto?

holocausto a salvacao copy.indd 13 7/3/14 4:37 PM

capítulo um

«Uma mUlher destrUÍda»

holocausto a salvacao copy.indd 15 7/3/14 4:37 PM

17

«Q uase tudo o que recordo da minha infância são atos

de rebeldia», escreveu Gertrude van Tijn nas suas me-

mórias inéditas.1 Definiu-se a si própria como uma

«criança exasperante», e o espírito independente com que encarou

todos os aspetos da sua vida tinha raízes profundas na sua persona-

lidade e nas circunstâncias em que foi criada.

Gertrud Franzisca Cohn, como foi registada na certidão de nasci-

mento, veio ao mundo «durante a pior tempestade de sempre», no

dia 4 de julho de 1891, em Braunschweig (Brunswick), a histórica

«Cidade do Leão» na Saxónia. O seu pai, Werner Cohn, comerciante

nascido em 1854, na pequena localidade de Seehausen, mudara-se

para Braunschweig em 1879. A mãe, Thekla, apelido de solteira:

Levisohn, 10 anos mais nova do que o marido, casou-se com este

cinco anos antes de a filha ter nascido.2 Gertrude tinha dois irmãos:

Ernst, o mais velho, e Walter, o mais novo da família, por quem a

irmã nutria um carinho especial. Os Cohns pertenciam à respeitável

holocausto a salvacao copy.indd 17 7/3/14 4:37 PM

Do Holocausto à Salvação

18

classe média e Gertrude foi desde cedo imbuída da postura social

e moral da burguesia germânica: delicadeza rigorosa; arrumação;

ordem; asseio; disciplina; e respeito pelas autoridades, educação e

moralidade convencional.

Embora a família fosse de origem judaica e assim estivesse ofi-

cialmente registada, apagara praticamente essas raízes da memória.

O avô paterno de Gertrude, Abraham Cohn, fora comerciante em

Seehausen. De acordo com descrição posterior da neta, tratara-se de

«um dos maiores promotores da emancipação» e ajudara a criar a

famosa escola Israel-Jacobson.3 Fundada em 1801, em Seesen, ao pé

da região montanhosa de Harz, perto de Braunschweig, tratou-se

de uma escola pioneira, dedicada aos princípios dos iluminismos

alemão e judaico. Foi desde o início uma escola interconfessional,

com alunos judeus e cristãos.4 O pai de Gertrude e os seus oito ir-

mãos foram ali instruídos e absorveram as influências do judaísmo

reformista aculturado. Porém, os rituais judaicos não eram, de todo,

praticados em casa de Werner Cohn e, tal como os seus irmãos, este

afastou-se da fé dos pais.

Por conseguinte, à semelhança de muitos judeus alemães da

mes ma geração, durante a sua infância Gertrude quase não teve

consciência de que era judia. Juntamente com a ama e o seu irmão

Walter, ia à igreja todos os domingos e tinha uma «fé inabalável em

Deus e em Jesus».5 Talvez até tenha sido batizada.

Durante os primeiros anos de vida de Gertrude, a família foi re-

lativamente próspera e ela acostumou-se à presença de emprega-

dos domésticos. Todavia, quando tinha 11 anos, o seu mundo idílico

desabou subitamente com a morte da mãe. Passado pouco tempo,

um desenvolvimento catastrófico nos negócios do pai levou a que

perdesse a totalidade da sua fortuna. Incapaz de reagir, entregou

Gertrude e Walter a uma série de pais adotivos, à custa de parentes

abastados. Esses acontecimentos tiveram um efeito profundamente

holocausto a salvacao copy.indd 18 7/3/14 4:37 PM

19

«Uma mulher destruída»

perturbante na menina. Tornou-se, nas suas próprias palavras, «so-

rumbática e conflituosa».6 Obrigada a ser autossuficiente, começou

a pensar pela sua própria cabeça — ousadia invulgar e até mesmo

perigosa para alguém do seu sexo, da sua idade e do seu estatuto

social.

Com cerca de 15 anos, Gertrude ficou transtornada ao descobrir

que o pai tivera uma amante. Sempre o considerara um herói; sen-

tia-se agora duplamente abandonada. O desaparecimento da mãe

levara-a a perder a fé num Deus celestial; face ao que considera-

va uma traição do pai, sentia-se «abandonada pelo meu deus na

Terra».7 Esse episódio assinalou um ponto de viragem na sua vida.

Retrospetivamente, definiu-o como o fim da sua infância.

Por volta dessa altura, a família mudou-se para Berlim. A ado-

lescente da província, que, até então, tivera uma existência pacata e

resguardada, deslumbrou-se com a cultura vanguardista e a excita-

ção social da capital do império. Deliciou-se com concertos, bailes e

peças de teatro.

Teve também as suas primeiras experiências sexuais. Embora já

tivesse tido paixonetas por professores de ambos os sexos, não tinha

vivência sexual. Aos 17 anos de idade conheceu um pintor 30 anos

mais velho, que se apaixonou por ela — «violentamente, como só

um homem mais velho pode apaixonar-se por uma menina muito

nova».8 Gertrude achava-se feia, mas aquele homem deu-lhe, pela

primeira vez na vida, confiança na sua própria beleza. Defendeu-se

das investidas dele, mas meses mais tarde gerou-se um escânda-

lo quando o pintor expôs diversos quadros e uma escultura que a

retratava nua, embora Gertrude tenha insistido que nunca posara

despida para ele.

Em Berlim, frequentou a Lette-Verein, escola especializada de-

dicada «à promoção da instrução superior e da qualificação profis-

sional do sexo feminino». Ali, concluiu um curso lecionado pela

holocausto a salvacao copy.indd 19 7/3/14 4:37 PM

Do Holocausto à Salvação

20

assistente social pioneira e feminista judia alemã Alice Salomon, de

quem Gertrude se tornou discípula. Salomon pretendia libertar-se

do que considerava ser a vida inútil e isenta de oportunidades das

jovens burguesas, condenadas a não fazerem nada, exceto «dar de

comer aos canários e fazer naperões».9 Na época não havia o costu-

me de höhere Töchter (jovens senhoras) terem qualquer tipo de tra-

balho remunerado. Todavia, Salomon tinha o objetivo de preparar

as suas alunas para procurarem carreiras socialmente significativas.

Gertrude revelou-se a sua «melhor aluna». Salomon «passava mui-

to tempo a conversar comigo sobre a necessidade de lutarmos pela

igualdade de direitos para as mulheres».10 A influência de Salomon

ditou o rumo que a vida de Gertrude tomou e a sua opção de enve-

redar por uma carreira como assistente social.

Durante algum tempo, foi acompanhada de perto pelo irmão

mais velho, Ernst. Escapando à sua vigilância, conheceu um aluno

de Direito num baile de máscaras e teve a sua «primeira experi-

ência romântica». Os dois arrendaram um quarto e fizeram amor.

A primeira experiência sexual de Gertrude foi «tão bonita, tão ter-

na», que a encheu de uma felicidade serena.11 Quando Ernst, um

homem francamente antiquado, descobriu, enviou padrinhos à

procura do amante de Gertrude, com o fito de desafiá-lo para um

duelo. Perante as súplicas insistentes dela, o jovem recusou o de-

safio. No entanto, Gertrude ficou «irreversivelmente destruída» aos

olhos do irmão.12 Na esperança de evitar a desonra pública, despa-

chou-a para casa de parentes abastados em Londres.

Aos 20 anos, Gertrude tornara-se numa jovem dinâmica, convicta

e confiante. Recusou a proposta do tio de continuar a hospedá-la e de

lhe oferecer um cargo no seu banco, mudou-se para uma pensão e

encontrou emprego sozinha. Trabalhou primeiro como secretária do

proprietário alemão de uma empresa no setor do papel, com sede perto

das docas, posteriormente como faz-tudo para um advogado e autor.

holocausto a salvacao copy.indd 20 7/3/14 4:37 PM

21

«Uma mulher destruída»

Começou a ter aulas de música com um professor de canto vie-

nense, pupilo de Schoenberg. «Tal como tantas vezes me aconte-

ceu ao longo da vida com homens muito mais velhos» (escreveria

Gertrude mais tarde), este tentou fazer amor com ela.13 Nesse pre-

ciso momento, a sua esposa entrou na sala. «Fui-me embora e nunca

mais voltei a vê-lo.»14 Em vez disso, apaixonou-se por uma profes-

sora de canto, uma escocesa que morava em Hampstead. Gertrude

tornou-se hóspede em casa dela. Descobriu mais tarde que a pro-

fessora era lésbica e concluiu que também se «poderia ter tornado

lésbica, assim ela me tivesse dado o menor incentivo».15

Era um período de grande agitação social e política em Ingla-

terra. Abalada pelo contraste entre a opulência das casas dos seus

parentes nos bairros mais apetecíveis de Londres e a deterioração

das condições de vida da classe operária nos bairros pobres da East

End, Gertrude empenhou-se profundamente em causas sociais.

A sua senhoria incitou-a a aderir ao movimento das sufragistas,

cuja campanha prolongada pelos direitos políticos das mulheres

atingia então o auge. Muitos anos mais tarde, Gertrude escreveu

uma carta à sua filha, onde sugeriu que lesse a obra Testament of

Youth (1933), de Vera Brittain: «É exatamente assim a minha gera-

ção; eu própria poderia ter escrito um texto assim. Também fiz par-

te do “Movimento Feminista”.»16 Gertrude juntou-se à organização

de Millicent Garrett Fawcett, que, ao contrário das «sufragistas»

mais militantes, utilizava métodos estritamente legais na sua cam-

panha a favor do direito de voto para as mulheres. A família pare-

ce ter-lhe dado algum apoio. «Um dia, o meu tio ofereceu-me

10 libras para o movimento [uma quantia avultada no período an-

terior à Primeira Grande Guerra] se eu fizesse um discurso em

Hyde Park Corner. Assim fiz e fui imediatamente escorraçada

para dentro do lago. Pagou-me 20 libras, 10 pelo discurso e 10 pelo

mergulho.»17

holocausto a salvacao copy.indd 21 7/3/14 4:37 PM

Do Holocausto à Salvação

22

O início da guerra, em agosto de 1914, constituiu um possível

conflito de interesses para Gertrude. Enquanto cidadã de uma na-

ção inimiga, foi-lhe exigido que se apresentasse regularmente às

autoridades. Prosseguindo o seu trabalho e a sua atividade política,

juntou-se também a alguns dos seus parentes ingleses numa cam-

panha humanitária em prol das dezenas de milhares de belgas que

fugiram para Inglaterra no seguimento da invasão alemã do seu

país. Foi o primeiro contacto que teve com refugiados, cuja causa se

tornaria num tema recorrente ao longo da sua vida.

Em 1915 foram-lhe dados 10 dias para deixar o país. Se ali tivesse

permanecido, teria sido detida com os restantes civis alemães até

ao final do conflito. Por ser «ferozmente antialemã», preferiu partir

para um país neutro a retornar à pátria.18 Hesitou entre mudar-se

para a Suíça ou para a Holanda. Fatidicamente, calhou-lhe em sorte

fixar-se na segunda durante as três décadas seguintes.

Quando chegou a Amesterdão, instalou-se num hotel barato.

Munida de uma carta de apresentação redigida por um parente em

Londres, dirigiu-se ao gabinete de Pieter Vuyk, banqueiro ao servi-

ço do Nederlandsche Bank voor Zuid-Afrika. Este, evidentemente,

afeiçoou-se à jovem e tornaram-se bons amigos. Apresentou-a a ou-

tro banqueiro, que trabalhava nos escritórios vizinhos da Hope and

Co. Carel Eliza ter Meulen era uma das figuras mais destacadas e

respeitadas no setor financeiro holandês. Também ele ficou bem

impressionado com a confiança e a vivacidade de Gertrude, bem

como com o seu inglês quase perfeito, e contratou-a de imediato

como sua secretária particular.

Ambos permaneceram muito ligados a Gertrude para o resto das

suas vidas. Vuyk insistiu que ela saísse imediatamente do hotel e se

instalasse na casa que a sua família tinha em Zandvoort, localida-

de costeira perto de Amesterdão. Gertrude tinha grande admiração

por Vuyk, descrevendo-o como um dos «melhores e mais sábios»

holocausto a salvacao copy.indd 22 7/3/14 4:37 PM

23

«Uma mulher destruída»

homens que conhecera. Considerava-o «extremamente bem-pare-

cido, com um ar algo distinto».19 Vuyk tinha origens calvinistas e a

sua esposa, Jadwiga, era uma judia polaca. O marido tinha fama de

mulherengo. Também a esposa tinha os seus amantes e, durante

algum tempo, teve um caso com Anton Mussert, futuro fundador

do NSB, o movimento nazi holandês.

Terão Gertrude e Pieter sido amantes? Ela negou que o tenham

sido, insistindo que a amizade dos dois «não teria sido possível se

ele não estivesse feliz com o seu casamento e a esposa tivesse tido

ciúmes… A minha relação com o P[i]eter também é prova de que,

em raras circunstâncias, pode existir amizade genuína, sem compli-

cações sexuais, entre um homem e uma mulher».20 Só uma mente

perversa teria interesse em aprofundar a questão. No entanto, não

restam dúvidas quanto à intimidade entre os dois: até ao fim das

suas vidas, almoçaram juntos quase todos os dias em que coincidi-

ram em Amesterdão.

Depois de ter passado alguns dias na residência dos Vuyks,

Gertrude mudou-se para um pequeno apartamento numa casa à

beira do Keizersgracht, um dos canais mais bonitos que atravessam

o centro da cidade. Partiu à descoberta de Amesterdão, pela qual

não tardou a apaixonar-se. Visitou o bairro judeu (os judeus cons-

tituíam 10 por cento da população da cidade), as magníficas sina-

gogas antigas e a animada feira de Waterlooplein.

Por volta dessa altura, Gertrude descobriu uma nova paixão: o sio-

nismo. Num jantar, conheceu «um jovem muito atraente» (cujo nome

não refere), que, quando lhe disse que era judia, começou a falar do

sionismo. Convenceu-a a consultar alguma literatura sobre o tema,

nomeadamente Um Estado Judaico, de Theodor Herzl. «De súbito

despertou-me o interesse pelo assunto. Li páginas e mais páginas.

O facto de os judeus poderem orgulhar-se da sua herança e de esta-

rem a trabalhar para um renascimento no seu próprio país foi como

holocausto a salvacao copy.indd 23 7/3/14 4:37 PM

Do Holocausto à Salvação

24

que uma revelação.» Sentiu que era hora de tomar uma decisão: «Pa-

rar de me chamar judia, ou aderir de alma e coração ao sionismo.»21

Gertrude mergulhou de cabeça na defesa da causa nacional

judaica. Quando o pai soube que aderira ao sionismo, censurou

a decisão. «Ele não compreendia», escreveu Gertrude mais tarde,

«logo eu, que tinha sido tão bem criada».22 Trata-se de uma reação

típica de um judeu alemão de classe média já assimilado. Mas tal

como em tantos outros aspetos da sua vida, também neste, depois

de se ter decidido, Gertrude não se deixou demover.

Porque terá adotado essa doutrina, na altura aparentemente

quixotesca, ou até excêntrica? Decerto não teve qualquer motiva-

ção religiosa, pois levara uma vida absolutamente secular até então.

Parece, sim, ter encontrado no sionismo um ideal que podia abraçar

incondicionalmente, uma válvula de escape para a sua energia ines-

gotável e um círculo de jovens entusiastas como ela, com os quais

se poderia dar.

O primeiro contacto formal de que há registo entre Gertrude e

a Organização Sionista foi uma carta enviada em agosto de 1916

para a sede do Fundo Nacional Judaico (FNJ) em Haia. Tratava-se

do braço financeiro do movimento, dedicado à aquisição de terre-

nos na Palestina para colonização por imigrantes judeus, halutzim

(pioneiros). Pouco depois do começo da guerra, a sede do fundo

fora transferida de Colónia para ali, onde estaria protegido pela neu-

tralidade holandesa. Na sua missiva, Gertrude solicitava «selos do

FNJ no valor de um florim, de preferência com o retrato de Herzl».

Herzl, fundador da Organização Sionista, falecera em 1904; os selos

ilustrados com o seu retrato eram vendidos em campanhas de anga-

riação de fundos. Pediu também «um catálogo de literatura judaica,

se tal coisa existir».23 Tempos mais tarde, visitou o gabinete do FNJ e

foi apresentada ao secretário do mesmo, um partidário do sionismo

socialista natural da Rússia, Shlomo Kaplansky.

holocausto a salvacao copy.indd 24 7/3/14 4:37 PM

25

«Uma mulher destruída»

Os seus conhecimentos de inglês, alemão e neerlandês levaram

à contratação de Gertrude para traduzir correspondência e publica-

ções para o FNJ. Em fevereiro de 1917, já dirigia o comissariado do

fundo em Amesterdão. Instalada num gabinete no elegante edifí-

cio da Bolsa de Diamantes na zona de Weesperplein, não tardou a

atarefar-se a organizar campanhas de propaganda e angariação de

fundos. As atividades sionistas na cidade estavam em baixa, mas

Gertrude ressuscitou o movimento na capital holandesa. O seu fer-

vor sionista levou-a, inclusive, a admitir a possibilidade de se mudar

para a Palestina, com o fito de trabalhar no gabinete local do FNJ.

Mas o país era palco de operações militares entre os governantes

turcos e o exército invasor dos Aliados, comandado pelo general

Edmund Allenby. De momento, seria por isso inviável fixar-se ali.24

O trabalho de Gertrude apresentou-a às questões fulcrais da cau-

sa sionista. Juntou-se a um grupo de entusiastas com horizontes

semelhantes aos seus – na sua generalidade intelectuais jovens, de

classe média, bastantes dos quais viriam a fazer parte da vida

de Gertrude durante muito tempo. Entre eles, incluía-se Max Schlo-

essinger, um estudioso natural da Alemanha, com negócios em

Haia e detentor de um cargo na direção do Fundo Nacional Judaico,

assim como a sua esposa, Miriam Schloessinger-Scheer, e também

Mirjam Gerzon, de quem se tornou amiga íntima. Os Schloessingers

e Gerzon emigraram para a Palestina em inícios da década de 20 do

século passado.

Gertrude travou também conhecimento com vários líderes sio-

nistas, entre os quais Chaim Weizmann. Este vivia a sua fase de

maior prestígio, por ter sido o homem que, em novembro de 1917,

convencera o governo britânico a preparar a Declaração de Balfour,

favorável à fundação de uma Pátria Judaica na Palestina. Tal como

muitos dos que se cruzavam com ele, Gertrude deixou-se cativar

pela imponência da personalidade de Weizmann, pelo pathos da

holocausto a salvacao copy.indd 25 7/3/14 4:37 PM

Do Holocausto à Salvação

26

sua oratória e pelo realismo visionário das suas convicções políticas.

Nunca deixou de o estimar.

Nesse período, teve pela primeira vez contacto com a American

Jewish Joint Distribution Committee (geralmente conhecida por

«Joint»). Terá ficado a dever esse contacto a Pieter Vuyk, que,

durante a guerra, intermediou a comunicação entre o banqueiro e

filantropo judeu Max Warburg, residente em Hamburgo, e a sede da

Joint em Nova Iorque, onde o irmão deste, Felix Warburg, desempe-

nhava um papel fulcral.25 Com o apoio da Joint, Gertrude organizou

o envio de produtos alimentares kosher para prisioneiros de guerra

judeus na Europa Oriental. Embora a Joint lhe tenha apresentado

uma proposta de trabalho a tempo inteiro, com melhor remune-

ração, preferiu continuar a trabalhar com Ter Meulen, a quem era

então absolutamente leal. Mas o laço estabelecido com a Joint viria

a tornar-se essencial ao longo da sua carreira.

Em fevereiro de 1920, Gertrude casou-se com Jacques van Tijn,

um engenheiro de minas dois anos mais novo do que ela. Conhe-

ciam-se desde 1917, altura em que ele ficara admirado com um

discurso fogoso da futura esposa num encontro sionista. Gertrude

achava-o «feio, mas francamente encantador».26 O pai dele era

proprietário de uma fábrica e judeu ortodoxo; a mãe vinha de uma

família abastada de industriais judeus. Homem vivido e polido,

com olho para as mulheres, Jacques passara uma temporada na

Rússia, experiência da qual retivera a predileção por cigarros russos.

Gertrude adquiriu a nacionalidade holandesa por via do casamento.

Talvez o processo de naturalização lhe tenha parecido uma mera

formalidade. Só mais tarde se revestiu de maior significado.

Enquanto geólogo a trabalhar em explorações petrolíferas para

a Real Petrolífera Neerlandesa, Jacques exercia a sua atividade so-

bretudo no estrangeiro e, ao longo da década seguinte, o casal levou

uma vida peripatética na Suíça, na África do Sul, no México, no

holocausto a salvacao copy.indd 26 7/3/14 4:37 PM

27

«Uma mulher destruída»

Uganda e em Tanganica. Enquanto o marido trabalhava e viajava,

Gertrude deu à luz dois filhos: uma menina, à qual deu o nome

hebraico de Chedwah Jochewed (conhecida por «Babs»), nasci-

da em Amesterdão, em 1921; e um menino, David, nascido no

México em 1923. Gertrude pôs de parte a carreira profissional e cui-

dou das crianças. Enfrentaram vários desafios: cobras, gafanhotos

e incêndios em África; marabuntas, banditismo e a revolução no

México. Viveram vários anos numa bela casa antiga de estilo holan-

dês, com magníficos jardins, numa propriedade de 12 hectares em

Inanda, perto de Joanesburgo. Pareciam felizes com o casamento,

embora ela ficasse muitas vezes transtornada com o mau génio de

Jacques.

Gertrude herdou dessas experiências uma atitude cosmopolita,

um interesse duradoiro em questões de política internacional, uma

resistência estoica face a mudanças súbitas de sorte e nas condições

de vida, bem como a capacidade de tratar com eficácia e frontalidade

com toda a espécie de pessoas, independentemente da classe social,

da raça e do sexo. Reforçou a sua compaixão pelos desamparados

e o desejo ainda vago de fazer tudo o que pudesse para melhorar a

vida deles.

Ao fim de mais de uma década passada no exterior, a família

retornou à Europa. No regresso de África, passaram quatro semanas

na Palestina. Foi a primeira visita de Gertrude à pátria dos sionis-

tas, então governada pela Grã-Bretanha, mandatada pela Sociedade

das Nações. Tiveram oportunidade de constatar os avanços feitos ao

longo da década anterior rumo à fundação da Pátria Judaica. Admi-

tiram, durante pouco tempo, a hipótese de se fixarem ali. Gertrude

adorava a espiritualidade de Jerusalém e o dinamismo juvenil da

cidade nova de Telavive. Passaram alguns dias no kibbutz de Ein

Harod, no vale de Jezrael. Contudo, Jacques não tinha perspeti-

vas de emprego na Palestina e ambos sentiram que «não teríamos

holocausto a salvacao copy.indd 27 7/3/14 4:37 PM

Do Holocausto à Salvação

28

coragem para viver numa das colónias e para nos tornarmos cam-

poneses».27 Em inícios de 1932, tornaram a aterrar na Holanda, país

onde Gertrude permaneceria nos 12 anos seguintes e que foi palco

da tragédia histórica fulcral da sua vida.

holocausto a salvacao copy.indd 28 7/3/14 4:37 PM