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A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa [email protected] www.marcador.pt facebook.com/marcadoreditora © 2016 Direitos da edição portuguesa reservados para Marcador Editora uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena Copyright © 2015, Leonard Mlodinow Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer forma sem permissão por escrito do proprietário legal. Publicado por acordo com Penguin Random House. Título original: The Upright Thinkers Título: De Primatas a Astronautas -– A longa viagem do homem, da vida nas árvores ao entendimento do cosmos Autor: Leonard Mlodinow Tradução: Fátima Martins Revisão: Paula Caetano Paginação: Maria João Gomes Mapas: Mapping Specialists Capa: Ideias com Peso/Marcador Editora Impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. ISBN: 978-989-754-250-3 Depósito legal: 410 650/16 1.ª edição: junho de 2016

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A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

[email protected]/marcadoreditora

© 2016Direitos da edição portuguesa reservados para Marcador Editorauma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 Barcarena

Copyright © 2015, Leonard MlodinowTodos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer forma sem permissão por escrito do proprietário legal.Publicado por acordo com Penguin Random House.

Título original: The Upright ThinkersTítulo: De Primatas a Astronautas -– A longa viagem do homem, da vida nas árvores ao entendimento do cosmosAutor: Leonard MlodinowTradução: Fátima MartinsRevisão: Paula CaetanoPaginação: Maria João GomesMapas: Mapping SpecialistsCapa: Ideias com Peso/Marcador EditoraImpressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.

ISBN: 978-989-754-250-3Depósito legal: 410 650/16

1.ª edição: junho de 2016

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Índice

Parte I: Das cavernas ao cosmos

1. O nosso desejo de conhecimento ....................................................... 11A avidez de um homem faminto de conhecimento… A odisseia humana em busca da descoberta

2. Curiosidade ....................................................................................... 19Os lagartos não fazem perguntas… Do Homo habilis ao Homo sapiens sapiens… Perguntas feitas por crianças, mas não por chimpanzés

3. Cultura ............................................................................................... 36A primeira igreja da humanidade… Conhecimento, ideias e valores que se tornaram virais… Cultura humana e primata

4. Civilização ......................................................................................... 54Da savana até à cidade… Como os feitiços e as enxaquecas dos vizinhos nos conduziram às novas artes da escrita e da aritmética… A invenção da lei, da que recai sobre o camponês: «Não vomite em cursos de água» à que recai sobre o planeta: «Não se afaste da sua órbita.»

5. Razão ................................................................................................. 79Más colheitas e deuses irados… Uma nova forma de ver o mundo… O mistério da mudança e a tirania do senso comum… Aristóteles, a Wikipé-dia num homem só

Parte II: as ciências

6. Um novo caminho para a razão ....................................................... 105Confie nos seus olhos e não nos dos seus antepassados… Javalis castrados e leis universais sobre o movimento… A falta de tato do Professor Galileu

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LEONARD MLODINOW

7. O universo mecânico ....................................................................... 136O bom, o mau e o feio: Isaac Newton… A aposta que transformou o alquimista no autor do maior tratado científico alguma vez escrito… A força do pensamento newtoniano

8. De que são feitas as coisas ............................................................... 173Do embalsamamento à alquimia… As semelhanças entre combustão e respiração… Lavoisier perde a cabeça… Mendeleev e a sua tabela perió-dica

9. O mundo animado .......................................................................... 209As células e a complexidade da vida… Uma receita para fabricar ratos e a revolução do microscópio… Tragédia, doença e a investigação secreta de Darwin

Parte III: Para lá Dos sentiDos humanos

10. Os limites da experiência humana ................................................. 243Os biliões de biliões de universos minúsculos numa gota de água… Fa-lhas na visão newtoniana… Aceitar uma realidade não visível… Planck e Einstein inventam o quantum

11. O reino do invisível ........................................................................ 276 As reflexões de um sonhador… As ideias loucas de um jovem pálido e modesto… As precoces leis do quantum, «disparate terrível, roçando a fraude»

12. A revolução quântica ..................................................................... 294A nova física de Heisenberg… A bizarra realidade do universo quântico… O poderoso e tímido legado de uma nova ciência

Epílogo ................................................................................................ 325O avanço do entendimento humano como uma sucessão de fantasias… A importância do pensamento crítico e inovador… O lugar onde estamos e para onde vamos

Agradecimentos .................................................................................. 333

Notas ................................................................................................... 335

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Parte I

Das cavernas ao cosmos

«A mais bela e profunda experiência que um homem pode ter é a sensação do mistério. É o princípio fundamental da religião, bem como o de todo o esforço sério que está na base da arte e da ciência. Parece-me que todo aquele que nunca passou por esta experiência, se não está morto, estará, pelo menos, cego.»

Albert Einstein, My Credo, 1932

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O nosso desejo de conhecimento

Um dia, o meu pai falou-me de um homem macilento que, tal como ele, estava preso no campo de concentração de Buchenwald e que estudara matemática. Mesmo num campo de morte nazi é possí-

vel analisar as pessoas com base no que elas pensam quando ouvem falar do termo «pi». Para o «matemático», o «pi» era a razão entre o perímetro e o diâmetro de um círculo. Para o meu pai, que tinha apenas o sétimo ano do ensino básico, o «pi» era um círculo de massa recheado com maçãs*. Um dia, apesar do abismo que os separava, o matemático prisioneiro propôs ao meu pai que resolvesse um enigma. Durante alguns dias, o meu pai pensou nesse quebra-cabeças, mas não conseguiu descobrir a solução. Quando voltou a ver o companheiro, perguntou-lhe qual era a solução do problema. O homem não quis revelar-lha, dizendo que deve-ria ser ele a descobri-la sozinho. Algum tempo depois, o meu pai voltou a pedir-lhe a solução, mas o homem guardou o seu segredo como se fosse uma barra de ouro. O meu pai tentou reprimir a sua curiosidade, mas não conseguiu. No meio da fetidez e da morte que o rodeavam, tornou--se obcecado pela descoberta da resposta. Por fim, o outro prisioneiro propôs-lhe que fizessem um acordo – ele revelaria a solução do enigma se o meu pai lhe entregasse a sua côdea de pão. Não sei quanto é que o meu pai pesaria naquela altura, mas quando as tropas americanas o liber-taram pesava apenas 38,5 quilos. Ainda assim, a sua necessidade de saber era tão forte que cedeu o pedaço de pão em troca da resposta.

Eu já estava no fim da adolescência quando o meu pai me contou este episódio, que me chocou bastante. Toda a sua família fora mor-ta, os bens confiscados, o seu corpo estava faminto e debilitado, e fora

* Trocadilho entre os termos «pi» (símbolo matemático) e «pie» (tarte) que em inglês se pronunciam da mesma forma. (NT)

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DAS CAVERNAS AO COSMOS

espancado. Os nazis tinham-no despojado de tudo o que era palpável, mas a ânsia de pensar, raciocinar e querer saber haviam sobrevivido. Ele estava preso, mas a sua mente era livre de vaguear e foi isso que ele fez. Então, apercebi-me de que a busca pelo conhecimento é o mais humano de todos os desejos e que, apesar de estarmos em circunstâncias dife-rentes, a minha paixão por entender o mundo era impulsionada por um instinto igual ao do meu pai.

Durante e mesmo após o meu curso universitário em ciências, o meu pai costumava questionar-me, não tanto sobre os aspetos técnicos do que eu aprendia, mas mais sobre os pressupostos subjacentes – de onde vinham as teorias, por que razão via nelas tanta beleza e que diziam elas sobre nós enquanto seres humanos. Este livro, escrito algumas décadas mais tarde, é a minha derradeira tentativa para responder a todas essas questões.

* * *

Há alguns milhões de anos, os humanos começaram a pôr-se de pé, provocando alterações nos nossos sistemas muscular e esquelético, de forma a conseguirem deslocar-se numa postura ereta, ficando assim com as mãos livres para inspecionar e manipular os objetos à sua volta, e alargaram os limites da visão para conseguirem explorar distâncias mais longínquas. Contudo, à medida que nos erguíamos, elevávamos também a nossa inteligência acima dos restantes animais, o que nos permitiu ex-plorar o mundo, não apenas através do sentido da visão, mas também através dos nossos pensamentos. Tornámo-nos bípedes, mas, acima de tudo, tornámo-nos pensadores.

A nobreza da espécie humana reside no ímpeto por saber, e a nossa singularidade enquanto espécie reflete-se no sucesso de tudo o que con-seguimos adquirir, após milénios de esforço, a tentar decifrar o quebra--cabeças que é a própria natureza. Qualquer antepassado nosso a quem fosse dado um forno micro-ondas para aquecer um bocado de carne de bisonte poderia ter imaginado que dentro daquele objeto haveria um exército de trabalhadores, como deuses do tamanho de ervilhas, que pro-duziriam fogueiras em miniatura debaixo da comida e que, milagrosa-mente, desapareceriam assim que a porta se abrisse. Todavia, igualmente milagrosa é a própria verdade – já que um punhado de leis abstratas,

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simples e invioláveis, pode ser responsável por tudo o que acontece no nosso Universo, desde o funcionamento do micro-ondas até às maravi-lhas naturais do mundo que nos rodeia.

À medida que a nossa compreensão do mundo natural evoluiu, deixámos de acreditar que as marés são controladas por uma deusa, para passar a entender esse fenómeno como o resultado de uma força gravitacional exercida pela Lua e deixámos de pensar nas estrelas como deuses suspensos no céu, para passar a identificá-las como fornalhas nucleares que enviam fotões na nossa direção. Hoje, entendemos o funcionamento interno do nosso Sol a 160 milhões de quilómetros e a estrutura de um átomo, cujas dimensões são biliões de vezes mais pequenas do que nós próprios. Ter conseguido descodificar estes e outros fenómenos naturais não é apenas algo maravilhoso. É também uma história épica e fascinante.

Há algum tempo atrás, trabalhei durante um ano com a equipa de argumentistas da série de televisão Star Trek: A Geração Seguinte. Na pri-meira reunião em que estive presente, numa mesa de argumentistas e produtores, surgiu-me uma ideia para um episódio que me deixou en-tusiasmado, pois envolvia a realidade astrofísica do vento solar. Todos os olhares estavam concentrados em mim, o tipo novo, o físico, no meio deles, enquanto eu, entusiasticamente, desenvolvia a minha ideia e a ciên-cia que se encontrava por detrás dela. Quando terminei – a exposição durara menos de um minuto – olhei com grande orgulho e satisfação para o meu chefe, um produtor de meia-idade carrancudo que já fora inspetor de homicídios da Polícia de Nova Iorque. Fitou-me por alguns momentos, no seu rosto notava-se uma estranha e indecifrável expressão e, finalmente, deu um berro: «Cale-se, seu intelectual de merda!»

Quando me recompus do meu embaraço, percebi que o que ele esta-va a dizer-me, daquela forma tão sucinta, era que me tinham contratado pela minha habilidade de contador de histórias e não para dar uma aula intensiva sobre a física das estrelas. A observação fora pertinente e, desde então, deixei que tal facto passasse a orientar a minha escrita (isso e outra sugestão inesquecível que ele me deu: se alguma vez sentir que vai ser despedido, trate de diminuir a temperatura da água da piscina).

Nas mãos erradas, a ciência pode tornar-se incrivelmente aborreci-da. Mas a história daquilo que sabemos e da forma como lá chegámos não é, de todo, enfadonha. É surpreendentemente excitante. É repleta

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de episódios inteiros feitos de descobertas que não ficam atrás de um episódio do Star Trek ou da nossa primeira viagem à Lua. Tem um elenco de personagens tão apaixonantes e peculiares como aqueles que conhe-cemos através da arte, da música e da literatura, e investigadores cuja insaciável curiosidade conduziu a nossa espécie desde as suas origens na savana africana até à sociedade na qual vivemos atualmente.

Como conseguiram fazer isso? Como deixámos de ser uma espécie que mal conseguia andar direita, sobre os dois pés, e que vivia de fru-tos e bagas que conseguia apanhar com as mãos nuas, para passarmos a conduzir aviões, enviar mensagens instantâneas para outras partes do mundo e recriar em enormes laboratórios as condições do princípio do Universo? Esta é a história que quero aqui contar, pois conhecê-la significa compreender a nossa herança enquanto seres humanos.

* * *

Tornou-se um lugar-comum dizer que vivemos, atualmente, num mundo globalizado. No entanto, ainda que as distâncias e as diferenças entre os países estejam efetivamente a diminuir, as diferenças entre o hoje e o amanhã estão a crescer. Quando as primeiras cidades foram construídas, por volta do ano 4000 a.C., a forma mais rápida de percorrer longas distâncias era em caravanas de camelos que, em média, não an-davam mais do que alguns quilómetros por hora. A certa altura, algures entre mil a dois mil anos mais tarde, foi inventada a carroça, atingindo-se, então, uma velocidade máxima de cerca de 32 quilómetros por hora.1

Só no século xix, com a locomotiva a vapor, se conseguiu finalmen-te viajar com grande rapidez, conseguindo-se atingir, até ao final desse século, velocidades na ordem dos 160 quilómetros por hora. Contudo, enquanto foram necessários dois milhões de anos para que os humanos passassem de uma velocidade de 15 quilómetros por hora em passo de corrida até conseguirem acelerar pelas estradas a uma velocidade de 160 quilómetros por hora, foram precisos apenas 50 anos para multiplicar essa velocidade por 10, com a criação de um avião que conseguiria voar a 1 600 quilómetros por hora. Nos anos 80, os humanos viajavam já a mais de 27 mil quilómetros por hora numa nave espacial.

A evolução de outras tecnologias demonstra uma aceleração seme-lhante. Vejamos o campo das telecomunicações: no século xix, a agência

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de notícias Reuters ainda usava pombos-correios para divulgar os valores das ações da bolsa entre as cidades.2 Contudo, em meados do século xix, o telégrafo torna-se, então, amplamente disponível e, no século xx, tam-bém o telefone. No entanto, enquanto foram necessários 81 anos para o telefone fixo alcançar 75% de inserção no mercado, o telemóvel alcançou esse mesmo valor em apenas 28 anos e os smartphones em 13 anos. Hoje em dia, tanto o email como as mensagens de texto suplantaram as chama-das telefónicas, enquanto instrumento de comunicação, e o uso das redes sociais superou o triplo entre 2006 e o presente, ao mesmo tempo que o telefone é cada vez mais utilizado não como telefone, mas enquanto computador de bolso.

O economista Kenneth Boulding afirmou que «o mundo atual é tão diferente do mundo em que nasci como esse mundo era do de Júlio César».3

Boulding nasceu em 1910 e morreu em 1993. As mudanças que tes-temunhou – e tantas outras que ocorreram desde então – foram produto da ciência e da tecnologia. Mais do que nunca, essas mudanças são parte integrante da vida humana e o nosso sucesso no trabalho e na sociedade baseia-se, cada vez mais, na nossa capacidade de criar inovações. Hoje em dia, mesmo os que não trabalham em ciência e tecnologia enfrentam desafios que os obrigam a inovar, se quiserem manter a competitividade. Logo, a natureza da descoberta é um tema importante para todos nós.

Para que possamos ter uma perspetiva de onde estamos e compreen-der para onde vamos, temos de saber de onde vimos. Os maiores triunfos da história intelectual da humanidade – a escrita, a matemática, a filosofia natural e as várias ciências – são normalmente apresentados isoladamen-te, como se cada uma destas matérias não estivesse relacionada com as restantes. Contudo, essa abordagem enfatiza as árvores, mas não a flo-resta, negligenciando, por si só, a unidade do conhecimento humano. O desenvolvimento da ciência moderna, por exemplo – frequentemente apresentado como obra de «génios isolados» tais como Galileu e Newton – não surgiu de um vazio social ou cultural.

Teve origem na abordagem ao conhecimento feita pelos Gregos antigos; cresceu a partir das grandes questões formuladas pela religião; desenvolveu-se de mãos dadas com uma nova conceção da arte, foi co-lorida pelas lições de alquimia e teria sido impossível sem o progresso social que houve desde o desenvolvimento das grandes universidades

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na Europa até às banais invenções, tais como os sistemas de correios que ampliaram a ligação entre cidades e países vizinhos. Similarmente, o iluminismo grego acabou também por surgir a partir das surpreendentes criações intelectuais de povos anteriores, em zonas como a Mesopotâmia e o Egito.

Como resultado de tais influências e ligações, os relatos de como os seres humanos passaram a entender o cosmos não se resumem a vinhe-tas isoladas. Tal como as melhores obras de ficção, estes relatos formam uma narrativa coerente, um todo cujas partes se encontram interligadas e que tem o seu início no despertar da humanidade. Nas próximas páginas, irei conduzir-vos numa visita guiada sobre essa odisseia de descobertas.

O nosso percurso começa com o desenvolvimento da mente humana moderna e apresenta os momentos mais críticos e os pontos de viragem a partir dos quais essa mente deu origem a novas formas de olhar o mun-do. Ao longo de todo o trajeto, irei também retratar algumas personagens fascinantes, cujas maneiras de pensar peculiares desempenharam um papel importante nessas inovações.

Tal como muitas outras narrativas, esta será narrada em três partes. A Parte I, que abrange milhões de anos, traça a evolução do cérebro hu-mano e a sua propensão para perguntar «Porquê?». Foram os nossos por-quês que nos levaram às primeiras investigações e à liderança espiritual, e que, por fim, acabaram por conduzir ao desenvolvimento da escrita, da matemática e ao conceito de leis – as ferramentas necessárias para a ciên-cia. Em última análise, esses porquês culminam na invenção da filosofia, na perceção de que o mundo material funciona de acordo com a poesia e com a razão, e de que, em princípio, pode ser compreendido.

A fase seguinte da nossa viagem explora o nascimento das ciências exatas. É uma história de revolucionários que tiveram o dom de ver o mundo de uma forma diferente e a paciência, a garra, o brilhantismo e a coragem de continuar a lutar durante muitos anos, por vezes décadas, para desenvolver as suas ideias. Esses pioneiros – pensadores como Galileu, Newton, Lavoisier e Darwin – tiveram de lutar longa e ardua-mente contra as doutrinas estabelecidas do seu tempo. Por isso, as suas histórias acabaram por se transformar em inevitáveis relatos de lutas pes-soais, envolvendo por vezes apostas tão altas quanto a própria vida.

Finalmente, tal como nas boas histórias, o nosso relato toma um rumo inesperado no momento exato em que os seus heróis têm razões

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para pensar que estão perto do fim da viagem. Pois, no preciso instante em que a humanidade acreditou ter decifrado todas as leis da natureza, como numa estranha reviravolta do enredo, pensadores como Einstein, Bohr e Heisenberg descobriram um novo território da existência, um reino invisível no qual essas leis tiveram de ser reformuladas. Nesse «ou-tro» mundo – com as suas leis «extramundo» – tudo se manifesta numa escala demasiado pequena para que possa ser diretamente apreendido: o microcosmos do átomo, regido pelas leis da física quântica. São essas leis as responsáveis pelas enormes e constantes mudanças que a sociedade atual experiencia a um ritmo acelerado, já que foi o nosso entendimento do quantum que tornou possível a invenção dos computadores, dos tele-móveis, das televisões, dos lasers, da internet, dos exames médicos ima-giológicos, do mapeamento do código genético e da maioria das novas tecnologias que revolucionaram a vida moderna.

Enquanto a Parte I do livro cobre milhões de anos e a Parte II cente-nas, a Parte III abrange apenas algumas décadas, refletindo a aceleração exponencial da acumulação do conhecimento humano – e o caráter des-bravador das nossas incursões nesse estranho novo mundo.

* * *

A odisseia das descobertas humanas estende-se ao longo de muitas eras, mas os temas da nossa demanda para entender o mundo nunca variam, pois surgem da própria natureza humana. Um desses temas é familiar a qualquer pessoa que trabalhe em algum campo dedicado à ino-vação e à descoberta: a dificuldade em conceber um mundo ou uma ideia diferente do mundo ou das ideias que já conhecemos.

Nos anos 50, Isaac Asimov, um dos maiores e mais criativos autores de ficção científica de todos os tempos, escreveu a trilogia Fundação, uma série de romances que se passam no futuro, daqui a muitos mi-lhares de anos. Nesses livros, os homens vão e vêm diariamente, vão trabalhar para os escritórios e as mulheres ficam em casa. Em apenas algumas décadas, essa visão de um futuro distante tornou-se já algo do passado. Faço este comentário, pois ilustra uma limitação quase univer-sal do pensamento humano: a nossa criatividade é limitada pelo pensa-mento convencional, decorrente de crenças inabaláveis que nunca foram sequer questionadas.

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O outro lado da dificuldade de conceber uma mudança é a dificulda-de de a aceitar, e este é outro tema recorrente na nossa história. Os seres humanos chegam a considerar que determinadas mudanças podem ser avassaladoras, pois as mudanças exigem muito das nossas mentes, reti-ram-nos da nossa zona de conforto, rompem os nossos hábitos mentais e geram confusão e desorientação. Exigem que abandonemos as velhas formas de pensar, e esse abandono não é uma escolha, mas uma impo-sição. Além disso, as mudanças resultantes do progresso científico fre-quentemente derrubam paradigmas e convicções de um grande número de pessoas – podendo, por vezes, afetar até as suas carreiras e os seus meios de subsistência. Por isso, é comum que as novas ideias científicas sejam recebidas com resistência, com raiva, e que sejam mesmo conside-radas ridículas.

A ciência é a alma da tecnologia moderna, a base da civilização mo-derna. Apoia muitas das questões políticas, religiosas e éticas dos nossos dias e os conceitos que lhes são subjacentes estão a transformar a socie-dade a um ritmo cada vez mais acelerado. Contudo, assim como a ciência desempenha um papel fundamental na formação dos padrões do pensa-mento humano, também é verdade que os padrões do pensamento hu-mano desempenham um papel igualmente fundamental na formação das teorias científicas. Pois, a ciência é, tal como foi observado por Einstein, «tão subjetiva e psicologicamente condicionada quanto qualquer outro ramo do empreendimento humano».4 Este livro é, assim, uma tentativa de descrever o desenvolvimento da ciência dentro desse espírito – como um esforço conjunto do intelecto e da cultura – cujas ideias podem ser mais bem entendidas através de um exame das situações pessoais, psico-lógicas, históricas e sociais que o moldaram. Olhar para a ciência dessa forma esclarece não só o esforço em si, mas também a natureza da cria-tividade e da inovação, e, de um modo mais amplo, a condição humana.

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Curiosidade

Para entender as raízes da ciência, é necessário olhar para trás, para as raízes da espécie humana. Apenas os humanos são dotados da capacidade e do desejo de se entenderem a si próprios e ao

mundo. Essa é uma das grandes dádivas que nos distingue dos outros animais e é por causa disso que estudamos ratos e porcos-da-índia, e o inverso não acontece. O desejo de saber, de refletir e de criar, exercido ao longo de milhares de milénios de anos, forneceu-nos as ferramentas para sobreviver, para construir um nicho ecológico único para a nossa espécie. Usando, sobretudo, o poder do nosso intelecto em vez do físico, moldámos o meio ambiente de acordo com as nossas necessidades, não permitindo que o ambiente nos moldasse ou derrotasse. Durante mi-lhões de anos, a força e a criatividade da nossa mente triunfaram sobre os obstáculos que desafiaram a força e a agilidade dos nossos corpos.

Quando era pequeno, o meu filho Nicolai gostava de caçar lagartixas e fazer delas animais de estimação – algo perfeitamente possível quando se vive no sul da Califórnia. Começámos a perceber que, sempre que nos aproximávamos, os animais começavam por ficar imóveis e assim que estendíamos a mão, fugiam. Descobrimos, por fim, que se colocássemos uma caixa sobre a lagartixa antes que ela desatasse a fugir, podíamos, depois, enfiar um bocado de papelão por baixo para concluir a captura. No meu caso, quando ando por uma rua deserta e escura e sinto alguma coisa suspeita, não fico imóvel; atravesso imediatamente para o outro lado. Assim, é fácil supor que, se eu visse dois predadores gigantes a caminharem na minha direção, de olhar ávido e a carregarem uma caixa gigantesca, imaginaria o pior e desataria de imediato a fugir. As lagartixas, porém, não questionam a situação em que se encontram. Elas, pura e simplesmente, agem por instinto. Sem dúvida que esse instinto terá sido

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extremamente útil ao longo dos diversos milhões de anos que precede-ram Nicolai e a sua caixa, mas, neste caso, não funcionou.

Os humanos podem não ser a espécie com o físico mais desenvol-vido, mas têm a capacidade de complementar o instinto com a razão e – mais importante ainda para os nossos propósitos – a capacidade de fazer perguntas sobre o ambiente que os rodeia. São esses os pré-requisitos do pensamento científico e, também, as características cruciais da nossa espécie. É, pois, assim que a nossa aventura começa: com o desenvolvi-mento do cérebro humano e as suas características exclusivas. Chama-mo-nos, a nós próprios, de espécie «humana» mas, na verdade, a palavra «humana» não se refere apenas a nós – Homo sapiens sapiens –, mas a todo um género chamado Homo. Esse género inclui outras espécies, como o Homo habilis e o Homo erectus, só que esses antepassados já se extinguiram há muito tempo. No campeonato de eliminatórias que se chama evolu-ção, todas as outras espécies humanas revelaram-se inadequadas. Apenas nós, através do poder da nossa mente, correspondemos (até agora) a todos os desafios da sobrevivência. Ainda não há muito tempo, o ho-mem que era então presidente do Irão foi citado por dizer que os judeus descendiam de macacos e porcos. É sempre reconfortante quando um fundamentalista, seja de que religião for, admite acreditar na evolução. Só por isso chego a hesitar antes de começar a criticá-lo. Mas, na verdade, os judeus – assim como todos os seres humanos – não descendem de macacos e de porcos, mas de símios e de ratos ou, pelo menos, de cria-turas semelhantes a ratos1. Apelidada de Protungulatum donnae na literatura científica, a nossa tetra-tetra-tetravó – a progenitora dos nossos antepas-sados primatas e de todos os mamíferos como nós – parece ter sido um engraçado espécime de cauda peluda que não pesava mais do que 250 gramas. Os cientistas acreditam que esses animais minúsculos corriam pelos seus habitats há aproximadamente 66 milhões de anos, pouco tem-po depois de um asteroide de 9,5 quilómetros de diâmetro ter colidido com a Terra. Essa colisão tão catastrófica levantou tanta poeira na atmos-fera que isolou o planeta dos raios solares durante um longo período de tempo – e gerou gases de efeito de estufa que provocaram um enorme aumento da temperatura assim que a poeira começou a assentar. Este duplo golpe, a escuridão seguida do calor, matou cerca de 75% de todas as espécies de plantas e de animais, mas, para nós, foi uma sorte, pois criou um nicho ecológico no qual os animais, que deram à luz crias vivas,

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conseguiram sobreviver e evoluir sem serem devorados pelos insaciáveis dinossauros e por outros predadores. Ao longo dos 10 milhões de anos seguintes, com o aparecimento e com a extinção de novas espécies, um ramo da árvore genealógica do Protungulatum evoluiu até dar origem aos nossos antepassados símios e aos macacos, com novas ramificações que originaram os nossos parentes vivos mais próximos, os chimpanzés e os bonobos (chimpanzés-pigmeus), até chegar a si, ao leitor deste livro, e aos seus colegas humanos.

Conceção artística do Protungulatum 2

Hoje, a maior parte das pessoas sente-se confortável com o facto de uma nossa antepassada poder ter uma cauda e comer insetos. Pessoal-mente, vou mais além da mera aceitação: a ancestralidade e a história da nossa sobrevivência e evolução cultural fascinam-me e empolgam-me. O facto de os nossos antepassados terem sido ratos e símios é um dos aspetos mais espetaculares da natureza: neste nosso incrível planeta, um rato com mais de 66 milhões de anos deu origem aos próprios cien-tistas que estudam o rato, descobrindo, assim, as suas próprias raízes. Nesse longo percurso, desenvolvemos a cultura, a história, a religião e a ciência, e substituímos os ninhos de gravetos dos nossos antepassados por resplandecentes arranha-céus de cimento e aço. A velocidade desse desenvolvimento intelectual tem vindo a aumentar de uma forma drás-tica. A natureza precisou de cerca de 60 milhões de anos para produzir o «símio», a partir do qual todos os seres humanos descendem; o resto da nossa evolução física ocorreu em poucos milhões de anos; a nossa evolução cultural não precisou de mais do que 10 mil anos. É como se,

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tal como dizia o psicólogo Julian Jaynes: «Toda a vida tivesse evoluído até certo ponto, e, em nós humanos, formasse um ângulo reto para depois simplesmente explodir numa nova direção.»3

O cérebro dos animais evoluiu basicamente pela mais primitiva das razões: melhorar a capacidade de movimento. A capacidade de se loco-mover – para encontrar comida e abrigo, para escapar dos inimigos – é uma das características mais básicas dos animais. Observando a longa estrada da evolução de animais como nematoides, minhocas e moluscos, descobrimos que as primeiras funções cerebrais controlavam o movi-mento, estimulando certos músculos na ordem correta. Mas o movimen-to de nada adianta sem a capacidade de perceber o ambiente e, por isso, até os animais mais simples dispõem de alguma aptidão para sentir o que se encontra ao seu redor – células que reagem a determinados produtos químicos, por exemplo, ou a fotões de luz, enviando impulsos elétricos para os nervos que regem o controlo do movimento. Quando a Protun-gulatum donnae apareceu, essas células químicas e fotossensíveis tinham evoluído para os sentidos do olfato e da visão, e o feixe de nervos que controlava o movimento muscular transformou-se em cérebro. Ninguém sabe exatamente como é que o cérebro dos nossos antepassados se orga-nizou em componentes funcionais, porém, até hoje, no cérebro humano moderno, mais de metade dos neurónios é dedicada ao controlo motor e aos cinco sentidos. No entanto, a parte do nosso cérebro que nos distin-gue dos animais «inferiores» é relativamente pequena e tardou a chegar.

Uma das primeiras criaturas quase humanas deambulou pela Terra há apenas 3 ou 4 milhões de anos.4 Era desconhecida para nós até que, num dia quente de 1974, um antropólogo chamado Donald Johanson, do Instituto das Origens Humanas de Berkeley, tropeçou num minúsculo fragmento de um osso do braço que despontava do solo ressequido de uma ravina árida, no remoto norte da Etiópia. De imediato, Johanson e um estudante desenterraram outros ossos da coxa e das costelas, vérte-bras e até parte de uma mandíbula. Ao todo, encontraram quase metade do esqueleto de uma fêmea. A pélvis era de uma mulher com o crânio pequeno, de pernas curtas e braços longos e oscilantes. Não era alguém que se pudesse convidar para um baile, mas acredita-se que a Australopi-thecines afarensis, com 3,2 milhões de anos de idade, possa ter sido um elo do nosso passado, uma espécie de transição, talvez a antepassada a partir da qual tenha evoluído toda a nossa espécie.

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Johanson designou a nova espécie por Australopithecus afarensis, que significa «símio do sul de Afar», sendo Afar a região da Etiópia onde foi descoberta. Johanson deu, também, nome ao esqueleto: Lucy, por estar a tocar a canção dos Beatles Lucy in the sky with diamonds, quando Johanson e a sua equipa celebravam a descoberta. Andy Warhol dizia que toda a gente consegue os seus quinze minutos de fama e, depois de milhões de anos, aquela mulher tivera, finalmente, o seu momento, ou, para ser mais exato, apenas metade dela, pois a outra metade nunca foi encontrada.

É surpreendente o quanto os antropólogos podem deduzir a partir de metade de um esqueleto. Os grandes dentes de Lucy, com mandíbulas adaptadas para a trituração, sugerem uma dieta vegetariana, consistindo em raízes duras, sementes e frutos de casca grossa.5 A estrutura do es-queleto indica que teria uma enorme barriga, necessária para manter um intestino de grande extensão, a fim de digerir a quantidade de matéria vegetal necessária à sua sobrevivência. O mais importante é que a estru-tura da sua coluna vertebral e os joelhos indicam que ela andava mais ou menos na posição vertical e que o osso de um membro da mesma espécie que Johanson e colegas descobriram nas proximidades, em 2011, revela um pé humanoide, já devidamente arqueado para caminhar, e não para se agarrar aos ramos das árvores.6 A espécie de Lucy evoluíra de uma vida em cima das árvores para a vida no solo, possibilitando que os outros elementos da mesma espécie vagueassem pelo misto de ambientes ecológicos de floresta e de pastagem e pudessem explorar novas fontes de alimentos originários do solo, como raízes e tubérculos ricos em pro-teínas. Aquele era o estilo de vida que muitos acreditam poder ter sido a génese de todo o género Homo. Imagine-se a morar numa casa, com a sua mãe a viver na casa ao lado, e a mãe dela, por sua vez, a viver na casa ao lado da dela e assim por diante. A nossa herança humana não é assim tão linear, mas, complexidades à parte, é interessante imaginar-se a conduzir ao longo dessa rua, recuando no tempo e a deixar para trás várias gera-ções de antepassados. Se o fizesse, teria de conduzir praticamente 6 mil quilómetros para chegar à casa de Lucy,7 uma «mulher» peluda de 1,20 metros de altura e 32 quilos de peso, que mais pareceria um chimpanzé do que um parente seu. Mais ou menos a meio do caminho, iria passar pela casa de um antepassado a 100 mil gerações de distância de Lucy, a primeira espécie mais semelhante à do ser humano atual – no esqueleto e,

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segundo as teorias dos cientistas, na mente – a ser classificada no género Homo.8 Os cientistas chamaram a essa espécie humana, de há 2 milhões de anos, Homo habilis, ou «homem habilidoso».

O Homo habilis vivia nas imensas savanas da África num tempo em que as florestas começavam a diminuir, em consequência das mudanças climáticas. Essas planícies verdejantes não proporcionavam um ambiente fácil, já que serviam de habitat a um grande número de terríveis preda-dores. Os menos perigosos competiam com o homo habilis pelo jantar; os mais perigosos queriam fazer dele o seu próprio jantar. Uma das formas que o Homo habilis encontrou para sobreviver foi através da inteligência, pois já tinha o cérebro maior, do tamanho de uma pequena toranja. Se pensarmos numa escala de salada de frutas, o peso do cérebro era menor que o do nosso melão, mas o dobro da laranja de Lucy.*

Ao comparar espécies diferentes, sabemos por experiência que, em geral, existe uma correlação aproximada entre a capacidade intelectual e o peso médio do cérebro em relação ao tamanho do corpo. Assim, a partir do tamanho do cérebro, podemos concluir que o Homo habilis apresentava uma capacidade intelectual mais desenvolvida do que a de Lucy e da sua espécie. Felizmente, podemos medir o tamanho e a forma do cérebro dos seres humanos e de outros primatas mesmo que a sua espécie já esteja extinta há muito tempo, pois os cérebros encaixam-se nos crânios. Em suma, isso significa que, quando encontramos o crânio de um primata, temos o molde do cérebro que ele protegia.

Para não parecer que estou a defender o tamanho do chapéu como uma referência a ter em conta nos testes de inteligência, devo acrescentar o aviso legal de que, quando os cientistas mencionam medir a inteligên-cia, comparando o tamanho do cérebro, estão apenas a falar de compa-rações entre os tamanhos médios do cérebro de espécies diferentes. O tamanho do cérebro varia bastante entre indivíduos da mesma espécie, no entanto, neste caso, o tamanho do cérebro não está diretamente rela-cionado com a inteligência.7 Por exemplo, o cérebro dos seres humanos modernos pesa, em média, 1,3 quilos. Contudo, o cérebro do poeta inglês Lord Byron pesava cerca de 2,3 quilos, enquanto o do escritor francês e vencedor do Prémio Nobel, Anatole France, pesava pouco mais de 2 qui-los e o cérebro de Einstein pesava 1,5 quilos. Há também o caso de um

* Para aqueles que preferem rigor a fruta, devo dizer que o cérebro do Homo habilis tinha metade do tamanho do nosso.

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homem chamado Daniel Lyons, que morreu em 1907, aos 41 anos. Daniel tinha um peso e uma inteligência normais, porém, quando o cérebro foi pesado na autópsia, observou-se que o ponteiro da balança marcava apenas 680 gramas. A moral da história é que no seio de cada espécie, a arquitetura do cérebro, ou seja, a natureza das conexões entre neurónios e grupos de neurónios, é muito mais importante do que o seu tamanho.

O cérebro de Lucy era pouco maior do que o de um chimpanzé. Mais importante ainda, a forma do seu crânio indicava que o aumento do poder do cérebro estava concentrado nas regiões relacionadas com o processamento sensorial, enquanto os lóbulos frontal, temporal e parie-tal – as regiões do cérebro ligadas ao raciocínio abstrato e à linguagem – permaneciam relativamente subdesenvolvidos. Lucy foi um passo em direção ao género Homo, mas ainda não chegara lá. Isso só mudou com o Homo habilis.

Tal como Lucy, o Homo habilis tornou-se bípede, libertando as mãos para transportar coisas. Contudo, ao contrário de Lucy, usou essa liber-dade para fazer experiências com o ambiente.10 E então, há aproxima-damente 2 milhões de anos, apareceu um Homo habilis Einstein, ou uma Madame Curie, ou – talvez, mais provavelmente, – outros diversos gé-nios antigos a trabalharem de forma independente uns dos outros, que fizeram as primeiras descobertas importantes para a humanidade: se co-meçarmos a partir uma pedra, utilizando uma outra na posição de ângulo agudo, conseguiremos desgastar a pedra até obter uma lasca pontiaguda, uma faca de lâmina afiada.

Aprender a bater com uma pedra na outra não parece ser o início de uma revolução social e cultural, sobretudo se compararmos a produção de uma pedra lascada com a invenção da lâmpada, da internet ou das bolachinhas com pepitas de chocolate. Contudo, foi esse primeiro passo infantil que nos levou ao conhecimento e à transformação da natureza para melhorar a nossa existência, mostrando que podíamos contar com o poder do nosso cérebro para compensar e superar a fragilidade do nosso corpo.

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Homo habilis

Para um ser que nunca viu uma ferramenta de qualquer tipo, uma espécie de dente artificial de tamanho gigante, que pode ser usado para cortar e aparar, é uma invenção revolucionária, e isso ajudou a mudar completamente a maneira de viver dos seres humanos. Lucy e os da sua espécie eram vegetarianos; estudos microscópicos do desgaste dos den-tes do Homo habilis e dos ossos descarnados encontrados perto dos seus esqueletos indicam que os Homo habilis tinham adicionado carne à sua alimentação.11 O vegetarianismo expunha Lucy e os da sua espécie à es-cassez sazonal dos alimentos vegetais. Uma alimentação variada permitiu ajudar o Homo habilis a superar essa escassez. Como a carne tem uma maior concentração de nutrientes do que os vegetais, os carnívoros pre-cisavam de uma quantidade de comida menor do que os vegetarianos. Por outro lado, não é preciso perseguir e matar um ramo de brócolos, mas conseguir obter matéria animal pode tornar-se muito difícil se não se possuírem armas letais. Daí que ele obtivesse a maior parte da carne a

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partir das carcaças deixadas para trás por predadores tais como os tigres dentes-de-sabre que, com poderosas patas dianteiras e presas afiadas, matavam animais muito maiores do que aquilo que conseguiriam con-sumir. No entanto, mesmo a procura desse alimento poderia ser difícil se fosse necessário competir com outras espécies, como era o caso dos Homo habilis. Por isso, da próxima vez que tiver de esperar meia hora por um lugar no seu restaurante preferido, antes de refilar, lembre-se de que os seus antepassados tiveram de lutar contra alcateias de hienas errantes para obterem a sua refeição.

Nessa luta pelo alimento, as pedras lascadas do Homo habilis con-seguiam retirar carne dos ossos mais rápida e facilmente, equilibrando um pouco o jogo com os animais que tinham ferramentas naturais equi-valentes.12 Quando esses instrumentos apareceram, tornaram-se muito populares e passaram a ser a ferramenta humana preferida durante quase 2 milhões de anos. Na verdade, foram as pedras dispersas e encontradas ao lado dos esqueletos do Homo habilis que inspiraram o nome conferido a essa espécie por Louis Leakey e os seus colegas, no início dos anos 60. Desde então, foram encontrados cutelos de pedra em zonas de escavação numa quantidade tão abundante que, frequentemente, é preciso andar com cuidado para não os pisar.

* * *

Uma longa viagem foi feita desde as pedras afiadas até aos transplan-tes de fígado, mas, como se observa pelo uso de ferramentas, a mente do Homo habilis já avançara muito além da capacidade de qualquer um dos nossos antepassados primatas até então existentes. Por exemplo, mesmo depois de muitos anos a serem treinados por investigadores de primatas, os bonobos não conseguem tornar-se hábeis na utilização de uma simples ferramenta de pedra do tipo empregue pelo Homo habilis.13 Estudos recentes feitos a partir de exames imagiológicos neuronais suge-rem que essa capacidade de projetar, planear e usar ferramentas surgiu a partir do desenvolvimento evolutivo de uma rede de ligações especializa-da para o «uso de ferramentas»,14 que se situa no lado esquerdo do cére-bro. Infelizmente, há casos raros em que os seres humanos apresentam danos nessa rede e não conseguem sair-se melhor do que os bonobos:14 conseguem identificar ferramentas, mas, tal como eu, de manhã antes de

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tomar café, não conseguem saber o que fazer com utensílios tão simples como um pente ou uma escova de dentes.

Apesar do progresso do poder cognitivo, essa espécie de homem com mais de 2 milhões de anos – o Homo habilis – não é mais do que uma sombra do homem moderno: tem um cérebro ainda relativamente pequeno e é, também, fisicamente pequeno, com braços longos e um rosto que só um tratador do jardim zoológico conseguiria apreciar. No entanto, depois do seu aparecimento, não tardou muito – na escala de tempo geológica – até começarem a surgir outras espécies diversas de Homo. A mais importante – que a maioria dos especialistas concorda ter sido o antepassado direto da nossa própria espécie – foi o Homo erectus, ou «homem ereto», que teve origem em África, há cerca de 1,8 milhões de anos.16 Restos de esqueletos mostram o Homo erectus como uma es-pécie bastante mais semelhante às atuais do que o Homo habilis, e não só com uma postura mais direita, mas também maior e mais alto – quase 1,5 metros de altura –, com membros longos e um crânio muito maior, que permitiu a expansão dos lóbulos frontal, temporal e parietal do cérebro.

Este novo crânio de maiores dimensões iria ter implicações no pro-cesso do parto. Um problema com o qual os fabricantes de automóveis não precisam de lidar quando reformulam um dos seus modelos, já que é como encaixar o novo Honda na linha de montagem dos mais antigos. Mas a natureza tem de lidar com estas coisas. Assim, no caso do Homo erectus, o novo desenho da cabeça criou alguns problemas. As fêmeas do Homo erectus teriam de ser maiores que as suas antecessoras para conse-guirem dar à luz os seus bebés com uma cabeça e um cérebro maiores. Logo, enquanto a fêmea do Homo habilis era apenas 60% maior do que o macho, a fêmea do Homo erectus pesava em média 85% mais do que o seu companheiro.

Os novos cérebros valeram a pena, pois o Homo erectus assinalou ou-tra mudança abrupta e magnífica na evolução humana. Não só no facto de possuírem uma força massiva ou uns dentes assustadoramente afia-dos, mas muitos investigadores acreditam que passaram a ter uma visão e abordagens novas relativamente ao mundo. O Homo erectus foi o primeiro humano a possuir capacidades de imaginação e de planeamento para a produção de ferramentas complexas de pedra e de madeira – machados, facas e cutelos cuidadosamente trabalhados, que exigiam outras ferramentas para a sua construção. Hoje atribuímos ao nosso cérebro a capacidade

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de criar ciência, tecnologia, arte e literatura, mas a capacidade que o nos-so cérebro possui para conceber ferramentas complexas foi muito mais importante para a nossa espécie, e foram essas mesmas ferramentas e a sua capacidade de aumentar o nosso nível de sobrevivência que tornaram tudo o resto possível. Assim, ainda que para mim uma caçada se resuma ao balcão do talho e que a utilização de ferramentas se associe à profissão de carpinteiro, é bom saber que descendo desses espécimes mais adeptos de coisas práticas – mesmo que tivessem testas salientes e dentes bons para roer palitos.

Com as suas ferramentas avançadas, o Homo erectus podia caçar, e não apenas surripiar, aumentando a quantidade de carne disponível na sua ali-mentação. Se as receitas de carne nos livros modernos começassem por «Cace e abata um bezerro», a maioria das pessoas ficar-se-ia por receitas de livros como As Delícias da Beringela. Todavia, na história da evolução humana, uma maior habilitação para a caça tornou-se um grande salto em frente nessa evolução, possibilitando um maior consumo de proteí-nas e uma menor dependência de grandes quantidades de alimentos ve-getais necessários à sobrevivência. O Homo erectus deve ter sido também a primeira espécie a aprender que a fricção cria calor e a descobrir que o calor cria fogo. Com o fogo, o Homo erectus pôde fazer o que nenhum outro animal conseguia: manter-se quente em climas demasiado frios para suportar a vida.

Essas novas conquistas da mente habilitaram o Homo erectus a ramifi-car-se e a deslocar-se de África para a Europa e para a Ásia e a persistir como espécie durante mais de 1 milhão de anos.

* * *

Se estes avanços na nossa inteligência nos permitiram empreender caçadas mais complexas e produzir ferramentas mais afiadas, também criaram novas necessidades prementes, pois encurralar e caçar um animal maior e mais veloz na savana é mais fácil se for feito por uma equipa de caçadores. Assim, muito antes de formarmos seleções de basquetebol e equipas de futebol, existiu uma pressão evolutiva para que o nosso gé-nero desenvolvesse uma inteligência social e uma capacidade de planea-mento suficientes, a fim de se poderem reunir em bandos com o objetivo de perseguir antílopes e gazelas. O novo estilo de vida do Homo erectus

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favoreceu a sobrevivência dos que conseguiam comunicar e planear me-lhor. Aqui vemos, uma vez mais, a origem da natureza humana moderna enraizada na savana africana.

A dado momento, perto do fim do reinado do Homo erectus, talvez há meio milhão de anos, ele evoluiu para uma nova forma dotada de maior potência cerebral, o Homo sapiens. Aqueles primeiros ou «arcaicos» Homo sapiens ainda não eram seres que pudéssemos reconhecer como os seres humanos atuais. Tinham corpos mais robustos e crânios maiores e mais pesados, mas o cérebro ainda não era tão grande como o nosso. Anato-micamente, os homens modernos são classificados como uma subespé-cie do Homo sapiens que provavelmente só se ramificou a partir dele por volta de 200000 a.C.

No entanto, quase não conseguimos lá chegar. Uma análise surpreen-dente de ADN feita recentemente por antropólogos geneticistas indicou que, há cerca de 140 mil anos, um evento catastrófico – provavelmente relacionado com alterações climáticas – dizimou fileiras de humanos mo-dernos que, nessa altura, viviam todos em África.

Durante esse período, a população total das nossas subespécies di-minuiu para apenas algumas centenas – transformando-nos no que hoje poderíamos apelidar de «espécies ameaçadas», tal como o gorila-das--montanhas ou a baleia-azul. Isaac Newton, Albert Einstein e os outros de quem já ouviu falar, mais os biliões que vivem no mundo atual, são todos descendentes dessas poucas centenas de sobreviventes.17

Essa quase extinção talvez tenha sido um indício de que as novas subespécies, com um cérebro maior, ainda não eram suficientemente in-teligentes para progredirem a longo prazo. Fomos, então, submetidos a outra transformação que nos forneceu novas e surpreendentes capaci-dades mentais. Parece não ser consequência de uma mudança na nossa anatomia física, nem mesmo na anatomia do nosso cérebro, mas de uma reformulação da maneira como o cérebro funciona. Seja o que for que tenha acontecido, essa metamorfose permitiu à nossa espécie produzir cientistas, artistas, teólogos e pessoas que pensam mais ou menos da mesma forma que nós.

Os antropólogos referem-se a essa última transformação mental como o desenvolvimento do «comportamento humano moderno». Quando fa-lam em «comportamento moderno», não se referem a fazer compras ou a tomar bebidas alcoólicas enquanto assistimos a competições desportivas,

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mas ao exercício do pensamento simbólico complexo, o tipo de atividade mental que acabaria por desenvolver a cultura humana atual. Há alguma controvérsia sobre quando isso aconteceu, mas a data mais consensual situa essa transição por volta do ano de 40000 a.C.18

Hoje designamos a nossa subespécie por Homo sapiens sapiens, ou «ho-mem sábio sábio». (É o que dá escolher um nome para a sua própria espécie.) Mas todas essas mudanças que resultaram nos nossos grandes cérebros não nos saíram baratas.

Do ponto de vista do consumo de energia, o cérebro humano mo-derno é o segundo órgão mais dispendioso do corpo, a seguir ao cora-ção.19 Em vez de nos ter dotado de cérebros com elevados custos opera-cionais, a natureza poderia ter-nos concedido músculos mais poderosos, os quais, comparativamente ao cérebro, consomem apenas um décimo de calorias por unidade de massa. No entanto, a natureza preferiu que a nossa espécie não se tornasse a mais apta fisicamente.20

Os seres humanos não são nem particularmente fortes, nem os mais ágeis. Os nossos parentes mais próximos, os chimpanzés e os bonobos, desbravaram caminho até ao nicho ecológico que ocupam através de uma capacidade de tração superior a 544 quilos e dentes fortes e afiados para quebrar facilmente cascas de frutos. (Eu, por outro lado, tenho alguma dificuldade em mastigar pipocas). Em vez de uma impressionante massa muscular, os seres humanos possuem crânios de grande porte, o que nos torna ineficientes na utilização da energia fornecida pelos alimentos – o cérebro, que responde por apenas 2% do peso corporal, consome cerca de 20% da ingestão de calorias. Assim, enquanto outros animais prefe-riram sobreviver na dura vida da selva ou da savana, nós achamos mais apropriado sentarmo-nos num café a beber um cafezinho. Essa escolha não deve, porém, ser subestimada, pois enquanto estamos no café, pen-samos e questionamos.

Em 1918, o psicólogo alemão Wolfgang Köhler publicou um livro destinado a tornar-se um clássico, intitulado A Mentalidade dos Macacos. Tratava-se de um relato de experiências que realizou com chimpanzés em Tenerife, nas ilhas Canárias, quando era diretor da Academia Prus-siana de Ciências. Köhler estava interessado em compreender o modo como os chimpanzés resolviam problemas, tais como a forma de obter um alimento colocado fora do seu alcance, e as suas experiências revela-ram muito sobre as características mentais que partilhamos com outros

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primatas. Contudo, se compararmos o comportamento dos chimpanzés com o nosso, o livro de Köhler também revela muito sobre os talentos humanos que ajudam a compensar as nossas deficiências físicas.

Uma das experiências de Köhler foi particularmente reveladora. Pregou uma banana no teto e observou que os chimpanzés conseguiam aprender a empilhar caixas e a trepar por elas acima para agarrar o fruto, mas pareciam não ter qualquer conhecimento sobre as forças envolvidas em tal processo. Por exemplo, às vezes tentavam empilhar uma caixa virada de esquina, e não pensavam, também, em remover as pedras do chão que poderiam ameaçar a estabilidade das caixas.21

Numa versão atualizada da experiência, ensinou-se os chimpanzés e algumas crianças, com idades compreendidas entre os três e os cinco anos, a empilhar blocos em forma de L para obter uma recompensa. De seguida, os blocos em L foram sorrateiramente substituídos por blocos pesados, que caíam sempre que os chimpanzés e as crianças tentavam empilhá-los. Os chimpanzés persistiram durante algum tempo, utilizan-do a estratégia da tentativa e erro nas várias demandas falhadas com o intuito de ganharem uma recompensa, mas não pararam para examinar os blocos. As crianças também fracassaram na revisão da tarefa (que não era realmente possível), mas simplesmente não desistiram. Continuaram a examinar os blocos, tentando descobrir qual era o problema.22 Desde tenra idade que os seres humanos procuram respostas, um entendimento teórico para o ambiente que os rodeia e que formulam a pergunta «Por-quê?».

Qualquer um que tenha experiência com crianças pequenas conhece a atração que elas têm pela pergunta «Porquê?». Nos anos 1920, o psicó-logo Frank Lorimer oficializou esse facto. Durante quatro dias, observou um menino de quatro anos e anotou todos os porquês que a criança colocou durante esse tempo.23

Foram formuladas quarenta perguntas do tipo: Porque é que o regador tem duas asas? Porque é que temos sobrancelhas? E a minha favorita: Mãe, porque é que não tens barba? As crianças, de qualquer parte do mundo, começam a fazer as suas primeiras perguntas numa idade muito precoce, quando ainda mal balbuciam algumas palavras e antes mesmo de conhecerem a linguagem gramatical. O ato de questionar é tão importante para a nossa espécie que temos até um indicador universal para isso: todas as línguas, sejam elas tonais ou atonais, utilizam sempre uma entoação crescente

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semelhante em presença de contextos interrogativos.24 Certas tradições religiosas veem o questionamento como a mais alta forma de perceção e, tanto na ciência como na indústria, a capacidade de fazer as perguntas certas talvez seja o talento mais requerido. Os chimpanzés e os bonobos, por sua vez, podem aprender a utilizar sinais rudimentares para comu-nicarem com os seus treinadores e, até, para responder a perguntas, mas nunca questionam nada. Podem ser fisicamente muito fortes, mas não são pensadores.

* * *

Se nós, seres humanos, nascemos com uma motivação para com-preender o meio ambiente, também parece que nascemos, ou pelo me-nos que a adquirimos desde cedo, com uma intuição relativamente ao funcionamento das leis da física. Parece que de uma forma inata enten-demos que todos os eventos são causados por outros eventos e dispo-mos de uma intuição rudimentar para leis que, após milénios de esforço, foram descobertas por Isaac Newton.

No Laboratório de Cognição Infantil da Universidade de Illinois, os cientistas passaram os últimos trinta anos a estudar a intuição física dos bebés, reunindo mães e filhos num pequeno palco ou mesa e observando como reagem as crianças aos eventos encenados. A questão científica em causa era: o que sabem essas crianças sobre o mundo físico e quando é que o descobriram? Descobriram que, mesmo na infância, a posse de uma certa intuição, no que diz respeito ao funcionamento da física, é um aspeto essencial no que nos define como seres humanos.

Numa série de estudos, algumas crianças de seis meses eram coloca-das diante de uma pista horizontal que estava ligada a uma rampa.25 Na parte inferior da rampa, os investigadores colocaram um brinquedo com a forma de um inseto sobre rodas. No topo da rampa havia um cilindro. Quando o cilindro era solto, as crianças observavam, excitadas, o objeto enquanto ele descia a rolar e chocava contra o inseto, lançando-o para al-guns centímetros do final da rampa. De seguida, vinha a parte que deixa-va, também, os investigadores excitados: se eles reproduzissem a experiência com um cilindro de tamanho diferente e o colocassem no topo da rampa será que as crianças conseguiriam prever que, depois da colisão, o inseto seria lançado para uma distância proporcional ao tamanho do cilindro?